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A normalista

Adolfo Caminha

João Maciel da Mata Gadelha, conhecido em Fortaleza por João da Mata, habitava, há anos, no Trilho, uma casinhola de porta e janela, cor de açafrão, com a frente encardida pela fuligem das locomotivas que diariamente cruzavam defronte, e de onde se avistava a Estação da linha férrea de Baturité. Era amanuense, amigado, e gostava de jogar víspora em família aos domingos.

Nessa noite estavam reunidas as pessoas do costume. Ao centro da sala, em torno de uma mesa coberta com um pano xadrez, à luz parca de um candeeiro de louça esfumado, em forma de abajur, corriam os olhos sobre as velhas coleções desbotadas, enquanto uma voz fina de mulher flauteava arrastando as sílabas numa cadência morosa: -Vin... te e quatro! Sessen... ta e nove!... Cinqüen... ta e seis!...

Havia um silêncio morno e concentrado em que destacava o rolar abafado das pedras no saquinho da baeta verde.

A sala era estreita, sem teto, chão de tijolo, com duas portas para o interior da casa, paredes escorridas pedindo uma caiação geral. À direita, defronte da janela, dormia um velho piano de aspecto pobre, encimado por um espelho não menos gasto. O resto da mobília compunha-se de algumas cadeiras, um sofá entre as duas portas do fundo, a mesa do centro, e uma espécie de console, colocada à esquerda, onde pousavam dois jarros com flores artificiais.

De onde em onde zunia o falsete do amanuense:

-Quadra! Ou caçoava: -Os anos de Cristo!... Os óculos do Padre Eterno!

Risadinhas explodiam a espaços, gostosas, indiscretas -uma pilhéria ricocheteava nos quatro ângulos da mesa.

-É boa! É boa! fazia João da Mata erguendo a cabeça, mostrando a dentuça.

Depois voltava o silêncio, e a voz fina de mulher continuava a cantar os números solenemente.

-Víspora! saltou de repente um rapazola de óculos, bigodinho fino, flor na botoeira do fraque de casimira clara.

Toda gente o conhecia -era o Zuza, quintanista de direito, filho do coronel Souza Nunes.

-Podem conferir, disse erguendo-se, risonho -segunda linha. E estendeu o braço, passando o cartão para o amanuense.

-Não desmarquem, não desmarquem, recomendou este espalmando a mão. Pode ter sido engano. Errare humanum est...

Houve um ligeiro sussurro de vozes e de caroços rolando sobre a mesa com um surdo ruído de contas desfiadas. Todos desfizeram as marcações.

Numa das extremidades sentava-se João da Mata, de paletó de fazenda parda sobre a camisa de meia, costas para a rua.

À direita mexia-se uma senhora gorducha, de seus trinta anos, metida num casaco frouxo de rendas, cabelo penteado em cocó, estampa insinuante, bons dentes: era a mulher do amanuense, que passava por sua legítima esposa não obstante as insinuações malévolas da alcovitice vilã que entrevira escândalos na vida privada de D. Terezinha. Contudo, era tida em conta de excelente dona-de-casa, honesta, dizendo-se relacionada com as principais famílias de Fortaleza.

Ninguém ousava mesmo dirigir-lhe um gracejo de mau gosto, uma pilhéria calculada. Inventava-se -calúnias do populacho- que se correspondia ocultamente com o presidente da província. Ela, porém, gabava, batendo no peito com orgulho, que tinha uma vida limpa, graças a Deus; que isso de patifarias não lhe entrava em casa, não, mas era o mesmo. Estava ali o Janjão que não a deixava mentir.

Ao pé de D. Terezinha aprumava-se Maria do Carmo, afilhada de João, uma rapariga muito nova, com um belo arzinho de noviça, morena-clara, olhos cor de azeitonas, carnes rijas, e cuja atenção volvia-se insistentemente para o Zuza.

As outras pessoas eram também da intimidade: o Loureiro, guardalivros da firma Carvalho & Cia., o Dr. Mendes, juiz municipal, mais a senhora, a Lídia Campelo, filha da viúva Campelo, e o estudante. Às vezes ia mais gente e o víspora prolongava-se até meia-noite.

João da Mata era um sujeito esgrouvinhado, esguio e alto, carão magro de tísico, com uma cor hepática denunciando vícios de sangue, pouco cabelo, óculos escuros através dos quais boliam dois olhos miúdos e vesgos. Usava pêra e bigode ralo caindo sobre os beiços, tesos como fios de arame; a testa ampla confundia-se com a meia calva reluzente. Falava depressa, com um sotaque abemolado, gesticulando bruscamente, e, quando ria, punha em evidência a medonha dentuça postiça. Noutros tempos fora mestre-escola no sertão da província, de onde se mudara para a capital por conveniências particulares. Era então simplesmente o professor Gadelha, o terror dos estudantes de gramática. O sertão foi-lhe aborrecendo; estava cansado de ensinar a meninos, era preciso fazer pela vida noutro meio mais vasto onde as suas qualidades, boas ou más, fossem aquilatadas com justiça. Estava perdendo-se, inutilizando-se e fossilizando-se, por assim dizer, entre um vigário seboso e pernóstico e um delegado de polícia ignorante: -«Não era um águia, um Abílio Borges, um Macedo... mas reconhecia que também não era burro. Até podia fazer figura em Fortaleza.»

E abalou com tanta felicidade que não tardou ser nomeado comissário de socorros ao tempo da grande seca de 77, dois anos depois de sua chegada à capital. Desde logo tornou-se conhecido, suas façanhas corriam impressas nos pasquins domingueiros. De uma feita escapou milagrosamente de ser preso por crime de defloramento numa menor, criada do Dr. Moraes e Silva; de outra feita apanhou de rebenque na cara por haver caluniado um capitão de infantaria propalando uma infâmia. Toda a gente o conhecia muitíssimo bem, por sinal tinha uma cicatriz oblonga e funda na têmpora esquerda, e não largava o mau vezo de roer o canto das unhas.

Depois da seca entregou-se de corpo e alma à polícia, à intriguinha partidária, à rabulice, à cabala eleitoral, à chicana. Toda a vez que se anunciava um pleito, punha em jogo as mil e uma sutilezas que só o seu espírito sagaz podia conceber. Ninguém como ele sabia copiar uma chapa em letra firme e aprumada. Aquilo a pena cantava no papel que nem o lápis de um taquígrafo. E que letra, que esplêndido talhe! Dir-se-ia traçada a nanquim, delicadamente, com a paciência de um chinês. Ninguém como ele sabia tirar proveito duma vitória alcançada pelo partido. Discutia, falava alto, berrava... impunha-se!

-Extraordinário homem! diziam os chefes políticos; destes é que nós precisamos, destes é que precisa o partido.

Mas João sabia vender caro seu peixe. Fazia política por uma espécie de ambição egoísta, visando sempre tirar resultados positivos de suas artimanhas, embora com prejuízo de alguém.

Dinheiro é o que ele queria, não lhe fossem falar em política sem interesse pessoal.

«-Histórias, homem, histórias! Isso de patriotismo é uma patranha, um rótulo falso! O que se quer é dinheiro, o santo dinheirinho, a mamata. Qual pátria, qual nada! Patacoadas!» Ele, João, trabalhava, lá isso era inegável: dava o seu voto, cabalava, servia de testade -ferro, mas... tivessem paciência- era mão pra lá mão para cá... Porque -argumentava- a política é uma especulação torpe como outra qualquer, como a de comprar e vender couros de bode na praia, a mesmíssima coisa; pois não é? Pra tudo é preciso jeito, muito jeitinho...

Agora, porém, andava meio retraído, dava o seu voto, calado, e -passe muito bem!-. A política só lhe trouxera desenganos e inimigos. Não estava mais para servir de degrau a figurão algum. Que se fomentassem! É boa! Trabalhara que nem besta de carga para no fim de contas ganhar o quê? Um pingue lugar de amanuense? Um miserável emprego que se anda oferecendo aí a qualquer vagabundo? Decididamente não o pilhavam mais para a canga... Estava experimentado, meus senhores, experimentadíssimo.

E agora, com efeito, ninguém o via mais nas redações, entre os jornalistas da terra, a esbravejar contra os adversários, nem nos cafés, quanto mais em dia de eleição, sentado, como dantes, na sua cadeira de mesário, carrancudo, circunspecto, a contar votos, a lavrar atas. Estava outro homem, completamente outro: amigo de casa, vivendo para si, com poucas amizades, metódico, econômico, às voltas com a sua atrabílis crônica, sem ambições, sem dívidas.

A sua grande paixão, o seu fraco era a Maria do Carmo, a menina de seus olhos, a afilhadinha; queria um bem extraordinário à rapariga e tratava-a com um carinho lânguido de amante apaixonado no supremo grau do amor incondicional. Criara-a desde pequena, era como se fosse pai, tinha direitos sobre ela; podia mesmo beijá-la -sem malícia, já se deixa ver- nas faces, na testa, nos braços e até, por que não? na boca.

Às vezes, quando Maria voltava da Escola Normal, ele mandava-a sentar-se na rede, a seu lado. A pequena guardava os livros e lá ia, sem fazer beiço, deitar-se com o padrinho, amarfanhando o rico vestidinho de cretone passado a ferro pela manhã. Obedecia-lhe cegamente, nunca lhe dissera uma palavra áspera; ao contrário, -eram carinhos, cafunés no alto da cabeça, cócegas, histórias de alma do outro mundo e gracinhas para ele rir... Tinha sempre um sorriso fresco e luminoso para «o seu padrinho.» E João da Mata sentia um bem-estar incomparável, uma delícia, um gozo inefável ante aquele esplêndido tipo de cearense morena, olhos cor de azeitona onde boiava uma névoa de ingenuidade, cabelos compridos descendo até a altura dos quadris, desmanchando-se em ondas de seda finíssima... Quantas vezes, quantas! punha-se, por trás dos grandes óculos escuros, a olhá-la como um pateta, sem que ela sequer percebesse a fixidez de seu olhar cheio de desejo!

Maria estava-se pondo moça, entrava nos seus quinze anos, e o padrinho a adorá-la cada vez mais!

João começou a enquizilar-se com as freqüentes visitas do Zuza. Por fim notara certas tendências do estudante para a pequena, certo quebrar de olhos, uma como insistência atrevida em dizer as coisas por metáforas... Isso o incomodava, punha-lhe pruridos na calva, enraivecia-o. Quanto ao Loureiro não havia risco, o guardalivros estava para casar com a Campelinho, era um rapaz sério. Mas o senhor Zuza?... Ali andava namoro, apostava. Tinha idéia de ter lido na Província uns versos dedicados a M. C. e assinados por Z.*** Naquela noite, sobretudo, pareceu-lhe ver o mariola passar uma carta, um papel a Maria. Boas! Era preciso pôr um termo ao descaramento, sob pena de ele, João, desmoralizar-se no conceito da gente séria. Lá por ser filho do Sr. coronel não fosse pensar que faria o que entendesse. Alto lá! Tudo, menos patifaria dentro de sua casa.

E, enquanto ia enchendo os cartões automaticamente sem olhar para os números, pensava em Maria do Carmo, mordendo com desespero as guias do bigodaço.

Quando o Zuza, todo gabola e amaneirado, vermelho do calor da luz, gritou -víspora! numa voz triunfante e clara, João esteve quase atirando-lhe com o cartão. Vieram-lhe desejos imoderados de estourar, de dar escândalo, trêmulo, nervoso, a semicalva reluzente de suor.

-Sim senhor, disse secamente devolvendo o cartão. Vamos à última...

E o jogo continuou. Fez-se novo silêncio. Agora era o Zuza, o futuro bacharel que cantava pausadamente, tirando as pedras com a ponta dos dedos e colocando-as devagar, cauteloso.

Davam nove horas na Sé quando todos se ergueram. A Campelinho suplicou mais uma partida, o Loureiro também foi de opinião que se jogasse ainda uma vez, todos, enfim, desejavam continuar, mas João da Mata opôs-se tenazmente: que era tarde, tinha muito que escrever.

-Uma só, meu padrinho, rogou Maria do Carmo tomando-lhe as duas mãos e fitando-o com os seus magníficos olhos cor de azeitona.

O amanuense estremeceu. Agora era a própria afilhada, a Sra. D. Maria do Carmo que lhe pedia com um sorriso extraordinário que jogassem! E na sua imaginação acentuava-se a suspeita do namoro com o estudante.

Curvou-se e proferiu um palavrão ao ouvido da rapariga. Estava desesperado, não se continha.

-Não senhora, por hoje basta de víspora!

Todos admiraram a súbita mudança na sua fisionomia a princípio tão alegre.

A mulher do Dr. Mendes, muito afetada, acotovelou o marido e despediu-se «até a primeira vista.»

Zuza foi o último a retirar-se, fitando em Maria um olhar embebido de ternura.

A noite estava muito escura e calma. As estrelas tinham um brilho particular, altas, minúsculas como cabeças de alfinetes em papel de seda escuro. Ouvia-se distintamente, como por um tubo acústico, a toada dos soldados rezando à Virgem da Conceição, no quartel de linha e o marulhar da praia, distante. A rua do Trilho, deserta, com a sua iluminação incompleta, naqueles confins da cidade, parecia um túnel subterrâneo. Fazia medo transitar ali a desoras.

Assim que se foram os habitués do víspora, João da Mata desabafou:

-«Uma patifaria! O Sr. Zuza pretendia sem dúvida abusar da sua confiança, plantar a desordem no seio da família, mas estava muito enganado. Ali era casa de gente pobre e honesta. Estava muito enganadinho, seu pelintra!»

-Mas eu sei quem é a culpada, acrescentou furioso, a culpada é a Sra. D. Maria do Carmo, porque se atreve a olhar para ele!

Aquilo não podia continuar, o Sr. Zuza não lhe punha mais os pés em casa sob pretexto algum. Não se portava sério? Pois então -fora! pra rua!

Estavam fazendo de sua casa um alcouce! A Sra. D. Lídia vinha namorar o outro às suas barbas; já uma vez caíra-lhe porta dentro uma imundície de carta anônima denunciando certos abusos...

E colérico, soprando o bigode, sacudindo os braços, esmurrando a mesa, berrava, com os olhos na alcova onde sumira-se D. Terezinha.

Maria desaparecera pelo corredor e chorava debruçada sobre a mesa de jantar, onde ardia uma vela de carnaúba.

-Que sujeito! gania o amanuense. Pensa ele que não tem mais do que enfronhar-se num fato de casimira clara, com uma flor no peito, com modos de safardana, e zás! plantar-se na pequena, mas está muito enganado! Aqui estou eu (e batia com força no peito ossudo) para impedir escândalos em minha casa!

Debalde D. Terezinha aconselhava, aflita, que não desse escândalo, que fosse dormir -«As paredes têm ouvidos, dizia ela dentro da alcova. O moço era filho de gente graúda, e ele, Janjão, um simples empregado público. Tivesse modos. Se houvesse má intenção por parte do Zuza, ela, Teté, seria a primeira a não consentir que ele pisasse o chão de sua casa. Mas, não senhor, a gente deve pensar antes de fazer as coisas. Pra que todo aquele espalhafato, por que semelhante barulho?»

João da Mata, porém, estava fora de si, tinha a cabeça a arder como uma brasa. Seu temperamento excessivamente irritável expandiase com desespero ao mesmo tempo que seu coração de homem gasto sentia pela primeira vez um quer que era, uma agonia, uma sufocação ante a possibilidade de um namoro entre o estudante e a afilhada. Não era precisamente receio de que o Zuza pudesse iludir a rapariga desonrando-a e atirando-a por aí ao desprezo; era como revolta do instinto, uma espécie de egoísmo animal que o torturava, acendendolhe todas as cóleras, dominando-o, como se Maria fosse propriedade sua, exclusivamente sua por direito inalienável. Via-a caída pelo acadêmico, toda voltada para ele, amando-o talvez, preferindo-o a todos os outros homens, entregando-se-lhe. E o que seria dele, João, depois? Nem mais uma beijoca na boquinha rubra e pequenina, nem mais um abraço ao voltar da escola, cansadinha, o rosto afogueado pelo calor; nem mais uns cafunés, nem um sorriso daqueles que ela sempre tinha para o padrinho... Isto é que o desesperava!

Desde a saída de Maria do colégio das Irmãs de Caridade tinha se operado uma mudança admirável nos hábitos de João da Mata. Ela já não era para ele como uma filha; estava quase moça, incomparavelmente mais bonita e fornida de carnes. Já não era, que esperança! aquela Maria do Carmo da Imaculada Conceição, toda santidade, magrinha, com uma cor esbranquiçada e mórbida de cera velha, o olhar macilento, a falar sempre no padre Reitor e na Superiora e na Irmã Filomena e noutras pieguices. Uma tontinha a Maria naquele tempo. Quando ia passar o domingo em casa, uma vez no mês, metia-se para os fundos do quintal ou pelas camarinhas, muito calada, muito sonsa, a ler a Imitação; não chegava à janela, não aparecia às visitas, doida por voltar ao colégio. Aquilo punha o padrinho de mau humor. Uma coisa assim fazia até vergonha a ele, que detestava tudo quanto cheirasse a sacristia. Porque João da Mata dizia-se pensador livre; não acreditava em santos, e maldizia os padres. Jesus, na sua opinião, era uma espécie de mito, uma como legenda mística sem utilidade prática. Isso de colégios internos à guisa de conventos não se acomodava com o seu temperamento. Também fora professor, olé! e sabia muito bem o que isso era -«um coito de patifarias.» Queria a educação como nos colégios da Europa, segundo vira em certo pedagogista, onde as meninas desenvolvem-se física e moralmente como a rapaziada de calças, com uma rapidez admirável, tornando-se por fim excelentes mães de família, perfeitas donas-de-casa, sem a intervenção inquisitorial da Irmã de Caridade. Não compreendia (tacanhez de espírito embora) como pudesse instruir-se na prática indispensável da vida social uma criatura educada a toques de sineta, no silêncio e na sensaboria de uma casa conventual, entre paredes sombrias, com quadros alegóricos das almas do purgatório e das penas do inferno; com o mais lamentável desprezo de todas as prescrições higiênicas, sem ar nem luz, rezando noite e dia -ora pro nobis, ora pro nobis... Era da opinião do José Pereira da Província: Irmãs de Caridade foram feitas para hospitais. O diabo é que no Ceará não havia colégios sérios. A instrução pública estava reduzida a meia dúzia de conventilhos: uma calamidade pior que a seca. O menino ou menina saía da escola sabendo menos que dantes e mais instruído em hábitos vergonhosos. As melhores famílias sacudiam as filhas na Imaculada Conceição como único recurso para não vê-las completamente ignorantes e pervertidas. Afinal, para não contrariar o Mendonça que queria a filha para santa, metera Maria do Carmo no «convento».

D. Terezinha participava das mesmas idéias do Janjão: Uma menina inteligente como Maria devia educar-se no Rio de Janeiro ou num colégio particular, mas um colégio onde ela pudesse aprender o «traquejo social». Pode ser que as Irmãs sejam umas mulheres virtuosíssimas e castas, mas filha sua não punha os pés em colégio de freiras...

João da Mata detestava a padraria. Dava-se apenas com um padre, o cônego Feitosa, porque, dizia ele, era um sacerdote sem hipocrisia, um padre como ele entendia que deviam ser todos os padres: asseado, inimigo da batina, com afilhadas em casa... E por que não? Os padres são fisicamente (e sublinhava a palavra), anatomicamente, fisiologicamente homens como os outros: têm coração, órgãos sexuais, nervos como os outros homens. Portanto, assiste-lhes o mesmíssimo direito de procriação, direito natural e até consagrado pela Escritura. O contrário é contrafazer a natureza humana que, afinal, não obedece a preceitos de castidade. Daí, concluía João, daí o desregramento das classes religiosas condenadas a eterno celibato. O próprio Cristo dissera numa parábola cheia de senso e de experiência: «Crescei e multiplicai-vos.»

«Por amor de Deus» não lhe falassem em padres. A educação moderna, a educação livre, sem intervenção da batina -eis o que ele queria e apregoava alto e bom som.

Havia meses que Maria do Carmo cursava a Escola Normal. Sua vida traduzia-se em ler romances que pedia emprestados a Lídia, toda preocupada com bailes, passeios, modas e tutti quanti... Ia à Escola todos os dias vestidinha com simplicidade, muito limpa, mangas curtas evidenciando o meio-braço moreno e roliço, em cabelo, o guarda-sol de seda na mão, por ali afora -toque, toque, toque- até à praça do Patrocínio, como uma grande senhora independente.

Agora, sim, pensava o amanuense, Maria estava uma mocetona digna de figurar em qualquer salão aristocrático.

A fama da normalista encheu depressa toda a capital. Não se compreendia como uma simples retirante saída há pouco das Irmãs de Caridade fosse tão bem-feita de corpo, tão desenvolta e insinuante. As outras normalistas tinham-lhe inveja e faziam-lhe pirraças. Nas reuniões do Club Iracema era ela a preferida dos rapazes, todos a procuravam.

João da Mata inflava. Certo não a entregaria por preço algum a qualquer rapazola como o filho do coronel Souza Nunes.

Entretanto, o Zuza era um rapaz da moda. Montava a cavalo, fazia versos, assinava a Gazeta Jurídica, freqüentava o palácio do presidente...

João conhecera-o uma noite no baile do Dr. Castro. Havia meses que se achava em Fortaleza estudando o quinto ano de direito e gozando a sua fama de rapaz rico. Às seis horas da tarde já lá estava ele, no Trilho, em casa do amanuense, queixando-se da monotonia da vida cearense e gabando, com ares de fidalgo, a capital de Pernambuco. Ali, sim, a gente pode viver, pode gozar. Muito progresso, muito divertimento: corridas de cavalos, uma sociedade papa-fina muitíssimo bem-educada, magníficos arrabaldes, certo bom gosto nas toaletes, nos costumes, certas comodidades que ainda não havia no Ceará...

-Ao que parece o Sr. Zuza não gosta do Ceará... disse-lhe um dia D. Terezinha.

-Absolutamente não, minha senhora. Sou meio exigente em matéria de civilização; isto me parece ainda uma terra de bugres...

-De bugres?!

-... Sim, uma terra em que só se fala nas secas e no preço da carne verde. V. Exª compreende, não pode corresponder à expectativa de um rapaz de certa ordem, por assim dizer educado na Veneza Americana...

-Deste modo o Sr. Zuza ofende os seus conterrâneos, os seus parentes...

-Absolutamente não.

O que dizia é que o Recife está num plano muito superior a Fortaleza. Apenas estabelecia um paralelo.

João da Mata achava-o pedante, desequilibrado, tolo. -«Não, o Sr. Zuza não lhe punha mais os pés em casa por forma alguma!» bradava naquela noite.

Maria continuava a chorar lá dentro, na sala de jantar, inconsolável, triste, com um grande desgosto na alma. De repente ouviu a voz do padrinho que a chamava. Ergueu-se com um movimento brusco e rápido, o lenço nos olhos, soluçando devagar.

João quis saber onde estava «a carta que o Zuza lhe havia entregue». Botasse-a pra ali, já!

Trêmula, abafando a cólera que lhe oprimia a respiração, Maria não podia falar.

-Vamos, vamos!

-Não tenho carta alguma, disse num acento doloroso.

João da Mata sentiu atear-se-lhe o fogo da concupiscência. Teve ímpetos de tomar entre as mãos a cabeça da afilhada e beijá-la, beijá-la sofregamente, com a fúria de um selvagem, no pescoço, na boca, nos olhos... ímpetos de beijá-la toda inteira, como um doido. Maria dominava-o, fazia-lhe perder a tramontana.

-Então aquele bandido não lhe entregou uma carta por debaixo da mesa, no víspora? Entregou, sim senhora, dê-ma!

-Não senhor, não me entregou coisa alguma, tornou a normalista, sem levantar a cabeça fungando.

Estavam em frente um do outro, ao pé da mesa. As portas da sala já se tinham fechado; ele com o paletó aberto mostrando a camisa de meia cor de carne, o olhar fixo em Maria; ela com o seu vestidinho claro de chita, cabelos penteados numa trança, acaçapada, submissa ante a cólera rude do padrinho.

-Pois bem, concluiu este moderando a voz. Tome sentido: vossemecê não me aparece mais àquele cabrocha, está ouvindo?

E depois duma pausa, com ternura:

-Vá dormir, ande...

Soprou o gás e foi deitar-se com a mulher, na alcova.

-Pois não achas, Teté, dizia ele em camisa de dormir, aconchegado à D. Terezinha, na larga cama de jacarandá: não achas que é um desaforo aquele patife vir à nossa casa para namorar?

-Não, que tolice! O Zuza até é um rapaz sério... Vem, coitado, porque nos estima...

-É boa! -fez João. Então vem porque nos estima, hein? Esta cá me fica, Sra. D. Teté, esta cá me fica!

-Homem, trate das suas hemorróidas que é melhor...

-Ora, sabe que mais? Você é outra!

E deram-se as costas fazendo ranger a cama.

Com pouco ambos roncavam no discreto silêncio da alcova.

Sobre a cômoda, ao pé do oratório, ardia uma lamparina de azeite.

Foi numa tarde infinitamente calma de dezembro de 1877 que o capitão Bernardino de Mendonça chegou a Fortaleza, pela estrada nova de Mecejana, depois de penosíssima viagem.

A seca dizimava populações inteiras no sertão. Famílias sucumbiam de fome e de peste, castigadas por um sol de brasa. Centenas de foragidos, arrastando os esqueletos seminus, cruzavam-se dia e noite no areal incandescente dos caminhos -abantesmas da desgraça gemendo preces ao Deus dos cristãos, numa voz rouquenha, quase soluçada. Era um horror de misérias e aflições.

Bernardino de Mendonça foi dos últimos que abalaram do interior da província para o litoral na pista de socorros públicos. Totalmente desiludido, quase arruinado, vendo todos os dias passarem por sua porta, em Campo Alegre, magotes de emigrantes andrajosos que batiam do sertão num êxodo pungente, acossados pela necessidade, resolvera também ir-se com a família para Fortaleza, embora mais tarde fosse obrigado a procurar outros climas.

Era homem sadio, vigoroso, excessivamente trabalhador e dedicado. Contava a esse tempo quarenta anos, nada mais nada menos, e dizia com soberba, gabando o peito rijo, não se trocar por muito rapazola pimpão que aí vive nas cidades grandes caindo de tédio e preguiça, cheio de vícios secretos. Corria-lhe nas veias largas e azuis de matuto inteligente, puro e abundante sangue português. Nunca sofrera a mais leve dor de cabeça. Conhecia a sífilis por ouvir falar. Casara muito moço, imberbe ainda, aos dezesseis anos, com uma prima colateral, D. Eulália de Mendonça Furtado, de uma família de Furtados da Telha. Até então só tivera três filhos, um dos quais, o mais velho, chamado Lourenço, fora recrutado para o exército por peralta incorrigível. Outro, o Casimiro, mais rude e também mais obediente, vivia com os pais, era mesmo o vaqueiro de Mendonça que descobrira nele especial vocação para esse inglório trabalho de andar atrás das boiadas -ecô! ecô!- metido em couros, chapinhando açudes e lagoas, galopando à brida solta nas várzeas, ao ar fresco das manhãs do norte, identificado, por assim dizer, com o mugir nostálgico e penoso do gado. Desde menino, o pai acostumara-o à vida alegre do campo, e agora aí vinha também, Deus o sabe, triste e apreensivo, caminho da capital cearense, no seu pedrês choutão, escanchado entre dois grandes alforjes de farinha e carne salgada.

Por último nascera Maria do Carmo, o último filho de Mendonça, a caçula. Em 1877 completava seis anos, e, para felicidade dos pais, era uma criança verdadeiramente encantadora, com seu arzinho ingênuo e meigo de sertaneja. A cor, os olhos, os dentes, o cabelo -tudo nela era um encanto: olhos puxando para negros, dentes miudinhos e de uma brancura de algodão em rama, cabelos negros e luzidios como a asa da graúna- morena-clara. Crescia sem outra educação a não ser a que lhe davam os pais, de modo que, naquela idade, mal soletrava a Doutrina Cristã.

Mendonça abalara de Campo Alegre quando de todo lhe tinham fugido as esperanças de inverno seguro, depois de ter visto estrebuchar a última rês no solo duro e estéril.

Todas as tardes, invariavelmente, da janela que dizia para o poente, ou em pé na varanda, consultava o tempo, os horizontes cor de cinza, o céu de um azul diáfano de safira, procurando bispar na inclemência da atmosfera imóvel a sombra fresca de uma nuvem, um indício qualquer de chuva.

Surpreendia às vezes, crivando a transparência do ar, revoadas de aves de arribação. Recolhia-se animado. Mas os dias passavam quentes e secos.

Outras vezes, à noitinha, clarões rápidos e lívidos abriam-se no poente como reflexos de luz elétrica; ouvia-se rolar a trovoada muito ao longe. Mendonça punha-se a escutar calado, sentia um como arrepio bom, e lá tornava a iludir-se alimentando, toda uma noite, a doce esperança de ver pela manhã o solo úmido e a rama brotando verde e pujante da «fornalha». Mas qual! As manhãs sucediam-se cada vez mais tépidas, sem pingo de água, uma aragem leve, de cemitério, arrepiando a folhagem do arvoredo. Um céu muito alto, varrido, monótono, indecifrável como um dogma.

E pouco a pouco aquele estado de coisas foi atuando forte no espírito do sertanejo, como as vibrações de um clarim que dá sinal de marcha; pouco a pouco foi-se convencendo de que aquilo era uma situação impossível em que ele não devia absolutamente permanecer.

Os açudes estorricavam mostrando os leitos gretados pelo sol, duros como pedra; juritis encandeadas iam espapaçar ofegantes no chão, defronte da casa, cascavéis chocalhavam no alpendre, ocultas, invisíveis, e todas as coisas tinham um aspecto desolado e lúgubre que se comunicava às criaturas.

Passava gente todo santo dia, a pé, de trouxa ao ombro, arrastandose pesadamente.

Uma vez ele próprio, Mendonça, vira de perto a agonia lenta de uma mulher asfixiada pela elefantíase -pernas inchadas, ventre inchado, rosto inchado- horrível!

Decididamente era tempo de arrumar também «os seus cacos» e -adeus Campo Alegre, adeus carnaubais rumorejantes, adeus igrejinha branca! Ir-se-ia fazer pela vida em qualquer parte, em Fortaleza, onde felizmente contava amigos políticos, correligionários dedicados que certamente lhe não recusariam uma acha de lenha, um pouco de água fresca, um punhado de farinha... Demais era homem, graças a Deus, forte como novilho, tinha sangue nas veias -trabalharia!

Ao mesmo tempo lembrava-se da «sua velha», da Eulália, que andava adoentada, com umas pontadas no coração, muito fraca e cuja natureza talvez não resistisse às fadigas duma viagem longa; pensava em Maria do Carmo, sua filha querida, a menina de seus olhos, tão nova ainda, e punha-se a meditar nos horrores da seca, nas febres de mau caráter, na quase absoluta falta de água, com um desalento a aniquilar-lhe as forças, a dobrar-lhe a altivez de forte. Depois tornava ao mesmo rio de idéias: não, aquele inferno do sertão, com um raio de tempo medonho seria talvez pior, seria a sua desgraça. De si para si media, calculava, meticulosamente, toda a gravidade da situação a que chegara. Não havia outro recurso, outro jeito senão marchar para a capital, para onde quer que fosse, como tantos outros infelizes empolgados pela miséria. Iria, que remédio? bater à porta de um amigo, de um correligionário, de um cristão. Lembrouse então do «compadre João da Mata», padrinho de Maria.

Muito bem: iria ao compadre.

Arribaram de manhã, muito cedo, ao romper da alva. Os cavalos, magros e ruins, romperam num trote miúdo. Ao passarem defronte da igrejinha do povoado, um pobre nicho todo fechado, com as suas janelinhas por pintar, solitário como uma coisa inútil, D. Eulália ciciou uma oração, e os outros, Mendonça e Casimiro, descobriramse com respeito.

Havia oito anos que isto fora...

Enfiaram por uma estrada de areia que se prolongava indefinidamente, torcendo e retorcendo-se em ziguezagues, ocultandose aqui para brilhar lá adiante, por cima da floresta imóvel, como uma enorme serpente amarela dormindo ao sol...

As pisadas dos animais abafavam-se na areia, e a pequena caravana sumia-se na distância...

Ao cabo de doze longos dias em que paravam para repousar à sombra de alguma árvore que ainda verdejava ou nalguma palhoça abandonada, avistaram o campanário branco e alegre do Coração de Jesus, direito e esguio como o minarete de um templo muçulmano, destacando-se na meia sombra crepuscular, esbatido pela irradiação do sol que tombava glorioso ao fundo da tarde pardacenta.

Morria no ar calmo o dobre melancólico de um sino...

Flutuava um cheiro vago de coisas podres. Para as bandas do Pajeú ardiam restos de fogueiras a extinguirem-se.

Uma tarde infinitamente calma, essa...

Havia oito anos que isto fora, mas nos seus momentos de desânimo, Maria do Carmo punha-se a relembrar toda essa tragédia de sua infância. Olhava para o passado com a alma cheia de saudade, recordando, tintim por tintim, como se estivesse lendo num livro, ninharias, minudências de sua vida naqueles tempos em que ela, pobre e matutinha, via tudo cor-de-rosa através do prisma límpido e imaculado de sua meninice. Transportava-se, num vôo da imaginação, a Campo Alegre, e via-se, como por um óculos de ver ao longe, ao lado da mamãe, costurando quieta ou soletrando a Cartilha, ou na novena do Senhor do Bonfim, muito limpa, com o seu vestidinho de chita que lhe dera o Sr. vigário. Lembrava-se do papai quando voltava do roçado, de camisa e ceroula, chapéu de palha de carnaúba, tostado, trigueiro do sol, contando histórias de onças e maracajás...

Recapitulava, mentalmente, com uma precisão cronológica, toda a sua vida e ficava horas e horas em cisma, a pensar, a pensar como se tivesse perdido o juízo...

Nas Irmãs de Caridade é que lhe sobrava tempo para isso. Vinhamlhe à mente os episódios da viagem: uma grande cobra cascavel que o papai matara ao pé duma árvore, à faca; as dificuldades que encontraram no caminho; um ceguinho que cantava na estrada sem ter o que comer...

Nunca mais lhe saíra da cabeça um retirante que ela vira estendido no meio do caminho, sobre o areal quente, ao meio-dia em ponto, morto, e completamente nu, com os olhos já comidos pelos urubus, os intestinos fora, devorados pelas varejeiras... Que feio aquilo!

Não era má, de resto, a sua vida agora, em casa dos padrinhos, não era, mas se fosse possível tornar a ser criança, renascer e viver outra vez em Campo Alegre...

No dia seguinte ao da chegada à capital, D. Eulália morrera duma síncope cardíaca. Maria lembrava-se muito bem; a mamãe fora para o cemitério na padiola da Santa Casa de Misericórdia, toda de preto... Parecia vê-la ainda, com os olhos fundos, entreabertos, mãos cruzadas sobre o peito, dentro do esquife...

Tempos depois vira-a em sonho, numa nuvem de incenso, cercada de anjos com um manto azul recamado de estrelas, subindo para o céu... Por sinal acordou sobressaltada, chamando pela madrinha, encolhendose toda na rede, fria de medo.

Dias depois Mendonça embarcara para o norte. Ainda acabrunhado pelo desgosto que lhe trouxera a morte quase repentina da mulher, manifestou a João da Mata desejos de ir tentar fortuna onde quer que fosse. Não podia continuar no Ceará, viúvo e ocioso, de braços cruzados, sem dinheiro, olhando para o tempo, decididamente não podia continuar. Mas, havia uma dificuldade -a Maria. Se o compadre quisesse tomar a menina, encarregar-se de sua educação, mediante uma mesada, um pequeno auxílio...

O amanuense aceitou. Que fosse imediatamente para o norte. A vida no Ceará não valia coisíssima alguma. O Pará, sim, aquilo é que é terra de fartura e de dinheiro. Um homem trabalhador e honesto, como o compadre, com um pouco de experiência, podia enricar da noite para o dia. Os seringais, conhecia os seringais? eram uma mina da Califórnia. Tantos fossem quantos voltavam recheados, de mão no bolso e cabeça erguida. E o Ceará? Fome e miséria somente. Num mês morriam três mil pessoas, eram mortos a dar com o pé, morria gente até defronte do palácio do governo, uma lástima!

E acrescentou que o Ceará era boa terra para os políticos e ricaços, que o pobre em Fortaleza, ainda que pesasse quilogramas de honradez era sempre o pobre, maltratado, espezinhado, ridicularizado, perseguido, enquanto que o indivíduo mais ou menos endinheirado podia contar amplamente, largamente (e abria os braços) com a simpatia geral: tinha ingresso em todos os salões, em toda a parte, até no «santuário da família» fosse ele, embora, um patife, um grandíssimo canalha. Usava chapéu alto e gravata branca? Tinha um título de bacharel? Não fizesse cerimônia, podia entrar onde quisesse -«Uma terra de famintos, seu compadre! Fome, miséria e patifaria era o que se via.» -Com a Maria do Carmo não tivesse cuidado; ele, João da Mata, havia de tratá-la como filha, não lhe faltaria nada; teria para ela todas as carícias, todos os afagos de um pai. Mendonça podia mesmo demorar o tempo que quisesse no Pará, anos, séculos... a menina ficava em casa de gente séria, pobre, é verdade, mas honrada.

Daí a dias, um domingo de muito sol e muito vento, realizou-se o embarque do capitão Mendonça e do Casimiro.

Os conselhos de João calaram poderosamente no ânimo forte e resoluto do sertanejo cuja confiança no compadre era ilimitada. Sabia-o conhecido em quase todo o Ceará, estimado mesmo por pessoas de bem, admirava-lhe muito o «coração generoso» e democrata, por tal forma que João se lhe afigurou o único homem capaz de concorrer para a felicidade de sua filha -reflexões nascidas de boa-fé e da experiência da vida social, que enchiam de íntima e doce consolação a alma ingênua e simples do sertanejo.

Mendonça conhecia Fortaleza superficialmente; suas viagens à capital tinham sido raríssimas; viera vezes contadas a negócio. Sabia os homens propensos ao mal, por mais duma vez ele próprio fora vítima da ingratidão de indivíduos que se diziam seus amigos e a quem fizera grandes benefícios; porém, a vida ruidosa e dissoluta das capitais, esse tumultuar quotidiano de virtudes fingidas e vícios inconfessáveis, esse tropel de paixões desencontradas, isso que constitui, por assim dizer, a maior felicidade do gênero humano, esse acervo de mentiras galantes e torpezas dissimuladas, esse cortiço de vespas que se denomina -sociedade, desconhecia-o ele e nem sequer imaginava. Lá, no seu tranqüilo recanto de Campo Alegre, onde só de longe em longe chegava o eco da vida elegante, ouvira falar em mulheres que traíam os maridos, filhos que assassinavam os pais, incestos de irmãos, homens que negociavam com a própria honra... e tudo isso parecia-lhe simples «invenção das gazetas», romances de sensação que ele ruminava devagar e esquecia depressa.

-«É uma grande alma aquele Mendonça!» admiravam os amigos. E era-o.

Resolvera como que recomeçar a vida, esquecer o passado, recuperar o tempo perdido, trabalhando como um mouro, entregando-se ao labor com todas as suas forças, dia e noite, sem descanso, nas florestas do Pará.

E lá se fora barra fora, mais o Casimiro, na proa dum vapor brasileiro, honrado e obscuro, no meio de dezenas de emigrantes que, como ele, iam fazer pela vida até... sabiam lá!...

Antes de embarcar teve cuidados maternais para a filha. Comprou peças de chita, rendas, fitas, bugigangas, fantasias, tudo escolhido, tudo bom, e uma maleta americana. Chamou-a à parte, beijou-a na testa e disse-lhe com os olhos cheios d'água e a voz trêmula «que o papai havia de voltar se Deus quisesse, que ela fosse boa e obediente aos padrinhos, que estudasse, estudasse muito, porque era feio uma mulher ignorante, e, finalmente, que não esquecesse de rezar por alma da mamãe...»

Maria lembrava-se de tudo.

Depois ela ficara sozinha em companhia dos padrinhos.

Nesse tempo moravam na rua de Baixo. Tinha-se mudado tudo: morrera-lhe a mãe, morrera-lhe o pai duma febre, no alto Purus. O Casimiro ninguém dava notícia dele, nunca mais voltara... O Lourenço, esse ela não conhecia -andava no sul feito soldado. Estava só, por assim dizer, numa casa alheia. E, contudo, podia dizer que não tinha tristezas, uma ou outra vez é que se punha a pensar no passado.

Depois que saíra da Imaculada Conceição a vida não lhe era de todo má. Ora estava no piano, ensaiando trechos de música em voga, ora saía a passear com a Lídia Campelo, de quem era muito amiga, amiga de escola, ora lia romances... Ultimamente a Lídia dera-lhe a ler O Primo Basílio, recomendando muito cuidado «que era um livro obsceno»: lesse escondido e havia de gostar muito. -«Imagina um sujeito bilontra, uma espécie de José Pereira, sabes? o José Pereira, da Província, sempre muito bem vestido, pastinhas, monóculo...»

-Não contes, atalhou Maria, tomando o livro -quero eu mesma ler... Gostaste?

-Mas muito! Que linguagem, que observação, que rigor de crítica!... Tem um defeito -é escabroso demais.

-Onde foste tu descobrir esta maravilha, criatura?

-É da mamãe. Vi-o na estante, peguei e li-o.

Maria folheou ao acaso aquela obra-prima, disposta a devorá-la. E, com efeito, leu-a de fio a pavio, página por página, linha por linha, palavra por palavra, devagar, demoradamente.

Uma noite o padrinho quase a surpreende no quarto, deitada, com o romance aberto, à luz duma vela. Porque ela sólia O Primo Basílio à noite, no seu misterioso quartinho do meio da casa pegado à sala de jantar.

Que regalo todas aquelas cenas da vida burguesa! Toda aquela complicada história do Paraíso!... A primeira entrevista de Basílio com Luíza causou-lhe uma sensação estranha, uma extraordinária superexcitação nervosa; sentiu um como formigueiro nas pernas, titilações em certas partes do corpo, prurido no bico dos seios púberes; o coração batia-lhe apressado, uma nuvem atravessou-lhe os olhos... Terminou a leitura cansada, como se tivesse acabado de um gozo infinito... E veio-lhe à mente o Zuza: se pudesse ter uma entrevista com o Zuza e fazer de Luíza...

Até aquela data só lera romances de José de Alencar, por uma espécie de bairrismo mal-entendido, e a Consciência, de Heitor Malot publicada em folhetins na Província. A leitura do Primo Basílio despertou-lhe um interesse extraordinário -«Aquilo é que é um romance. A gente parece que está vendo as coisas, que está sentindo...»

Não compreendera bem certas passagens, pensou em consultar a Lídia; sim, a Campelinho devia saber a história da champanha passada num beijo para a boca de Luíza. -Que porcaria! E assim também a tal «sensação nova» que Basílio ensinara à amante... não podia ser coisa muito asseada...

Terminada a leitura do último capítulo, Maria sentiu que não fossem dois volumes, três mesmo, muitos volumes... Gostara imensamente!

No dia seguinte, antes de ir à Escola Normal, Maria teve uma entrevista secreta com a amiga no quintal da viúva Campelo que morava defronte do amanuense.

A Campelinho tinha acabado de banhar-se e estava arranjando umas flores para a Nossa Senhora do Oratório. Da saleta de jantar via- se o quintalzinho, cercado de estacas, estreito e comprido, com ateiras e um renque de manjericões ao fundo, perto da cacimba. Uma pitombeira colossal arrastava os galhos sobre o telhado. O chão úmido da chuva que caíra à noite, porejava uma frescura comunicativa e boa.

Lídia estava à fresca, de cabelos soltos sobre a toalha felpuda aberta nos ombros, quando Maria apareceu.

-Boa vida, hein? saudou esta. E logo, triunfante: -Acabei o Primo Basílio!

-Que tal?

-Magnífico, sublime! Olha, vem cá...

E dando o braço à outra dirigiu-se para o «banheiro», uma espécie de arapuca de palha seca de coqueiro, acaçapada, medonha, sem a mínima comodidade e para onde se entrava por uma portinhola de tábua mal segura.

Uma vez ali, sentadas ambas num caixote que fora de sabão, única mobília do «banheiro», Maria sacou fora o Primo Basílio, cuidadosamente embrulhado numa folha da Província. Queria que a Lídia explicasse uma passagem muito difusa, quase impenetrável à sua inteligência.

-É isto, menina, que eu não pude compreender bem. E, abrindo o livro, leu: «...e ele (Basílio) quis-lhe ensinar então a verdadeira maneira de beber champanha. Talvez ela não soubesse! -Como é? perguntou Luíza tomando o copo. -Não é com o copo! Horror! Ninguém que se preza bebe champanha por um copo. O copo é bom para o Colares... 'Tomou um gole de champanha e num beijo passou-o para a boca dela', Luíza riu...», etc., etc...

-Como explicas tu isso?

-Tola! fez a Campelinho. Uma coisa tão simples... Toma-se um gole de champanha ou de outro qualquer líquido, junta-se boca a boca assim... E juntou a ação às palavras.

-... e pronto! bebe-se pela boca um do outro. Tão simples...

-E que prazer há nisso?

-Sei lá, menina! tornou a outra com um gesto de nojo, cuspindo. Pode lá haver gosto...

Depois, as duas curvadas sobre o livro, unidas, coxa a coxa, braço a braço, passaram à «sensação nova».

Lídia apressou-se em dizer que as «mulheres do mundo» é que sabem essas coisas... Quanto a ela não conhecia outras sensações além dos beijos na boca, às escondidas, fora os abracinhos fortes e demorados, peito a peito, isto mesmo com pessoa do coração... Contou então que o seu primeiro namorado, um estudante do Liceu, um fedelho, tentara certa vez... Concluiu baixinho ao ouvido de Maria, com receio de que alguém as estivesse observando.

-E consentiste?

-Qual! Dei-lhe com um -não- na cara, e o tolo nunca mais me fez festa.

Leram ainda alguns trechos do romance, rindo, cochichando, acotovelando-se, e depressa a conversação tomou rumo diverso recaindo sobre o Zuza e o Loureiro.

-A propósito, perguntou Maria curiosa, pretendes mesmo casar com o guarda-livros?

-Por que não? fez a outra erguendo-se. Muito breve tenho homem! Decididamente este não me escapa, tenho-o seguro... Vai todas as noites à nossa casa, como vês, está caidinho. A mamãe já não repara, deixa-se ficar com o dela...

-Com o dela? inquiriu Maria com surpresa, muito admirada. Apanhada em flagrante indiscrição, Lídia confessou, muito em segredo, que uma noite encontrara D. Amanda na alcova com o Batista da Feira Nova, um negociante...

-!!!

Maria tomava sentido, recalcando a curiosidade que lhe espicaçava o espírito. Calou-se para não ser indiscreta, e, depois de uma pausa em que folheava maquinalmente o romance:

-Dize uma coisa, Lídia: tu amas deveras o Loureiro?

-Que pergunta, criatura? Certamente que sim. Ele então tem uma paixa doida por mim! Bebe-me com o olhar e me come de beijos. É na boca, no pescoço, na orelha, nos olhos, na nuca... Nunca vi gostar tanto de beijos! E é preciso que se note, conhecemo-nos há três meses! E o teu Zuza?

O namoro de Maria com o filho do coronel Souza Nunes estava no começo. A falar verdade, ela gostava do Zuza e casaria se ele quisesse, mas até aquela data ainda não se tinham comunicado. Conheciam-se -nada mais.

Nessas confabulações íntimas com a amiga, Maria, que começava a compreender a vida tal como ela é na sociedade, fingia-se ingênua, tolinha, expediente que usava sempre que desejava saber a opinião da Lídia sobre isto ou sobre aquilo.

A princípio evitava conversar em amores, corando a qualquer palavra mais livre ou a qualquer fato menos sério que lhe contavam as colegas de estudo. Agora, porém, ouvia tudo com interesse, procurando inteirar-se dos acontecimentos, sem acanhamento, sem pejo. Pouco a pouco foi perdendo os antigos retraimentos que trouxera da Imaculada Conceição. A convivência com as outras normalistas transformara-lhe os hábitos e as idéias. A Lídia principalmente era a sua confidente mais chegada. Quase sempre estavam juntas em casa, na Escola, nos passeios, em toda parte onde se encontravam, de braços dados, aos cochichos... Havia entre elas um comércio contínuo de carinhos, de afagos e de segredos. Gabavamse mutuamente, tinham quase os mesmos hábitos, vestiam-se pelos mesmos moldes, como duas irmãs.

Lídia Campelo tinha então vinte anos. Era uma rapariga alta, «fausse-maigre» e bem-feita de corpo.

A razão por que ainda não se casara ninguém ignorava, toda a gente sabia -é que a filha da viúva Campelo, por via do atavismo, puxava à mãe. Não havia na cidade rapazola mais ou menos elegante, caixeiro de loja de modas que não se gabasse de a ter beijado. Tinha fama de grande namoradeira, exímia em negócios de amor. O próprio João da Mata não gostava muito daquela amizade com Maria. Mais de uma vez dissera a D. Terezinha as suas desconfianças, os seus escrúpulos, os seus receios em relação a essa intimidade da afilhada com a Lídia: -«Não consentisse a rapariga ir à casa da outra. Antes prevenir que curar.»

Havia mesmo quem usasse afirmar que a Campelinho «já não era moça

Da viúva diziam-se horrores: «aquilo era casa aberta...» Tantos fossem, quantos ela recebia com risinho sem-vergonha, arregaçando os beiços. A filha seguia o mesmo caminho.

O certo, porém, é que o procedimento de D. Amanda não escandalizava a sociedade. Vivia na sua modesta casinha do Trilho, muito concentrada, sem amigas, num respeitoso isolamento, saindo à rua poucas vezes em companhia da filha, não freqüentando os bailes nem o Passeio Público e muito menos as igrejas: vivia a seu modo, comodamente, do minguado montepio de seu defunto marido.

-«Uma mulher honesta!» protestava o Loureiro. Infâmias era o que se diziam da pobre senhora, infâmias que caíam por terra, ante o indefectível procedimento de D. Amanda!

E acrescentava convicto:

-Tal mãe, tal filha!

O velho mostrador da sala de jantar deu meia-noite, uma hora, e Maria do Carmo ainda estava acordada, a pensar no Zuza, arquitetando frases para responder ao futuro bacharel em ciências jurídicas. Porque o estudante, como suspeitou o amanuense, achara meio de comunicar-se com a rapariga, atirando-lhe uma cartinha por baixo da mesa, quando jogavam o víspora.

Era a primeira vez que o Zuza lhe escrevia numa letra caligráfica, de mulher, miudinha, igual e redonda. Ao apanhar o envelope, com um movimento disfarçado, Maria sentiu o sangue afluir todo para o rosto, como se todo o mundo a tivesse surpreendido em flagrante às barbas do padrinho. Ela mesmo, depois, admirou a sua coragem, ela que nunca desrespeitara o amanuense, temendo-o como a seu pai. Não pôde reprimir um susto, ficou fria, com os olhos baixos, sem prestar atenção ao jogo. Pareceu-lhe ver através dos óculos escuros do padrinho um lampejo de cólera concentrada. Tremia com o papel na mão, sem saber o que fizesse. Mas o víspora continuava animado e ela pôde cautelosamente guardar o objeto querido, pretextando sede e levantando-se para beber água no interior da casa. Guardou-o bem guardado, no fundo de uma caixinha de fitas, sem ler, e voltou imediatamente ao seu lugar com um alívio, muito lépida.

Quando o amanuense entrou a esbravejar contra o Zuza, esmurrando a mesa, batendo portas, colérico, medonho, Maria ficou lívida! Ta, ta, ta, ta, ia tudo águas abaixo, o seu «crime» ia ser descoberto, não havia fugir. Estava irremediavelmente perdida! Enfiou pelo corredor com as mãos na cabeça, aflita. Decididamente o padrinho ia expulsá-la de casa... seu primeiro ímpeto foi voltar, atirar-se aos pés de João da Mata e pedir-lhe, suplicar-lhe por amor de Deus, por quem era que a perdoasse, que fora uma fraqueza, uma criancice... Isto, porém, seria complicar a situação, confessar-se culpada, entregar-se à cólera do amanuense. E ao sentar-se à mesa de jantar foi acometida por uma convulsão de choro mudo, com a cabeça entre as mãos, cotovelos fincados na mesa, olhos fixos na luz moribunda da velinha de carnaúba.

O padrinho berrou, jurou acabar com «a bandalheira», disse horrores do Zuza, e, afinal, que felicidade para a rapariga! foi se deitar com a mulher. Maria suspirou forte como se lhe tivessem tirado um grande peso do coração; e agora, só no seu quarto, lia e relia a carta do acadêmico, muito à fresca, sentindo um bem-estar confortável na sua rede de varandas, branca e sarapintada de encarnado.

Fazia calor.

Maria costumava dormir com a vela acesa, numa palmatória de flandres. Noutro quarto, defronte, ressonava a cozinheira, uma tirando para velha, chamada Mariana, e, no corredor, o Sultão abanava as orelhas sacudindo as pulgas. De quando em quando havia um barulho de asas na sala de jantar: era a sabiá debatendo-se na gaiola, assombrada.

Agora, sim, Maria estava só, completamente só, podia ler à vontade, uma, duas, três... quantas vezes quisesse, a carta do Zuza. Nada como a noite para os namorados! Era só quando ela gozava a sua liberdade, à noite, no seu quarto, em camisa, fazendo o que bem entendesse...

«Minha senhora», dizia o futuro bacharel, muito respeitoso. «Tomo a liberdade de me dirigir a V. Exa. confiado na sua infinita bondade, nessa bondade que se revela em seus esplêndidos olhos de madona e na brandura meiga de sua voz cujo timbre faz-me lembrar toda a melodia duma harpa eólia tangida por mãos de serafins... Tomo esta liberdade para dizer-lhe simplesmente que a amo! e que este amor só podia ser inspirado pela incomparável luz de seu olhar e pela música sentimental de sua voz... Amo-a deveras... Só me resta esperar que V. Exa. aceite este amor como tributo sincero de um coração avassalado por sua beleza encantadora, e então serei o mais feliz dos homens.

D. V. Exa. adm. e escravo

José de Souza Nunes»

Isto numa letrinha microscópica, indecifrável quase.

Maria esteve meditando muito tempo sobre a resposta que devia dar ao estudante, com os olhos na parede onde esbatia a sombra da rede ao comprido. Para não responder ficava-lhe mal, era uma falta de consideração. Devia responder fosse o que fosse. E, nessa dúvida, lia e relia a carta numa inquietação que lhe tirava o sono. Realmente! começava cedo a sua carreira amorosa e começava por um aspirante a bacharel! Seria verdade aquilo ou o rapaz queria divertir-se à sua custa? O Zuza parecia-lhe um bom moço, muito bemeducado, incapaz de seduzir uma rapariga honesta, de costumes irrepreensíveis, refratário a pagodeiras... Às vezes, porém, tinha cara de pedante com os seus óculos de ouro, com a sua flor na botoeira, dizendo que dê, dê-me você isto, faça você aquilo, ora sebo!

Maria implicava com certos modos do rapaz.

É verdade que tinha fortuna, era filho dum homem de bem, dum coronel... Mas...

E lá vinha o mas, e a dúvida não se desfazia.

Imaginava-se ao lado do Zuza, numa casinha muito bem mobiliada, com cortinas de cretone na sala de jantar e um viveiro de pássaros -ele, de chambre e gorro sentado na escrivaninha a fazer versos, feliz, despreocupado; ela com um robe-de-chambre todo branco, fitinhas na frente de alto a baixo, cabelo solto, a ler o último romance da moda, recostada na espreguiçadeira, sem filhos... Que vida!

Ao mesmo tempo lembrava-se de que o Zuza podia lhe sair um marido muito besta e casmurro, cuidando somente da papelada de autos e requerimentos, um advogado com escritório e tabuleta à porta para fazer... nada! Ela, por outro lado, a cuidar dos filhos, muito besuntada, da sala para a cozinha numa azáfama de burguesinha reles. Boas!

E não assentava idéias, a mente que nem um rodopio, fantasiando situações disparatadas, coisas impossíveis.

Leu outra vez a carta, analisando-a palavra por palavra, repetindo as frases à meia voz. Aquela linguagem alambicada e dengosa quislhe parecer tosca demais para ter sido do punho dum estudante de direito. -Que idiota! pensava; comparar seus olhos com olhos de madona e sua voz com uma harpa eólia! -E, num arrebatamento, levantou-se e guardou a carta na caixinha de fitas. -«Qual olhos de madona! Qual harpa eólia, qual nada, seu besta!»

Daí a pouco também ressonava com a respiração leve como uma carícia.

O dia seguinte era domingo. Todos em casa do amanuense acordaram muito bem-dispostos. Havia missa cantada na Sé. Espocavam foguetes e repicavam sinos. Meninos apregoavam numa voz cantada a Matraca a 40 réis! -um jornaleco imundo que falava da vida alheia e que por duas vezes trouxera sujidades contra João da Mata. Maria do Carmo quis ver o que dizia a Matraca, apesar de o padrinho ter proibido expressamente a entrada do pasquim em sua casa. Ali só lhe entrava a Província, dissera ele; isso mesmo porque o José Pereira não exigia pagamento de assinatura. O mais era uma súcia de papéis nojentos que só serviam para... -Maria deu um pulo até a casa da viúva Campelo e aí pôde comprar a Matraca. O padrinho estava no banho. -O Namoro do Trilho de Ferro! gritavam os vendedores. Maria teve um palpite. Certo aquilo era com ela. Que felicidade o padrinho estar no banho! Pagou ao menino, pedindo-lhe pelo amor de Deus que não gritasse mais o Namoro do Trilho de Ferro. Abriu o jornal ansiosa. Que horror! Havia, com efeito, uma piada sobre ela e o Zuza. Mais que depressa correu a mostrar à Lídia.

-Estás vendo, menina? Lê isto aqui. E apontou com o dedo. Eram uns versos de pé de viola que contavam o recente namoro do Zuza:

«A normalista do Trilho,

ex-irmã de caridade,

está caída pelo filho

dum titular da cidade.

O rapazola é galante

e usa flor na botoeira:

D. Juan feito estudante

a namorar uma freira...

Eis por que, caros leitores,

eu digo como o Bahia:

-Falem baixo, minhas flores,

Senão... a chibata chia!...»



. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

Lídia achou graça na versalhada. Ela também já saíra na Matraca.

-Um desaforo, não achas? perguntou a normalista indignada.

-Que se há de fazer, minha filha? Ninguém está livre destas coisas no Ceará moleque. Não se pode conversar com um rapaz, porque não faltam alcoviteiros. Olha, eu aposto em como isto que aqui está saiu da cachola do Guedes.

-Que Guedes?

-Ó mulher, o Guedes, um do Correio... Dizem até que está feito redator principal da Matraca.

-E que mal fiz eu a esse Guedes que nem sequer me conhece?

-Eu te digo. O Guedes andou a querer namorar-me. Chegou a escrever-me uma carta muito errada e piegas, pedindo uma entrevista... Que fiz eu? Ri-me muito das asneiras do bicho, troceio-o a valer e mandeio-o pastar bem... Ora, o Guedes sabe que nós somos muito amigas e talvez queira vingar-se indiretamente. Aí está o que é, menina. Manda-o plantar couves e rasga esta baboseira, que isto não vale senão nada.

-Não vale nada, mas toda a gente lê e acredita, é o que é.

-Sabem lá qual é a «normalista do Trilho!»

A propósito Maria contou as ocorrências da véspera, a carta do Zuza, a cólera do padrinho, muito vexada.

Estavam à janela, em pé, frente a frente. D. Amanda andava para os fundos da casa a mourejar. No fim da rua, do lado da Estrada de Ferro, uma locomotiva fazia manobras, chiando, a deitar vapor fora. Chegou até a frente da casa da viúva, soltou um guincho rápido e voltou estralejando sobre os trilhos.

...E os sinos a repicarem na Sé e girândolas de foguetes estourando no ar. Chegavam espaçados sons de música que o vento trazia.

-Não sei se deva responder, disse Maria dando a carta à amiga. Ele com certeza vem hoje para o víspora...

-De forma que tens um compromisso a satisfazer...

-Compromisso?

-Sim, porque quem cala consente. Aceitaste a carta, agora é responder. Diz-lhe que o amas também e que desde já o consideras teu noivo. Nisso de amor quanto mais depressa melhor. Eu pelo menos o entendo assim. Queres, eu faço a minuta.

-Eu, escrever para um homem?

-Tola! Que crime há nisso? Eles não escrevem para nós? Olha, tolinha, não sejas criança. O homem foi feito para a mulher e a mulher para o homem.

-Mas...

-Não tem mas nem meio mas. Decide-te a namorar o rapaz e deixate de meninices. Tu é que tens a lucrar. O Zuza tem fortuna, está a formar-se e com mais um ano pode ser teu marido e fazer-te muito feliz.

O que é que esperas de teu padrinho, um sujeito estúpido e usurário como um urso? Já não tens pai nem mãe e ele já fala em tirar-te da Escola. É muito homem para botar-te a cozinhar. Não sejas tola!...

Lídia interrompeu-se para cumprimentar um cavaleiro que passava. Era o Zuza montado num alazão reluzente ao sol, de cauda aparada e arreios de prata. O estudante trajava flanela e meias-botas de polimento, chapéu castor desabado, uma grande rosa branca no peito, luva, rebenque, muito vistoso com seus óculos de ouro e seu bigodinho retorcido para cima.

Fazia o costumado passeio matinal e lembrara-se de passar à porta do amanuense. Cumprimentou rasgadamente a Campelinho. Maria ocultou-se envergonhada atrás do postigo olhando por entre as gretas.

-Adorável! fez Lídia. E tu ainda queres mais, hein, minha tola?

Como sentia não ser ela a querida do Zuza! Ambos com vinte anos de idade, encarando a vida por um mesmo prisma: passeios a cavalo, toaletes de verão e de inverno, como nos figurinos, com chácara no Benfica, um faetonte para virem à cidade, vacas de leite... Um maná!

Tinha «o seu», o Loureiro, mas o guarda-livros parecia-lhe muito casmurro, muito indiferente a essas coisas de bom gosto, aos requintes da vida aristocrática que ela ambicionava tanto. Queriao mais por um capricho, porque não encontrava outro homem em melhores condições que desejasse casar com ela. Sabia de sua má fama e agarrava-se ao Loureiro como a uma tábua de salvação. Tudo menos ficar para tia. Verdade, verdade, o Loureiro não era um sujeito ignorante e pobre que lhe fizesse vergonha; mas não tinha certo aprumo, certa elegância no trajar; aferrava-se à calça e ao colete branco, invariavelmente, e ninguém o demovia daquele velho hábito. Entretanto possuía seu cabedal em casas e apólices da dívida pública. Ao passo que o outro, o Zuza, sabia empregar seu dinheiro divertindo-se, trajando bem, passeando como um príncipe. Uma simples questão de temperamento.

-Atira-te, minha tola. Aproveita enquanto o Brás é tesoureiro...

-Que queres tu que eu faça?

-Escreva logo essa carta e faze como eu: marca o dia do casamento. Assim é que se faz. Quem pensa não casa, lá diz o ditado, e é muito certo.

A voz de D. Terezinha chamou a Maria do outro lado da rua. Era hora do almoço. O amanuense estava apressado porque tinha de ir à praia, ao embarque do conselheiro Castro e Silva que seguia para o Rio de Janeiro.

João da Mata almoçou às carreiras, como quem vai tomar o trem, e abalou, enfiando-se no inseparável e já velho chapéu-chile.

Seriam onze horas pouco mais ou menos. Um mormação de fornalha abafava os transeuntes que desciam e subiam a rua de Baixo a pé, esbaforidos.

No porto havia grande lufa-lufa de gente que embarcava e desembarcava simultaneamente, bracejando, falando alto. A maré de enchente, crispada pela ventania de sudoeste, num contínuo vaivém, alagava o areal seco e faiscante. Gente muita ao embarque do conselheiro. Curiosos de todas as classes, trabalhadores aduaneiros de jaqueta azul, guardas de Alfândega e oficiais de descarga com ar autoritário, de fardeta e boné, marinheiros da Capitania, confundiamse numa promiscuidade interessante. Jangadeiros, arregaçados até aos joelhos, chapéu de palha de carnaúba, mostrando o peito robusto e cabeludo, iam armando a vela às jangadas. A cada fluxo do mar havia gritos e assobios. Um alvoroço! Jangadas iam e vinham em direção do Nacional, que tombava como um ébrio, aproado ao vento. Apenas quatro navios mercantes fundeados e uma canhoneira argentina. Reluzia em caracteres garrafais, pintadinhos de fresco na popa duma barca italiana -«Civita Vecchia».

O vapor apitou pedindo mala. Era uma maçada ir a bordo com a maré cheia e um vento como aquele. Demais o sol estava de rachar. Um carro parou à porta da Escola de Aprendizes marinheiros: era o conselheiro, metido numa sobrecasaca muito comprida, cheia de atenções. Já o esperavam os amigos receosos de que o vapor não suspendesse sem «o homem».

A música da Polícia, formada à porta do quartel, gaguejou o Hino Nacional e o conselheiro, cheio de si, cortejando à direita e à esquerda, muito ancho, seguiu a tomar o escaler da Alfândega.

-Pílulas! fez João da Mata limpando a testa. Não vale a pena a gente se sacrificar com um calor deste!

Lá adiante encontrou o Loureiro, que vinha de despachar uma fatura no Trapiche, muito apressado com a sua calça branca lustrosa de gomas sem uma dobra.

-«Por ali?» -«É verdade, tinha ido a negócio.»

-Que há de novo? tornou o Loureiro.

-Nada. Vou aqui ao embarque do conselheiro.

-Hás de ganhar muito com isto...

-Que queres, filho? A política, a política...

-Qual política, homem! Com um solão deste não havia quem me fizesse ir a embarque de filho da mãe nenhum.

Uma lufada de poeira redemoinhou a dois passos dos interlocutores derribando bruscamente o chapéu do amanuense, pondo-lhe a calva à mostra.

-Com os diabos! vociferou João da Mata abaixando-se mais que depressa para apanhar o seu chile que rodava sobre as abas numa disparada vertiginosa por ali afora.

-Fiau! fiau! Pega! pega! prorrompeu a garotada numa vaia estrepitosa de gritos e assobios.

-Canalha! resmungava o homem, enquanto o Loureiro escafedia-se daquela situação grotesca, sacudindo com a ponta dos dedos a poeira do paletó, muito calmo.

O conselheiro tinha chegado ao trapiche com o seu préstito oficioso de amigos.

O amanuense encavacou deveras -«Diabos levem conselheiros e tudo!» dizia ele mal-humorado, piscando os olhos desesperadamente por trás dos óculos escuros, cobrindo a calva com um lenço para não constipar. E dali mesmo voltou à casa maldizendo-se por haver deixado os seus cômodos por uma estopada inútil daquela.

Dava meio-dia. À porta do quartel de linha um soldado soprava a todo pulmão numa corneta muito bem areada.

João da Mata caminhava devagar, automático, como quem vai com uma idéia fixa. Que séca! Podia muito bem estar em casa àquela hora, metido na sua camisola fresca, de papo para o ar na rede, ao aconchego morno da afilhada, saboreando-lhe o cheiro bom das carnes; entretanto ali vinha ofegante como um boi e suado como dois burros, todo emporcalhado de poeira, furioso. Não lhe contassem para outra. Já tinha pensado mesmo em abandonar para sempre a política. Pílulas! Mal lhe chegava o tempo para pensar na Maria do Carmo, naquela deliciosa boquinha fresca e rosada, boa para a gente levar a vida inteira a beijar...

O Zuza tinha-lhe acordado o instinto; receava agora que a menina se deixasse levar pelas gabolices do estudante e então lá se iam os seus belos projetos águas abaixo.

Nunca se preocupara tanto com Maria do Carmo. Desde que o Zuza começou a freqüentar a rua do Trilho não lhe saía mais da cabeça a afilhada. A própria D. Terezinha por vezes tinha estranhado os seus modos para com a menina.

Achava a Teté uma mulher gasta: queria uma rapariga nova e fresca, cheirando a leite, sem pecados torpes, a quem ele pudesse ensinar certos segredos do amor, ocultamente, sem que ninguém soubesse... Estava farto do «amor conjugal». Nunca experimentara o contato aveludado de um corpo de mulher educada, virgem das impurezas do século. E quem melhor que Maria do Carmo, uma normalista exemplar e recatada, poderia satisfazer os caprichos de seu temperamento impetuoso? Era sua afilhada, mas, adeus! não havia entre ele e a menina o menor grau de consangüinidade, portanto, não podia haver crime nas suas intenções... Se Maria houvesse de cair nas garras de algum bacharelete safado fosse ele, João da Mata, o primeiro a abrir caminho...

Demais, argumentava de si para si, podia arranjar tudo sem que ninguém soubesse. O segredo ficaria entre ele e a afilhada, inviolável como a sepultura de um santo.

E ia parafusando num meio simples e natural de conquistar o coração de Maria. -Toda a questão era de oportunidade.

Àquela hora a normalista arrastava ao piano a valsa Minha esperança, cuja cadência punha uma monotonia irritante na quietação morna da rua do Trilho.

O futuro bacharel em leis ou simplesmente o Zuza, como era conhecido em Fortaleza o filho do coronel Souza Nunes, passava uma vida regalada, usufruindo largamente a fortuna do pai avaliada em cerca de cem contos de réis. O coronel franqueava a burra ao filho com uma generosidade verdadeiramente paternal. Queria-o assim mesmo, com todas as suas manias aristocráticas e afidalgadas, com os seus jeitos elegantes, arrotando grandeza e bom gosto, tal qual o presidente da província de quem se dizia amigo.

-«Cada qual com seu igual» doutrinava o coronel. O que não admitia é que o filho se metesse com gente de laia ruim, que ele, coronel, nunca descera de sua dignidade para tirar o chapéu ou apertar a mão a indivíduos que não tivessem uma posição social definida. Aprendera isso em pequeno com o pai, o finado desembargador Souza Nunes, homem de costumes severos, que sabia dar aos filhos uma educação esmerada, quase principesca. O Zuza, dizia ele, não era mais do que uma vergôntea digna desse belo tronco genealógico dos legítimos Souza Nunes, tão nobres quanto respeitados no Ceará.

Era um orgulho para o coronel ver o filho passar a cavalo, com o presidente, alvo do olhar bisbilhoteiro do mulherio elegante, em trajes de montaria, roupa de flanela, botas, chapéu mole desabado.

O Zuza dava-se muito com o presidente que também pertencia a uma alta linhagem de fidalgos de São Paulo e fora educado na Europa: um rapagão alegre, amador de cavalos de raça, ilustrado e amigo de mulheres.

As revelações da Matraca sobre o namoro do Trilho de Ferro deram que falar à cidade inteira. Nas rodas de calçada o fato propalouse imediatamente à guisa de escândalo. A princípio ninguém sabia ao certo qual era a tal «normalista ex-irmã de caridade». Que havia de ser a Lídia Campelo afirmavam uns. Mas a Campelinho nunca fora religiosa quanto mais freira. Afinal sempre se veio a saber a verdade e espalhou-se logo que a afilhada do João da Mata estava com um namoro pulha mais o estudante. Não era Lídia mas dava no mesmo, dizia-se: ambas estudavam na mesma escola, eram dignas uma da outra.

E toda a gente dizia sua pilhéria, atirava seu conceito à boca pequena, com risadinhas sublinhadas -pilhérias e conceitos que chegavam até aos ouvidos do coronel Souza Nunes, percucientes, incisivos como ferroadas de maribondos. «-Não era possível, pensava ele. O Zuza era incapaz de semelhante criancice; um rapaz de certa categoria não se deixa iludir por uma simples normalista sem eira nem ramo de figueira, uma rapariga sem juízo, filha de pais incógnitos, educada em casa dum amanuense reles. Quem, o Zuza? Pois não viram logo a monstruosidade do absurdo? Era uma calúnia levantada a seu filho. Que esta! Não faltava mais nada senão ver o nome do rapaz em letra redonda estampado na Matraca, um jornaleco imundo como uma cloaca!»

Morava na rua Formosa, numa casa assobradada e vistosa com frontaria de azulejos, varandas, e dois ananases de louça no alto da cimalha, à velha moda portuguesa.

O coronel gostava de passar bem, de «fazer figura», e, até certo ponto, revelava uma natureza delicada que não era indiferente ao aspecto exterior das coisas; sabia mesmo aquilatar objetos de arte, escolher bric-à-bracs. No que respeita a asseio ninguém o excedia. Era o que se pode chamar «um homem de bons costumes», um pouco orgulhoso e duma susceptibilidade a toda prova em matéria de dignidade pessoal: irrepreensível e caprichoso na intimidade doméstica como na vida pública.

Fazia gosto a sala de visitas, forrada a papel-veludo claro com ramagens cinzentas, mobiliada com inexcedível graça, sem ostentação, sem luxo, mas onde se notava logo certa correção no arranjo dos móveis, na colocação dos quadros, na limpidez dos cristais.

Ao fundo, entre as duas portas altas e esguias que diziam para o interior da casa, ficava o piano, um Pleyel novo, muito lustroso, sempre mudo, sobre o qual assentavam estatuetas de biscuit. À direita, descansando sobre grandes pregos dourados, o retrato a óleo do coronel com a sua barba em ponta, olhava para o piano, muito sério, em simetria com o da esposa.

O corredor da entrada separava a sala de visitas do gabinete do Zuza que ficava à esquerda. -«Não faltava mais nada!» repetia mentalmente o coronel, estendido na espreguiçadeira de lona, pernas trançadas, defronte da varanda, aparando as unhas.

Em casa usava calças brancas, paletó de seda amarelo e sapatos de entrada baixa com flores no rosto de lã.

Era hora do almoço, o Zuza não devia tardar. Ia falar-lhe decididamente; aquela história do namoro não lhe cheirava bem. Talvez o filho tivesse mesmo a estroinice pueril de desfrutar a rapariga.

Daí a pouco entrou o estudante. Vinha muito jovial, cantarolando o Bocácio:

Se acaso algum de nós

tiver por sina atroz

mulher que se não cale

que a toda hora fale...



E repetia muito alegre:

-Trá lá lá lá... trá lá lá lá...

-Vens muito alegre, hein, meu filho? interrompeu o coronel da sala.

Zuza tinha entrado para o gabinete e começava a despir-se.

-Ah! meu pai estava aí?

E logo:

-Trago uma novidade.

-Vejamos...

-Vou a Baturité com o presidente.

-Ainda bem, ainda bem... fez o coronel num tom desusado, sem erguer a cabeça.

-Como ainda bem? inquiriu o estudante aproximando-se.

Apenas trocara o fraque por um paletó de brim branco.

-Porque... porque... Eu precisava mesmo falar-te. Ora, dize, uma coisa: leste o último número da Matraca?

Zuza franziu os sobrolhos desconfiado, com um risinho seco. -«Não tinha lido a Matraca, não. Um jornaleco imoral que andava por aí? Não, não tinha lido. Por quê?»

-Que história é uma de namoro no Trilho de Ferro? Fala-se em ti, no teu nome, numa normalista...

Cresceu o assombro do rapaz.

-Eu?!... Meu pai está gracejando...

-Juro-te que não. Mas olha, quem diz é a Matraca e alguém afirmou-me particularmente que a rua está cheia...

-E esta! fez o Zuza cruzando os braços admirado. Pois meu pai não vê logo que isto é um gracejo de mau gosto, um canalhismo de província?

-O que é certo é que não te fica bem a brincadeira.

-Absolutamente não, e eu preciso saber quem é o autor do pasquim...

A criada avisou que o almoço estava na mesa.

-... Sim, continuou Zuza, vou informar-me, preciso saber...

-Eis aí está por que fazes bem indo passar uns dias a Baturité.

E polindo as unhas, o coronel dirigiu-se para a sala de jantar, grave como um apóstolo do bem, enquanto o filho ia desabafando suas cóleras contra a sociedade cearense.

-«Uma sociedade que lê a Matraca e gosta!»

No outro dia, com efeito, o futuro bacharel seguia no expresso para Baturité em companhia do Dr. Castro, presidente do Ceará.

Lia-se na Província:

«Segue amanhã, pela manhã, com destino a Baturité, a fim de visitar a importante fábrica Proença, o Exmo. Sr. Presidente da Província. Acompanham o ilustre amigo do Ceará os nossos distintos amigos e correligionários Srs. Dr. José de Souza Nunes e José Pereira, nosso colega de redação. S. Exa. pretende demorar-se alguns dias naquela cidade.»

Maria do Carmo leu com surpresa a notícia da Província e não pôde conter um gesto de despeito. Era desse modo que o Sr. Zuza estava doido por ela! Ir-se embora sem ao menos lhe comunicar! Nem sequer deixara um bilhetinho, um cartão com duas palavras, duas somente! Que custava escrever num pedaço de papel -Vou e volto?

Zangara-se deveras, atirando a folha para um lado, trombuda, furiosa.

Estava tudo acabado, não falaria mais no Zuza, não lhe escreveria: que fosse bugiar! Moças havia muitas no Ceará: que procurasse uma lá a seu jeito e ela por sua vez trataria de arranjar noivo, mas noivo para casar, noivo sério, noivo de bem!

Entretanto, Maria não tinha feito reparo na despedida do Zuza, um soneto em decassílabos, com sílabas demais nuns versos e de menos noutros. Adeus -era o título e vinha na terceira página da Província. Depois é que viu por que a Lídia mostrou-lhe.

-Já estavas fazendo mau juízo do rapaz, hein? disse a Campelinho.

-Certamente, confirmou Maria. Nem ao menos teve a lembrança de me avisar!

-Como querias tu que ele avisasse se ainda não lhe respondeste a carta?

Maria esteve pensando com o jornal na mão, lendo e relendo os versos, e, meio arrufada meio risonha:

-Embora! O dever dele era me participar. O homem é que faz tudo...

E na manhã seguinte, muito cedo, pulou da rede e foi no bico dos pés, embrulhada no lençol, ver passar o trem através da vidraça.

A locomotiva disparou numa rapidez crescente, soltando rolos de fumo e fagulhas que pareciam uma irrisão aos olhos da normalista. A sineta, num badalar contínuo, acordava os moradores do Trilho, àquela hora ainda nos lençóis.

Maria viu passar a enfiada de vagões estralejando sobre os trilhos e esteve muito tempo em pé ouvindo o silvo longínquo da locomotiva que ia, como uma coisa doida, sertão adentro! Começou então a sentir-se só; teve vontade de abrir num choro histérico como se lhe houvessem feito uma grande injustiça. Voltou para a tepidez do seu quarto e lá deixou-se ficar até sair o sol, com um peso no coração, encolhida na rede, sem ânimo para levantar-se, desejando um querer que era vago, extraordinário, que lhe punha arrepios intermitentes na pele. Que bom se o Zuza estivesse ali com ela, na mesma rede, corpo a corpo, aquecendo-a com seu calor... Àquela hora onde estaria ele? Talvez em Arronches...; não, já devia ter chegado a Mondubi... Imaginava-o metido num comprido guarda-pó de brim pardo, tomando leite fresco na estação, ao lado do presidente, tirando do bolso da calça um maço de notas de banco, muito amável, rindo... Depois o trem apitava. Havia um movimento rápido de gente que embarcava às pressas, e... lá ia outra vez por aqueles descampados afora, caminho da serra que se via ao longe, rente com as nuvens, como aquelas cadeias colossais de montanhas onde há gelos eternos e que na geografia têm o nome de Alpes...

De repente lembrou-se:

«-E se o trem desencarrilhasse...?» Ia adormecendo quando lhe veio à mente esta idéia. Sentou-se na rede, esfregando os olhos, como se tivesse acordado de um pesadelo. «-Se o trem desencarrilhasse o presidente morreria também...»

...Teve um consolo. Não, o trem havia de chegar em paz com todos os passageiros. Espreguiçou-se toda com estalinhos de juntas e, maquinalmente, deixou escapar um -ai! ai!- muito lânguido e prolongado.

Lá fora recomeçava a labuta quotidiana. A criada puxava água da cacimba; o cargueiro de água potável enchia os potes; cegos cantavam na rua uma lengalenga maçante, pedindo esmola numa voz chorada; vendedores ambulantes ofereciam cajus... Havia um ruído matinal de cidade grande que desperta.

Nesse dia Maria do Carmo não foi à Escola Normal: que estava incomodada, com uma enxaqueca muito forte.

João da Mata tomou-lhe o pulso, mandou que mostrasse a língua, muito solícito, com cuidados de pai: -«Não era nada, uma defluxeira.» E largou-se para a Repartição, palitando os dentes.

A Lídia, essa tinha liberdade plena em casa da mãe, ia à Escola quando queria e, se lhe convinha, lá não punha os pés. Deixou-se ficar também com a Maria. -Tinham muito que conversar.

-Que saudades, hein? começou a Campelinho.

Estavam sós, na sala do amanuense. D. Terezinha tinha ido à casa da viúva mostrar um corte de fazenda que o Janjão lhe comprara.

Maria, derreada na cadeira de balanço, fechou o volume que estivera lendo, e, com um bocejo: -«É verdade, o diabo do rapaz não lhe saía da lembrança. Nem um castigo... Mas estava muito desgostosa da vida, já andavam inventando histórias, calúnias...»

-Não te importes minha tola. Ora! ora! ora!... Isso a gente faz ouvidos de mercador, e vai para adiante. A vida é esta, e tola é quem se ilude.

-Não, Lídia, as coisas não são como tu pensas. No Ceará basta um rapaz ir duas vezes à casa de uma moça para que se diga logo que o namoro está feio, que é um escândalo, e nós é que somos prejudicadas. «Ah! porque já não é mais moça, porque é uma sem-vergonha» é o quem dizem...

-Pois olha, esta aqui há-de namorar até não poder mais. Queres que te diga uma coisa? Isso de casamento é uma cantilena...

E, num assomo de despeito, a Campelinho lembrou mulheres casadas que tinham amantes e que viviam muito bem na sociedade; citou a mulher do Dr. Mendes, juiz municipal. Estava ali uma que fora encontrada aos beijos com o José Pereira, da Província, em pleno Passeio Público! Quem era que não sabia? Ninguém. Entretanto freqüentava as melhores famílias da capital -era a Sra. D. Amélia! Queria outro exemplo?

E abaixando a voz:

-Aqui mesmo em casa o tens, minha tola. Ninguém ignora neste mundo que D. Terezinha é amigada com teu padrinho. E tudo mais é assim, querida Maria. A canalha fala de inveja, invejosos é o que não faltam nesta terra.

Maria prestava atenção, silenciosa.

-Então, disse ela por fim, achas que devo continuar o namoro?

-Que dúvida, mulher! Eu é porque já tenho o meu. Assim mesmo...

Maria sentiu uma pontinha de ciúme roçar-lhe o coração. Disfarçou com um risinho seco.

-Eu estive pensando, disse, caso o Zuza me pregue uma taboca...

-Nada mais simples: prega-lhe outra casando-te com o primeiro bilontra que aparecer. Amor com amor se paga...

-Não, falemos sério...

-Que queres tu que se diga? Eu cá não costumo enganar ninguém. Sou muito franca. -Pão, pão, queijo, queijo...

-Dão licença? disse uma voz fora, na rua.

Era D. Amélia, mulher do Dr. Mendes.

Maria foi abrir a rótula.

-Oh! por ali?...

-É verdade, meninas, venho morta de calor. Uf! que solão, que solão!

Lídia, muito expedita e pronta, ajudou a desatar o véu e a tirar as luvas.

Como estava a Teté? perguntou D. Amélia muito afogueada, tirando o chapéu defronte do espelho. D. Amanda ia bem? E sentando-se:

-Já sei que não foram hoje à Escola... Boa vida! Não há como ser moça. Pois, meninas, venho duma séca. Fui ali à casa da costureira experimentar o meu vestido de cetim...

-Isso que é boa vida, disse a Campelinho: passeios, vestidos... Maria tinha ido chamar a madrinha: que era um pulo.

-Qual passeios! Quem tem filhos pode lá passear?

D. Terezinha não se fez esperar. Entrou sacudindo os quadris, bamboleando-se toda.

-Ora viva! disse atirando-se nos braços de D. Amélia. Como vai, como tem passado? Que milagre!

Agora todas falavam a um tempo, rindo, gabando-se.

-Sabem quem esteve ontem conosco?... O Zuza. Diz que volta sábado de Baturité. Gabou muito a Maria: que é uma cearense distinta, muito prendada, chique a valer, um horror! Ao que parece temos casório...

-Qual casório! fez Maria com um rubor nas faces. Invenções...

-Não havia de ser contra a minha vontade, disse D. Terezinha. Seria até uma felicidade. Deus o permita...

Falaram de modas.

D. Terezinha alardeou o seu rico vestido de cetim, que a viúva Campelo achara de muito bom gosto.

D. Amélia queixou-se do marido: um homem sem gosto, um moscamorta, muito desleixado, com venetas de doido. Ela até já se aborrecia, porque o Mendes tinha o mau costume de beber aguardente; às vezes chegava tropeçando, com a língua pegada, sem poder falar. Vestidos ela via-os de ano em ano. Um indiferente, o Mendes. Sofria de uma erisipela na perna direita que o proibia de trabalhar meses inteiros...

-Pois olha, disse D. Terezinha, o meu faz-me as vontades, mesmo porque eu não sou mulher de muitos me-deixes. Todos os meses é pra ali um vestido. Diabo é quem os poupa! Também, minha filha, dou-lhe toda liberdade, fora e dentro de casa. Felizmente não tenho queixa dele.

Lídia pediu a D. Amélia que tocasse alguma coisa, a Juanita, que era a valsa da moda.

A propósito D. Amélia perguntou se já tinham ido ao teatro. Que fossem, que fossem. O grupo lírico da Naguel estava fazendo sucesso. A Belle-Grandi era um mulherão capaz de arrebatar uma platéia inteira. Que modos, que requebros! Domingo ia a Juanita pela última vez em benefício da Aliverti. Que fossem. Era uma opereta interessantíssima, por sinal tinha sido representada cem vezes na Corte! A beneficiada ia fazer o papel de Juanita.

-Eu é para que tenho jeito, atalhou a Campelinho, é para o teatro. Deve ser uma vida tão cheia de sensações a das atrizes... Vestem-se de todas as formas, recebem presentes ricos, jóias, anéis de brihante... são aplaudidas e ainda por cima ganham dinheiro à ufa. Eu já disse à mamãe, mas ela não quer por coisa alguma, diz que é uma vida imoral... Tolice! Há tanta gente boa nos teatros... A última vez que fui ao circo chileno fiquei encantada pela Estrela do Mar!

-É o que você pensa, menina, disse D. Amélia. Essas pobres mulheres fazem um ror de sacrifícios... Sabe Deus quanto lhes custa uma noite de espetáculo! Acabam quase sempre miseráveis, coitadas, nalgum quarto de hotel, a esmolas. Enquanto são moças ainda, ainda encontram quem lhe estenda a mão, porém, depois, morrem por aí em qualquer pocilga, sem um real para a mortalha. Tibis, menina, nem se lembre de tal coisa!

Maria, a um canto do sofá, pensava no estudante, perdida num labirinto de reflexões, com uma languidez no olhar vago. O Zuza preocupava-a como um sonho d'ouro. Começava a sentir o que nunca sentira por homem algum, certo desejo de ter um marido a quem pudesse entregar-se de corpo e alma, certa sentimentalidade sem causa positiva, uma como abstração do resto da humanidade. E quando D. Amélia, sentando-se ao piano, começou a tocar a Juanita, veio-lhe um vago e esquisito desejo de ir-se pelo mundo afora nos braços do «seu» Zuza, rodopiando numa valsa entontecedora até cansar... Via-se nos braços dele, arquejando ao compasso da música, quase sem tocar o chão, voando quase leve como um floco de algodão, como uma pena, como uma coisa ideal e aérea... E lembrava-se do padrinho. Ah! o padrinho queria tanto mal ao Zuza... Doravante ia agradar muito a João, tratá-lo com mais carinho, dar-lhe muitos cafunés, fazer-lhe todas as vontades, adulá-lo, a fim de que ele não ralhasse por causa do estudante. Que tola não ter escrito logo ao Zuza, àquele Zuza que era agora a quantidade constante de seus cálculos, a preocupação única de seu espírito, o seu alter ego!

Sim, porque de resto, ela não havia de ser nenhuma freira que ficasse por aí solteirona, sempre casta como uma vestal.

A Lídia tinha razão -a mulher fez-se para o homem e o homem para a mulher. Era sempre melhor aceitar a cartada que se lhe oferecia do que entregar-se aí a qualquer caixeiro de armarinho, a qualquer lojista usurário e safado. Ao menos o Zuza tinha dinheiro e posição, era um rapaz conceituado. Comparava-se com a Lídia e sentia-se outra, muito outra, noiva de um moço elegante, estimada, querida por todos. Ninguém se lembraria, depois, de sua origem humilde, todo o mundo a respeitaria como esposa do Sr. Dr. José de Souza Nunes! Começava mesmo a sentir uma grande afeição pelo Zuza.

As últimas notas do piano produziram-lhe uma comoçãozinha, uma ponta de saudade sincera, um arrepio na epiderme. E, levantando-se muito desconfiada, foi juntar-se às outras que palravam por quantas juntas tinham.

A voz de Campelinho timbrava muito fina e metálica, traduzindo todo um temperamento nervoso e irrequieto.

Acharam deliciosa a valsa da Juanita. Maria também deu o seu parecer: que era linda, que ia ensaiá-la. Falavam alto, numa intimidade de amigas velhas, sem pensar nas horas que iam passando rapidamente.

Fazia sombra na calçada. Pela janela aberta entrava uma poeira sutil que punha uma camada muito tênue e pardacenta no verniz gasto dos móveis. Vinha lá de dentro, de envolta com o fumaceiro da cozinha, um cheiro gorduroso e excitante de guisados.

Deram três horas.

-Jesus! fez D. Amélia erguendo-se admirada. Três horas! Vou-me chegando, meninas.

-Agora fique para jantar, solicitou D. Terezinha. Nada de cerimônia, o Janjão não tarda, é comida de pobre, mas sempre se passa...

-Ora fique, Jesus!

-Não Tetezinha, de minha alma, não posso, o Mendes me espera, aquilo é um estouvado. Vim somente para pedir um favorzinho, mas é segredo...

-Oh! filha...

Entraram as duas para a sala de jantar. A Mendes pediu água, e, dando estalinhos com a língua, acariciando a mão de D. Terezinha, disse muito baixo, quase ao ouvido, engrossando a voz, que precisava de dez mil-réis para pagar a costureira e vinha pedir-lhos até o fim do mês. A Teté não imaginava: tinha em casa o essencial para a feira do dia seguinte! O Mendes pouco se importava que houvesse ou não dinheiro... Tivesse paciência, sim? Pagava, sem falta, no fim do mês.

Disse que os meninos andavam descalços, que as despesas eram muito grandes, alegou o preço da carne... Um horror! Não se podia num tempo daquele comer com pouco dinheiro. Não sobrava nem para um vestido!

Também estava muito «quebrada», disse D. Terezinha compungida. O Janjão tinha feito um ror de despesas naquele mês; dava graças a Deus quando lhe vinha um dinheirinho do Pará, de rendas... Só ao velho Teixeira, um que emprestava dinheiro a juros, deviam duzentos mil-réis. Em todo caso sempre ia ver se arranjava pra cinco milréis. Era um instantinho.

Foi depressa à alcova, abriu com estrondo a gaveta da cômoda e daí a pouco voltou com uma nota de 5$000, muito velha e ruça, quase em frangalhos, que entregou à outra. Era só o que tinha para servila.

-Muito obrigada, minha santa, não sabe quanto lhe agradeço... No fim do mês, sem falta.

E guardando o dinheiro na velha bolsinha de couro da Rússia:

-Agora deixe-me ir.

-Por que não fica para jantar, insistiu D. Terezinha. O Janjão está chegando, mande um recadinho ao Dr. Mendes.

-Qual, filha, não posso. O Mendes é muito enjoado; fica para outra vez, sim?

Beijaram-se depressa e a mulher do juiz municipal retirou-se com seu passo miudinho, arrepanhando o vestido.

-Apareçam, hein? disse da rua. Amor com amor se paga...

E desapareceu, como um foguete, na esquina.

Às quatro horas entrou o amanuense com a papelada debaixo do braço, muito suado, assobiando a Mascotte.

A Campelinho tinha se escapulido: que eram horas de jantar.

Maria do Carmo sentara-se ao piano e ensaiava a Juanita.

D. Terezinha, essa andava para dentro, às voltas com a cozinheira, provando as panelas, ralhando.

João apenas sacudiu os papéis sobre o sofá, foi direito à afilhada.

-A santa está tocando a Juanita? Que mimo, Jesus! Como se pode ser bonita assim!

E sem dar tempo a Maria de defender-se, pôs-lhe um grande beijo na face. A normalista sentiu um braseiro no rosto ao contato da barba espinhenta do amanuense, e um bafo insuportável de álcool tomou-lhe as narinas. Era a primeira vez, depois que saíra da Imaculada Conceição, que o padrinho lhe beijava em cheio na face. O amanuense tinha-se aproximado devagarinho, de mãos para trás, e, de repente, tomando-lhe a cabeça entre as mãos fedorentas a cigarro, beijou-a perto da orelha, continuando cinicamente a assobiar.

Ela apenas pôde dizer -padrinho! agarrando-se à cadeira de mola. Ficou muito séria, a limpar o rosto com a manga do casaco. Ah! mas dentro, nas profundezas da sua alma teve um ódio imenso àquele homem nojento que abusava de sua autoridade sobre ela para beijá-la! Fosse outro, ela teria correspondido com uma bofetada na cara... Mas que fazer? Era seu padrinho, quase seu pai, devia aturá-lo, tinha obrigação de submeter-se, porque estava em sua casa, comia de seus pirões, e o papai lhe pedira muito que o respeitasse. A princípio até o estimava, não o achava mau completamente; agora, porém, que uma espécie de instinto irresistível a impelia para o Zuza, agora que o estudante ocupava um lugar no seu coração, enchendo-o quase, o padrinho ia-se-lhe tornando repugnante e desprezível. Não podia chegar-se a ele, vê-lo de perto, encará-lo frente a frente, sem um profundo e oculto frenesi. Um homem que não cuidava dos dentes, que não se banhava, um bêbado!

Esteve folheando o livro de músicas automaticamente, sem se mexer, sem dar palavra, esperando que João se retirasse da sala. João, porém, bateu o postigo com força, cambaleando, dando encontrões nos móveis, aproximou-se outra vez da afilhada e, num movimento abrutalhado, abraçando-a por trás, curvando-se para a frente, sobre ela, chimpou-lhe outro beijo, agora na boca, um beijo úmido, selvagem, babando-a como um alucinado...

Maria quis gritar sufocada, mas o amanuense, tapando-lhe a boca, ameaçou:

-Nada de gritos, hein! nada de gritos... Eu sou seu padrinho, posso lhe beijar onde e quando quiser, está ouvindo? Nada de gritos!

E Maria, com os lábios muito vermelhos, como a polpa de uma fruta, debruçada sobre o piano, desandou a chorar nervosamente.

João da Mata tinha bebido sofrivelmente na bodega do Zé Gato onde costumava aquecer os pulmões ao voltar da Repartição. Nesse dia excedeu-se, tomando em demasia, porque já lá estava o Perneta, um dos correios, que usava a muleta, que também gostava da pinga e escrevia versos para o Judeu Errante.

Num momento deram cabo duma garrafa em cujo rótulo lia-se Reclame atraente como visgo: Cumbe legítima!

E que loquacidade! Falaram por três deputados brasileiros sobre poesia e política.

O Perneta, sujeito pretensioso e pernóstico, metido a literato, falando sempre com certo ar dogmático, ventilou uma questão de literatura cearense -Que não tínhamos poetas, disse; o que havia era uma troça de malandros e de pedantes muito bestas, que escrevinhavam para a Província coisas tão ruins que até faziam vergonha aos manes do glorioso José de Alencar; uma súcia de imitadores que se limitavam a copiar os jornais da Corte.

Na sua opinião o Ceará só possuía um poeta verdadeiramente inspirado -era Barbosa de Freitas. Esse sim, cantava o que sentia em versos magistrais, dignos de Victor Hugo. Conhecera-o pessoalmente. Um boêmio! Fazia gosto ouvi-lo. Que eloqüência, que verve, que talento! Sabia de cor muitas poesias dele, mas nenhuma se comparava ao Êxtase, «esse poema de amor» que valia por todas as poesias de Juvenal Galeno. O João queria que recitasse?

-Recita lá! fez o amanuense emborcando o cálice.

E o Perneta, com voz cavernosa, os cotovelos sobre a mesinha de ferro pintada de amarelo, recitou de um fôlego o Êxtase:

Quando, às horas silentes da noite,

doce flauta descanta no ar,

quando as vagas soluçam baixinho

sobre a praia que alveja o luar.



. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

Terminou cansado, com um acesso de tosse, cuspinhando para o lado.

-Sim, senhor! fez João da Mata com um murro na mesa. Isto é que é ser poeta!

-«Queriam alguma coisa?» veio perguntar o caixeiro, um rapazinho magro, doente, com olheiras.

-Não, menino, disse o amanuense; está acesa a lanterna, por ora. Foi entusiasmo.

Estavam no fundo da bodega, numa saleta escura, sem saída por trás, com as paredes encardidas, úmidas, cheirando a cachaça, onde os fregueses tomavam bebidas: «Somente os fregueses de certa ordem», prevenia o Zé Gato.

-Pois é isto, continuou o Perneta. O pobre Barbosa de Freitas acabou como o grande Luís de Camões, na enxerga dum hospital, e nisto, penso eu, está a sua maior glória.

-Apoiado!

-E o que se vê hoje? Pedantismo somente. Os poetas de hoje usam fraque, gravatas de seda e polainas, escrevem crônicas elegantes, fazem política.

Os Álvares de Azevedo e os Barbosa de Freitas são gênios que aparecem de século em século, como certos cometas, no céu da literatura!

-Que tal achas o Zuza como poeta? perguntou o amanuense.

-Não me fales em semelhante gente. Aquilo é pior do que um cano de esgoto, homem. Quem chama o Zuza de poeta não sabe o que é ser poeta, nunca leu nosso Barbosa de Freitas. O Zuza emporcalha o papel -nada mais. Aquilo só presta mesmo para capacho do presidente.

A conversa encaminhou-se para a política e João da Mata tomou a palavra. -Que a política era a desgraça do Ceará; que estava cansado de trabalhar gratuitamente para a política. O que queria agora era dinheiro para acabar de levantar uma casinha no Outeiro.

-E que tal o presidente? perguntou o Perneta. Achas que fará alguma coisa em benefício do Ceará?

-Homem, como sabes, eu sou governista, porque infelizmente sou funcionário público, mas entendo que o Sr. Dr. Castro é um grandíssimo pândego.

E noutro tom, limpando os óculos:

-Nós precisamos é de homens sérios, seu Perneta, nós queremos gente séria!

Contou então que na seca tinha ganho muito dinheiro à custa dos cofres públicos; que fora comissário de socorros, e que os presidentes do Ceará eram uns urubus que vinham beber o sangue do emigrante cearense.

Tinha assistido a muita ladroeira na seca de 77.

-Aqui pra nós, acrescentou cauteloso, abaixando a voz, o atual presidente não é -justiça lhe seja- um homem sem juízo, um idiota, um leigo, mas, a continuar como vai, forçando a emigração para o sul, dentro de pouco transforma esta terra numa espécie de feitoria de São Paulo. É embarcar muita gente para o sul, seu compadre! Já lá foram quatorze mil e tantos! Isto é despovoar o Ceará, isto é fazer pouco caso do Ceará, c'os diabos!

-É bem feito! disse o Perneta, é muito bem feito para não sermos bestas. Isto é uma terra em que os estranhos fazem o que querem e ninguém protesta, ninguém reage. Nós só sabemos ser maus para nossos patrícios.

-Mas olha que o Cearense tem comido o couro ao homem...

-Qual comido o couro! O povo é que devia dar uma lição de mestre ao governo, a este governo sem patriotismo e sem critério! E com esta me vou, que isso de política fede... Queres mais alguma coisa?

-Olha que demos cabo duma garrafa! Nem mais uma gota. Que horas tens?

O outro puxou um relógio de plaquê desbotado, dentro duma capa de camurça, e erguendo-se:

-Quatro menos cinco minutos. Safa! O tempo voa! Ó Zé, bota na conta isto: uma garrafa de branca.

-Já cá está, acudiu o Zé Gato, muito sujo, com um dedo amarrado num pano preto, o lápis detrás da orelha, arrastando os chinelos.

-... Na conta do Perneta, explicou João da Mata.

E saíram pisando em falso, por entre fardos de carne-seca e caixas de cebola.

-Ó João, perguntou na rua o aleijado, a menina casa sempre com o tipo?

-Quem, a Maria?

-Sim.

-Casa, mas há-de ser com o diabo! Sujeitos daquela ordem não me entram em casa...

-Mas olha que é um casamentão!

-Nem que ele viesse coberto de ouro num palanque de diamantes. Ela só há-de casar com quem o padrinho quiser. E adeusinho, menino, adeusinho.

Separaram-se.

Passava um enterro caminho do cemitério. Quatro gatos-pingados, de preto, conduziam o caixão cujos galões de fogo reluziam ao sol. Pouca gente acompanhando: uns dez homens cabisbaixos, taciturnos, de chapéu na mão, marchavam a passo e passo. Na frente caminhava um padre, de estola e sobrepeliz, olhando para os lados, indiferente, mais um menino de coro de batina encarnada carregando a cruz.

O sino da Sé dobrava a finados melancolicamente. Gente chegava às janelas para ver passar o préstito.

-De quem é? Quem morreu? perguntava-se com mistério.

-A terra lhe seja leve, fez o Zé Gato abanando a cabeça com um ar triste.

João da Mata parou à beira da calçada afagando a pêra com os dedos magros e compridos, nervoso. -Quem morreria? pensava. -E, assim que o préstito passou, foi andando devagar, cabeça baixa, equilibrando-se.

No outro lado da rua o Romão, o negro Romão, que fazia a limpeza da cidade, passava muito bêbado, fazendo curvas, de calças arregaçadas até os joelhos, peito à mostra, com um desprezo quase sublime por tudo e por todos, gritando numa voz forte e aguardentada:

-Arre corno!... Um garoto atirou-lhe uma pedra. Mas o negro, pendido pra frente, ziguezagueando, tropeçando, encostando-se às paredes, torto, baixo, o cabelo carapinha sujo de poeira, pardacento, repetia, repetia insistentemente, alto e bom som, o estribilho que todo o Ceará estava acostumado a ouvir-lhe -Arre corno! E que repercutia como uma verdade na tristeza calma da rua.

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