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Capítulos de História Colonial

João Capristano de Abreu

Antecedentes indígenas

A quase totalidade do Brasil demora no hemisfério meridional, e entre o Equador e o trópico de Capricórnio alcança o país as maiores dimensões.

Cercam-no ao Sul, a Sudoeste, Oeste e Noroeste as nações castelhanas do continente, exceto o Chile, por se interpor a Bolívia, e o Panamá por se interpor a Colômbia. Se confrontará algum dia com o Equador hão de decidir negociações ainda ilíquidas. Desde o alto rio Branco até beira-mar seguem-se colônias de Inglaterra, Holanda e França, ao Norte.

Banha-o ao Oriente o oceano Atlântico, numa extensão pouco mais ou menos de oito mil quilômetros. Como o cabo de Orange, limite com a Guiana Francesa, dista 37 graus do Chuí, limite com o Uruguai, salta logo aos olhos a insignificância da periferia marítima; repete-se o espetáculo observado na África e na Austrália: nem o mar invade, nem a terra avança; faltam mediterrâneos, penínsulas, golfos, ilhas consideráveis; os dois elementos coexistem quase sem transições e sem penetração; com recursos próprios o homem não pôde ir além da pescaria em jangadas.

A borda litorânea dispõe-se em dois rumos principais: Noroeste-Sueste do Pará a Pernambuco, Nordeste-Sudoeste de Pernambuco ao extremo Sul.

A costa de NO-SE, corre baixa, quase retilínea, intermeada de dunas e lençóis de areia, aquém do Amazonas, baixa, lamacenta, de contornos variáveis, entre o Amazonas e o Oiapoque. Os materiais marinhos, os sedimentos fluviais dão-lhe o aspecto das costas compensadas; os portos rareiam, as barras dos rios são as verdadeiras entradas, em geral precárias. O desenvolvimento econômico ou as exigências administrativas mais que as condições naturais levam a navegação de longo curso para Belém, São Luís, Amarração, Fortaleza, Natal, Paraíba e Recife. Outros portos servem apenas à cabotagem. Tutóia franqueia o Parnaíba a embarcações de maior porte.

A costa de Sudoeste desde Pernambuco até Santa Catarina arrima-se à Serra do Mar, varia de aspecto, aqui extensões arenosas, além barreiras vermelhas, encostas cobertas de matas, ou montanhas que arcam com as ondas. Nela existem as maiores baías do Brasil: Todos os Santos, Camamu, Rio, Angra dos Reis, Paranaguá. A navegação de alto bordo procura as capitais dos estados, exceto as de Sergipe e Paraná, mais os portos de Santos, Paranaguá e S. Francisco do Sul. Também neste trecho se encontram as maiores e mais numerosas ilhas, em geral dentro de baías, todas de procedência continental.

A partir de Santa Catarina a costa se abaixa novamente; no Rio Grande do Sul dominam lagunas, cujo extenso litoral interno só poderá verdadeiramente prosperar quando a arte der a saída franca que a natureza lhes negou para o oceano.

As ilhas de procedência vulcânica, Fernão de Noronha, fronteira ao Rio Grande do Norte, Trindade, fronteira a Espírito Santo, pouco representam agora. Trindade parece imprópria à ocupação permanente: a Inglaterra só a disputou nos últimos anos por se prestar ao amarradio de cabos transatlânticos.

A faixa marítima apresenta largura variável: em geral avantaja-se mais de Pernambuco para o Pará, e no Rio Grande do Sul; no restante sua expansão subordina-se aos caprichos da serra do Mar: temos aqui as chamadas costas concordantes.

Ao Norte liga-se com a baixada do Amazonas, muito ampla à saída, relativamente estreita entre Xingu e Nhamundá, amplíssima a Oeste do Madeira e do Negro até o sopé dos Andes. As cachoeiras mais setentrionais do Tocantins, do Xingu, do Tapajós e do Madeira balizam a baixada pela banda do Sul. Pela banda do Norte, a Este do Negro, logo a algumas dezenas de quilômetros da foz, começa o trecho encachoeirado nos rios que descem da Guiana. De Este a Oeste apresenta declive insensível: mais desce o S. Francisco na cachoeira de Paulo Afonso do que o Amazonas nos três mil quilômetros que vão de Tabatinga ao mar.

A baixada marítima liga-se ainda ao Sul com a do Paraguai que começa no estatuário do Prata e prossegue até Mato Grosso. Cuiabá, na gema do continente, pouco mais de duzentos metros terá de altitude. As margens do rio principal, bastante altas no curso inferior, vão se abaixando à medida que se marcha para o Norte, até uma região anualmente alagada por espaços de muitas léguas, o chamado lago Xarais dos primeiros exploradores. Abundam aliás os lagos marginais, conhecidos pela denominação de baías; por uma série de baías passa a linha lindeira com a Bolívia.

As baixadas amazônica e paraguaia, contínuas com a do oceano, aproximam-se muito a Oeste: entre o Aguapeí, afluente do Jauru, tributário do Paraguai, e o Alegre, afluente do Guaporé, um dos formadores do Madeira, inserem-se apenas poucos quilômetros de distância. O governo português pensou em cortar este varadouro por um canal que levaria do Prata ao Amazonas, e deste, aproveitando o Cassiquiare, ao Orenoco, à ilha da Trinidad, ao mar das Antilhas.

A obra começada parou logo e parece inexeqüível, porque uma língua de terras bastante altas aparece e se estende até Chiquitos, na Bolívia, produzindo um desnivelamento pouco favorável.

As bacias do Amazonas e do Paraguai com os rios que as cortam, as ilhas numerosas, os lagos consideráveis e os canais sem conta compensam até certo ponto a pobreza do desenvolvimento marítimo, e são os verdadeiros mediterrâneos brasileiros. A depressão do Paraguai reunida à do alto Amazonas separa dos Andes as terras altas do Brasil, que a baixada amazônica ao Norte aparta do planalto da Guiana, e a baixada marítima precede pelos outros lados. A partir do Jauru, o Paraguai não recebe afluentes consideráveis em território brasileiro, à direita.

Desde o rio Uruguai o planalto brasileiro é limitado pela serra do Mar, áspera e coberta de matas na falda voltada para o oceano, mais suave na parte interior, de largura entre vinte e oitenta quilômetros, com picos que raramente passam de dois mil metros. Serve de divisora das águas entre os rios que procuram diretamente o Atlântico -em geral de pequeno curso, pois apenas dois, o Iguape e o Paraíba, rompem a serra, e os outros são rios transversais ou de meia água- e os rios que se destinam ao Prata, de muito maior extensão e cabedal: o Uruguai pertencente ao Brasil pelos dois lados até Peperi-guaçu, limite com a Argentina, e pelo lado esquerdo até Quaraím, limite com o Uruguai; o Iguaçu, com saltos de maravilhosa beleza, no trecho em que a esquerda pertence à Argentina e a direita ao Brasil; o Ivaí, próximo ao salto de Guairá; o Paranapanema, o Tietê, de tamanha significação histórica, e outros afluentes orientais do Paraná.

Da serra do Mar desprende-se a da Mantiqueira, que mais pelo interior vai desde o Estado do Paraná até Minas Gerais. Nela fica o pico mais alto do Brasil, o do Itatiaia, com cerca de três mil metros de altitude. Vem depois a serra do Espinhaço, que acompanha o rio S. Francisco pelo lado direito até ser cortada na grande curva traçada a Nordeste por ele antes de se lançar no oceano. Ambas representam papel somenos como divisoras das águas: a da Mantiqueira entre o Paraíba do Sul e o alto Paraná, a do Espinhaço entre o S. Francisco, de que estreita a bacia ao Oriente, logo depois de formado o rio das Velhas, e os rios de meia-água que se dirigem ao mar: Doce, Jequitinhonha, Pardo, Contas, Paraguaçu.

Das alturas de Barbacena arranca uma lombada transversal no rumo aproximado Este-Oeste que, com várias denominações, a trechos rigorosamente montanhosos, alhures meramente denudada, é o maior divisor das águas dentro do planalto. Chamou-a Serra das Vertentes o benemérito Eschwege, denominação excelente se, deixada de parte a estrutura, se atender somente ao papel representado na América do Sul. A um lado as águas vertem para o Paraná e para o Paraguai, ambos nascidos nesta zona e, como o Uruguai, terminando o curso em território estrangeiro; ao outro lado da vertente, correm os tributários do Madeira, objeto de longas disputas desde que Manuel Félix de Lima, em 1742, foi pela primeira vez das minas de Mato Grosso até a sua foz; o Tapajós, antigo caminho dos Cuiabanos para a compra do guaraná entre os Maués; o Xingu, cujas más condições de navegabilidade desviaram as explorações por muito tempo e deixaram viver até poucos anos numerosas tribos indígenas em pura idade da pedra, cujo estudo impulsionou poderosamente a etnografia sul-americana; o Araguaia-Tocantins, o Parnaíba, o S. Francisco.

O S. Francisco, de grande importância histórica, é formado pelo rio que com este nome desce da serra da Canastra, e pelo rio das Velhas. No trecho superior, os afluentes mais consideráveis correm entre estas duas cabeceiras até sua confluência; transposto já o salto de Pirapora, a divisora das águas com o Tocantins afasta-se e deixa que se desenvolvam o Paracatu, o Urucuia, o Carinhanha, o Corrente, o Grande, ao passo que a serra do Espinhaço se aproxima. Desde a barra do rio Grande para o mar, nem de uma, nem de outra margem concorre afluente algum considerável; os embaraços encontrados pela navegação acumulam-se, e tolheram as comunicações até ser transposto por uma via-férrea o trecho encachoeirado.

O S. Francisco é, por assim dizer, a imagem de quase todos os rios do Brasil: no planalto, apenas o volume de água o permite uma extensão de centenas de léguas, às vezes, perenemente navegável por embarcações de maior ou menor capacidade; em seguida, a descida do planalto com saltos e corredeiras, como os do Madeira, o Augusto no Tapajós, o Itaboca no Tocantins, o Paulo Afonso no S. Francisco, e tantos outros; finalmente, as águas se acalmam e aprofundam, e os embaraços de todo desaparecem quando lhes sobra força suficiente para impedir a formação de baixios na barra.

Deste tipo se apartam o Amazonas, cuja região tormentosa é vencida logo nas cabeceiras, muito antes de entrar no Brasil, e seus afluentes situados a Oeste do Madeira e do Negro, no chamado Solimões, nascidos todos em regiões pouco elevadas e logo difundidos por grandes baixadas, quase niveladas. Em menores dimensões reproduz-se o fato com o rio Paraguai e alguns de seus afluentes. O Parnaíba e os rios do Maranhão, descendo suavemente por um declive graduado ao longo do seu curso, apresentam uma forma de transição entre o tipo dos rios das baixadas e dos chapadões.

As montanhas preparam e os rios esculpem no planalto brasileiro quatro divisões bem distintas: o chapadão amazônico desde o Guaporé ao Tocantins; o do Parnaíba, inserido entre o primeiro e o do S. Francisco, mais vasto, que alcança sua maior expansão à margem esquerda desta bacia; finalmente o do Paraná-Uruguai, entre a serra do Mar e as montanhas de Guaiás. As relações existentes entre estes chapadões atuaram sobre o povoamento do território.

O planalto das Guianas apresenta outro chapadão elevado, com alguns picos graníticos, poucos de mais de mil metros.

A Oeste alguns afluentes amazônicos nascidos fora do Brasil, o Içá, Japurá, Negro, em seu trecho inferior correm por algum espaço paralelamente ao rio principal. Pouco extensas, pouco navegáveis correntes de meia-água desembocam a Este do Negro, descendo da borda meridional do chapadão das Guianas.

O rio das Amazonas vaza uma bacia de sete milhões de quilômetros quadrados, a maior do globo, tamanha, quase, como o Brasil inteiro. Sangram para ela grandes partes dos planaltos brasileiro, guianês e andino; como a quadra das chuvas não cai em todos eles ao mesmo tempo, sucede que quando começam a baixar os afluentes de um enchem os do outro lado, e a vazante nunca se dá completa. Às vezes tanto se avoluma o rio-mar que represa os tributários e por seus furos manda-lhes água a muitos quilômetros da foz. Os lagos marginais, as ilhas numerosas, os furos, os paranamirins permitiram navegar desde o oceano até os confins do país sem nunca penetrar na madre. Suas inundações alcançam quase vinte metros acima do nível ordinário; por cima das florestas podem então passar embarcações, das quais algumas semanas antes mal se avistava o topo do arvoredo. O Amazonas corre de Oeste para Este, acompanhando a equinocial, e seu clima pode dizer-se proximamente o mesmo em toda esta extensão: genuinamente tropical, pouco variável, sem diferenças sensíveis de temperatura, de atmosfera úmida, abundantemente chuvosa, máxime junto do mar e perto dos Andes. A maior ou menor freqüência relativa de chuvas se designa pelos nomes de verão e inverno; de inverno só pode dar idéia aproximada, pelo lado da temperatura, o ligeiro refrigério sentido à noite.

Ao Sul do Amazonas, entre os rios Parnaíba e São Francisco, estende-se uma zona periodicamente flagelada por secas. Quando as estações correm regularmente há leves chuveiros, chamados de caju, à passagem do sol para o Sul; chuvas maiores caem antes ou depois do equinócio de março; São João é já fins d'água. No caso contrário secam os rios, exceto em alguns poços e depressões, murcham os pastos, permanecem nuas as árvores, sucumbe o gado à sede ou à inanição, e a gente morre à fome quando só dispõe dos recursos locais. A necessidade de lutar contra a calamidade inspirou a construção de açudes, a cultura das vazantes, a retirada do gado, a distribuição de ramas para alimentá-lo, as grandes levas de retirantes.

À beira-mar entre o Oiapoque e o Parnaíba, e do S. Francisco para o Sul domina igualmente o clima tropical até Santa Catarina: em alguns trechos quase todos os meses do ano chove, em outros intervêm estiadas maiores, em geral subordinadas à marcha solar.

A distância do equador avulta as diferenças termométricas, aliás contidas em extremos pouco apartados. Com o solstício de junho, pouco antes ou pouco depois, coincidem o maior abaixamento termométrico e a diminuição nos precipitados atmosféricos.

No Rio Grande do Sul as estações fria e quente já aparecem melhor delimitadas, as variações de temperatura tornam-se mais notáveis, e a estação das águas tende a emparelhar-se com a do frio.

Isto se refere ao litoral. No interior do país, reina também o clima tropical, modificado mais ou menos por fatores locais e revestindo certa feição continental. Geralmente chove no sertão menos que à beira-mar; as estações seca e úmida andam mais nitidamente discriminadas; o ar do planalto, facilmente aquecível durante o dia em conseqüência de sua pouca densidade, rapidamente esfria à noite pelo mesmo motivo, produzindo às vezes variações bruscas no decurso de vinte e quatro horas.

Também aqui as chuvas compassam-se pelo sol: em vários pontos há uma estação úmida menor e anterior, outra maior e posterior ao solstício de dezembro.

Na depressão amazônica associam-se o calor e a umidade, a vegetação atinge o máximo desenvolvimento, alardeia-se grande mata terreal.

A luta pelo ar e pela luz arremessa as plantas para cima, repelem-se nas alturas as copas do arvoredo, árvores possantes viram trepadeiras, cruzam-se lianas em todos os sentidos. Plantas sociais como a imbaúba e a monguba constituem exceção; em regra numa superfície dada cresce o maior número possível de espécies diferentes.

Pouco influi sobre a fisionomia do conjunto a distância do oceano; muito mais atua o apartamento do rio: no caa-igapó, sujeito à inundação ânua, avultam palmeiras, muitas delas espinhosas, reduz-se o porte das árvores; no caa-eté, sobranceiro a ela, culminam gigantes vegetais triunfam dicotiledôneas e epífitos; mais adiante começam os xerófitos.

A região flagelada pela seca possui também matas, porém solteiras, nas serras capazes de condensarem vapores atmosféricos, nas margens dos rios, em lugares favorecidos pela umidade do subsolo. De dimensões restritas, sustentam a outros respeitos o confronto com as das regiões mais felizes; não representam, entretanto, fielmente a feição dominante.

Desde a Bahia começa a mata virgem contínua, e com os mesmos caracteres orla a borda oriental da serra do Mar: troncos eretos, ramificação muita acima do solo, folhagem sempre verdejante, variedade de espécies dentro de pequenas áreas, abundância de epífitos. Os acidentes topográficos introduzem aqui na paisagem uma variedade golpeante, desconhecida na monotonia intérmina da Amazônia.

Além da serra do Mar abrem-se os campos, vastas extensões ocupadas por gramíneas e ervas mais ou menos rasteiras.

Onde a altitude o permite surgem araucárias; em certos pontos adensam-se capões, cujo nome indígena está indicando a forma circular. Os campos do Sul explicam alguns pela baixa temperatura durante o período germinativo. Ao Norte existem igualmente campos, cuja explicação parece outra: o solo, muito quente e pouco úmido, requeimando as sementes das árvores, rouba-lhes a vitalidade.

Catinga, carrasco, cerrado, agreste designam todos várias formas de vegetação xerófila, caracterizada pelas raízes às vezes muito profundas, munidas muitas de bulbo que prende a água, pelo tronco áspero, gretado, exíguo, esgalhado, como se procurasse para os lados o desenvolvimento que lhe foge na vertical, pelas folhas mais ou menos miúdas, que caem numa parte do ano para melhor resistir à seca, limitando a evaporação.

Na região das secas esta forma de vegetação chega quase à beira-mar; em quase todos os estados existe, mais ou menos, testemunho e efeito do clima continental. O povo brasileiro, começando pelo Oriente a ocupação do território, concentrou-se principalmente na zona da mata, que lhe fornecia pau-brasil, madeira de construção, terrenos próprios para cana, para fumo, e, afinal, para café. A mata amazônica forneceu também o cravo, o cacau, a salsaparrilha, a castanha e, mais importante que todos os outros produtos florestais, a borracha. Os campos do Sul produzem mate. Nos do Norte, em geral, e nas zonas de vegetação xerófila, plantam-se cereais ou algodão e pasta o gado. A obra do homem chama-se capoeira: terreno privado da vegetação primitiva, ocupado depois por vegetais adventícios cuja fisionomia ainda não assumiu feição bem caracterizada. Os capoeirões podem dar a ilusão de verdadeiras matas.

A fauna do Brasil é muita rica em insetos, reptis, aves, peixes, e pequenos quadrúpedes. São formas características as emas, os papagaios, os beija-flores, os desdentados, os marsúpios, os macacos platirrínios.

Na baixada litorânea, muitas formas de moluscos, peixes e aves há comuns ao Atlântico do Sul; o colorido de alguns por tal modo se assemelha à areia que custa descobri-los em repouso.

A fauna da mata apresenta, ao contrário, o colorido mais vistoso, principalmente nas borboletas, que às vezes atingem tamanho enorme, e nas aves. A maior parte das espécies adaptou-se à vida arbórea, e algumas, como a arcaica preguiça, vão desaparecendo com as derrubadas.

«Mais pálida em colorido e fraca em força numérica é a fauna do sertão» lembra Goeldi. Suntuoso uniforme de gala nos descampados não seria desejável nem proveitoso. Para os animais sertanejos é demais vantagem a sua roupa branco-amarelada e monótona que no meio do capim se conserva neutra entre a cor do solo e o colorido da macega torrada pelo sol.

Se por um lado, no litoral, é aparelho útil a asa comprida, apropriada ao vôo persistente, e, por outro lado, o pé trepador, para o morador da mata, torna-se precioso dote para formas animais que vivem correndo pelo solo uma perna comprida e capaz de corresponder a fortes exigências. Aí estão para atestá-lo a seriema de alto coturno e a gigantesca ema. O próprio lobo brasileiro muniu-se, além de umas orelhas grandes, a modo de chacal do deserto, de longas pernas a feitio de galgo.

Entre estes animais nem um pareceu próprio ao indígena para colaborar na evolução social, dando leite, fornecendo vestimenta ou auxiliando o transporte; apenas domesticou um ou outro, os mimbabas da língua geral, -em maioria aves, principalmente papagaios, só para recreio. De caça e principalmente de pesca era composta sua alimentação animal. Possuía agricultura incipiente, de mandioca, de milho, de várias frutas. Como eram-lhe desconhecidos os metais, o fogo, produzido pelo atrito, fazia quase todos os ofícios do ferro. A plantação e colheita, a cozinha, a louça, as bebidas fermentadas competiam às mulheres; encarregavam-se os homens das derrubadas, das pescarias, das caçadas e da guerra.

As guerras ferviam contínuas; a cunhã prisioneira agregava-se à tribo vitoriosa, pois vigorava a idéia da nulidade da fêmea na procriação, exatamente com a da terra no processo vegetativo; os homens eram comidos em muitas tribos no meio de festas rituais. A antropofagia não despertava repugnância e parece ter sido muito vulgarizada: algumas tribos comiam os inimigos, outras os parentes e amigos, eis a diferença.

Viviam em pequenas comunidades. Pouco trabalho dava fincar uns paus e estender folhas por cima, carregar algumas cabaças e panelas; por isso andavam em contínuas mudanças, já necessitadas pela escassez dos animais próprios à alimentação.

De rixas minúsculas surgiam separações definitivas; grassava uma fissiparidade constante. Tradição muito vulgarizada explicava grandes migrações por disputas a propósito de um papagaio.

O chefe apenas possuía autoridade nominal. Maior força cabia ao poder espiritual. Acreditavam em seres luminosos, bons e inertes, que não exigiam culto, e poderes tenebrosos, maus, vingativos, que cumpria propiciar para apartar sua cólera e angariar-lhes o favor contra os perigos: eram as almas dos avós. Entre eles contava-se o curador, pagé ou caraíba, senhor da vida e da morte, que ressuscitara depois de finado, e não podia mais tornar a morrer.

Tinham os sentidos mais apurados, e intensidade de observação da natureza inconcebível para o homem civilizado. Não lhes faltava talento artístico, revelado em produtos cerâmicos, trançados, pinturas de cuia, máscaras, adornos, danças e músicas.

Das suas lendas, que às vezes os conservavam noites inteiras acordados e atentos, muito pouco sabemos: um dos primeiros cuidados dos missionários consistia e consiste ainda em apagá-las e substituí-las.

Falavam línguas diversas, quanto ao léxico, mas obedecendo ao mesmo tipo: o nome substantivo tinha passado e futuro como o verbo; o verbo intransitivo fazia de verdadeiro substantivo; o verbo transitivo pedia dois pronomes, um agente e outro paciente: a primeira pessoa do plural apresentava às vezes uma flexão inclusiva e outra exclusiva; no falar comum a parataxe dominava. A abundância e flexibilidade dos supinos facilitaram a tradução de certas idéias européias.

Fundada no exame lingüístico a etnografia moderna conseguiu agregar em grupos certas tribos mais ou menos estreitamente conexas entre si. No primeiro entram os que falavam a língua geral, assim chamada por sua área de distribuição. Predominavam próximo de beira-mar, vindos do sertão, e formavam três migrações diversas: a dos Carijós ou Guaranis, desde Cananéia e Paranapanema para o Sul e Oeste; os Tupiniquins, no Tietê, no Jequitinhonha, na costa e sertão da Bahia, na serra da Ibiapaba; os Tupinambás no Rio de Janeiro, a um e outro lado baixo S. Francisco até o Rio Grande do Norte, e do Maranhão até o Pará. O centro de irradiação das três migrações deve procurar-se entre o rio Paraná e o Paraguai.

Nos outros grupos falavam-se as línguas travadas: os Gés, representados pelos Aimorés ou Botocudos próximo do mar, e ainda hoje numerosos no interior; os cariris disseminados do Paraguaçu até Itapecuru e talvez Mearim, em geral pelo sertão, conquanto os Tremembés habitassem as praias do Ceará; os Caraíbas, cujos representantes mais orientais são os Pimenteiras, no Piauí, ainda hoje encontrados no chapadão e na bacia do Amazonas; os Maipure ou Nu-Aruaque, que desde a Guiana penetraram até o rio Paraguai e ainda aparecem nas cercanias de sua antiga pátria, e até no alto Purus; os Panos, os Guaicurus, etc., etc.

Se abstrairmos do Amazonas, onde havia muitos Maipure e não poucos Caraíbas, só os Tupis e os Cariris foram incorporados em grande proporção à atual população do Brasil.

Os Cariris, pelo menos na Bahia e na antiga capitania de Pernambuco, já ocupavam a beira-mar quando chegaram os portadores da língua geral. Repelidos por estes para o interior, resistiram bravamente à invasão dos colonos europeus, mas os missionários conseguiram aldear muitos e a criação de gado ajudou a conciliar outros. Talvez provenha dos Cariris a cabeça chata, comum nos sertanejos de certas zonas.

Se agora examinarmos a influência do meio sobre estes povos naturais, não se afigura a indolência o seu principal característico. Indolente o indígena era sem dúvida, mas também capaz de grandes esforços, podia dar e deu muito de si. O principal efeito dos fatores antropogeográficos foi dispensar a cooperação.

Que medidas conjuntas e preventivas se podem tomar contra o calor? qual o incentivo para condensar as associações? como progredir com a comunidade reduzida a meia dúzia de famílias?

A mesma ausência de cooperação, a mesma incapacidade de ação incorporada e inteligente, limitada apenas pela divisão do trabalho e suas conseqüências, parece terem os indígenas legado aos seus sucessores.

Fatores exóticos

Ao começar o século XVI, Portugal labutava na transição da idade média para a era moderna. Coexistiam em seu seio duas sociedades completas, com sua hierarquia, sua legislação e seus tribunais; mas a sociedade civil não professava mais a superioridade transcendente nem se sujeitava à dependência absoluta da Igreja, despida agora de muitas de suas históricas prerrogativas, obrigada a reduzir muitas de suas pretensões.

O Estado reconhecia e acatava as leis da Igreja, executava as sentenças de seus tribunais, declarava-se incompetente em quaisquer litígios debatidos entre clérigos, só punia um eclesiástico se, depois de degradado, era-lhe entregue por seus superiores ordinários, respeitava o direito de asilo nos templos e mosteiros para os criminosos cujas penas eram de sangue, abstinha-se de cobrar impostos do clero.

A Igreja dominava soberana pelo batismo, tão necessário à vida civil como à salvação da alma; pelo casamento, que podia permitir, sustar ou anular com impedimentos dirimentes; pelos sacramentos, distribuídos através da existência inteira; pela excomunhão, que incapacitava para todos eles; pelo interdito, que separava comunidades inteiras da comunicação dos santos; pela morte, permitindo ou negando sufrágios, deixando que o cadáver descansasse em lugar sagrado junto aos irmãos ou apodrecesse nos monturos em companhia dos bichos; dominava pelo ensino, limitando e definindo as crenças, extremando o que se podia do que não era lícito aprender ou ensinar.

Contra ela, na esfera estreita ainda em que firmara sua competência, depois de lutas com o papado e com o clero indígena, o Estado empregava o placet para os documentos emanados do sólio pontifício, os juízes da coroa para resguardar certos órgãos essenciais ao exercício normal da soberania plena, as leis de amortização para limitar as aquisições prediais, as temporaridades para abolir certas resistências. Em compensação, repartia sua jurisdição com o outro poder em casos por isso chamados mixti fori, prestava o braço secular para executar, até com morte violenta, os condenados pelo juízo eclesiástico, duramente castigava certos atos só porque a Igreja os considerava pecaminosos; em suma, o mesmo que hoje os interesses econômicos ou fiscais, pesavam então inspirações religiosas e considerações eclesiásticas.

Apesar de tudo ocorriam freqüentes atritos entre a Igreja e o Estado, aquela disposta a abrir o menos possível mão de suas atribuições antigas, este conquistando ou assumindo sempre novas faculdades, para arcar com os problemas crescentes, legados onerosos do regime medieval, exigências inadiáveis de uma situação transformada pelo comércio fortalecido, pelas comunicações amiudadas, pela indústria renascente, pela renovação intelectual, pela circulação metálica em luta contra a economia naturista, rasgando horizontes mundiais.

Como o papa, cabeça da sociedade religiosa, o rei tornara-se o sujeito jurídico da sociedade civil: na qualidade de senhor absoluto, seus poderes não admitiam fronteiras definíveis, invocados como um princípio de eqüidade superior, como remédio a casos excepcionais, graves e imprevistos. De outros poderes suscetíveis de definição, podia fazer uso mais ou menos completo, e aliená-los em parte.

Era direito real bater moeda, criar capitães na terra e no mar, fazer oficiais de justiça, do ínfimo ao pino da carreira, declarar guerra, chamando o povo às armas com os mantimentos necessários. Para seu serviço el-rei tomava carros, bestas e navios dos súditos; pertenciam-lhe as estradas e as vias públicas, os rios navegáveis, os direitos de passagens de rios, os portos de mar com as portagens neles pagas, as ilhas adjacentes ao Reino, as rendas das pescarias, das marinhas, do sal, as minas de ouro, prata e quaisquer outros metais, os bens sem dono, os dos malfeitores de certos crimes. Nele se concentrava toda a faculdade legislativa: os votos das Cortes só valiam com o seu assenso e enquanto lhe aprazia, pois as disposições mais precisas podia dispensar, especificando-as; juízes e tribunais eram delegações do trono.

Abaixo do rei estava a nobreza, numerosa em famílias como nas distinções que separavam umas de outras, compreendendo desde os senhores donatários, com honras, coutos e jurisdição, e os grão-mestres das ordens militares, cujo mestrado o rei houve por bem afinal assumir, até simples cavaleiros e escudeiros. Seu poderio fora grande; agora contentava-se com o monopólio dos cargos públicos, com o papel saliente nos tempos de guerra ou nos conselhos da coroa, com a situação privilegiada nas questões penais, em que o título de nobre defendia dos tormentos ou acarretava diminuição de pena. A nobreza não era uma casta exclusiva; davam para ela várias portas, entre as quais a das letras.

Abaixo da nobreza acampava o povo, a grande massa da nação, sem direitos pessoais, apenas defendidos seus filhos por pessoas morais a que se acostavam, lavradores, mecânicos, mercadores; os de mor qualidade chamavam-se homens bons, e reuniam-se em câmaras municipais, órgãos de administração local, cuja importância, então e sempre somenos, nunca pesou decisivamente em lances momentosos, nem no Reino, nem aqui, apesar dos esforços de escritores nossos contemporâneos, iludidos pelas aparências fugazes ou cegados por idéias preconcebidas.

Abundavam pessoas morais a que o povo se podia filiar -corporações limitadas como as de moedeiros e bombardeiros, coletividades maiores como os cidadãos do Porto. Os privilégios inerentes a estes foram outorgados a várias cidades do Brasil, Maranhão, Bahia, Rio e São Paulo, pelo menos; pelo que encerram, dão bem a idéia de direitos regateados a quem tinha apenas para socorrer-se a mera qualidade de ser humano.

A estes felizes cidadãos do Porto concedeu dom João II:

que não fossem metidos a tormentos por nenhuns malefícios que tivessem feito, cometido e cometessem e fizessem daí por diante, salvos nos feitos e daquelas qualidades e nos modos em que o devem ser e são os fidalgos do reino e senhores;

que não pudessem ser presos por nenhum crime, somente sobre suas menagens e assim como o são e devem ser os fidalgos;

que pudessem trazer e trouxessem por todos os seu reinos e senhorios quais e quantas armas lhes aprouvesse de noite e de dia, assim ofensivas como defensivas;

que não pousassem com eles nem lhes tomassem suas casas de moradas, adegas, nem cavalariças, nem suas bestas de sela, nem outra nenhuma coisa de seu contra suas vontades e lhes catassem e guardassem muito inteiramente suas casas, e houvessem com elas e fora delas todas as liberdades que antigamente haviam os infanções e ricos homens;

que os serviçais agrícolas só fossem à guerra com os patrões.

Abaixo do terceiro estado havia ainda os servos, escravos, etc., etc., cujo direito único cifrava-se em poderem, dadas circunstâncias favoráveis, passar à classe imediatamente superior, pois, conquanto rentes as separações, as classes nunca se transformaram em castas.

Os três braços do clero, da nobreza e do povo, convocados em ocasiões solenes e a intervalos arbitrários, constituiram as Cortes. Meramente consultivas, ou por igual deliberativas? Liquidem entre si este ponto os eruditos de além-mar; fora de dúvida só valeram enquanto os reis consideraram reinar como um ofício e precisaram de recursos pecuniários para os quais não eram suficientes os copiosos direitos reais.

A prosperidade e o povoamento do Brasil provaram fatais a esta venerável instituição. Por uma coincidência nada fortuita, reuniram-se as últimas cortes em 1697, quando o ouro das Gerais começava a deslumbrar o mundo, e só reviveram com a revolução francesa, as guerras napoleônicas e a independência real do Brasil, depois de trasladada para aqui a sede da monarquia portuguesa.

Em 1527 a soma total dos fogos em todo o Reino andava por duzentos e oitenta mil quinhentos e vinte e oito; dando a cada um destes números de quatro indivíduos, a população do Reino seria naquele ano de um milhão e cento e vinte dois mil cento e doze almas. Com este pessoal exíguo, que não bastava para enchê-lo, ia Portugal povoar o mundo. Como consegui-lo sem atirar-se à mestiçagem?

A agricultura estava atrasada no Reino; Damião Góis, explicando em 1541 à opinião letrada da Europa a razão dos seus atrasos em Portugal e Espanha, afirma ser a fertilidade espontânea do solo tamanha que a maior parte do ano os escravos e os homens pobres se podem sustentar lautamente de frutos silvestres, mel e ervas, o que os faz pouco propensos ao trabalho agrícola.

Alguns traços tomados ao livro de Costa Lobo mostrarão o caráter dominante do povo ao começar a era dos descobrimentos.

O português do século XV era fragueiro, abstêmio, de imaginação ardente, propenso ao misticismo, caráter independente, não constrangido pela disciplina ou contrafeito pela convenção; o seu falar era livre, não conhecia rebuços nem eufemismos de linguagem.

A têmpera era rija, o coração duro. As cominações penais não conheciam piedade. A morte expiava crimes tais como o furto do valor de um marco de prata. Ao falsificador de moeda infligia-se a morte pelo fogo, e o confisco de todos os bens.

Com a rudeza de costumes que assinala aqueles tempos, a segurança da própria pessoa, família e haveres, dependia em grande parte da força e energia individual; daí freqüentes homizios, agressões, feridos e mortes que habituavam à contemplação da violência e da dor, infligida ou recebida. O espetáculo de penar não repugnava, porque ninguém tinha em muita conta o padecimento físico. Cruezas que hoje denotariam a vileza de um caráter perverso não tinham nesses tempos semelhante significação. O mal que elas causavam não se reputava demasia, todos estavam sujeitos a padecê-lo. Mas se a dor física ou moral alcançava molificar a rigeza da índole inacostumada à paciência e à reflexão ou se a paixão a inflamava, então o sentimento irrompia em clamores, prantos e contorsões, semelhando os meneios da demência furiosa.

À dureza da têmpera correspondia extensamente um aspecto agreste, a força muscular era tida em grande apreço. Cercear com um revés de montante uma perna de boi por meia coxa ou decepar-lhe quase todo o pescoço eram feitos dignos de recordação histórica.

Ao português estranho ao continente cumpre juntar o negro, igualmente alienígena. A importação começou desde o estabelecimento das capitanias e avultou nos séculos seguintes, primeiro por causa da cultura da cana, mais tarde por causa do fumo, das minas, do algodão e do café. Depois da supressão do tráfico em 1850, o café provocou deslocações consideráveis na distribuição interna; o mesmo efeito produziu a abolição.

Os primeiros negros vieram da costa ocidental, e pertencem geralmente ao grupo banto; mais tarde vieram de Moçambique. Sua organização robusta, sua resistência ao trabalho indicaram-nos para as rudes labutas que o indígena não tolerava. Destinados para a lavoura, penetraram na vida doméstica dos senhores pela ama de leite e pela mucama, e tornaram-se indispensáveis pela sua índole carinhosa. A mestiçagem com o elemento africano, ao contrário da mestiçagem com o americano, era vista com certa aversão, e inabilitava para certos postos. Os mulatos não podiam receber as ordens sacras, por exemplo: daí o desejo comum de ter um padre na família, para provar limpeza de sangue. Com o tempo os mulatos souberam melhorar de posição e por fim impor-se à sociedade. Quando reuniam a audácia ao talento e à fortuna alcançaram altas posições.

O negro trouxe uma nota alegre ao lado do português taciturno e do índio sorumbático. As suas danças lascivas, toleradas a princípio, tornaram-se instituição nacional; suas feitiçarias e crenças propagaram-se fora das senzalas. As mulatas encontraram apreciadores de seus desgarres e foram verdadeiras rainhas. O Brasil é inferno dos negros, purgatório dos brancos, paraíso dos mulatos, resumiu em 1711 o benemérito Antonil.

Os descobridores

A posição geográfica de Portugal destinava-o à vida marítima, e data da dominação romana o conhecimento de ilhas alongadas ao Ocidente. Tradições árabes memoram os Mogharriun, partidos de Lisboa à cata de aventuras. A restauração cristã produziu uma marinha nacional, que alentaram e tornaram próspera a escolha da barra do Tejo para escala da carreira de Flandres, e a vinda de catalães e italianos chamados a ensinar a náutica e a técnica. A expedição contra Ceuta em 1415 reuniu já centenas de embarcações e milhares de marinheiros.

Depois de tomada esta cidade à mourisma infiel, atiraram-se os conquistadores para terras africanas. Navios mandados do Algarve perlongaram o litoral marroquino, conjuraram os terrores do cabo Não, iluminaram o Saara nos bulcões do mar Tenebroso, descobriram rios caudalosos, tratos povoados, e as ilhas de Cabo Verde, verdes dentro na zona tórrida, inabitável pelo calor como o seu nome apregoava, inabitável por sentença unânime dos filósofos antigos, apanhados agora pela primeira vez em falsidade flagrante. Culmina nesta fase heróica o infante d. Henrique, filho de d. João I, e grão-mestre da Ordem de Cristo. Dominava-o de um lado o desejo de alargar as fronteiras do mundo conhecido, de outro a esperança de alcançar um ponto onde fenecesse o poderio do Crescente. Talvez aí reinasse Preste João, o lendário imperador-sacerdote; de mãos dadas realizariam a cruzada suprema contra os inimigos hereditários da Cristandade, já expulsos de quase toda a Espanha, mais poderosos que nunca nas terras e mares orientais.

O decurso dos descobrimentos precisou as aspirações confusas do princípio. Nos últimos anos do infante desenhou-se o problema da Índia, vaga expressão geográfica aplicada a todos os países distribuídos da saída do mar Vermelho ao reino de Catai e à ilha de Cipango. Os rios possantes do continente agora conhecido, como a franquearem vias de penetração indefinida, a direção meridional da costa, como a encurtar as distâncias, os numerosos dizeres de prestigiosas cartas geográficas como a balisarem o percurso a fazer-se, sugeriam a possibilidade de lá chegar por novo caminho; e novo caminho era urgente, pois se na Europa germano-latina continuava forte a procura de especiarias, estofos, pérolas finas, pedras preciosas, madeiras raras, de produtos indianos, em uma palavra, as potências muçulmanas, assentes nas estradas histórias que vinham dar no Mediterrâneo, cada dia aumentavam as exigências e requintavam de insolência, espoliando os intermediários do comércio do Levante, e atormentando os consumidores ocidentais.

A idéia de chegar à Índia atravessando a África, depois de ligeiras tentativas, foi abandonada. Pensou-se lograr o mesmo resultado circunavegando o continente negro. Contra este plano insurgia-se o veto de Ptolomeu, afirmando a ligação da Ásia e África ao Sul, como no istmo de Suez ao Norte, fechando por aquela parte o mar das Índias e transformando-o em mediterrâneo. Mas ainda em dias de d. Henrique um cartógrafo italiano protestou contra as afirmações categóricas do astrônomo alexandrino, e o descobrimento de Cabo Verde, o contacto direto com a zona tórrida tinham começado a emancipar os espíritos, patenteando que o simples fato de proceder da antigüidade não consagra inviolável e intangível qualquer proposição.

Enquanto se concatenavam estas noções incertas formulou-se outra solução do problema, já mencionada em escritores gregos e latinos, e apoiada em autoridades sagradas e pagãs. E idêntico, postulava, o oceano ocidental da Europa e o oceano oriental da Ásia; segundo as escrituras o espaço ocupado pelos mares representa apenas uma fração mínima comparado à terra firme, e como o nosso planeta é esférico, o caminho lógico e mais breve para a Índia consiste em lançar-se impavidamente ao oceano, amarar-se tanto para o poente até chegar ao nascente. Tal viagem, além de mais breve, seria mais cômoda, pois ilhas esparsas pontuavam a derrota, algumas delas tamanhas como a Antilha, representada nos portulanos mais fidedignos.

Cristóvão Colombo apresentou tal plano como novo aos portugueses, que não o aceitaram; menos experientes, os espanhóis acolheram o nauta genovês e deram-lhe os meios de executá-lo.

Partindo em 1492, descobriu algumas ilhas e anos mais tarde o continente cobiçado, o reino do grão Khan, segundo supunha.

Entre a morte de d. Henrique e o reinado de d. Afonso V (1460-1481) se não arrefeceu o movimento descobridor, prosseguiu com muito menor brilho: a elevação de d. João II ao trono deu-lhe vida e calor. Terminava a terra conhecida no cabo de Santa Catarina; 2º S.; com poucos anos avançou-se vitoriosamente para o trópico; em 1487 Bartolomeu Dias tornou com a notícia de ter alcançado o fim do continente africano. Já de volta, no extremo Sul, quase perdera-se junto a um cabo e por isso chamou-o das Tormentas. Das Tormentas, não! protestou o rei de Portugal; da Boa Esperança.

Mais que esperança, sentia certeza agora de gozar breve do resultado de tantos esforços. E tanta confiança nutria d. João II de estar afinal achado o caminho da Índia que não procedeu as novas verificações. Preparou-se com toda a calma, construindo navios aptos para os mares agitados do Oriente; fundiu artilharia capaz de lutar contra os potentados indianos e os navios árabes; emissários seus visitaram o mar Vermelho, o golfo Pérsico, a costa oriental da África, a costa de Malabar, inquirindo, observando, reunindo notícias frescas e fidedignas sobre o comércio, a navegação. Um deles, Pero de Covilhã, esteve no reino de Preste João, originariamente procurado na Ásia central, encarnado agora no dinasta da Abissínia.

D. João II nada confiou do acaso. A volta triunfal de Colombo em 1493 pouco influiu sobre os planos do rei. Se protestou contra a divisão do mundo promulgada por Alexandre VI, julgando postergados seus direitos; se mandou alguma expedição clandestina ao Ocidente, como parece verificado; bastaram o aspecto dos naturais e sua barbárie visível, os produtos recolhidos e os países descobertos, tão diferentes de tudo o que os seus emissários vinham de apurar, para não lhe deixarem dúvidas de que a Índia procurada pelos portugueses não se confundia com a Índia achada pelos espanhóis. Ao falecer em 1495, o Príncipe Perfeito deixou ao seu sucessor, d. Manuel, o simples trabalho de saborear o fruto sazonado. Do mesmo modo Vasco da Gama apenas continuou a senda dez anos antes aberta por Bartolomeu Dias (1497-1499).

A chegada de Vasco da Gama com as embarcações carregadas de lídimos produtos indianos mostrou a sabedoria e a previdência de d. João II, preferindo a qualquer outro o caminho indicado pelo cabo de Boa Esperança; sobre os espanhóis não parece ter exercido igual impressão, pois continuaram no mesmo empenho primitivo de chegar ao Oriente navegando sempre para o Ocidente.

Temos, pois, duas correntes históricas bem definidas, originárias ambas da península ibérica: uma ocidental, outra meridional. Desembocaram ambas no Brasil. Seguindo a corrente ocidental, apenas procuraram baixas latitudes os espanhóis cortaram a linha, e alcançaram o hemisfério do Sul com Vicente Yañez Pinzon. Seguindo a corrente do Sul, os portugueses, induzidos a amarar-se à procura de ventos mais francos para dobrar o cabo, encontraram a zona dos alísios e vieram dar no hemisfério ocidental com Pedro Álvares Cabral. Ambos os casos ocorreram no mesmo ano.

Interessa-nos apenas Pedr'Álvares.

Comandando uma armada de treze navios partiu de Belém segunda-feira, 9 de março de 1500. O domingo passara-se em festas populares. O rei tivera a seu lado na tribuna o capitão-mor, pusera-lhe na cabeça um barrete bento mandado pelo papa, entregara-lhe uma bandeira com as armas reais e a cruz da Ordem de Cristo, a Ordem de d. Henrique, o descobridor. Sentia-se bem a importância desta frota, a maior saída até então para terras alongadas.

Mil e quinhentos soldados, negociantes aventurosos, aventureiros mercadorias variadas, dinheiro amoedado, revelavam o duplo caráter da expedição: pacífica, se na Índia preferissem a lisura e o comércio honesto, belicosa, se quisessem recorrer às armas. Alguns franciscanos, tendo por guardião frei Henrique de Coimbra, comunicavam ao conjunto a sagração religiosa.

A 14 foram avistadas as Canárias, a 22 as ilhas de Cabo Verde. Um mês mais tarde, a 21 de abril, boiaram ervas marinhas muito compridas, sinais de proximidade de terra, no dia seguinte confirmados por aves, e realizados à tarde. «Neste dia, a horas de véspera, houvemos vista de terra: primeiramente dum grande monte mui alto e redondo e doutras serras mais baixas do Sul delle, e de terra chã com grandes arvoredos, ao qual monte alto o capitão poz nome monte Paschoal», escreve Pero Vaz de Caminha, testemunha de vista, escrivão da feitoria a fundar em Calecut. Ao sol posto surgiram em 23 braças, ancoragem limpa. O monte Pascoal, no Estado da Bahia, é visível a mais de sessenta milhas do mar.

Na quinta-feira continuou a derrota lenta e cuidadosamente, indo os navios menores adiante, sondando.

A distância de meia légua, em direito à boca de um rio, fundearam. Nicolau Coelho, companheiro de Vasco da Gama, desembarcou e pôde observar alguns naturais, atraídos pela curiosidade, dar e receber presentes.

Um sudoeste acompanhado de chuvaceiros mostrou a conveniência de procurar situação mais abrigada. Sexta-feira velejaram para o Norte, os navios maiores mais afastados, os navios menores mais chegados à terra; ao pôr do sol, em distância de dez léguas, encontraram um recife, abrigando um porto de larga entrada. «Ao sabbado pela manhã mandou o capitão fazer vella, e fomos demandar a entrada, a qual era muito larga e alta, 6 e 7 braças, e entraram todalas naus dentro e ancoraram-se em 5 e 6 braças, a qual ancoragem dentro é tão grande e tão fremosa e tão segura que podem jazer dentro mais de duzentos navios e naus». O nome de Porto-Seguro, dado pelo capitão-mor, resume bem suas impressões; ainda o conserva uma localidade vizinha.

Em um ilhéu da baía, construído um altar, cantou-se missa domingo da Pascoela, 26. Frei Henrique pregou sobre o evangelho do dia. A ressurreição do Salvador, as aparições misteriosas aos discípulos, a incredulidade de Tomé, o apóstolo das Índias, diziam bem com sua situação estranha. No fim da pregação o frade «tratou da nossa vinda, e do achamento desta terra, conformando-se com o signal da cruz, sob cuja obediência viemos». A bandeira de Cristo com que o capitão-mor saiu de Belém esteve sempre alta à parte do Evangelho.

Reuniram-se a bordo da capitânea os comandantes dos outros navios, e o capitão-mor perguntou se conviria mandar a el-rei a nova do achamento da terra pelo navio de mantimentos, para S. A. a mandar descobrir. Concordaram que sim. Os dias seguintes passaram-se na baldeação dos gêneros e na lavrança de uma cruz para assinalar a posse tomada em nome da coroa de Portugal.

A cruz foi chantada a 1 de maio: a 2, partiram o navio mandado ao Reino e a poderosa frota para a Índia, deixando lacrimosos dois degradados incumbidos de inquirirem da terra e irem aprendendo a língua; alguns marujos desertaram, segundo parece.

As seguintes palavras de Caminha representam as reflexões de um espírito superior ante esses dias e espetáculos extraordinários:

N'ella [terra] até agora não podemos saber que haja ouro, nem prata, nem nenhuma cousa de metal, nem de ferro lho vimos; pero a terra em si é de muitos boos ares assi frios e temperados como os d'antre Doiro e Minho, porque n'este tempo de agora assi os achavamos como os de lá; águas são muitas infindas e em tal maneira é graciosa que querendo a aproveitar dar-se-á n'ella tudo por bem das aguas que tem; pero o melhor fruito que n'nella se pode fazer me parece que será salvar esta gente; e esta deve ser a principal semente que Vossa Alteza em ella deve lançar, e que hi non houvesse mais ca ter aqui esta pousada pera esta navegação de Calecut abastaria, quanto mais disposição para se n'ella cumprir e fazer o que Vossa Alteza tanto deseja, s. o acrescentamento de nossa santa fé.


A vantagem da situação geográfica da nova terra para as navegações da Índia, o modo de aproveitá-la trazendo sementes do Reino, o problema do indígena, sua incorporação pelo cristianismo, aí ficam definidos com toda a precisão.

A armada do capitão-mor fêz-se rumo do cabo de Boa Esperança, acompanhando a costa da terra nova por largo espaço, duas mil milhas, calculou um companheiro de expedição.

O navio de mantimento seguiu para o Nordeste, naturalmente sem perder de vista a terra e talvez realizando desembarques.

E' possível mesmo haja encontrado Diego de Lepe ou algum outro viajante espanhol. O descobrimento dos portugueses já figura no mapa de Juan de la Cosa, terminado em outubro de 1500.

Em meados do ano seguinte, partiu de Portugal uma armada de três navios a explorar a nova ilha da Cruz ou Vera Cruz e encontrou-se em Beseguiche com Pedr'Álvares Cabral, já de volta da Índia. Se o descobridor e os futuros exploradores permutaram impressões, deviam ter reconhecido a existência não de ilha, mas de continente. Diferente dos outros? As respostas não podiam sair claras, pois o oceano Pacífico estava por descobrir. Duarte Pacheco, o herói de Cambalão, companheiro de Cabral, alguns anos mais tarde ainda guardava a imagem tradicional do mundo: vastas massas de terra, interrompidas por mediterrâneos, abertos em rumos diversos, semelhando lagoas enormes.

A expedição exploradora depois de travessia tormentosa aportou ao litoral do Rio Grande do Norte e procurou regiões mais temperadas, dando nomes aos lugares descobertos, tirados uns do calendário -S. Roque, S. Jerônimo, S. Francisco, baía de Todos-os-Santos, cabo de S. Tomé, angra dos Reis; tirados outros de impressões e acidentes de viagem -rio Real, cabo Frio, baía Formosa, etc. Os exploradores, segundo parece, nunca perderam de vista a serra do Mar. Durante muitos anos figurou nos mapas como último ponto conhecido Cananor, que bem pode ser a atual Cananéia, em S. Paulo; calculou-se a extensão percorrida em duas mil e quinhentas milhas. Esta exploração mais demorada confirmou em quase tudo as palavras de Caminha. Apenas os naturais apareceram à nova luz, selvagens, rancorosos, sanguinários e antropófagos, material mais próprio para escravatura do que para a conversão.

Depois de voltar esta armada a coroa resolveu arrendar a terra por um triênio; os arrendatários comprometeram-se a mandar anualmente seis navios a descobrir trezentas léguas e a fazer e sustentar uma fortaleza. Fundavam seus cálculos no lucro produzido por escravos, por animais curiosos e pelo pau-brasil, de que os primeiros exploradores levariam algum carregamento, e também na vaga esperança de poderem chegar à Índia por este caminho.

Em 1503 veio de fato uma frota de seis embarcações, reduzidas logo à metade pelo naufrágio da capitânea, junto à ilha depois chamada Fernão de Noronha, e pela defecção de Vespucci, de quem o continente deveria tomar o nome. Talvez algum dos navios restantes iniciasse a exploração do cabo de S. Roque à procura do Equador. De certo nada se sabe; no mencionado trecho da costa escaparam ao esquecimento apenas alguns nomes, como o de João de Lisboa, João Coelho e Corso, desacompanhados de qualquer informação. A falta de portos, a dificuldade de navegação devida ao regime dos ventos, e a impressão de esterilidade colhida de bordo não provocavam a amiudar visitas naquela direção; os dizeres dos mapas contemporâneos ou rareiam ou apenas indicam passagens de largo.

Em 1506 a terra do Brasil, arrendada a Fernão de Noronha e outros cristãos novos, produzia vinte mil quintais de madeira vermelha, vendida a 2 1/3 e 3 ducados o quintal; cada quintal custava ½ ducado posto em Lisboa. Os arrendatários pagavam quatro mil ducados à coroa.

Anos mais tarde, pensou-se em dar liberdade aos que quisessem vir tentar fortuna, pagando apenas um quinto dos gêneros levados. A este regime já obedeceu, talvez, a nau Bretoa, armada por Bartolomeu Marchioni, Benedito Morelli, Fernão de Noronha e Francisco Martins, mandada a Cabo Frio em começo de 1511. Sobre ela existem documentos.

Tinha a nau capitão, escrivão, mestre e piloto, responsáveis solidariamente pela execução do regimento; treze marinheiros, quatorze grumetes, quatro pagens, um dispenseiro. Nem à ida nem à volta podia tocar em qualquer porto intermediário, salvo caso de falta de vitualhas, temporais ou desarranjo. Era permitido à companha resgatar com facas, tesouras e outras ferramentas depois de estar completa a carga dos armadores da nau. Podia resgatar papagaios, gatos e, com licença dos armadores, também escravos; vedado era o comércio de armas de guerra.

À chegada em terra a carga ficava entregue ao feitor; qualquer resgate dependia da autorização deste. Recomendava-se o maior cuidado em não fazerem mal ou dano aos indígenas; não levarem mais naturais livres para o Reino, porque falecendo em viagem cuidavam os parentes terem sido comidos, como era seu costume; não deixarem que da gente da nau alguém se lançasse na terra ou nela ficasse, como alguns já fizeram, coisa muito odiosa ao trato e serviço reais.

A nau Bretoa partiu do Tejo a 22 de fevereiro; fundeou de 17 de abril a 12 de maio na baía de Todos-os-Santos; em 26 de maio chegou a Cabo Frio, donde a 28 de julho partiu para Portugal. Levou cinco mil toros de pau-brasil; vinte e dois tuins, dezasseis sagüis, dezasseis gatos, quinze papagaios, três macacos, tudo avaliado em 24$220 réis; quarenta peças de escravos, na maioria mulheres, avaliados ao preço médio de 40$: sobre todos estes semoventes arbitrou-se o quinto, ainda no Brasil.

O nome do Brasil já era bem conhecido e figurava em portulanos anteriores às descobertas dos portugueses; havia um nome à procura de aplicação, exatamente como o de Antilha, e isto explicaria a rapidez com que se introduziu e vulgarizou, suplantando outras denominações, como terra dos Papagaios, de Vera Cruz, ou Santa Cruz, se a abundância de uma apreciada madeira de tinturaria até então recebida por via do Levante, e o comércio, sobre ele fundado desde o comêço, não colaborassem na propaganda, e talvez com maior eficácia.

O pau-brasil reconheceu-se logo no litoral de Paraíba e Pernambuco, nas cercanias do rio Real, do Cabo Frio ao Rio de Janeiro; naturalmente seriam logo estes os trechos mais freqüentados destes primeiros portugueses; em outros lugares só mais tarde se descobriu.

Para facilitar os carregamentos, estabeleceram-se feitorias, de preferência em ilhas; deviam ser caiçaras ou cercas, próprias apenas para guardarem os gêneros de resgates; algumas sementes de além-mar podiam ser plantadas à roda, e soltos alguns animais domésticos de fácil reprodução. Uma feitoria conservou-se no Rio durante alguns anos até ser destruída pelos naturais, indignados com o proceder do feitor e companheiros; entre as plantações abandonadas entraria a cana de açúcar, encontrada por Fernão de Magalhães em 1519.

No ano de 1513 uma armada de dois navios estendeu muito o horizonte geográfico pela zona temperada. Devassou, segundo um contemporâneo, seiscentas e setecentas léguas de terras novas; encontrou na boca de um caudaloso rio diversos objetos metálicos; teve notícia de serras nevadas ao Ocidente; julgou ter achado um estreito e o extremo meridional do continente. O capitão, talvez João de Lisboa, levou para o reino um machado de prata, e este nome, apegado ao soberbo rio, ainda hoje proclama a primazia dos portugueses ao Sul, como o das Amazonas perpetua a passagem dos espanhóis ao Norte.

Com a viagem destes navios, armados por d. Nuno Manuel e Cristóbal de Haro, coincidiu o descobrimento do mar do Sul ou Pacífico, por Vasco Nunes de Balboa.

Os espanhóis apanharam a importância destes sucessos, mandaram em 1515 procurar o estreito anunciado pelos portugueses, e incumbiram João Dias de Solis de ir pelo novo caminho às espaldas das terras de Castela de Ouro. Solis foi morto apenas desembarcou no rio da Prata; seus companheiros voltaram sem detença para o Reino. Em 1520 Fernão de Magalhães explorou o grande estuário meridional à procura do estreito cobiçado afinal descoberto mais para o Sul, e navegou pelo oceano Pacífico até alcançar as famosas Molucas, as ilhas das especiarias por excelência.

Assim se cumpriu o plano de Colombo: chegar ao Levante navegando sempre para o Ocidente. Acompanharam Magalhães em sua expedição incomparável João Lopes de Carvalho, piloto da nau Bretoa, e um mamaluco, filho seu, havido de uma índia do Rio de Janeiro.

Pau-brasil, papagaios, escravos, mestiços, condensam a obra das primeiras décadas.

Da parte das índias a mestiçagem se explica pela ambição de terem filhos pertencentes a raça superior, pois segundo as idéias entre elas ocorrentes só valia o parentesco pelo lado paterno. Além disso pouca resistência deviam encontrar os milionários que possuíam preciosidades fabulosas como anzóis, pentes, facas, tesouras, espelhos. Da parte dos alienígenas devia influir sobretudo a escassez, se não ausência de mulheres de seu sangue. É fato observado em todas as migrações marítimas, e sobrevive ainda depois do vapor, da rapidez e da segurança das travessias.

Estes primeiros colonos que ficaram no Brasil, degradados, desertores, náufragos, subordinam-se a dois tipos extremos: uns sucumbiram ao meio, ao ponto de furar lábios e orelhas, matar os prisioneiros segundos os ritos, e cevar-se em sua carne; outros insurgiram-se contra ele e impuseram sua vontade, como o bacharel de Cananéia, que se obrigou a fornecer quatrocentos escravos a Diogo Garcia, companheiro de Solis, um dos descobridores do Prata.

Tipo intermédio apresenta-nos Diogo Álvares, o Caramuru, que habitou na Bahia de 1510 a 1557, data de seu falecimento.

Primeiros conflitos

Com a chegada dos portugueses coincidiu quase, a dos franceses, que começaram logo o mesmo comércio de resgate. Na vastidão do litoral podiam ter passado anos sem se encontrar, mas o encontro era fatal, e não havia de ser amigável.

Portugal considerava a nova terra propriedade direta e exclusiva da coroa, pelas concessões papais, pelo tratado de limites concluído com a Espanha e pela prioridade do descobrimento. O rei tirava porcentagem dos gêneros levados para além-mar; os armadores queriam auferir lucros de seus esforços e capitais.

A presença dos intrusos prejudicava-os a todos os respeitos: nos mercados europeus, oferecendo os gêneros a preços mais vantajosos, pois não tinham quintos a deduzir, e levando-os diretamente aos mercados consumidores, pois não eram obrigados a parar em Lisboa; nas terras brasílicas, conciliando as simpatias dos naturais, que os agasalhariam com maior carinho, poupar-lhes-iam traições e aleives, dariam preferência nos carregamentos e se habituariam às mercadorias francesas. Ainda por cima havia a questão de princípio: Portugal não admitia que os filhos de outra nação pusessem o pé em terras suas no além-mar.

Desde a Paraíba ao Norte até S. Vicente ao Sul, o litoral estava ocupado por povos falando a mesma língua, procedentes da mesma origem, tendo os mesmos costumes, porém profundamente divididos por ódios inconciliáveis em dois grupos; a si próprio um chamava Tupiniquim, e outro Tupinambá. A migração dos Tupiniquins fora a mais antiga; em diversos pontos os Tupinambás já os tinham repelido para o sertão, como no Rio de Janeiro, na baía de Todos-os-Santos, ao Norte de Pernambuco; em parte de S. Paulo, em Porto Seguro e Ilhéus, nas proximidades de Olinda; na serra de Ibiapaba havia, entretanto, Tupiniquins habitadores do litoral.

Porque os Tupinambás se aliaram constantemente aos franceses e os portugueses tiveram a seu favor os Tupiniquins, não consta da história, mas o fato é incontestável e foi importante; durante anos ficou indeciso se o Brasil ficaria pertencendo aos Peró (portugueses) ou aos Maïr (franceses).

Ainda nos últimos tempos de d. Manuel, começaram os protestos contra a presença dos Maïr; com a acessão de d. João III a situação agravou-se. Reconhecida a inutilidade de embaixadas à corte de França, e de promessas compradas a peso de ouro e jamais cumpridas, o rei de Portugal resolveu desforçar-se. Uma armada de guarda-costa veio em 1527 ao Brasil comandada por Cristóvão Jaques, que já estivera antes na terra e deixara uma feitoria junto a Itamaracá, de volta de uma expedição ao Prata. Desde Pernambuco até a Bahia e talvez Rio de Janeiro, Cristóvão Jaques deu caça aos entrelopos; segundo testemunhos interessados, não conhecia limites sua selvageria, não lhe bastava a morte simples, precisava de torturas e entregava os prisioneiros aos antropófagos para os devorarem. Mesmo assim ainda levou trezentos prisioneiros para o Reino. Devia ter causado um mal enorme aos franceses.

As armadas de guarda-costa eram simples paliativos; só povoando a terra, cortar-se-ia o mal pela raiz. Cristóvão Jaques ofereceu-se a trazer mil povoadores; oferecimento semelhante fez João de Melo da Câmara, irmão do capitão-mor da ilha de S. Miguel. Indignava-se este vendo que até então a gente que vinha ao Brasil limitava-se a comer os alimentos da terra e tomar as índias por mancebas, e propôs trazer numerosas famílias, bois, cavalos, sementes, etc.

Preferiu-se a estas propostas práticas e razoáveis aparelhar nova e mais poderosa armada às ordens de Martim Afonso de Sousa, meio-termo entre armada de guarda-costa e expedição povoadora. Apenas alcançou a costa de Pernambuco, em janeiro de 31, começou a faina de guarda-costa; em poucos dias foram tomadas três naus francesas.

Diogo Leite com duas caravelas foi mandado de Pernambuco para a costa de Este-Oeste, mais desconhecida então que trinta anos antes, quando por elas passara Vicente Yañez Pinzon. Com os outros navios, o capitão-mor seguiu para o Sul. Demorou na baía de Todos-os-Santos, na de Guanabara, em Cananéia; continuava para o rio da Prata, e devia entrar em seus planos acompanhar-lhe o curso, pois desde a Europa trazia desarmados bergantins próprios para a exploração, quando a perda da capitânea fê-lo arrepiar caminho para o porto de S. Vicente. Aqui esperou o irmão, Pero Lopes, que em seu lugar mandara às águas platinas.

Desde 1514 chegaram à Europa, levados pela armada de d. Nuno Manuel, os primeiros espécimes de metais preciosos, encontrados nas águas do grande rio. Alguns companheiros de Solis, escapos à sanha dos índios, e depois tolerados, confirmaram estes indícios vagos. Na Costa dos Patos alguns deles falavam com entusiasmo em tais riquezas.

Tais notícias nos Patos ou no próprio rio, colheu-as Cristóvão Jaques, cerca de 1522, e levou-as ao Reino. Na feitoria de Itamaracá então fundada, cursavam com tamanha insistência que, em 1526, Sebastião Cabot, ouvindo-as ao aportar em Pernambuco, decidiu logo navegar para Santa Catarina a ir tomar os náufragos de Solis e realizar o descobrimento dos metais anunciados com tanta certeza e insistência. Viera mandado para as Molucas, mas sabia que se triunfasse ninguém lhe lançaria em rosto o desvio, e tanto se capacitou da realidade das minas que não hesitou em transgredir as instruções mais restritas.

Apesar do insucesso final de Cabot, persistiu inabalável a crença nos tesouros platinos; por isso quando, em Cananéia, Francisco de Chaves, grande língua do gentio, pediu gente para fazer uma entrada e prometeu voltar no fim de dez meses com quatrocentos escravos carregados de prata, Martim Afonso não conheceu hesitações.

A idéia parecia prática, pois dispensava de acompanhar o litoral até a foz do Prata e subir por este além da fortaleza fundada por Cabot para procurar o Ocidente, onde tais tesouros existiam. O capitão-mor deu quarenta besteiros e quarenta espingardeiros, que sob as ordens de Pero Lobo partiram a 1 de setembro de 1531. Morreram às mãos dos índios, sabe-se vagamente. Pelo mesmo tempo, navegando o oceano Pacífico, Francisco Pizarro alcançou por caminho mais direto as terras dos Incas, procuradas até então pelo lado cisandino.

Depois da perda da capitânea passou Martim Afonso a tratar da segunda parte da sua missão: o povoamento da terra. Em S. Vicente fundou a primeira vila, à beira-mar; algumas léguas para o interior, depois de transposta a serra do Mar, fundou segunda vila, na borda do campo de Piratininga, à margem de um rio cujas águas fluíam para o Ocidente. «Repartiu a gente nestas duas vilas», escreveu Pero Lopes, «e fez nelas oficiais, e pôs tudo em boa obra de justiça, de que a gente toda tomou muita consolação, com verem povoar vilas e ter leis e sacrifícios e celebrar matrimônios e viverem em comunicação das artes, e ser cada um senhor do seu e vestir as injúrias particulares, e ter todos os outros bens da vida segura e conversável».

A situação geográfica destas vilas explica-se pela proximidade das famosas riquezas cobiçadas, pela facilidade de fazer as entradas, dez meses apenas para ir e voltar, garantia Francisco de Chaves. Deslumbrado por tais vantagens, Martim Afonso esqueceu-se dos franceses ou julgou arredados os motivos para temê-los depois da campanha energicamente conduzida por Cristóvão Jaques e por ele continuada com tanto êxito e vigor.

Diogo de Gouveia, português residente em França, seguia desde muito o movimento dos negócios naquele Reino e pensava de modo diverso. Em cartas e el-rei dava-lhe notícias pouco tranqüilizadoras, e instava por uma solução real. A solução era não uma vila afastada da zona freqüentada, mas diversos povoados na região apetecida do pau-brasil. «Quando lá houver sete ou oito povoações, concluía, estas serão bastantes para defenderem aos da terra que não vendam o brasil a ninguém e não o vendendo as naus não hão de querer lá ir para vir de vazio».

Dir-se-ia que os franceses leram estas palavras previdentes. Até então contentavam-se com o simples resgate, quando muito alguma feitoria. Trataram agora de fundar uma fortaleza, artilhada e com guarnição numerosa. Só assim considerou a corte lusitana «com quanto trabalho se lançaria fora a gente que a povoasse, depois de estar assentado na terra e ter nela feitas algumas forças, como já em Pernambuco começava a fazer».

Estes fatos foram conhecidos no Reino graças à nau La Pèlerine, de Marselha, que, procedendo de Pernambuco aonde deixara gente e artilharia, arribou a Málaga. Achava-se no porto uma armada de Portugal, de 10 navios, destinados a Roma; d. Martinho, embaixador, informado da falta de mantimentos que obrigava a arribada, forneceu trinta quintais de biscoutos aos franceses, e convidou-os a navegarem de conserva até Marselha. A cinco milhas de Málaga sobreveio calmaria; a pretexto de concertar a derrota a seguir foram convidados o capitão e o piloto de La Pèlerine para vir a bordo da capitânea portuguesa e, logo, presos, tomado o navio e remetido para Lisboa.

Não foi mais feliz a fortaleza galo-pernambucana. Pero Lopes, terminada a exploração do Prata, e já de viagem para a Europa, bombardeou-a durante dezoito dias, e obrigou-a a render-se. Da guarnição parte foi enforcada; outra, transferida ao Reino, passou longos meses de cativeiro nos calabouços do Algarve.

Capitanias hereditárias

A tomadia de La Pèlerine, a feitoria francesa fundada em Pernambuco, notícias de preparativos para fundarem-se outras, espancaram finalmente a inércia real. Escrevendo a Martim Afonso de Sousa a 28 de setembro de 32, anuncia-lhe el-rei a resolução de demarcar a costa, de Pernambuco ao rio da Prata, e doá-la em capitanias de cinqüenta léguas: a de Martim teria cem; seu irmão Pero Lopes seria um dos donatários.

A chegada do jovem guerreiro vitorioso em Pernambuco mostrou mais uma vez a iminência do perigo. Talvez a isto se devam certas medidas desde logo tomadas ou pelo menos discutidas: liberdade ampla de emigrar para o Brasil, preparo de uma armada de três caravelas, cada uma com dez a doze condenados à morte, «per farli desmontar in terra, azió habiano a domestigar quel paese, rispetto per non metter boni homini dabene a pericolo», assegurava, a 16 de julho de 33, o veneziano Pietro Caroldo, a quem devemos esta notícia. Tal armada veio efetivamente?

Sua vinda explicaria uma porção de pontos obscuros.

Os documentos mais antigos da doação das capitanias datam de 1534.

A demora entre o projeto e a execução pode explicar-se pela vontade régia de esperar a volta de Martim Afonso, ou pela dificuldade de redigir as complicadas cartas de doações e os forais que as acompanham ou, finalmente, pela falta de pretendentes à posse de terras incultas, impróprias para o comércio desde o começo. Admira, até, como houve doze homens capazes de empresa tão aleatória. A nenhum dos membros da alta fidalguia tentou a perspectiva de semear povos.

Os donatários sairam em geral da pequena nobreza, dentre pessoas práticas da Índia, afeitas ao viver largo da conquista, porventura coactas na malhas acochadas da pragmática metropolitana. Muitos nunca vieram ao Brasil, ou desanimaram com o primeiro revés. el-rei cedeu às pessoas a quem doou capitanias alguns dos direitos reais, levado pelo desejo de dar vigor ao regime agora organizado; muitas concessões fez também como administrador e grão-mestre da Ordem de Cristo.

Em tudo agiu «considerando quanto serviço de Deus e meu e proveito dos meus reinos e senhorios, e dos naturais e súditos deles é ser a minha terra e costa do Brasil mais povoada do que até agora foi, assim para se nela haver de celebrar o culto e ofícios divinos, e se exaltar a nossa santa fé católica, com trazer e provocar a ela os naturais da dita terra infiéis e idólatras, como por o muito proveito que se seguirá a meus reinos e senhorios, e aos naturais e súditos deles de se a dita terra povoar e aproveitar».

Os donatários seriam de juro e herdade senhores de suas terras; teriam jurisdição civil e criminal, com alçada até cem mil réis na primeira, com alçada no crime até morte natural para escravos, índios, peões e homens livres, para pessoas de mor qualidade até dez anos de degredo ou cem cruzados de pena; na heresia (se o herege fosse entregue pelo eclesiástico), traição, sodomia, a alçada iria até morte natural, qualquer que fosse a qualidade do réu, dando-se apelação ou agravo somente se a pena não fosse capital.

Os donatários poderiam fundar vilas, com termo, jurisdição, insígnias, ao longo das costas e rios navegáveis; seriam senhores das ilhas adjacentes até distância de dez léguas da costa; os ouvidores, os tabeliães do público e judicial seriam nomeados pelos respectivos donatários, que poderiam livremente dar terras de sesmarias, exceto à própria mulher ou ao filho herdeiro.

Para os donatários poderem sustentar seu estado e a lei de nobreza, eram-lhe concedidas dez léguas de terra ao longo da costa, de um a outro extremo da capitania, livres e isentas de qualquer direito ou tributo exceto o dízimo, distribuídas em quatro ou cinco lotes, de modo a intercalar-se entre um e outro pelo menos a distância de duas léguas; a redízima (1/10 da dízima) das rendas pertencentes à coroa e ao mestrado; a vintena do pau-brasil (declarado monopólio real, como as especiarias), depois de forro de todas as despesas; a dízima do quinto pago à coroa por qualquer sorte de pedraria, pérolas, aljôfares, ouro, prata, coral, cobre, estanho, chumbo ou outra qualquer espécie de metal; todas as moendas dágua, marinhas de sal e quaisquer outros engenhos de qualquer qualidade, que na capitania e governança se viessem a fazer; as pensões pagas pelos tabeliães; o preço das passagens dos barcos nos rios que os pedissem; certo número de escravos, que poderiam ser vendidos no reino, livres de todos os direitos; a redízima dos direitos pagos pelos gêneros exportados, etc.

Os forais asseguravam aos solarengos: sesmarias com a imposição única do dízimo pago ao mestrado de Cristo; permissão de explorar as minas, salvo o quinto real; aproveitamento do pau-brasil dentro do próprio país; liberdade de exportação para o reino, exceto de escravos, limitados a número certo, e certas drogas defesas (pau-brasil, especiarias, etc.); direitos diferenciais que os protegeriam da concorrência estrangeira; entrada livre de mantimentos, armas, artilharia, pólvora, salitre, enxofre, chumbo e quaisquer cousas de munições de guerra; liberdade de comunicação entre umas e outras capitanias do Brasil.

Representantes do poder real só havia feitores, almoxarifes e escrivães, incumbidos de arrecadar as rendas da coroa. Para várias capitanias existem nomeações de um vigário e vários capelães: sempre el-rei ao lado do grão-mestre de Cristo.

Nas terras dos donatários não poderiam entrar em tempo algum corregedor, alçada ou outras algumas justiças reais para exercer jurisdição, nem haveria direitos de siza, nem imposições, nem saboarias, nem imposto de sal.

Em suma, convicto da necessidade desta organização feudal, d. João III tratou menos de acautelar sua própria autoridade que de armar os donatários com poderes bastantes para arrostarem usurpações possíveis dos solarengos vindouros, análogas às ocorridas na história portuguesa da média idade. Ao ouvidor da capitania, com ação nova a dez léguas de sua assistência e agravo e apelação em toda ela, caberia o mesmo papel histórico dos juízes de fora no além-mar.

Para evitar lutas como as que grassaram entre a coroa ainda enfraquecida e os vassalos prepotentes, proibiu-se de modo absoluto «partir [a capitania e governança], nem escaimbar, espedaçar, nem em outro modo alhear, nem em casamento a filho ou filha, nem a outra pessoa dar, nem para tirar pai ou filho ou outra alguma pessoa de cativo, nem por outra cousa ainda que seja mais piadosa porque minha tenção e vontade é que a dita capitania e governança e cousas ao dito capitão e governador nesta doação dadas hão de ser sempre juntas e se não partam nem alienem em tempo algum». As dez ou mais léguas de terras dadas aos donatários, espaçadas entre si e alienáveis em fatiotas, corresponderiam aos reguengos lusitanos.

As capitanias foram doze, embora divididas em maior número de lotes. Começavam todas à beira-mar, e prosseguiram com a mesma largura inicial para o ocidente, até a linha divisória das possessões portuguesas e espanholas acordada em Tordesilhas, linha não demarcada então, nem demarcável com os conhecimentos do tempo. Tàcitamente fixou-se o limite na costa de Santa Catarina ao Sul, e na costa do Maranhão ao Norte. A testada litorânea agora dividida estendia-se assim por 735 léguas.

No plano primitivo a demarcação devia ir de Pernambuco ao rio da Prata, meta de que afinal ficou cerca de 12 graus afastada; nele não entrava a costa de Este-Oeste que, entretanto, foi demarcada. Para a última decisão é possível afluíssem as notícias de Diogo Leite, incumbido de explorar aquela zona. Só por considerações internacionais se poderia explicar a fixação tácita dos limites do Brasil em 28º 1/3. O rio da Prata fora descoberta portuguesa; mas os espanhóis já aí tinham estado bastante tempo, derramado sangue e arriscado empresas: a eles competia por todos os direitos, a começar pelo tratado de Tordesilhas.

A divisão das donatárias ainda não foi descrita tão concisa e geogràficamente como nos seguintes termos de D'Avezac, o único que conseguiu dar certa forma a esta matéria essencialmente refratária:

O limite extremo da mais meridional destas capitanias, concedida a Pero Lopes de Sousa, é determinado nas próprias cartas de doação por uma latitude expressa de 28º 1/3; confrontava, um pouco ao Norte de Paranaguá, com a de S. Vicente, reservada a Martim Afonso de Sousa, e que se estendia do lado oposto até Macaé, ao Norte de Cabo Frio, desenvolvendo assim mais de cem léguas de costa, mas em duas partes que encravavam, desde São Vicente até a embocadura do Juquiriquerê, a de Santo Amaro, de dez léguas, adjudicada a Pero Lopes, o irmão de Martim Afonso.

Ao Norte dos domínios deste estava a capitania de S. Tomé, cujas trinta léguas iam expirar junto de Itapemirim; era o lote de Pero de Góis, irmão do célebre historiador Damião de Góis.

Em seguida vinha a capitania do Espírito Santo, outorgada a Vasco Fernandes Coutinho, cujo linde ulterior era marcado pelo Mucuri, que a separava da capitania de Porto Seguro, atribuída a Pero do Campo Tourinho; esta prosseguia pelo espaço de cinqüenta léguas até a dos Ilhéus, obtida por Jorge de Figueiredo Correia, igualmente de cinqüenta léguas, cujo termo chegava rente à Bahia.

A capitania da Bahia, doada a Francisco Pereira Coutinho, se estendia até o grande rio de S. Francisco; além estava a de Pernambuco, adjudicada a Duarte Coelho, e que contava sessenta léguas até o rio Iguaraçu, junto ao qual Pero Lopes possuía terceiro lote de trinta léguas, formando sua capitania de Itamaracá até a baía da Traição.

Neste lugar começava, para se estender sobre um litoral de cem léguas até angra dos Negros, a capitania do Rio Grande, dada em comum ao grande historiador João de Barros e a seu associado Aires da Cunha; da angra dos Negros ao rio da Cruz quarenta léguas de costas constituíam o lote concedido a Antônio Cardoso de Barros: o rio da Cruz ao cabo de Todos-os-Santos, vizinho do Maranhão, eram adjucadas setenta e cinco léguas ao vedor da fazenda Fernand'Alvares de Andrade: e além vinha enfim a capitania do Maranhão, formando segundo lote para a associação de João de Barros e Aires da Cunha, com cinqüenta léguas de extensão sobre o litoral, até a abra de Diogo Leite, isto é, até cerca da embocadura do Turiaçu.


Das setecentas e trinta e cinco léguas de litoral demarcado para as capitanias podemos desde já apartar as duzentas e sessenta e cinco doadas a João de Barros, Fernand'Álvares, Aires da Cunhas e Antônio Cardoso de Barros. Os esforços para ocupá-las mangraram; o povoamento fêz-se mais tarde, com gente nascida ou estabelecidas em outros pontos do Brasil: representam uma formação secundária na história pátria. Convém também apartar as duzentas e trinta e cinco léguas demarcadas entre o extremo da capitania dos Ilhéus na baía de Todos-os-Santos e o rio Curupacé, e mais quarenta léguas de Cananéia para a terra de Sant'Ana. Aqui houve logo tentativas de povoamento: ainda hoje existem vilas fundadas na quarta década do século XVI; mas os colonos tiveram pela frente a mata virgem, os rios encachoeirados, as serranias ínvias, não souberam vencê-los e só impulsionaram a história do Brasil quando os venceram. A primeira vitória decisiva foi ganha no rio de Janeiro, já no século XVIII, com o auxílio dos paulistas; desde então o Rio figura como fator cada vez mais importante. Outros pontos, como Vitória, Porto Seguro, Ilhéus, esperaram ou estão esperando as vias férreas.

Restam as cento e quarenta léguas estendidas da baía da Traição à de Todos-os-Santos, as cinqüenta e cinco léguas inseridas entre o Curupacé e Cananéia, em outros termos: a capitania de Duarte Coelho, parte da de Martim Afonso de Sousa, os troços da capitania1 da Bahia depois da morte do primitivo donatário.

A história do Brasil no século XVI elaborou-se em trechos exíguos de Itamaracá, Pernambuco, Bahia, Santo Amaro e S. Vicente, situados nestas cento e noventa e cinco léguas de litoral.

Martim Afonso conservara-se na vila de S. Vicente à espera da gente mandada às minas que, segundo a tradição, trucidaram os Carijós do Iguaçu, quando tornava da sua arriscada expedição. Uma carta régia trazida por João de Sousa informou-o dos novos planos de colonizar, deixando-lhe ao arbítrio permanecer ou tornar para o Reino. Em começo de 33 partiu para Portugal. Desde então seus feitos pertencerem a outras partes do mundo.

Em seu lugar ficou governando no civil, concedendo sesmarias, provendo ofícios, o padre Gonçalo Monteiro, também vigário. O governo das armas exerceram-no Pero de Góis e Rui Pinto. O primeiro quis expulsar do Iguape alguns espanhóis que ali se refugiaram, vindo do Paraguai. Surtiu-lhe mal o lance. Os espanhóis derrotaram a força, aprisionaram o comandante, invadiram e saquearam S. Vicente. Ou achasse meio de fugir, ou aos inimigos bastasse o escarmento, já estava no velho mundo em 1536, como se concluiu do foral de sua capitania datado de 26 de fevereiro.

Desde Bertioga até o Cabo Frio continuavam implacáveis os Tupinambás, combatendo e atacando por terra e por mar contra os Peró, e a favor dos Maïr. Num dos combates sucumbiu Rui Pinto. Cunhambebe, truculento maioral tamoio, guardava entre os outros troféus o hábito e a cruz de Cristo deste cavaleiro.

Aparece-nos entre os primeiros povoadores Brás Cubas, jovem criado de Martim Afonso, que aportou a S. Vicente em 1540, governou mais de uma vez a terra, guerreou contra os Tamoios, fortificou Bertioga, entrada preferida por estes inimigos, e fundou a vila de Santos, que possuía melhor porto e facilmente superou a primogênita de Martim Afonso. Mais tarde empenhou-se na cata de minas, e consta haver achado algum ouro.

À roda destas vilas fundaram engenhos, além dos portugueses, os flamengos Schetz ou Esquertes, como o pronunciava o povo, e os Dorias, genoveses. Diz-se até, porém não deve ser exato, que desta procedem as canas plantadas em outras capitanias. Tais engenhos, com as distâncias e a raridade de comunicações, deviam ter desenvolvimento medíocre.

Da vila fundada em Piratininga conhecemos a mera existência ou pouco mais. A situação no descampado dificultava surpresas inimigas. O trânsito do Paraguai dava-lhe algum movimento. As cabanas de João Ramalho e dos mamalucos seus filhos e parentes, no outro lado da serra donde as águas já corriam para o Prata, apregoavam a vitória alcançada sobre a mata virgem do litoral, vitória obtida aqui mais cedo que em qualquer outra parte do Brasil, porque os colonos apenas continuaram a obra dos indígenas, já achando aberto por cima de Paranapiacaba e aproveitando a trilha dos Tupiniquins.

Na capitania de Pernambuco, depois de estabelecido Igaraçu, Duarte Coelho passou algumas léguas mais ao Sul, e assentou a capital de seus domínios em Olinda. O porto de somenos capacidade bastava às pequenas embarcações. A vizinhança dos Tabajaras (Tupiniquins) compensava as investidas constantes dos Petiguares (Tupinambás). A energia do donatário continha a turbulência dos colonos. Nas várzeas surgiam canaviais e engenhos; a lavoura de mantimentos aproveitou os altos: pau-brasil existia no litoral e no sertão; e estando esta capitania, de todas a mais oriental, a menor distância do Reino, aqui mais que alhures freqüentavam os navios de além-mar, e prosperava o comércio. Os mares piscosos traziam a fartura, e alentavam a costeagem; caravelões espantavam os franceses, que desde então começaram a evitar aquelas paragens. O nome de Nova Lusitânia dado pelo donatário à sua colônia, se por um lado figura esperanças de futuro, simbolizava por outro o orgulho da própria obra. Nas armas concedidas por d. João III em 6 de junho de 1545 cinco castelos representavam os cinco centros de povoações criadas por Duarte Coelho. Infelizmente conhecemos só Igaraçu, Olinda e, quiçá, Paratibe.

Da capitania de Itamaracá foram recursos para a de Pernambuco, quando os Petiguares puseram cerco em Igaraçu e levaram-no aos últimos apuros. Mais tarde as relações estremeceram. Queixa-se Duarte Coelho de desrespeitos constantes à sua autoridade; de Itamaracá teve de retirar-se um capitão, por Duarte Coelho haver mandado dar-lhe uma cutilada: a pequena distância gerou dissensões. Contudo, os colonos de Pero Lopes tiveram a habilidade de conciliar os Tupinambás da serra, e como não avançaram pelo litoral para as terras do Paraíba, centro dos Petiguares amigos dos franceses, seu desenvolvimento correu pacífico e contínuo por algum tempo.

Largos recursos naturais facilitavam a obra de Francisco Pereira Coutinho: baía vasta como um mediterrâneo, esteiros numerosos franqueando entrada a cada passo, correntes numerosas para moverem engenhos, matas virgens ao lado de terrenos mal vestidos; onde o gado podia medrar à lei da natureza, situação vantajosa no centro das outras capitanias.

Faltava pau-brasil na vizinhança, mas o afastamento dos franceses, daí resultante, compensava bem a pobreza e, não instigados pelos franceses, os Tupinambás mostrariam disposições menos malévolas. Por que não foi avante, com tudo isso, Francisco Pereira Coutinho?

Não soube dominar os elementos que importou, nem se impôs à indiada das adjacências. Tais apuros sofreu quem pereceria sem os socorros mandados dos Ilhéus.

Mais tarde recolheu-se a Porto Seguro, cansado e velho, pouco disposto a continuar; mas os ânimos serenaram na Bahia, e tornava esperançado, quando foi morto ao desembarcar. Nas lutas com os índios mandara matar um dos cabecilhas: prisioneiro agora, foi ritualmente sacrificado por um irmão do finado, de cinco anos, tão pequeno que foi preciso segurarem-lhe a massa do sacrifício, segundo tradição conservada num escrito jesuítico.

Capitanias da coroa

A morte de Francisco Pereira apenas se divulgou no Reino devia convidar os políticos a meditar sobre o sistema de colonização vigente.

Sem dúvida satisfazia a alguns dos primitivos intuitos que o inspiraram. As fortalezas espalhadas pelo litoral estorvavam, se não suprimiam de todo, o trato entre os indígenas e os entrepolos. Os franceses, expulsos de Pernambuco, procuravam outros pontos, e deles seria possível excluí-los com o tempo. Iam nascendo filhos de portugueses, a população crescia com a mestiçagem, regularizava-se a produção e o comércio.

Mas um vício constitucional minava o organismo. Os donatários entravam para a empresa com recursos próprios ou emprestados: se os primeiros tempos corriam bem, a remuneração natural permitia-lhes continuarem com mais eficácia; no caso contrário perdia-se todo o esforço, como sucedera a Pero de Góis, a Francisco Pereira, a Antônio Cardoso, a João de Barros, a Aires da Cunha, a Fernand'Álvares; ou as capitanias vegetavam mofinas, como a dos Ilhéus, Porto Seguro, Espírito Santo, Santo Amaro e São Vicente.

Acrescia que, sendo iguais os poderes dos donatários, estando as capitanias na condição de estados estrangeiros umas relativamente às outras, impossibilitava-se qualquer ação coletiva: os crimes proliferavam na impunidade, a pirataria surgia como função normal. As cartas de Duarte Coelho ilustraram de modo pungente esta anarquia lastimosa. E a anarquia intercapitanial conjugava-se com a anarquia intestina. Autoridades e mais autoridades, leis claras, prescrições restritivas havia: qual o meio de pô-las em atividade e dar-lhes força? Como imobilizariam os donatários em funções de governo recursos que não sobejavam para misteres econômicos?

O remédio preferido por d. João III consistiu em tomar posse da capitania deixada devoluta pela morte de Coutinho, com os recursos da coroa estabelecer uma organização mais vigorosa, criar um governo geral, forte bastante para garantir a ordem interna e estabelecer a concórdia entre os diversos centros de população.

Rasgaram-se assim doações e forais, onde só estavam previstos conflitos entre solarengos e senhores hereditários, e só se fitava equiparar a situação destes à do rei contra os poderosos vassalos medievais. Os poucos protestos dos interessados passaram desatendidos, e em 1549, sem abolir de todo o sistema feudal, instituiu-se novo regime.

Constava de um capitão-mor, incumbido da administração civil e militar, de um provedor-mor, encarregado dos negócios da fazenda, de um ouvidor-mor, chefe da justiça. Exerciam a autoridade primariamente na Bahia; nas outras capitanias tinham delegados; quando iam a qualquer delas, competia-lhes conhecer de ação nova; na ausência agiam só por meio de recursos. Numerosos, excessivos oficiais distribuíam-se por estes três ministérios ou desfrutavam magras sinecuras.

Acompanhado por quatrocentos soldados, seiscentos degradados, muitos mecânicos pagos pelo erário, partiu de Lisboa em fevereiro o primeiro governador, Tomé de Sousa, com Pero Borges, ouvidor-geral, Antônio Cardoso de Barros, procurador-mor da fazenda, e aportou à baía de Todos-os-Santos em fins de março de 1549.

Saltando em terra tratou logo de escolher local apropriado para a cidade que vinha fundar, de fortalecê-la contra os ataques da gente de terra e construir os edifícios mais urgentes.

A gente ia desembarcando à medida que se preparavam as acomodações. Caravelões mandados a diversos pontos da costa, em constante escambo com os naturais, traziam algum mantimento. O peixe abundante variava os gêneros conservados ou, mais provavelmente, avariados, procedentes de Portugal. De Cabo Verde veio algum gado, para cuja propagação o terreno provou admiravelmente. Os pagamentos faziam-se em gêneros, principalmente ferramentas e avelórios, que depois os interessados permutavam entre si ou com os indígenas.

Com estes elementos o governador impediu a desordem na capital. O provedor-mor e o ouvidor-geral em viagens continuadas pelas capitanias reprimiram muitos abusos.

Em companhia do capitão-mor vieram seis jesuítas, os primeiros mandados a este continente, sobre cujos destinos tanto deveriam mais tarde pesar. Completaram harmonicamente a administração, pois tanto como Tomé de Sousa ou Pero Borges, o padre Manuel da Nóbrega obedecia ao sentimento coletivo, trabalhava pela unidade da colônia, e no ardor de seus trinta e dois anos achava ainda pequeno o cenário em que se iniciava uma obra sem exemplo na história.

Seus esforços perdiam-se na indiferença ou hostilidade dos outros eclesiásticos. Por isto, com insistência e franqueza apostólicas lembrava a el-rei a conveniência de mandar um bispo, único meio de trazer ao aprisco as ovelhas e conter os lobos. Criou-se um bispado; em junho de 52 chegou à diocese d. Pedro Fernandes Sardinha, primeiro bispo do Salvador.

Com o segundo governador, d. Duarte da Costa (1553-1557), esteve em luta constante o velho prelado, das lutas comuns em mais vasto, e inevitáveis em tão acanhado teatro, dadas as relações vigentes entre o poder civil e o poder eclesiástico. A sociedade de Salvador cindiu-se ao meio, acirravam paixões e cavavam ódios as pessoas de maior responsabilidade, e a multidão ignara atirou-se na refega, como se meras questiúnculas de poderio representassem interesses vitais. Variando apenas de forma, tais conflitos repetiram-se durante os séculos seguintes. Só perderam importância depois que as constituições modernas eliminaram os resíduos da concepção medieval das duas sociedades perfeitas.

Os jesuítas, superiores e alheios a este debate, concentraram seus esforços na capitania de S. Vicente.

Transpondo a serra do Mar, estabeleceram na ribeira do Tietê uma primeira missão que tomou o nome do apóstolo das gentes (25 de janeiro de 54).

Levaram-nos a este passo a maior abundância de alimentos no planalto, a presença de tribos próprias à conversão por uma índole mansa e, além do afastamento dos portugueses, certas idéias vagas de penetração entre os índios de Paraná e Paraguai. O nome de S. Paulo, agora ouvido pela primeira vez, devia ecoar poderosamente no futuro.

Os franceses repelidos de Pernambuco por Duarte Coelho, contidos ao centro pela cidade do Salvador e mais vilas de baixo, afastaram-se dos lugares até ali mais freqüentados e passaram à capitania de Pero de Góis e terras vizinhas pertencentes a Martim Afonso, onde por muitas léguas dominavam os fiéis Tamoios, e existia pau-brasil em abundância.

Navios avulsos, aventureiros conhecedores da língua geral, identificados com os índios a ponto de lhes não repugnar a iguaria da carne humana, estabeleceram relações que, se não impediram o progresso dos portugueses, criaram-lhe sérios embaraços, e durante 23 [anos] trouxeram indecisa a vitória, e talvez a decidissem contra Portugal se mais persistentes foram seus adversários.

Cumpria coordenar estes elementos. Lembraram-se os franceses de um regime híbrido, com parte dos capitais adiantada por particulares, parte fornecida pelo rei que, entretanto, não se responsabilizaria pela empresa e só a perfilharia em caso de bom êxito.

À frente da expedição colocou-se Nicolas Durand de Villegaignon, notável pela valentia e pelo saber. Partindo de Brest, chegou em novembro de 55 ao Rio de Janeiro, seu destino. Estabeleceu-se numa ilha da baía, posição esplêndida contra os índios com cuja amizade contava, imprópria pela falta de água a resistir aos portugueses, cujos ataques poderiam tardar mas não faltariam; com duas fortalezas formidáveis armou-a; fez amado e querido dos indígenas circunvizinhos o nome de Pay Colas; por mais de uma vez recebeu imigrantes da Europa.

Da assistência na ilha, pequena, rochosa, sem água nativa, sugiram inconvenientes graves para o sustento da guarnição, sujeita assim aos caprichos dos Tamoios. A severidade puritana do chefe descontentou a soldadesca. Os imigrantes trouxeram questões religiosas para a comunidade. O chefe teve de mostrar-se severo, talvez cruel. Chegaram más notícias e sérias queixas ao velho mundo, tolhendo as correntes simpáticas. Afinal, desiludido do futuro imediato da colônia, ou convencido de que sua presença excitaria a tibieza e despertaria a confiança dos armadores da metrópole, ou desejoso de entrar nos conflitos muito mais brilhantes e gloriosos que se feriam além-mar, Villegaignon retirou-se em 59 da França Antártica.

Sucedeu-lhe seu sobrinho Bois le Comte, que manteve a situação sem melhorá-la. Como poderia fazê-lo? Para ser bem sucedidos os franceses deviam ter vindo uns vinte anos antes, quando os portugueses não tinham ainda criado raízes. Era tarde agora. Mem de Sá, à frente de uma armada, penetrando na baía, precisou apenas de três dias de fogo nutrido para desvanecer todos os castelos, em março de 60.

A vitória portuguesa foi realçada por dois sucessos logo ocorridos nas capitanias de Martim Afonso e Pero Lopes.

Mem de Sá mudou a antiga vila de Santo André, reunindo-a à missão jesuítica de Piratininga. Por este ou outro motivo, os Tupiniquins se insurgiram e puseram em cerco o povoado. Os catecúmenos dos jesuítas declararam-se contra seus próprios parentes, que foram repelidos, e não tornaram mais. A favor dos portugueses bateu-se heroicamente Martim Afonso Tibiriçá (julho de 62).

No ano seguinte Nóbrega pôde realizar o plano longamente amadurecido de entabular pazes com os Tamoios, que navegando pela Bertioga traziam em contínuo sobressalto os moradores de Santo Amaro e de S. Vicente. Em companhia de José de Anchieta, jovem jesuíta vindo com d. Duarte da Costa, e já muito conhecedor da língua geral, embarcou para Iperoig, nas cercanias da hodierna Ubatuba, e depois de alguns meses de assistência dramática, em que mais de uma vez a vida de ambos correu perigo, lograram o almejado escopo (setembro de 63).

Desafrontado o sertão, desoprimida a marinha do Norte, o povo da capitania pôde auxiliar Estácio de Sá, mandado em 64 à conquista do Rio, dominado ainda pelos inimigos de aquém e além-mar, sem embargo da vitória recente.

Com os navios e gente levados da Bahia, com índios tomados no Espírito Santo, canoas e auxiliares colhidos em S. Vicente, Estácio começou a fundar a cidade de São Sebastião em 1 de março de 65.

Ao contrário de Villegaignon, estabeleceu-se em terra firme, logo à entrada da barra, com a frente para o levante. Juntamente com a cerca artilhada, começou as plantações, sem se fiar nos mantimentos que poderiam vir das capitanias. Mesmo assim curtiu bravas fomes. Multiplicaram ciladas e surpresas os índios do recôncavo; duas vezes o atacaram naus francesas reunidas aos Tamoios de Cabo Frio. O jovem herói resistiu durante dois anos; se não consumou avanços consideráveis, enfraqueceu bastante as forças dos aliados, de modo que à chegada do seu tio Mem de Sá, com fortes socorros, dois combates, um em Ibiraguaçu-mirim (morro da Glória?), outro na ilha de Paranapecu, mais tarde chamada do Governador, bastaram para tornar definitivo o domínio dos portugueses.

Tendo Estácio de Sá sucumbido às conseqüências de ferimentos recebidos em combate, o governador seu tio demorou mais de um ano na cidade, transferiu-a mais para dentro da baía, para o morro agora chamado do Castelo, que muniu de fossos, cercou de muros, enriqueceu de edifícios, como cumpria a uma cidade real (1567-1568). Ficou esta sendo a segunda capitania da coroa, conquanto pelos termos da carta de doação devesse pertencer a Martim Afonso.

Outras guerras houve por este tempo no Espírito Santo, em Porto Seguro, nos Ilhéus, na Bahia, cujos índios ficaram sujeitos desde Camamu até Itapecuru, distância de quarenta léguas.

Com a derrota dos naturais de Paraguaçu e Ilhéus destruiu-se o que poderíamos chamar uma marca da língua geral, e irromperam os Tapuias, até então sopeados. Ninguém lucrou com a substituição: «os Aimorés, homens robustos e feros, andam sempre pelo mato, no qual bastam quatro para destruir um grande exército», geme um contemporâneo. Só no século seguinte se remediou o mal.

Estes feitos bélicos não constituem todo o governo de Mem de Sá, homem da toga, desembargador da casa da Suplicação. Entre todos seus serviços sobreleva o auxílio prestado a Nóbrega para realizar a obra das missões.

Esgotaria todos os préstimos dos Brasis fornecerem matéria prima para a mestiçagem e para os trabalhos servis, meras máquinas de prazer bastardo e de labuta incomportável? Se não com palavras, isto afirmavam os colonos de modo menos ambíguo por atos repetidos em pertinácia invariável. Ora, os jesuítas representavam outra concepção da natureza humana. Racional como os outros homens, o indígena aparecia-lhes educável. Na tábua rasa das inteligências infantis podia-se imprimir todo o bem; aos adultos e velhos seria difícil acepilhar, poderiam, porém, aparar-se arestas, afastando as bebedeiras, causa de tantas desordens, proibindo-lhes comerem carne humana, de significação ritual repugnante aos ocidentais, impondo quanto possível a monoginia, começo de família menos lábil. Para tanto cumpria amparar a pobre gente das violências dos colonos, acenar-lhe com compensações reais pela cerceadura de maus hábitos inveterados, fazer-se respeitar e obedecer, tratar da alimentação, do vestuário, da saúde, do corpo enfim, para dar tempo a formar-se um ponto de cristalização no amorfo da alma selvagem. Tal a idéia de Nóbrega, representada essencialmente pela Companhia de Jesus nos séculos de sua fecunda e tormentosa existência no Brasil. Já o tentara em Piratininga; podia agir com mais eficácia agora, escudado pelo governador-geral.

As primeiras missões estabelecidas à roda da baía de Todos-os-Santos ficavam em ponto cuidadosamente escolhido, perto do mar para os índios se poderem manter com suas pescarias, e perto das matas para poderem fazer seus mantimentos; reuniam-se numa várias aldeias, sujeitas a um só chefe ou meirinho, reconhecido pelos padres como o mais capaz de colaborar nesta obra de depuramento, e nela residiam um padre e um irmão, que a tudo superintendiam. A vida nas missões resume-a assim um jesuíta contemporâneo: «Ensinam-lhes os padres todos os dias pela manhã a doutrina, esta geral, e lhes dizem missa, para os que a quiserem ouvir antes de irem para suas roças; depois disso ficam os meninos na escola, onde aprendem a ler e escrever, contar e outros bons costumes, pertencentes à polícia cristã; à tarde tem outra doutrina particular a gente que toma a Santíssimo Sacramento. Cada dia vão os padres visitar os enfermos com alguns índios deputados para isso; e se têm algumas necessidades particulares lhes acodem a elas; sempre lhe ministram os sacramentos necessários... O castigo que os índios têm é dado por seus meirinhos feitos pelos governadores e não há mais que quando fazem alguns delitos, o meirinho os manda meter em um tronco um dia ou dois, como ele quer; não tem correntes nem outros ferros da justiça... Os padres incitam sempre aos índios que façam sempre suas roças e mais mantimentos, para que, se for necessário, ajudem com eles aos portugueses por seu resgate, como é verdade que muitos portugueses comem das aldeias, por onde se pode dizer que os padres da Companhia são pais dos índios, assim das almas como dos corpos».

Começada em 58, a obra das missões tomou um desenvolvimento rápido nos anos seguintes, principalmente no provincialato de Luís da Grã. Com a mesma rapidez decaíu, sobretudo em conseqüência do fato, misterioso e até agora inexplicável, que condena ao desaparecimento os povos naturais postos em contacto com os povos civilizados. Nem por isso foi abandonada a empresa que com vário sucesso aturou até meados do século XVIII.

Em Pernambuco acelerava-se por esse tempo o movimento para a fronteira meridional no rio S. Francisco. Durante a menoridade de Duarte de Albuquerque Coelho (1554-1560), seu tio Jerônimo de Albuquerque franqueou a vargem do Capibaribe. O jovem donatário e Jorge, seu irmão, vindo de Portugal para o Brasil, conquistaram as terras do cabo de Santo Agostinho e as de Serinhaém. Nas do cabo fundou oito engenhos João Pais Barreto, tronco de família numerosa ainda existente. Seguiram-se guerras pelo interior a pretexto de minas, mas realmente inspiradas pelo desejo de cativar escravos. Nelas figurou Antônio de Gouveia, clérigo epiléptico, sujeito a visões, que pretendia conversar familiarmente com o diabo, em nem um lugar podia estar sossegado, a ponto de fugir até das prisões do Santo Ofício, e era tido e tinha-se por nigromántico. Dava-se por entendido em minas esta sinistra ave de arribação, lembrada na imaginação popular com o nome de Padre do Ouro. Por sua causa diz-se que Duarte de Albuquerque Coelho foi preso para o Reino. Antônio de Salema veio a Pernambuco abrir devassa com alçada sobre este e outros negócios.

Com a morte de Mem de Sá, em março de 72, pareceu conveniente dividir o Brasil em dois governos, sujeitos às cidades reais do Salvador e de S. Sebastião.

Luís de Brito de Almeida pretendeu passar além do rio Real e incorporar Sergipe. Já os Jesuítas tinham preparado o terreno para a penetração pacífica por meio de missões, mas a cobiça dos colonos e as manhas de alguns mamalucos tudo arruinaram.

No Rio, Antônio Salema, auxiliado pelo capitão-mor de S. Vicente, deu guerra aos índios de Cabo Frio e pacificou o território entre a cidade de S. Sebastião e Macaé, distância de trinta léguas na estima do tempo. Foram mortos muitos dos Tamoios, escravizados não poucos, e alguns incorporados aos aldeamentos jesuíticos. Quem pôde emigrou para o sertão. Os franceses desta feita receberam um golpe de que não puderam mais recobrar inteiramente.

Apareceram várias tentativas de procurar pedras preciosas, principalmente na Bahia ao Espírito Santo. Sebastião Tourinho e outros varam a serra do Espinhaço, em busca de esmeraldas. Em S. Vicente ocupa-se Brás Cubas na pesquisa de minas. Nada produziram de sólido tais esforços. Mais importante que eles é o desaparecimento dos índios, trazendo como conseqüência o aumento da importação africana.

«A gente que de vinte anos a esta parte[1583] é gastada nesta Bahia, parece cousa que se não pode crer; porque nunca ninguém cuidou que tanta gente se gastasse nunca, quanto mais em tão pouco tempo», escreve um jesuíta. «Porque nas quatorze aldeias que os padres tiveram se juntaram 40.000 almas, estas por conta e ainda passaram delas, com a gente com que depois se forneceram, das quais se agora as três igrejas que ha tiveram 3.500 almas será muita.

Há seis anos que um homem honrado desta cidade e de boa consciência e oficial da câmara que então era, disse que eram descidos do sertão de Arabó naqueles dois anos atrás 20.000 almas por conta, e estes todos vieram para a fazenda dos portugueses. Estas 20.000 com as 40.000 das igrejas fazem 60.000. De seis anos a esta parte sempre os portugueses desceram gente para suas fazendas, quem trazia 2.000 almas, quem 3.000, outros mais, outros menos. Veja-se de dois anos a esta parte o que isto podia somar, se chegam ou passam de 80.000 almas.

Vão ver agora os engenhos e fazendas da Bahia, achá-los-ão cheios de negros de Guiné e mui poucos da terra, e se perguntarem por tanta gente, dirão que morreu. Donde bem se mostra o grande castigo de Deus dado por tantos insultos como são feitos e se fazem a estes índios, porque os portugueses vão ao sertão e enganam a esta gente, dizendo-lhes que se venham com eles para o mar e que estarão em suas aldeias como lá estão em sua terra e que seriam seus vizinhos. Os índios crendo que é verdade vêm-se com eles e os portugueses por se os índios não arrependerem lhes desmancham logo todas as suas roças e assim os trazem, e chegando ao mar os repartem entre si, uns levam as mulheres, outros os maridos, outros os filhos e os vendem».

Por que insistiam os colonos em apossar-se de uma fazenda, cuja pouca valia a cada passo se devia patentear de modo menos inequívoco?

Já sofriam de um achaque ainda hoje observado a todos os momentos entre seus descendentes: a incapacidade de formar convicção firme sobre um assunto e por ela pautar seus atos. Acresce que os escravos indígenas com todos esses percalços, auxiliavam extraordinariamente aos que começaram a vida nestas terras... E a primeira coisa que pretendem adquirir são escravos, para neles lhes fazerem suas fazendas, informa Gandavo; e se uma pessoa chega na terra a alcançar dois pares, ou meia dúzia deles (ainda que outra cousa não tenha de seu) logo tem remédio para poder honradamente sustentar sua família: porque um lhe pesca, e outro lhe caça, os outros lhe cultivam e grangeiam suas roças e desta maneira não fazem os homens despesa em mantimentos nem com eles, nem com suas pessoas.

Franceses e espanhóis

Em 1580 extinguiu-se a dinastia de Avis. Filipe II da Espanha, neto de d. Manuel, apoiando suas pretensões pelas armas, sucedeu a d. Henrique, e incorporou à casa de Habsburgo o trono português. Com Portugal cairam todas suas possessões sob o domínio espanhol.

Para o Brasil as primeiras conseqüências deste estado de cousas foram favoráveis. Os limites naturais da colônia indicaram-nos o Amazonas e o Prata. De ambos separavam o povoado distâncias sempre enormes. Agora, se as distâncias persistiam as mesmas, podia-se em compensação concentrar os esforços num só sentido, em vez de dissipá-los por ambos. Esperaria o Prata, já ocupado em parte; urgia senhorear o Amazonas, ainda não investido, mas já cobiçado por diversas nações. Assim, caminho do Prata o trabalho reduziu-se a mera consolidação, ao estreitamento de malhas; para o Amazonas a expansão colonizadora moveu-se acelerada. Por isso, preferindo a ordem cronológica para a expansão amazônica, seguiremos a ordem geográfica no outro extremo.

Vindo do sul, encontrava-se a Cananéia habitada por gente ida da capitania de São Vicente, que também procurava recôncavo de angra dos Reis, e já se comunicava com a cidade de São Sebastião, pela baixada de Santa Cruz, onde os jesuítas começavam uma fazenda famosa. Nas terras do Cabo Frio os franceses continuavam a freqüentar, naturalmente menos a miúdo e com menor proveito.

Por fim, Constantino Menelau, depois de vencê-los, obstruiu o porto, e Estevão Gomes estabeleceu uma pequena fortaleza. Flagelados pelas bexigas, os Guaitacás aproximaram-se dos brancos que os poderiam socorrer. Para a conciliação muito contribuiu o jesuíta Domingos Rodrigues.

Este mesmo Domingos Rodrigues, mais tarde egresso da Companhia de Jesus, em Ilheus, Álvaro Rodrigues Adôrno, na Cachoeira, levaram a bom termo a pacificação dos Aimorés. Por este modo desde o Rio até a cidade do Salvador cessaram temporariamente suas devastações os tão temidos Tapuias do litoral, que só reaparecem pelos meados do século.

Ao Norte da Bahia apresenta-se como mais notável o fato da conquista de Sergipe. Desde os últimos tempos de Mem de Sá a empresa afigurara-se fácil, pois não cessavam mensagens pedindo aos padres da Companhia que fossem até lá levar a boa nova. Com os dois jesuítas mandados a este fim partiram os soldados e mamalucos, ávidos de escravos, que plantaram a sizania entre os Tupinambás, e alienaram sua confiança. Todas as desconfianças confirmou o governador Luís de Brito de Almeida no ano de 74, fazendo guerra implacável aos índios, aprisionando uns, afugentando outros, devastando aquelas comarcas, por simples desfastio destruidor, poderia crer-se; pois durante cerca de dois decênios quedou estacionária a obra colonizadora.

Em fins de 89, Cristóvão de Barros, governador interino por morte de Manuel Teles Barreto, repetiu de novo a tentativa, com melhor êxito. Parte da força seguiu por mar, parte por terra, e reunidos deram em várias cercas dos naturais, que foram derrotados.

Acossando estes, penetraram alguns aventureiros até o rio S. Francisco. No território devoluto Cristóvão de Barros separou uma enorme sesmaria para o filho; esta serviu de craveira para outras, e dentro em pouco não havia mais o que distribuir. Com esta campanha os franceses perderam as antigas ligações no rio Real.

Na capitania de Duarte Coelho continuou o movimento para o rio S. Francisco. Fazendas de gado ou canaviais avançaram pelo território das Alagoas. Entre os povoadores desta região avulta o alemão Lins, que deixou larga descendência, e João Pais, de quem já se falou. Também daqui os franceses tiveram de retirar-se.

Nos primeiros anos do século 17, podia-se viajar e viajava-se efetivamente por terra da Bahia até Pernambuco sem encontrar resistência séria por parte dos naturais, vencidos ou afugentados da marinha. O único obstáculo ao livre trânsito apresentava a passagem dos rios maiores, direito real, como já vimos. Os rios menores eram passados nos vaus, e assim continuaram nos séculos seguintes; pelos vaus pode-se traçar a borda da primitiva ocupação litorânea.

Vejamos agora a marcha para o Amazonas.

Longo tempo estacionara o povoamento na ilha de Itamaracá e no continente fronteiro. Os Petiguares da serra entretinham boas relações com os colonos, que visitavam pacificamente as aldeias; os da praia, sempre amigos dos franceses, faziam com estes bons negócios na Paraíba, onde não os perturbavam os portugueses, contentes com breves excursões à procura de âmbar, abundante por aquelas plagas até o Ceará, e com o pau-brasil trazido do interior pelos próprios índios.

Em 74, por causa de uma cunhã do sertão, desaveio-se a gente deste com a da Goiana, e começam as hostilidades. Foram assaltados e queimados dois engenhos, e com esta fácil vitória mais se assanharam as paixões dos assaltantes. A guerra levianamente provocada havia de durar vinte e cinco anos.

A mandado de Luís de Brito, o ouvidor-geral, Fernão da Silva, partiu para a Paraíba, afugentou a indiana com simples presença, lavrou autos que ficaram só no papel. Frutuoso Barbosa, homem de fortunas, ofereceu-se à metrópole para ultimar a conquista se lhe concedessem certas mercês. Com elas chegou em 80 a Pernambuco, mas nada logrou fazer, porque um temporal atirou-o para as Antilhas e de lá à Europa. Da segunda vez não se animou a tentar estabelecimento algum; limitou-se a queimar navios franceses.

Em 83 aportou à Bahia Diogo Flores Valdez, vindo de uma viagem malograda ao estreito de Magalhães. Ao governador insinuou-se como capaz desta conquista, e na monção seguinte partiu com uma armada espanhola e algumas embarcações portuguesas para Pernambuco. Organizou-se ao Recife uma expedição marítima e outra terrestre. Por mar, Diogo Flores chegou sem embaraço a seu destino, queimou alguns navios franceses carregados de pau-brasil, fundou um forte, nele deixou uma guarnição de compatriotas seus; a gente ida por terra saiu vitoriosa de vários reencontros e fundou um povoado, a cidade Filipéia, como a chamou Frutuoso Barbosa, em honra do dinasta reinante. O castelhano Castejón ficou por alcaide do forte, e Frutuoso Barbosa tomou conta da cidade.

Amassaram-se mal o chefe civil e o chefe militar; a discórdia lavrou entre castelhanos e portugueses. Os Petiguares, aterrados pelos primeiros embates, voltaram logo em chusmas densas e mais arrogantes. Guiavam-nos franceses dos diversos navios queimados, sedentos de vingança, cônscios da importância capital desta partida, em que se disputavam terrenos de seu domínio exclusivo durante tantos anos.

Castejón portou-se com bravura; socorros de Pernambuco expedidos por Martim Leitão, ouvidor-geral, nunca lhe faltaram. O próprio ouvidor-geral lá foi, em março de 86, com quinhentos homens brancos e muitos índios em sua companhia. Mas os índios e os franceses continuavam cada vez mais afoitos e mais ardentes. Desanimado, Frutuoso Barbosa desistiu de seus direitos e retirou-se para Olinda. Castejón resistiu até junho; ao retirar-se tocou fogo no forte, quebrou o sino, meteu a pique um navio, lançou a artilharia ao mar. Ficava aniquilado todo o trabalho.

Anos antes, aventureiros pernambucanos, guerreando no rio S. Francisco, houveram-se tão aleivosamente com os Tabajaras, os antigos e fiéis aliados desde o tempo de Duarte Coelho, que estes o mataram a todos, fugiram dos lugares nefastos, e por uma das gargantas da Borborema procuraram a terra da Paraíba para combater os brancos, aliando-se embora aos Petiguares, seus inimigos hereditários e irreconciliáveis da língua geral. Martim Leitão, quando saiu de Olinda em auxílio de Castejón, reconheceu-os e entabulou negociações, esperando trazê-los à antiga amizade. Os Tabajaras não se deixaram requestar e prepararam-se para o combate: traiu-os a sorte, apesar da valentia de Braço de Peixe e Assento de Pássaro, os dois chefes tupiniquins.

Esta derrota despertou o ódio avito dos Tupinambás que se tornaram contra os novos aliados, malsinando-os de covardes, tratando-os de traidores, obrigando-os a tornarem às terras donde vieram. Soube-o Martim Leitão, e mandou emissários a Piragibá, prometeu o esquecimento das injúrias recentes, anunciou auxílios prontos, instou por sua permanência, renovando as antigas pazes. Cedeu o Braço de Peixe; com a intervenção de João Tavares, escrivão de órfãos de Olinda, passaram os Tabajaras a combater ao lados dos portugueses.

Em agosto 5, dia de Nossa Senhora das Neves, João Tavares recomeçou a obra aniquilada pela defecção de Castejón, auxiliada agora pela gente de Braço de Peixe e Assento de Pássaro, mas perturbada sempre pelos Petiguares e pelos franceses. Mais duas vezes tornou Martim Leitão à Paraíba. Sua ação sempre fecunda e prestigiosa pode resumir-se em poucas palavras: queimou navios, queimou pau-brasil já cortado, queimou aldeias, arrancou plantações, inutilizou mantimentos na baía da Traição, na serra de Copaoba, no Tijucopapo.

Em maio de 87, Martim Leitão considerou terminada sua missão, e voltou para Pernambuco, depois de lançar os alicerces para um engenho real. Enganava-se, porém; prosseguiram constantes as guerras durante mais de dez anos, no sertão, no litoral com as naus francesas, que chegaram a cercar a fortaleza do Cabedelo, com os Petiguares, a quem a presença dos franceses, privados de ir para sua terra pela queima das naus que os deviam conduzir, comunicaram uma audácia e uma persistência bem alheias à índole indígena. Destes incidentes ignoramos a história; a crônica apenas guarda os nomes de Pero Lopes, Feliciano Coelho, Pero Coelho, talvez Ambrósio Fernandes Brandão, o autor possível dos Diálogos das Grandezas do Brasil. Do lado dos franceses a tradição lembra Rifault, cujos feitos não podem aliás ser precisados á falta de documentos.

Tantos anos agitados e tão desesperada resistência patentearam a urgência de ocupar o rio Grande onde os inimigos perenemente se refaziam. De lá sairam uma vez treze navios para tomar Cabedelo e o combate durara de uma sexta a uma segunda-feira. Em suas águas chegaram a se reunir vinte navios procedentes de França. Muitos franceses mestiçaram com as mulheres indígenas, muitos filhos de cunhãs se encontravam já de cabelo louro: ainda hoje resta um vestígio da ascendência e da persistência dos antigos rivais dos portugueses na cabeleira de gente encontrada naquela e nos vizinhos sertões de Paraíba e Ceará.

A expedição ao rio Grande, concebida no governo de d. Francisco de Sousa, aparelhada de recursos abundantes, dirigida desde Pernambuco por Manuel de Mascaranhas Homem, lugar-tenente do donatário, e Alexandre de Moura, que devia suceder no mando, repartiu-se por terra e por mar. A divisão marítima, comandada por Manuel de Mascaranhas, a quem se agregou Jerônimo de Albuquerque, chegou felizmente a seu destino em janeiro de 98. Parte da divisão terrestre, encabeçada por Feliciano Coelho, capitão-mor da Paraíba, venceu a resistência dos inimigos, mas dissolveu-se ante uma epidemia de bexigas. A praga passou também ao inimigo, e serviu para dar folgas a Manuel de Mascaranhas, aliás acometido mais de uma vez no forte que começara.

Em março, Feliciano Coelho outra vez marchou para o rio Grande, depois de reunir as suas forças, reduzidas agora à metade pela doença e pela retirada do contigente de Pernambuco. Com este reforço, Manuel de Mascaranhas concluiu o forte dos Reis Magos, e entregou-o a Jerônimo de Albuquerque, nomeado para comandá-lo. À sua sombra medrou o que é hoje a cidade de Natal. Na volta, Mascaranhas e Coelho afastaram-se da costa e fizeram novas devastações entre a indiada do sertão.

Nas veias de Jerônimo de Albuquerque circulava sangue petiguar de sua mãe, Maria do Arco-Verde, e disto não se envergonhava, antes o vemos em mais de uma conjuntura proclamando a sua extração. Assim devia sorrir-lhe a idéia de conciliar os parentes, reduzidos aos últimos apuros por tantos trabalhos e tão continuada perseguição, e agora forçosamente abandonados pelo franceses. A um índio aprisionado, principal e feiticeiro, incumbiu esta missão, depois de bem instruí-lo no que devia dizer. O pensamento humanitário foi coroado do melhor êxito, graças sobretudo às mulheres que, informa um contemporâneo, enfadadas de andarem com o fato continuamente às costas, fugindo pelos matos sem poder gozar de suas casas, nem dos legumes que plantavam, traziam os maridos ameaçados que se haviam de ir para os brancos, porque antes queriam ser suas cativas que viver em tantos receios de contínuas guerras e rebates. Por ordem de d. Francisco de Sousa as pazes foram juradas solenemente na Paraíba, a 15 de junho de 99. Serviu de intérprete frei Bernardino das Neves, filho de João Tavares, escrivão de órfãos de Olinda, já nosso conhecido. Deste ato resultou nascer e criar-se na amizade dos portugueses, Antônio Camarão, um dos heróis da luta contra Holanda.

A conquista do rio Grande tinha logrado afastar os franceses e desenganar os índios numa grande extensão de terreno; mas significava, mais que isto, o encurtamento da distância ao Maranhão e Amazonas. Desde os primeiros tempos do governador Diogo Botelho surge com força a idéia de consumar a obra, e trata-se de chegar às regiões onde a mão da natureza assentara os limites do país.

Obrigou-se a incorporar o Maranhão Pedro Coelho de Sousa, cunhado de Frutuoso Barbosa, que com séquito numeroso partiu da Paraíba e chegou ao Jaguaribe em 1603. Os índios daquela ribeira, a princípio esquivos, deixaram-se enlear pelas promessas dos intérpretes e todo o sáfio litoral cearense foi percorrido em paz. Só na serra de Ibiapaba, aliás seminário dos amigos Tabajaras, apareceu resistência, promovida por franceses. Venceu-a Pedro Coelho e desceu a serra em busca do rio Punará, ou Parnaíba, como é chamado hoje. Como sua gente não quisesse ir mais adiante teve que retroceder.

Tudo correra bem até aí, tudo começou logo a se danar. Pedro Coelho, na volta para o povoado, capturou os índios que pôde, indiferentemente, Tabajaras, velhos amigos, e Petiguares, aliados recentes. Quando, depois de os ter distribuído pela Paraíba e Pernambuco, novamente tornou ao Ceará, achou a situação insustentável e foi obrigado a retirar-se. Sua retirada lastimável balizaram cadáveres, vítimas dos areais candentes, da fome e da sede.

No provincialado de Fernão Cardim, governando d. Diogo de Menezes, dois jesuítas, Francisco Pinto e Luís Figueira, foram incumbidos de chegar ao Maranhão. Levaram em sua companhia para restituí-los à liberdade alguns dos índios capturados por Pedro Coelho e sua gente; com algum esforço venceram as desconfianças do gentio, atravessaram a serra do Uruburetama, e chegaram a Ibiapaba, bem acolhidos, apesar de tudo. Preparavam-se para prosseguir, quando uns Tapuaias assaltaram a aldeia em que assistiam, e mataram Francisco Pinto. Luís Figueira escapou e tornou para Pernambuco, onde anos mais tarde escreveu esta trágica odisséia em carta felizmente hoje salva da voragem do tempo.

Nem a expedição numerosa, aparelhada para a guerra, de Pedro Coelho, nem a missão pacífica dos jesuítas adiantara um passo à questão de avanço para a costa Leste-Oeste, destinada talvez a adiamento indefinido, se não interviesse Martim Soares Moreno. Chegara de Portugal em 1602, e Diogo de Campos, seu tio, sargento-mor de estado, o incorporou à primeira expedição de Pedro Coelho, para aprender a língua da terra e familiarizar-se com os costumes. Contava apenas dezoito anos. Realizou os desejos do tio de modo superior, e tão bem se houve entre os indígenas que Jacaúna, chefe petiguar, distinguiu-o da turba malfeitora e votou-lhe amor de pai. Nomeado tenente da fortaleza dos Reis-Magos, cultivou estas relações, mais de uma vez visitou o fiel amigo, sempre esperançado de dissipar as prevenções e rancores. Afinal o índio permitiu-lhe levar um filho à Bahia, apresentá-lo ao governador, d. Diogo de Meneses, e consentiu-lhe viesse estabelecer-se com dois soldados. Pôde assim lançar, junto ao minúsculo rio Ceará, os fundamentos de um forte, onde resistiu aos ataques da gente não sujeita a Jacaúna; com o auxílio deste tomou duas naus estrangeiras, nu e pintado de genipapo, à maneira de seus auxiliares. Aquele ponto, até ali conhecido como excelente aguada dos franceses, passou desde então a ser evitado.

No governo de Gaspar de Sousa projetou-se avançar mais para o Norte. Por sua ordem Jerônimo de Albuquerque partiu de Pernambuco com quatro barcos, em meados de 1613, nomeado capitão-mor da conquista do Maranhão, comandando cem homens brancos e muitos índios. Na passagem pelo Ceará levou consigo Martim Soares Moreno, como lhe fora permitido, e navegou até o Camocim, onde pretendeu fundar um forte. Por parecer pouco próprio este lugar, preferiu a enseada das Tartarugas, em Jererecuacara, onde deixou quarenta soldados num presídio; com o restante voltou por terra; os barcos mandou que costeassem como melhor pudessem e tornassem a Pernambuco.

Do Camocim expediu Martim Soares com vinte soldados ao Maranhão, a colher notícias que pudessem guiar no prosseguimento da conquista. Graças ao pequeno calado da lancha, Martim navegou muito pegado à terra, pôde entrar pela boca do Preá, e alcançou por águas interiores a baía hoje chamada de S. José.

O nome e a amizade de Jacaúna serviram-lhe neste lance arriscado. Os Tupinambás receberam-no com aparente afabilidade, mas preparavam-se para traí-lo, quando um deles descobriu-lhe a verdadeira situação. Havia um ano estavam aí franceses, com uma fortaleza artilhada de vinte peças, soldados, gente trazida em embarcações, sob o comando de Daniel de Latouche, senhor de la Ravardière. Ao mesmo tempo eram os franceses informados da presença do explorador português, e começavam a dar-lhe caça. Martim Soares escapou incólume com os seus e o índio amigo; o tempo, menos propício, atirou-o às costas da Venezuela, donde, por São Domingos, chegou a Sevilha em abril do ano seguinte, e tratou logo de mandar notícias para Pernambuco. Na mesma ocasião enviou com igual destino o piloto Sebastião Martins, mestre da lancha, que o acompanhara na peregrinação. Chegou no momento oportuno; Gaspar de Sousa tratava justamente de segunda e mais poderosa expedição para a nova conquista, e suas informações puderam ainda ser aproveitadas.

Ainda esta vez Jerônimo de Albuquerque serviu de capitão-mor. Diogo de Campos, sargento-mor, ia por colateral. Recomendou-lhes o governador as maiores cautelas, lembrava a fortificação de algum ponto além do fortim deixado no ano anterior, a plantação de legumes de rápido crescimento, e indicou a conveniência de, desde Tutóia, ir parte da força por terra, parte por mar.

Depois de receber alguns reforços na fortaleza do Ceará, os expedicionários prosseguiram viagem a 29 de setembro de 614, para o forte do Rosário, que meses antes provara forças com a gente de uma nau francesa destinada ao Maranhão. Feito o alarde da gente, apuraram-se 220 soldados portugueses, 60 marítimos e 300 índios frecheiros. Deviam acampar em Tutóia? Confessaram-se os pilotos ignorantes daquele trecho da costa: Bastião Martins só conhecia a barra do Preá; para lá se encaminharam a 12 de outubro, e na noite de 13 se abalançaram por ela na maior confusão: «houve navios que iam tocando e dando grandes pancadas nos bancos ao entrar da barra, e, por não atemorizarem os que vinham de trás, calavam e paravam sem se ouvir uma palavra de rumor».

Iam a bordo moços impacientes e pouco disciplinados, ansiosos de medir-se com os franceses. Conseguiram do capitão-mor se prosseguisse levianamente pelo Preá a dentro, até avistar o inimigo. Era o melhor plano a executar, provou-o o resultado. Antes da viagem de Martim Soares Moreno, aquela entrada era desconhecida dos franceses; depois dela assentaram um forte ligeiro em Itapari; todo o esforço de Ravardière aplicara-se, porém, à defesa da baía de S. Marcos; nas suas fortificações depositavam-se a maior confiança. Claude 'Abbeville, missionário capuchinho, escrevia orgulhosamente: «C'est donc niaizerie de penser que l'on puisse desloger les François de ce lieu, lors qu'ils y seront bien establis: & le vouloir faire croire, outre que c'est trop raualler leur courage & faire trop peu d'estime de leur valeur & generosité, Si ce n'est une pure malice n'est-ce pas temerité? & que l'on en parle comme les aueugles des couleurs? Ceux qui ont veu la situation de cette Isle & qui connoissent par experience les difficultez de ses advenuës, n'aduoueront iamais telle proposition qui ne procede que d'vn esprit timide». O ataque pela baía de S. José, devido mais à casual fraqueza da lancha de Martim Soares, deitava por terra todos estes arreganhos.

A 26 de outubro chegaram os expedicionários ao porto, depois chamado de Guaxenduba; a 28, começaram no continente o forte de Santa Maria. Na ilha fronteira, logo muitos fogos pareceram indicar a transmissão de notícias. Vieram à fala alguns índios, esquivos apesar de todas atenções e carinhos de Jerônimo de Albuquerque; negavam em geral a assistência dos franceses; um, porém, natural de Pernambuco, denunciou ataque próximo. De fato, a 12 de novembro, no quarto da lua, deu o inimigo nas embarcações e tomou três.

A este seguiu-se outro de maior monta a 19. Os franceses desembarcaram duzentos infantes, mais de dois mil índios; como reserva ficou La Ravardière a bordo, acompanhado de cem soldados. Transportaram esta força cinqüenta e sete embarcações, das quais as três tomadas alguns dias antes, e cinqüenta canoas. Trataram de se entrincheirar e, para ganhar tempo, La Ravardière dirigiu uma carta ameaçadora a Jerônimo de Albuquerque. Sem dar-lhe resposta começaram os portugueses uma ofensiva desesperada, indo pela praia Diogo de Campos, Antônio e Albuquerque, filho do capitão-mor, e Jerônimo Fragoso; pelo monte Jerônimo de Albuquerque, Francisco de Frias e Manuel de Sousa de Sá.

Dos franceses, escreve este, morreram a espada e a arcabuzaços noventa e tantos, que logo ali ficaram, além dos que se afogaram fugindo para as embarcações, ao todo cento e sessenta; foram capturados nove; queimaram-se-lhes quarenta e seis canoas; tomaram-se ao todo duzentas armas de fogo, mosquetes e arcabuzes; dos selvagens averiguou-se depois que faltavam quatrocentos, a maior parte mortos afogados. De parte dos portugueses as perdas foram insignificantes.

A derrota quebrantou o ânimo de La Ravardière. Em vez de procurar desforrar-se logo, entabulou a 21 uma correspondência com Jerônimo de Albuquerque, concebida em termos duros, que foi abrandando gradualmente. Os portugueses achavam-se em situação difícil: o inimigo dominava as entradas com sua frota; socorros só poderiam vir pelo Preá, e o Preá só admitia vasos de pequeno calado. Apesar de tudo sua confiança mantinha-se inalterável: «somos homens que um punhado de farinha e um pedaço de cobra quando o há nos sustenta», escrevia Jerônimo de Albuquerque; «somos gente que não podemos nadar tanto mar quanto há daqui à Espanha; pelo que ainda que hoje tendes a barra, nós temos a terra que pisamos, a qual sempre será de nossos corpos até que Sua Majestade d'el-rei da Espanha, nosso senhor, cujo tudo é, outra coisa ordene», segundava mais difuso Diogo de Campos.

Da correspondência e das práticas nasceu a idéia de tréguas. As duas metrópoles estavam amigas e aliadas no velho mundo, por que se degladiariam neste? A 27, convencionou-se a suspensão das hostilidades até fim de dezembro de 615; nem os franceses iriam ao continente, nem os portugueses à ilha, e evitariam ambos entrar em contacto com os índios de uma e outra jurisdição; seriam permutados sem resgate os prisioneiros; ficaria o mar franco aos portugueses; socorro de gente de guerra não suspenderia o armistício; a nação obrigada a retirar-se teria três meses para os aprestos; dois representantes de cada beligerante iriam à corte de Madrid e à de Paris, saber de Suas Majestades Católica e Cristianíssima suas vontades sobre quem deveria ficar no Maranhão.

Depois disso o capitão-mor da conquista mandou Manuel de Sousa de Sá, num caravelão, a Pernambuco levar a notícia do sucedido ao governador geral. A nau Regente, que já se batera com a guarnição do Rosário, em Jererecuacara, partiu a 16 de dezembro, levando os emissário Du Prat e Gregório Fragoso para França. A 4 de janeiro de 1615 saiu para Portugal Diogo de Campos com Mathieu Maillart, numa caravela comprada a este por 500 cruzados; a 3 de março apresentava-se ao vice-rei d. Aleixo de Menezes. O sargento-mor aproveitou a travessia para escrever a Jornada de Maranhão.

Na corte foi acolhido com frieza o resultado da expedição, e a má vontade aumentou quando inesperadamente chegou Manuel de Sousa de Sá, enviado a Pernambuco mas levado pelos ventos e correntes às Indias ocidentais, donde lhe deram condução para a Europa. Conhecida a versão de Manuel de Sousa, diferente em pontos essenciais da de Diogo de Campos, aprestou-se para o Maranhão um patacho com munições, pólvoras e mais coisas necessárias, que em começos de junho passou pelo Ceará. Nele parece ter voltado Martim Soares, com o posto de sargento-mor, na ausência do tio. Falou-se em castigar este, mas prevaleceu o alvitre de mandá-lo com Sousa de Sá a Gaspar de Sousa, a quem com maior empenho se ordenou a ultimação da empresa.

Não se descuidara o governador. Em junho mandara Francisco Caldeira de Castelo Branco, antigo capitão-mor do Rio Grande, comandando uma armada composta de um patacho, duas caravelas e um caravelão grande, que chegou a Santa Maria de Guaxenduba em 1 de julho, fazendo a viagem por fora do Preá. La Ravardière foi, apesar da trégua, intimado a abandonar a terra, e, depois de relutar, cedeu em promessa; mas, porque rebentassem discórdias entre os dois chefes portugueses, foi-se deixando ficar, Jerônimo de Albuquerque transferiu-se para a ilha, onde fundou uma cerca e um forte, chamado de S. José. Provavelmente vem daí o nome atual desta baía.

Manuel de Sousa encontrou o governador geral em Pernambuco, e deu-lhe cartas e ordens. Sem demora Gaspar de Sousa aprestou nove navios, cinco dos quais grandes, com mais de novecentos homens, muito armamento e dinheiro, plantas e gado para povoarem a terra.

Conferiu o comando a Alexandre de Moura que, partindo a 5 de outubro do Recife, a 17 chegava ao Preá, onde breve se convenceu de não serem para aquele canal as suas embarcações. Cumpria navegar por fora, fazer sondagens, arrostar a baía de S. Marcos, as terríveis fortificações, inexpugnáveis no sentir de Abbeville. E não havia tempo a perder, pois a fortaleza de S. José se incendiara, e Jerônimo de Albuquerque, capitão-mor antes de nome que de fato, porque os portugueses achavam-se divididos em dois partidos dominados por ódios violentos, estava reduzido a pouca pólvora e às armas salvas do incêndio.

A 1 de novembro decidiu-se a investir a entrada de São Marcos; um patacho menor foi adiante, mostrando o caminho, e a armada surgiu fora do alcance da artilharia inimiga. Jerônimo de Albuquerque marchou por terra com forças; um posto foi guarnecido com oito peças de artilharia, cento e cinqüenta soldados, duzentos frecheiros; cem homens com seis peças guardariam a entrada da barra. A 3 foi intimado La Ravardière a entregar a colônia e a fortaleza, com toda a artilharia e munições existentes dentro e fora dela, com todos os navios grandes e pequenos, sem por tudo receber indenização alguma. Obrigava-se Alexandre de Moura a dar condução para a França; os franceses se obrigariam a partir apenas recebessem os navios e deixassem reféns. E este favor se lhe faz, concluía, pelas alianças que hoje há entre os senhores reis Católico e Cristianíssimo.

A fortaleza foi entregue; em duas naus sem artilharia, mandadas separadamente, partiram os franceses para a pátria; La Ravardière teve de acompanhar o vencedor a Pernambuco. Anos mais tarde andava em Lisboa, requerendo mercês e alegando serviços, por haver largado o Maranhão com a sua fortaleza e artilharia. Assim, o mesmo ano de 1615 assistiu à derrocada final dos franceses depois de quase um século de resistência: em Cabo Frio, por mão de Constantino Menelau, no Maranhão pelo antigo capitão-mor de Pernambuco.

Trazia Alexandre de Moura instruções para expulsar os franceses do Pará e ir até o Amazonas. Como no Pará não existisse estabelecimento francês e o Amazonas estivesse desocupado, mandou em seu lugar Francisco Caldeira de Castelo Branco com cento e cinqüenta homens, dez peças de artilharia e três embarcações. Além de colher outras vantagens, afastava do Maranhão um elemento perturbador. Em companhia de Castelo Branco seguiu um piloto francês, e o famoso Charles Desvaux «de quem ele, dito capitão-mor, deve fazer uma conta, com a cautela devida». Antônio Vicente Cochado foi como piloto.

Partiram no dia de Natal, correndo a costa, fazendo sondagens, dando fundo todas as noites, tomando as conhecenças da terra, numa extensão de cento e cinqüenta léguas. Entraram na barra pela ponta de Saparará, e seguiram por entre ilhas, bem acolhidos pelo gentio disposto em seu favor, graças à derrota dos franceses; muitos dos naturais usavam cabelo comprido e de longe pareciam mulheres; encontraram notícias imprecisas de flamengos e ingleses que freqüentavam aquelas regiões.

A 35 léguas do mar, na margem direita do Pará, Francisco Caldeira de Castelo Branco fundou a fortaleza, e chamou-a Presepe.

Estava dado o primeiro passo para a ocupação do Amazonas.

Agora um rápido lancear do país, aí pelos anos de 1618, quando escrevia autor do Diálogo das Grandezas do Brasil, e Fr. Vicente do Salvador preparava-se para redigir sua história.

Os estabelecimentos fundados por portugueses começavam no Pará quase sob o Equador e terminavam em Cananéia além do trópico. Entre uma e outra capitania havia longos espaços desertos, de dezenas de léguas de extensão. A população de língua européia cabia folgadamente em cinco algarismos.

A camada ínfima da população era formada por escravos, filhos da terra, africanos ou seus descendentes. Aqueles aparecem menos numerosos pela pouca densidade originária da população indígena, pelos grandes êxodos que os afastaram da costa, pelas constantes epidemias que os dizimaram, pelos embaraços, nem sempre inúteis, opostas ao seu escravizamento.

Acima deste rebanho sem terra e sem liberdade, seguiram-se os portugueses de nascimento ou de origem, sem terra, porém livres: feitores, mestres de açúcar, oficiais mecânicos, vivendo do seus salários ou do feitio de obras encomendadas; em geral o mecânico sabia vários ofícios, pois um só não garantia a subsistência, e ia trabalhar pelas fazendas quando a simplicidade das ferramentas o permitia ou os proprietários possuiam a ferramenta em casa.

Entre os proprietários rurais ocupavam lugar modesto os lavradores de mantimento e os criadores de gado: a criação avultava somente a uma e outra margem do baixo São Francisco: seu grande desenvolvimento se operou mais tarde, quando se separou da lavoura e invadiu os campos e as catingas do interior.

Coroava esta hierarquia o senhor de engenho. Havia engenhos movidos por água e por bois; servidos por carros ou por barcos; situados à beira-mar ou mais apartados, não muito, porque as dificuldades de comunicações apenas permitiam arcos de limitados raios. O engenho real devia possuir grandes canaviais, lenha abundante, boiada capaz ou barcos e barqueiros suficientes, escravatura, aparelhos diversos, moendas, cobres, fôrmas, casas de purgar, pessoal adestrado para o preparo do açúcar, pois a matéria prima passava por diversos processos antes de ser entregue ao consumo: alguns possuiam igreja, capelão melhor remunerado que os vigários, e às vezes incumbido de ensinar rudimentos de leitura à meninada. O senhor de engenho opulento remetia a safra diretamente para o Reino, e recebia o pagamento do além-mar em fazendas finas, vinhos, farinha de trigo, em suma, coisas de gozo ou de luxo.

A casa da gente rica representava uma economia autônoma: o nec est quod putes illum quidquam emere, omnia domi nascuntur, de Petrônio, não podia ser praticado ao pé da letra, mas correspondia até certo ponto à realidade. Para os escravos fiava-se e tecia-se a roupa; a roupa da família era feita no meio dela; da alimentação, fornecida por peixe de água doce ou salgada, mariscos apanhados nos mangues ou caça, estavam encarregados os escravos; a criação miúda de voláteis, ovelhas, cabritos e porcos evitava as surpresas de hóspedes da última hora: não havia açougues ou mercados: «as casas dos ricos (ainda que seja á custa alheia, pois muitos devem o que têm) andam providas de todo o necessário, pois têm escravos pescadores e caçadores, que lhes trazem a carne e o peixe, pipas de vinho e azeite que compram por junto, nas vilas muitas vezes se não acha isto de venda».

A mercatura representava-se por embarcadiços vindos do Reino com carregamentos que tratavam de liquidar, de modo a voltar no mesmo navio, ou de mascates que iam pelos lugares mais afastados, a vender miudezas. Nas transações dominava a permuta ou empréstimos de gêneros; transações a dinheiro não se conheciam ou eram raríssimas, e como ninguém sabia aproximadamente de suas posses, o endividamento era geral.

Na economia naturista, já foi observado, por um economista recente, nunca se produzem demais os gêneros consumidos em casa; se há superabundância de algum, guarda-se, dá-se ou deixa-se estragar; daí, a hospitalidade, as festas pantagruélicas e também o jogo. Talvez nas paradas achasse seu melhor emprego o pouco dinheiro girante; o resto ia em festas eclesiásticas ou profanas.

A ausência de capitais restringia muito as satisfações da vida coletiva: não havia fontes, nem pontes, nem estradas; se por alguma circunstância favorável, construía-se alguma, à falta de conservação estragava-se ou ficava de todo arruinada. Como não havia dinheiro, os impostos eram levados à praça, e o contratador pagava-se em gêneros. Só as casas de misericórdia eram até certo ponto devidas à ação incorporada. As sedes das capitanias, mesmo as mais prósperas, reduziam-se a meros lugarejos; a gente abastada possuía prédios nas vilas, mas só os ocupava no tempo das festas; a população permanente constava de funcionários, mecânicos, regulares ou gente de vida pouco edificante.

Ajunte-se a isto a natural desafeição pela terra, fácil de compreender se nos transportamos às condições dos primeiros colonos, abafados pela mata virgem, picados por insetos, envenenados por ofídios, expostos às feras, ameaçados pelos índios, indefesos contra os piratas, que começaram a surgir apenas souberam de alguma coisa digna de roubar. Mesmo se sobejassem meios, não havia pendor a meter mãos a obras destinadas aos vindouros; tratava-se de ganhar fortuna o mais depressa possível para ir desfrutá-la no além mar. Informa-nos Gandavo que os velhos acostumados ao país não queriam sair mais. Seriam estes seus primeiros entusiastas.

Desafeição igual à sentida pela terra nutriam entre si os diversos componentes da população.

Examinando superficialmente o povo, discriminaram-se logo três raças irredutíveis, oriunda cada qual de continente diverso, cuja aproximação nada favorecia. Tão pouco próprios a despertar simpatia e benevolência, antolhavam-se os mestiços, mesclados em proporção instável quanto à receita da pele e dosagem do sangue, medidas naqueles tempos, quando o fenômeno estranho e novo, em toda a energia do estado nascente, tendia a observação ao requinte e superexcitava os sentidos, medidas e pesadas com uma precisão de que não podemos mais formar idéia remota, nós afeitos ao fato consumado desde o berço, indiferentes às peles de qualquer aviação e às dinamizações do sangue em qualquer ordinal.

A desafeição entre as três raças e respectivos mestiços lavrava dentro de cada raça. O negro ladino e crioulo olhava com desprezo o parceiro boçal, alheio à língua dos senhores. O índio catequizado, reduzido e vestido, e o índio selvagem ainda livre e nu, mesmo quando pertencentes à mesma tribo, deviam sentir-se profundamente separados. O português vindo da terra, o reinol, julgava-se muito superior ao português nascido nestas paragens alongadas e bárbaras; o português nascido no Brasil, o mazombo, sentia e reconhecia sua inferioridade.

Em suma, dominavam forças dissolventes, centrífugas, no organismo social; apenas se percebiam as diferenças; não havia consciência de unidade, mas de multiplicidade. Só muito devagar foi cedendo esta dispersão geral, pelos meados do século XVII. Reinóis e mazombos, negros boçais e negros ladinos, mamalucos, mulatos, caboclos, caribocas, todas as denominações, enfim, sentiram-se mais próximos uns de outros, apesar de todas as diferenças flagrantes e irredutíveis, do que do invasor holandês: daí uma guerra começada em 1624, e levada ao fim, sem desfalecimentos, durante trinta anos. Em São Vicente, no Rio, na Bahia, e em outros lugares, por meios diferentes, chegou-se ao mesmo resultado.

Sobre o modo de administração de toda esta gente informa-nos a folha geral do estado, organizada em 1617.

Subiam todas as despesas públicas a cinqüenta e quatro contos, cento e trinta e oito mil, duzentos e noventa e oito réis, repartidos pelas quatro rubricas de igreja, justiça, milícia e fazenda.

Constituía todo o país uma só diocese; o Bispo assistia na Bahia com o Cabido; dois administradores, um para as capitanias do Norte e estabelecido na Paraíba, outra para as capitanias do Sul e residindo no Espírito Santo, seguiam-se em hierarquia; cada capitania formava uma freguesia, com seu vigário e coadjuntor, exceto a de S. Vicente, que contava as vigararias de Itanhaém, São Vicente, Santos e São Paulo; a de Espírito Santo, com as de Vitória e E. Santo; a da Bahia com as de Vila-Velha, Santo Amaro, S. Iago, Peruaçu, Paripe, Matoim, N. S. do Socorro, Sergipe do Conde, Taparica, Passé, Pirajá, Cotegipe, Tamari e Sergipe del Rei; a de Pernambuco com as de Olinda, São Pedro, Recife, S. Lourenço, Igaraçu, S. Antônio, Várzea, Moribeca, S. Amaro, Pojuca, Serinhaém e Porto Calvo; a de Itamaracá, com a da ilha e a da Goiana. A todo este pessoal o governo pagava ordenado e ordinária para a celebração do culto; para isso o rei arrecadava o dízimo, como grão-mestre da Ordem de Cristo.

Havia colégio de jesuítas, conventos Capuchos, Carmelitas ou Beneditinos na Bahia, Rio, Espírito Santo, Pernambuco, e todos recebiam auxílios sob diversas formas, em gêneros ou dinheiro. Quase todas as capitanias sustentavam casas de misericórdia, que o governo socorria.

À frente da justiça estava a Relação instalada na Bahia com um numeroso pessoal de desembargadores, ouvidor-geral, etc.; nas capitanias reais parece que a jurisdição de primeira instância cabia aos juízes ordinários, renovados anualmente; as dos donatários possuíam ouvidores que muitas vezes eram os próprios capitães-mores: pouco informa a este respeito a folha geral.

Encabeçava o corpo da fazenda o provedor-mor, estabelecido na capital, a quem estavam subordinados em cada capitania o provedor e escrivão da fazenda, o almoxarife e o porteiro das alfândegas.

Ao lado das capitanias de donatários, São Vicente, S. Amaro, Espírito Santo, Porto Seguro, Ilhéus, Pernambuco e Itamaracá, havia as capitanias reais do Rio, Bahia, Sergipe, Paraíba, Rio Grande, Ceará, Maranhão, Pará.

Chefe da milícia e em geral da administração era o Governador Geral com assento na Bahia. A milícia era representada pela tropa paga, e pelas ordenanças, espécie de guarda nacional.

E agora vistas as vantagens do domínio espanhol na eliminação completa dos franceses e na rapidez da marcha para o Amazonas, vejamos o reverso da medalha, nas guerras flamengas dele originadas.

Guerras flamengas

As relações entre Portugal e Flandres, iniciadas desde a idade média, continuaram ainda depois de descoberto o caminho marítimo das Índias e achado e colonizado o Brasil. Iam os flamengos a Lisboa adquirir as drogas e gêneros exóticos, apenas desembarcados, e retalhavam-nos pela vasta clientela do Norte e Ocidente da Europa, poupando canseiras e garantindo lucros imediatos aos portugueses; estes, além do dinheiro de contado, proviam-se, graças aos seus fiéis fregueses, de cereais, peixe salgado, objetos de metal, aparelhos náuticos, fazendas finas.

Modificou-se esta situação vantajosa para ambas as partes quando a monarquia espanhola abarcou a península inteira e os inimigos de Castela passaram a ser os de Portugal. Em 85, Filipe II mandou confiscar os navios flamengos ancorados em seus portos, aprisionando-lhes as tripulações. O mesmo se fez em 90, 95 e 99.

Dificilmente se conceberia mais terrível golpe contra um povo que do comércio marítimo auferia o melhor de suas riquezas, base de uma independência comprada a poder de sangue. Depois de tanto heroísmo teria de sujeitar-se ao domínio do Meio-Dia? Para escapar a estes apuros brotaram os mais desencontrados alvitres: procurar pelo Norte da Ásia outro caminho marítimo para a China e Índia; transferir a atividade comercial para o Mediterrâneo; apossar-se do estreito de Magalhães. Tudo isto se tentou, de tudo se tirou resultado negativo. Por que não se afrontaria o cabo da Boa Esperança, a buscar os gêneros do Oriente nos próprios lugares de sua procedência?

Em 95, mercadores de Amsterdam arriscaram a primeira viagem ao oceano Índico, viagem demorada, de pouco proveito imediato, mas fecundíssima em conseqüências, pois logrou a certeza da fragilidade do domínio peninsular naquelas regiões alongadas. Da mesma cidade partiram outros navios em maio de 98, terceira expedição em abril, quarta em dezembro de 99. Em várias províncias surgem negociantes arrojados, improvisam-se companhias opulentas, ávidas de despojos e aventuras no amplo teatro que agora se abria. A emulação salutar ameaçava degenerar em rivalidade perniciosa. Homens sagazes anteviram o perigo; intervieram os Estados Gerais, e por meio de concessões e privilégios conciliaram as pretensões divergentes, fundando a Companhia das Índias Orientais no começo de 1602.

A trégua de doze anos, assentada em 1609 entre os Países Baixos e a Espanha, em nada interrompeu a carreira aventurosa da Companhia, que com poucos anos de existência se impôs aos príncipes indígenas, repeliu os ingleses, derrocou a aparatosa fábrica luso-hispânica, monopolizou o trato das especiarias, distribuiu dividendos enormes, prestou serviços inestimáveis ao governo das Províncias Unidas.

Na constância do armistício sazonou a idéia de uma companhia das Índias ocidentais, análoga à outra nos intuitos e na organização, que obteve foral a 3 de junho de 1621. Seu capital seria de sete milhões, cento e tantos mil florins; o privilégio duraria vinte e quatro anos; constaria de cinco câmaras, representando os acionistas de Amsterdam, Zelândia, cidades do Maas, o distrito do Norte e a Frísia; os diretores, em número de dezenove, funcionariam alternadamente em Amsterdam e Middelburg. A esfera privilegiada seria, na África, do trópico de Câncer ao cabo da Boa Esperança; ao Ocidente, desde Terra-Nova, no Atlântico, até o estreito de Anian no Pacífico.

Os Estados Gerais concederam-lhe faculdade de construir fortes na região outorgada, contrair tratados com os príncipes e povos indígenas, nomear autoridades e funcionários; obrigaram-se a subvencioná-la, para ficar com direito a certa parte dos dividendos; forneceriam soldados e naus de guerra em condições especificadas. Em suma, deixando de parte diferenças patentes, a Companhia das Índias Ocidentais filiou-se ao sistema dos donatários iniciados por d. João III.

A Companhia deixou sinais de sua passagem no território africano, nas costas dos Estados Unidos, nas Antilhas, no Brasil, no Chile. A nós só importam os feitos ocorridos em nossa terra.

Sua criação foi acolhida com frieza na Holanda; ainda em 622 não estava subscrito um quinto sequer do capital que só ficou integralizado depois de obtidas vantagens suplementares, entre outras, o monopólio de exportação do sal brasileiro, em 1624.

Desde 623 começou a preparar uma expedição contra a Bahia. Vinte e três navios e três iates com quinhentas bocas de fogo, tripulados por mil e seiscentos marinheiros, foram aos poucos se reunindo em S. Vicente do Cabo-Verde nos fins deste e no começo do seguinte ano. A 26 de março partiram rumo de SW, a 4 de maio descobriram costa do Brasil, a 8 surgiram diante da baía de Todos-os-Santos e foram vistos de terra.

Governava a cidade do Salvador e o Brasil em geral Diogo de Mendonça Furtado. Tinham-lhe chegado notícias do perigo iminente e procurara prevenir-se.

Sobejavam-lhe coragem e boa vontade, faltava-lhe tudo o mais: as fortalezas já arruinadas umas, outras por acabar, a barra larga e franca, acessível sem prático às maiores embarcações a qualquer hora do dia e da noite, a guarnição reduzida e imbele, a população trépida, prestes a fugir mal avistava qualquer vela suspeita, não encerravam elementos de resistência eficaz. Acresciam dissenções entre o governador e o bispo e, como de costume, entre uma e outra metade do povo, sempre ávido de questões entre os potentados.

A 9 de maio a armada enfiou a barra e dirigiu o ataque por terra e por mar. Na ponta de S. Antônio, à entrada, desembarcaram mil e duzentos soldados e duzentos marinheiros: e à sua aproximação a força dos colonos postada retirou-se às carreiras, semeando o pânico. Dos fortes houve alguns disparos, alguns navios pareceram dispostos a resistir; quando o inimigo se aproximou, recorreu-se ao incêndio para evitar fossem cair-lhe às mãos os ricos carregamentos de açúcar, pau-brasil, fumo e peles. Mesmo assim, muitos foram salvos.

À noite, bispo, eclesiástico, os moradores que puderam abandonaram a cidade. Ao amanhecer, além de escravos e gente baixa sem nada a perder, encontravam-se apenas o governador e alguns fiéis na cidade deserta. Com facilidade os invasores prenderam-nos e mais tarde mandaram-nos para a Holanda. Os fugitivos acomodaram-se como puderam em engenhos próximos, aldeias de índios, debaixo de árvores, ao céu aberto. Quantas privações passaram e como foi difícil sustentar e conter esta multidão, pode-se bem imaginar. Ainda depois de reunidos em arraial e estabelecida certa ordem, a empresa nada tinha de fácil.

As vias de sucessão, então abertas, nomeavam para substituto do governador a Matias de Albuquerque Coelho. Estava em Pernambuco, capitania hereditária de seu irmão, em cujo nome governava, a mais de cem léguas de distância. Antes que recebesse a notícia e tomasse qualquer providência, perder-se-ia tempo, um tempo precioso. Elegeu-se, pois, capitão-mor interino o desembargador Antão de Mesquita; dentro em pouco, por motivos pouco conhecidos ainda, ficou sendo governador de fato o bispo dom Marcos Teixeira.

Uma só coisa havia a fazer com os recursos da terra: cercar o invasor dentro da cidade, impedindo que penetrasse pelas cercanias para renovar provisões, impossibilitando as adesões das classes baixas, indiferentes à mudança do senhor, pois o cativeiro prosseguiria invariável. A falta de armamentos apropriados, a escassez e por fim a carência completa de pólvora limitaram as operações à arma branca; à flecha, ao combate singular, à tocaia; as companhias de emboscadas, em número de trinta, composta cada uma de poucas dezenas de combatentes, pelo subitâneo da aparição nos lugares mais diversos, mantiveram o inimigo sobressaltado; a multiplicidade dos assaltos, quase sempre coroados de êxito, alimentava a coragem e fortaleceu o espírito patriótico.

Entretanto chegava a Pernambuco a notícia de ser tomada a cidade. Matias de Albuquerque, informa um contemporâneo, nem de dia, nem de noite, se poupava ao trabalho. Não quis nunca andar em rede, como no Brasil se costuma, senão a cavalo ou em barcos, e quando nestes entrava não se assentava, mas em pé ia ele próprio governando. Tinha grande memória e conhecimento dos homens, ainda que uma só vez os visse, e ainda dos navios que uma vez vinham àquele porto. Esta atividade fervorosa, unida a uma energia indomável, ver-se-á melhor no decurso da narrativa.

Por sua ordem partiu logo Francisco Nunes Marinho em dois caravelões, com pólvora, munições de fogo e de boca e trinta soldados. Trataram-no mal as tormentas; de vergas e mastros quebrados, arribou a Sergipe; mas já em começos de setembro juntava-se à gente do arraial. Sob o seu governo as guerrilhas avançaram para o interior da Bahia até Itapagipe, para o lado da barra até a ponta de Santo Antônio; novas e mais fortes trincheiras foram levantadas. Dois barcos, um no Itapoã, e outro no morro de S. Paulo, vigiavam o mar, avisando os navios portugueses que evitassem o porto, para não serem aprisionados como já o haviam sido outros.

Pequenos socorros do Reino iam chegando a Pernambuco e Matias de Albuquerque reforçava-os, e encaminhava-os sem perda de tempo. Graças a ele, d. Francisco de Moura, vindo com o título de capitão-mor do recôncavo, conduzindo três caravelas, partiu de Recife depois de demora de oito dias, levando seis caravelões, oitenta mil cruzados de provimentos novos. A 3 de dezembro troava a artilharia no acampamento, e os holandeses, curiosos da novidade, só então souberam como ao bispo, poucos dias antes de falecer, sucedera Francisco de Moura, antigo governador do Cabo Verde.

Na cidade conquistada as coisas corriam mal para o inimigo. Johannes van Dorth, governador pela Companhia, foi morto numa emboscada. Albert Schout, seu sucessor, tratou das fortificações, mas em festas e banquetes apanhou uma enfermidade, que em poucos dias o levou. Willem Schout, seu irmão, mostrou-se alheio às responsabilidades do cargo.

Contudo a situação poderia manter-se indefinidamente, máxime dominando o oceano a armada da Companhia; tratava-se de saber quem receberia primeiros socorros de além-mar. Por uma felicidade nunca mais repetida foram os nossos. A corte espanhola, geralmente desatenta e inerte, desta vez sentiu a gravidade do golpe; o rei, ou antes Olivares, seu ministro onipotente, percebeu a ameaça implícita contra o México e o Peru; cartas régias do próprio punho, procissões, novenas, excitaram o espírito público; a nobreza da Espanha e a de Portugal alistaram-se com entusiasmo na cruzada contra o hereje rebelde; fidalgos e prelados fizeram largos donativos, fretaram navios, custearam companhias; as armadas de Portugal, do Oceano, do Estreito, de Biscaia, das Quatro-Vilas, de Nápoles, somaram cinqüenta e dois navios de guerra; mais de doze mil homens d'armas embarcaram para o Novo Mundo. Comandante geral de todas as forças era d. Fadrique de Toledo.

A armada chegou à Bahia sábado da aleluia, 29 de março de 1625, no mesmo dia que aí aportara Tomé de Sousa, o fundador da cidade, setenta e seis anos antes. Formou em meia-lua, da ponta de Santo Antônio à de Itapagipe, fechando a saída aos navios holandeses ancorados.

A tropa desembarcou em Santo Antônio e tomou logo posição em São Bento, Palmeiras, Carmo e outros morros. A 2 de abril travou-se o primeiro combate, seguido de outros. O cerco apertou-se por terra e por mar. Os sitiados foram obrigados a render-se. A 30 de abril assinava-se a capitulação. A 1 de maio abriram-se as portas e entrou o exército vencedor. A 26 apareceu na barra o socorro holandês, trinta e quatro naus, comandadas por Boudewiyn Hendrikszoon. Ambas as armadas evitaram porém travar novos combates e os holandeses foram piratear em outras regiões mais indefesas.

Nos anos seguintes a Companhia mandou diversos navios que estiveram no Brasil e em outras partes da África e da América, devastando e saqueando. Seu triunfo mais completo foi a tomada da frota espanhola, junto à costa de Cuba, por Pieter Heyn, em setembro de 1628. De uma só vez entraram-lhe para os cofres mais de quatorze milhões, o duplo do capital inicial; os dividendos subiram a 50%. Com as finanças restauradas, preparou nova expedição ao Brasil; agora preferiu Pernambuco para ponto de investida.

A 26 de dezembro de 629 zarpou de S. Vicente uma armada de cinqüenta e dois navios e iates, e treze chalupas, poderosamente artilhados, com três mil setecentos e oitenta marinheiros, três mil e quinhentos soldados; a 3 de fevereiro de 630 avistou o Brasil; a 13 chegou em frente a Olinda; no dia seguinte abriu o ataque.

Comandava a capitania Matias de Albuquerque, neto do velho Duarte Coelho, irmão do quarto donatário. Com as notícias da próxima invasão, partira de Lisboa a 12 de agosto de 629, trazendo vinte e sete soldados e alguma munição em uma caravela. Chegou ao Recife a 18 de outubro, e entregou-se com todo o devotamento à obra desesperada.

As fortalezas estavam arruinadas como na Bahia. Se a barra do Recife não oferecia as comodidades da baía de Todos-os-Santos e não custaria cegá-la, em compensação dava fácil desembarque desde Pau-Amarelo ao Norte, até Candelária ao Sul, na extensão de sete léguas. Poder-se-ia ao menos contar com o sangue frio da população?

O inimigo dividiu a ofensiva por três pontos. O grosso da armada, comandada pelo almirante Loncq, investiu a barra, e estacou por achá-la obstruída. Outro troço dirigiu-se diretamente para Olinda. Com três mil homens o coronel Diedrich van Weerdenburgh aproou primeiro para o rio Tapado, depois para o Pau-Amarelo, mais ao Norte, onde desembarcou na tarde de 15 de fevereiro. Na manhã seguinte, formado em três colunas, marchou para o Sul; as pequenas resistências esporádicas da nossa gente cederam à tropa numerosa e às embarcações de que saltara, que navegavam a pequena distância, apoiando-lhes os movimentos.

À entrada da vila alguns militares sacrificaram-se nobremente. O troço da armada mandado de véspera contra ela apossou-se das trincheiras da praia. Quando anoiteceu, o pavilhão batavo flutuava sobre a antiga Marim.

A população abandonou a vila e procurou abrigo nos matos e nos engenhos. A soldadesca invasora entregou-se ao saque e à embriaguez. Matias de Albuquerque mandou tocar fogo nos navios e nos armazéns para ao menos arrancar das garras da Companhia o fruto do trabalho amargamente suado. A povoação de Recife, iluminada pelos clarões de incêndio, converteu-se um montão de ruínas. Defendiam-na ainda dois fortes: um no istmo que vai para Olinda, outro no próprio recife. Reforçou-os o general com gente e munições, e mais de um ataque foi repelido com vantagem; mas a 2 de março o de S. Jorge, velho, capaz só de resistir a ataques de índios, capitulou, e o de São Francisco da barra seguiu-lhe o exemplo. Só então a armada holandesa entrou no porto.

Durante este tempo Matias de Albuquerque trazia sempre inquieto o inimigo. Entregue aos próprios recursos não lograria desalojá-lo, mas tirava-lhe o sossego, diminuia-lhe a confiança, reduzia-lhe o número, impedia-lhe as comunicações com a gente da terra e nesta substituía o soçobro do primeiro momento pelo desejo de lutar e desprezo de morrer: a dominação holandesa era um fato; não era, nunca seria um fato consumado.

A 4 de março o general escolheu uma eminência quase a uma légua do Recife e de Olinda, próximo do rio Capibaribe e ainda mais do riacho Parnamirim, ponto de boa água e lenha. Com vinte pessoas começou a fortificação, plantando quatro peças. Deu à obra o nome de arraial do Bom-Jesus. Pouco a pouco foram chegando aderentes: aventureiros, senhores de engenho sós ou seguidos de escravos, índios aldeados. Entre estes entra logo a aparecer com um brilho que irá sempre crescendo Antônio Camarão, chefe petiguar de vinte e oito anos de idade, o mais fiel e preciso dos auxiliares. Dez dias mais tarde o arraial já repelia com grandes perdas um assalto do inimigo. Será esta a sua história perene durante os cinco anos seguintes.

Como contar os sucessos desta guerra sem precedentes? Os conflitos feriam-se diários, houve dias de mais de um. Holandeses que procuravam faxina ou frutos, destacamentos que pelo istmo saíam de um para outro ponto, caíam em emboscadas que surdiam a cada passo. Trincheiras tomadas a peito descoberto, socorros mandados por terra aos pontos mais afastados, em concorrência com os navios e não raro vencendo-os na rapidez; passagens de rios no momento da maré, para atacar o centro das fortificações inimigas; fome, nudez, falta de pólvora, de médicos e botica, tudo isso de tão comum passava despercebido. Estando, havia quase dois anos, assente na vila de Olinda e povoação do Recife, ainda o invasor não podia, nem o deixava nosso general por si e seus capitães, colher uma só vaca, informa Duarte de Albuquerque. E acrescenta: «Solamente comian de lo que les embiava Olanda; com que bien licitamente se puede decir que sobre estar de tanto tiempo em tierra, aun navegavan, pues no tenian otros bastimentos mas de los salados».

As notícias transmitidas à península não provocaram o alvoroço da tomada da Bahia. Vieram socorros em pequena quantidade, a grandes intervalos e nem sempre aproveitáveis, porque a Companhia dominava no mar, e ora se apossava das caravelas mandadas para Pernambuco, ora as obrigava a vararem em terra, perdendo os carregamentos ou deixando-os a grande distância dos lugares onde faziam falta. Encapava-se esta desídia na corte sob um profundo maquiavelismo: a melhor guerra contra a Companhia das Índias Ocidentais, alegavam estes calculistas insondáveis, consistiam obrigá-la a despesas que com o tempo arrastariam seu descalabro econômico!

Só em 631 partiu de Lisboa o famoso d. Antônio de Oquendo com uma armada de vinte navios, a 5 de maio. Trazia socorros para Paraíba, Pernambuco e Bahia, e na volta deveria comboiar as embarcações carregadas de açúcar para o Reino. Procurou primeiramente a Bahia, como se quisesse dar tempo de prepararem-se aos holandeses. Estes, apenas souberam da sua vinda, despediram com o mesmo destino uma armada mandada por Adrian Pater.

Deu-se o encontro nas alturas dos Ilhéus, quando Oquendo demandava já Pernambuco, a 12 de setembro; atos de heroísmo houve de parte a parte; o almirante batavo sepultou-se nas ondas com a capitânea; o resultado ficou indeciso, isto é, a Companhia das Índias continuou dominando o mar. Com Oquendo vieram e continuaram no Brasil Duarte de Albuquerque, donatário de Pernambuco, admirável historiador desta guerra, desde o desembarque do Pau-Amarelo até o assalto da Bahia por Nassau (1630-1638), e João Vicente de San Felice, conde de Bagnoli, que já aqui estivera com d. Fadrique de Toledo. Depois do combate dos Ilhéus, o inimigo incendiou Olinda, desesperado de fortificá-la eficazmente, e concentrou-se no Recife.

Até aqui sairam frustrados todos os esforços da Companhia para romper o círculo de ferro em que a envolvera Matias de Albuquerque; apenas fundara na ilha de Itamaracá o forte de Orange. Começa agora a sorrir-lhe a sorte. A 20 de abril de 32 passou para seu lado Domingos Fernandes Calabar, mulato natural de Porto Calvo, aonde tinha mãe e alguns parentes. Segundo se pode concluir das poucas e suspeitas notícias encontradas a seu respeito nos escritos contemporâneos, Calabar exercia a profissão de contrabandista, nem de outro modo se podem explicar os roubos feitos à fazenda real de que o acusam os nossos, pois não deviam ter andado dinheiros públicos por suas mãos; para professar o contrabando assinalavam-no a audácia, a presença de espírito, a fertilidade de invenções, o profundo conhecimento das localidades. Era o único homem capaz de se medir com Matias de Albuquerque, e como tinha sobre este a vantagem de dispor do mar, desfechou-lhe os golpes mais certeiros. Qual móvel o levou a abandonar os compatriotas, nunca se saberá; talvez a ambição, ou a esperança de fazer mais rápida carreira entre estranhos, tornando-se pela singularidade de seus talentos indispensável aos novos patrões ou, talvez, o desânimo, a convicção da vitória certa e fácil do invasor.

Entre os feitos mais notáveis inspirados por Calabar contam-se o ataque ao Igaraçu, várias incursões ao rio Formoso, a ocupação de Afogados, séria ameaça ao arraial de Bom-Jesus, entradas por Alagoas, a tomada de Itamaracá e Rio Grande. Estes últimos sucessos deixavam bem iniciada a conquista da Paraíba, agora mera questão de tempo. Em fins de fevereiro de 34, uma armada para lá se dirigiu, e durante dois dias não cessaram combates; tratava-se, porém, de simples diversão: a verdadeira mira era, como se verificou logo no começo de março, o cabo de Santo Agostinho. Neste porto desembarcavam os socorros vindos da Bahia; ali embarcavam os frutos da terra destinados ao comércio; apossar-se dele era senão impossibilitar de todo, pelo menos paralizar qualquer resistência ulterior.

O inimigo dividiu o ataque em três armadas, uma de treze, outra de onze navios, outra composta de lanchas com mil homens encabeçados por Calabar.

Graças a seu conhecimento da localidade, os holandeses entraram no porto e fortificaram-se no pontal. Um ataque violento dirigido contra eles, e começado sob os melhores auspícios, fracassou devido ao pânico. O arraial passava agora ao segundo plano: heroísmo sobraria sempre ali; o cabo de Santo Agostinho reclamava a efervescência do general.

Com os auxílios recebidos de fresco, o inimigo dirigiu-se depois para a Paraíba, sob o comando de Sigismundo von Schkoppe. Governava a praça Antônio de Albuquerque, filho do conquistador do Maranhão, que bem mostrou não desmerecera o sangue paterno. Foi-lhe, porém, impossível impedir o desembarque do inimigo a 4 de dezembro. Os socorros, idos por terra, de Pernambuco, chegaram tarde. Os fortes foram capitulando; véspera de Natal a cidade estava em poder da Companhia. Antônio de Albuquerque ainda tentou fundar um arraial à semelhança do de Bom-Jesus; não encontrou companheiros; os que não se quiseram sujeitar ao domínio estrangeiro emigraram com ele para Pernambuco, e foram batalhar com Matias.

No fim de cinco anos o invasor mandava desde o Rio Grande até o Recife; agora resistiam-lhe apenas o arraial e o forte de Nazaré, no cabo de S. Agostinho. Arciszewski desde Paraíba marchou por terra a apertar o cerco do arraial; Sigismundo von Schkoppe seguiu do Recife para Guararapes a apertar o cerco de Nazaré. Matias de Albuquerque, deixando-o entregue a soldados de confiança, transferiu-se a Serinhaém, para de lá organizar e mandar os socorros. Por terra, por mar, em caravelas, em jangadas, pelos caminhos mais defesos socorreu os companheiros enquanto pôde; mas a resistência tem limites. «Afinal faltou o que tudo rende, que é o sustento, e não já de rocins, que isto seria regalo, mas de couros, cachorros e gatos e ratos», escreve Duarte de Albuquerque. «E quando disto houvesse o necessário, já não havia pólvora nem outra munição. Não é de admirar, pois, que se perdesse, não por certo; o admirável é que em tal estado o sustentasse o governador André Marin com seus capitais três meses e três dias». À rendição do arraial em 3 de junho seguiu-se a do forte de Nazaré a 2 de julho de 635. «Al salir nuestra gente cayeron algunos soldados muertos de que parece los sustentava vivos el no moverse».

Bagnoli tinha-se retirado antes para Alagoas, e Matias de Albuquerque foi reunir-se a ele com duzentos soldados de linha, menos de cem de emboscada e alguns índios. A 3 abalou de Serinhaém este êxodo dos que não desesperavam.

«Iam sessenta índios com seus capitães Antônio Cardoso e João de Almeida, ambos bem valentes, descobrindo adiante os caminhos e bosques, por serem nisto tão práticos, como quem havia nascido neles. Seguiam-nos os capitães d. Fernando de la Riba Agüero, Afonso de Albuquerque, d. Pedro Taveira Souto Mayor, Francisco Rabelo, Luiz de Magalhães, Leonardo de Albuquerque.

Logo sucediam os moradores que se iam retirando, e levavam duzentos carros. Atrás destes os capitães Martim Ferreira, João de Magalhães, d. Pedro Marinho, Manuel de Sousa e Abreu, Rodrigo Fernandes, d. Gaspar de Valcáçar e Paulo Vernola. Era retaguarda o capitão-mor dos índios Antônio Filipe Camarão, com oitenta dos seus, armados de mosquetes e arcabuzes». Confiavam-se a índios os postos de maior perigo! Precisam de outra justificativa os esforços de Nóbrega?

O caminho mais praticável passava em Porto Calvo, ocupado pelo inimigo. Matias de Albuquerque, para facilitar a passagem, teria de atacá-lo; sua resolução tornou-se inflexível quando soube da chegada de Calabar com um reforço de duzentos soldados. Mandou adiante a gente imbele. O combate começou a 12 de julho e continuou nos dias seguintes. A 19 o inimigo propôs capitular. Os sitiantes, sem os índios, eram apenas cento e quarenta; o inimigo, além de Picard, chefe holandês, e numerosos oficiais, contava trezentos e sessenta homens. Foram desarmados e logo mandados aos pequenos troços para Alagoas, a fim de não conhecerem a insignificância da força atacante e romperem o pacto à última hora. De todos Matias de Albuquerque reservou para a justiça real o Domingos Fernandes Calabar. No dia 22, «strangulatusque, jugulo defectionem expiavit, et dissectos artus infidelitatis ac miseriae suae testes ad spectaculum reliquit».

Desde muito anunciava-se a chegada de nova e mais forte frota espanhola com socorros. Matias de Albuquerque deixara em diversos pontos do litoral pessoas fiéis incumbidas de darem notícias da terra aos navegantes e fornecerem-lhes indicações sobre o ponto mais convenientes para o desembarque. Devia partir em março, depois em maio, só partiu em 7 de setembro. Reunidos em Cabo Verde os navios espanhóis e portugueses, comandados aqueles por d. Lope de Hoces y Córdoba, estes por d. Rodrigo Lobo, decidiram aproar a Pernambuco.

A 26 de novembro avistaram Olinda, e logo em frente ao Recife surtas nove naus do inimigo, carregadas de açúcar, pau-brasil, tabaco, algodão e gengibre, de partida para a Holanda, cada uma com cinco ou seis homens apenas a bordo. Resolveu-se atacá-las mas o almirante espanhol, a pretexto de suas naus serem maior calado, deu contra-ordem. Nem ao menos se deteve um pouco à espera de algum mensageiro de terra.

Sigismundo ante o aparelho bélico julgou-se perdido, mas a viração soprava de Nordeste, as águas corriam para o Sul, e era agradável entregar-se às seduções da corrente. No cabo de S. Agostinho um jangadeiro desfraldando a vela pôde comunicar o recado: deitassem a gente no rio Serinhaém, mandassem um navio buscar Matias de Albuquerque! As duas armadas entregaram a solução ao vento e às águas; ao anoitecer de 28 ancoravam em Alagoas.

Vinham a bordo Pedro da Silva, nomeado sucessor de Diogo Luís de Oliveira no governo geral do Brasil, Luis de Rojas y Borja, sucessor de Matias de Albuquerque. Devia este recolher-se ao Reino; Duarte de Albuquerque continuaria no governo político da sua capitania; a Diogo Luís de Oliveira cometia-se a reconquista de Curaçau, antes de voltar para o Reino.

Matias informou largamente a Rojas y Borja do estado de cousas. Em suma, a situação não era desesperada; urgia desandar o caminho percorrido, voltar para o Norte, inquietar, expulsar o inimigo. Calaram estes conselhos: d. Luis pôs-se a caminho de Pernambuco e apossou-se de Porto Calvo, ocupado pelo inimigo apenas os nosso prosseguiram para o Sul, depois da execução de Calabar. Teria forças para continuar as tradições e estaria à altura do seu heróico antecessor? Na batalha de Mata Redonda (18 de janeiro), um mosquetaço na perna derrubou-o do cavalo, outro no peito levou-lhe a vida, aos cinqüenta anos de idade. Pelas vias de sucessão assumiu o comando supremo o conde de Bagnoli, velho militar muito difícil de se julgar com justiça. Nossos escritores tratam-no sempre com menosprezo, cobrem-no de apodos, negam-lhe até a virtude elementar da coragem individual. Constitui uma exceção apenas Duarte de Albuquerque, sempre discreto e circunspecto, mas sente-se que não expõe todo o seu pensamento. De Bagnoli, se alguma linha já foi publicada relativa ao período holandês, anda perdida em alguma coleção escura: não sabemos como se defenderia dos acusadores. Em todo caso uma honra lhe cabe: nunca desesperou.

Bagnoli assinalou seu comando pelo emprego de companhistas, aventureiros, destemidos, que iam até as barbas do inimigo, aprisionando, degolando gente, jarreteando gado, se não podiam conduzi-lo, queimando os canaviais, os açúcares, o pau-brasil, os engenhos. Alguns avançaram até as fronteiras da Paraíba. Era sempre o pensamento de Matias de Albuquerque: a conquista nunca seria fato consumado. Algum tempo Bagnoli pensou em mover-se para o Norte e fortificou ligeiramente o passo do rio Una, seis léguas ao Sul de Serinhaém. Talvez contribuísse a animá-lo nesta iniciativa tão estranha à sua maneira habitual a presença de Duarte de Albuquerque. Com este avanço os holandeses abandonaram Paripuera e Barra Grande.

Tomado o arraial de Bom-Jesus, ocupada a fortaleza de Nazaré, a Companhia das Índias Ocidentais achou a ocasião própria para nomear um governador geral, como lhe permitia seu regimento.

Escolheu João Maurício, conde de Nassau-Siegen, membro da família de Orange, e confiou-lhe interinamente o cargo por cinco anos. A 27 de janeiro de 637 aportou Nassau a Pernambuco, onde deveria permanecer um octênio. Em sua companhia ou logo depois vieram consideráveis reforços. Tratou sem demora de retomar Porto Calvo. Do Recife partiram ao mesmo tempo trinta navios com dois mil infantes mandados por Arciszewski, que a 12 de fevereiro fundearam em Barra Grande, e o próprio Nassau com Sigismundo, levando três mil soldados e quinhentos índios, que incólumes passaram o rio Una, já desguarnecido por Bagnoli.

Reunidos apresentaram-se a 17 diante do povoado; a 18 travaram um combate de que a nossa gente não saiu com o melhor partido; a 20 subiram lanchas pelo rio das Pedras, conduzindo artilharia e material; com o canhoneio, respondido sempre galhardamente, baquearam os parapeitos do forte de Porto Calvo, misturando terra nos mantimentos; a 5 de março a falta de víveres obrigou Miguel Giberton, comandante da praça, a render-se.

Na noite de 18 de fevereiro, depois de mandar Alonso Ximénez com parte da força pelo caminho da praia, escoltando a gente que se queria retirar para Alagoas, Bagnoli tomou o mesmo destino pelo interior. A 25 chegava à vila de Madalena, onde não julgou prudente demorar. A 10 de março continuou a marcha e a 17 chegava à vila de S. Francisco, recentemente erigida pelo donatário na margem esquerda do rio, a meia distância entre a barra e a região encachoeirada. Duarte de Albuquerque aconselhou-lhe fortificar-se no rio Piaguí, para resistir ao inimigo, caso avançasse por terra; tão pouca atenção prestou a este como antes ao conselho de fortificar eficazmente o passo da Una. Em ambos os casos o inimigo não deparou tropeços.

A 18 Bagnoli fez os terços napolitano e castelhano atravessarem o rio para a capitania de Sergipe; a 19 passou parte do terço de Portugal, a 26 passou o resto; a 27 chegaram os holandeses à vila e acharam-na vazia. Com a confusão, muitos dos retirantes ficaram prisioneiros, salvaram-se outros perdendo todos os haveres. No local abandonado por Bagnoli resolveu Nassau construir um forte chamado Maurício: lá existe hoje a cidade de Penedo. Sigismundo foi incumbido da construção e do comando. Nassau voltou para Pernambuco.

A 31 de março Bagnoli chegou a S. Cristóvão. Por sua ordem diversos companhistas avançaram para Alagoas, ora acima, ora abaixo do forte, fazendo suas costumadas façanhas. Trouxeram também a notícia de uma invasão planejada no forte Maurício contra Sergipe, no intento de arrebanhar as numerosas manadas de gado, e vingar-se dos audazes que não deixaram os holandeses sossegados em suas novas conquistas. De fato, a 17 de novembro Sigismundo chegou a S. Cristóvão, já deserta, a 25 de dezembro queimou a cidade e retirou-se para o outro lado do rio.

A 14 de novembro, sabendo da entrada do inimigo pelo território sergipano, Bagnoli prosseguiu para a Bahia, com grande pesar e indignação dos emigrados de Paraíba e Pernambuco, que haviam começado suas roças; a 24 alcançou a Torre de Garcia d'Ávilla, onde recebeu ordem do governador geral para se deter. Com alguns companheiros encaminhou-se a 15 de dezembro para a cidade do Salvador a avistar-se com Pedro da Silva, governador geral do Estado. Receoso de próximo ataque dos holandeses contra a capital do Brasil, vinha lembrar a conveniência de estabelecer-se com sua gente na antiga povoação de Pereira, onde poderia com suas forças auxiliar a resistência.

Nem Pedro da Silva, nem o povo acreditaram na iminência de tal perigo, ninguém queria a soldadesca na vizinhança. Concordou-se que permaneceriam na Torre e, contrariado embora, Bagnoli submeteu-se. Em breve, porém, seus companhistas trouxeram notícia que Nassau preparava uma expedição destinada a tomar a Bahia e, apesar de pactuado, marchou para Vila-Velha a 14 de março de 38.

Prisioneiros feitos por Sebastião do Souto, chegados ao acampamento em 8 de abril, dissiparam as últimas dúvidas. A 16 numa forte armada Nassau entrava de fato pela baía de Todos-os-Santos, com três mil e quatrocentos soldados europeus e mil índios, e desembarcou em Itapagipe.

Nos dias seguintes apossou-se de alguns fortes, construiu trincheiras e baluartes, despejou artilharia contra partes da cidade. A continuação correspondeu mal a tão brilhante estréia: as tropas de Bagnoli e a guarnição, deixadas de parte rivalidades mesquinhas, bateram-se com entusiasmo; a população, a princípio tumultuária e desconfiada, acreditou por fim na bravura e capacidade dos defensores; embarcações veleiras traziam sem cessar farinha de Camamu; entrou abundante gado de Itapicuru e do Real; emboscadas repetidas faziam prisioneiros pelos quais se ficava a par de todos os passos do inimigo; realizaram-se sortidas felizes. Na noite de 25 para 26 de maio Maurício de Nassau encerrou as seis semanas de carnificina, embarcando furtivamente para o Recife, não com tanta festa como se prometia, nem com tanto contentamento como desejava.

A vitória foi conhecida na península quando se preparava uma forte armada restauradora, composta de trinta e três navios, comandada por d. Fernando Mascarenhas, conde da Torre. Partiu de Lisboa a 7 de setembro; depois de danosa demora no pestilencial clima do Cabo Verde, passou à vista de Recife em 23 de janeiro de 39, sem, tão pouco como as duas que a precederam, ousar atacá-lo, e seguiu para a Bahia. Nassau aproveitou o aviso, e no prazo de quase um ano pelo almirante português proporcionado, melhorou as fortificações, organizou um serviço de informações rápidas e aparelhou uma esquadra.

Só a 19 de novembro a armada restauradora partiu da Bahia em demanda do Norte, já então elevada a oitenta e seis embarcações com onze a doze mil homens. A situação de Nassau era aproximadamente a de Matias de Albuquerque dez anos antes, com a grande vantagem de possuir a força naval que faltava àquele.

O conde da Torre poderia desembarcar nas proximidades de Santo Agostinho ou Serinhaém; preferiu abordar o Pau-Amarelo. Não lho permitiu a vigilância do inimigo. Apareceu depois a armada holandesa; entre a ponta de Pedras, o ponto mais oriental do continente americano, e Canhaú, na costa do Rio Grande, renhiram-se combates a 12, 13, 14 e 17 de janeiro de 40. Apenas cerca de mil soldados nossos lograram tomar terra na ponta do Touro, donde Luiz Barbalho, por entre inimigos e pelo sertão, novo Xenofonte, levou-os heròicamente à Bahia. Já o precedera por via marítima com os destroços que pôde salvar o conde da Torre, acompanhado do velho Bagnoli, que não tardou a falecer. O resto da esquadra dispersara-se em várias direções.

Os flamengos sofreram grandes perdas; alguns de seus oficiais portaram-se covardemente e foram executados; mas a vitória coube às suas armas e sua posição consolidou-a mais do que nunca.

Podemos deixar em silêncio vários feitos navais dos holandeses e numerosas incursões dos companhistas ocorridos em seguida; outro sucesso reclama de preferência a atenção. A 1 de dezembro de 640 Portugal declarou-se independente da Espanha, aclamou rei o duque de Bragança, tratou pactos de amizade com os adversários da monarquia espanhola. A 12 de junho de 41 concluiu com a Holanda um tratado de aliança ofensiva e defensiva na Europa, e nas colônias uma trégua de dez anos, que devia vigorar para os domínios da Companhia das Índias Orientais um ano depois da ratificação do tratado, e nos da companhia das Indias Ocidentais apenas a notícia de haver sido ratificado fosse transmitida oficialmente. Esta cláusula pouco lisa deve ter sido lembrada pelos portugueses, na esperança de melhorarem a situação durante o interstício; de outro modo não se explica terem demorado a ratificação até 18 de novembro. Em fevereiro de 42 os Estados Gerais ordenaram às duas companhias cumprissem fielmente o pactuado.

Governava na Bahia, como primeiro vice-rei do Brasil, d. Jorge de Mascarenhas, marquês de Montalvão, quando chegou a notícia dos sucessos de Portugal. Suas medidas previdentes inutilizaram a pequena guarnição espanhola; todos os magnatas aderiram à independência de Portugal e à aclamação do Bragança, e o resto do país acompanhou-os, mesmo a capitania de S. Vicente, onde havia muitas famílias de estirpe castelhana.

O vice-rei comunicou a novidade a Maurício de Nassau, que a recebeu contente e celebrou-a com festas. O inimigo tradicional era o espanhol; tudo de contrário a este resultava em proveito das Províncias Unidas. As relações melhoraram ainda com a notícia do tratado de 12 de junho; como, porém, a ratificação se demorasse, Maurício ampliou os domínios da Companhia no Maranhão e na África.

Os últimos anos do seu governo cabem em poucas palavras. Da obra do administrador nada sobrevive; seus palácios e jardins consumiram-se na voragem de fogo e sangue dos anos seguintes; suas coleções artísticas enriqueceram vários estabelecimentos da Europa e estão estudando-as os americanistas; os livros de Barlaeus, Piso, Markgraf, devidos a seu mecenato, atingiram uma altura a que nenhuma obra portuguesa ou brasileira se pode comparar, nos tempos coloniais; parece mesmo terem sido pouco lidos no Brasil apesar de escritos em latim, na língua universal da época, tão insignificantes vestígios encontramos deles.

A cidade Mauricéia não guardou seu nome, mas prosperou e conserva sua memória. Com o título de desforra, legado, vingança ou coisa semelhante, de Maurício de Nassau, poderia um amante de fantasias históricas interpretar a guerra dos Mascates adiante narrada, e não precisaria de esforço maior do que o empregado para transformar Domingos Fernandes Calabar em patriota e vidente. A origem principesca de Maurício lisonjeou os colonos e tornou-lhes mais repugnantes os outros governadores, simples burgueses, meros dependentes da Companhia. Ele próprio preveniu disto os sucessores, ao entregar-lhes o mando.

Frei Manuel Calado, que o conheceu e freqüentou, apresenta-o como fidalgo de raça, capaz de sentir uma injustiça e repará-la, amante de festas e esplendores, inclinado a farsas nem sempre do gosto mais delicado, admirador das belezas tropicais, isento da preocupação de voltar as terras mais civilizadas. Em limpeza de mãos ficou infinitamente abaixo de Matias de Albuquerque: está provado o seu conluio em contrabandos com Gaspar Dias Ferreira que, como era natural, logrou-o no ajuste das contas, feito em Holanda quando o príncipe já não governava.

À partida de Maurício de Nassau, em maio de 644, seguem-se dez anos profundamente agitados.

Dos emigrados com Matias de Albuquerque alguns tinham voltado para as antigas propriedades e procuravam reconstituir sua antiga abastança. O regime holandês era duro, as extorsões contínuas; mesmo se Nassau fosse o justiceiro, em que pretendem transfigurá-lo, não tinha braço bastante longo e bastante forte para amparar todas as vítimas.

Os invasores desarmaram a população rural, preferindo deixá-la entregue às devastações inclementes de companhistas a ter de se preocupar algum dia com qualquer tentativa de insurreição.

Como poderia reagir?

O foco do irredentismo, entretanto, lavrava na Bahia.

Norteiros emigrados e reduzidos à miséria, baianos, cujos engenhos devastaram tantas vezes as expedições marítimas dos flamengos, alimentavam profundo rancor contra os seus malfeitores; padres e frades espoliados e expulsos irritavam a consciência religiosa. O sucessor de Montalvão, Antônio Teles da Silva, tão abrasado católico que quis fundar e dotar à sua custa um Santo Ofício para o Brasil, a exemplo de Goa, onde estivera, não podia suportar herejes na vizinhança.

Ainda no tempo de Nassau a religião católica gozava de tolerância embora limitada e instável. Com sua partida, protestantes e judeus ultrajavam a toda hora as crenças da população indígena. Por isso o primeiro título assumido pelos chefes dos insurgentes foi o de governadores da liberdade divina: em linguagem moderna tanto valeria dizer da liberdade de consciência.

Da Bahia devia partir a iniciativa contra o flamengo, pois só de lá podiam sair o armamento, os oficiais, a gente de guerra, em torno da qual se adensassem os pernambucanos bisonhos; precisava-se, entretanto, de um chefe em Pernambuco, para o esforço não ficar perdido nos primórdios.

Um só homem havia ali capaz de assumir esta responsabilidade, se quisesse: João Fernandes Vieira. Natural da ilha da Madeira, passara aos onze anos para aquela capitania, batera-se ao lado de Matias de Albuquerque, e foi um dos prisioneiros do arraial de Bom-Jesus, em junho de 635. Preferiu ficar com os holandeses, depois da rendição, e a sorte protegeu-o. Adquiriu a maior fortuna da terra. Os compatriotas respeitavam-no, e ele os ajudava e protegia liberal e generosamente. Conciliou igualmente as graças dos invasores. Por que artes explica-o no seu testamento: «Também me são devedores [os flamengos]de mais de cem mil cruzados, que no decurso de oito ou nove anos lhes dei por remir minha vexação e por segurar a vida de suas tiranias, de peitas e dádivas a todos os governadores e seus ministros e com grandiosos banquetes que ordinàriamente lhes dava pelos trazer contentes».

À primeira vista ninguém menos próprio para o papel de herói e libertador. Entretanto Vidal de Negreiros, paraibano que começou a se distinguir com Matias de Albuquerque, e oficial da guarnição da Bahia, sondou o espírito de Vieira e achou-o disposto à empresa. Notou, porém, a falta de munições, de armamento, de gente entendida em guerra para o levante não degenerar em manifestação estéril; para suprir todas estas faltas precisava-se de tempo e de socorros estranhos. De fato foi-se fazendo tudo com as maiores precauções possíveis. Apesar de todas as cautelas, os holandeses tiveram notícias vagas dos preparativos, admira até, que as tivessem tão tarde, quando o segredo andava por tantas bocas, e mandaram duas embaixadas a Antônio Teles, queixando-se dos baianos que fomentavam a revolução nas possessões dos recém-aliados.

Um dos embaixadores, d. von Hoogstraten, comprometeu-se a trair os patrões, entregando o forte de Nazaré de seu comando quando lhe fosse exigido.

Por ocasião da segunda embaixada, Camarão e seus índios, Henrique Dias e seus negros, de acordo com o governador da Bahia, a convite de Vieira tinham passado para o lado de Pernambuco. Peguem-nos e castiguem-nos como merecem, intimava Antônio Teles aos agentes da Companhia das Índias Ocidentais, desde que não pôde mais negar a sua ausência. E quando a gente de Vieira começou a se agitar, mandou embarcados dois terços da força paga sob o mando do velho Martim Soares Moreno e do ardente Vidal de Negreiros, a pretexto de conterem os rebeldes. Os dois mestres de campo a 28 de julho de 45 desembarcaram próximo de Serinhaém; logo a 4 de agosto rendeu-se-lhes o forte holandês ali situado; a 3 de setembro Hoogstraten entregou-lhes o forte de Pontal, como tratara.

Para se ajuizar da importância deste ponto basta lembrar que Matias de Albuquerque nunca mais assistiu no arraial de Bom Jesus depois de tomado o Pontal. Assim a restauração começava por onde findara a conquista. O êxito dos terços baianos seria maior se o flamengo não destruísse a esquadrilha de Serrão de Paiva em que tinham vindo até Serinhaém e se Salvador Correia colaborasse com sua armada, como lhe foi mandado, para fechar o ataque do Recife por terra e por mar.

Desde junho, antes de chegado o reforço da Bahia, a insurreição rebentara em Pernambuco. Com pouca gente, sem armamentos, sem munição, Vieira devia empenhar-se sobretudo em não se encontrar com o inimigo. Isto conseguiu graças às medidas cautelosas anteriormente tomadas, ao requintado serviço de espionagem, apoiado no conhecimento das localidades. Só a 3 de agosto houve o primeiro combate no Monte das Tabocas, e a vitória ficou de nosso lado. Aos que censuram as hesitações de Vieira, suas delongas à espera de Camarão e Henrique Dias, sua insistência por socorros da Bahia, basta lembrar um fato: na batalha das Tabocas muita gente combateu ainda de pau tostado e foice por falta de espingarda.

Uma das vantagens da vitória foi proporcionar armas de fogo e munições tiradas aos inimigos mortos. A tomada da Casa-Forte em 16 de agosto propagou o incêndio. Com a rendição de Serinhaém e do Pontal a Martim Soares e André Vidal, insurgiu-se o Sul até o rio de S. Francisco e a situação voltou ao que era em começos de 35. As forças baianas, mandadas a pretexto de pacificá-los, reuniam-se sem rebuço aos insurgentes.

Formou-se logo um arraial à margem direita do Capibaribe, e deram-lhe o nome de arraial Novo do Bom Jesus. Daqui partiram ataques incessantes contra a gente do Recife. Uma fortaleza no continente, a força do Asseca, sobretudo, causava-lhe grandes estragos. Lembrou-se Sigismundo de repetir a tática pela qual isolara o antigo arraial do forte de Nazaré e obrigara os dois a se renderem. Desta vez o plano mangrou: a batalha dos Guararapes (19 de abril de 48) terminou em derrota completa dos invasores, que deixaram o campo juncado de mortos e despojos. Uma compensação tiveram valiosa: a devastadora força de Asseca passou para seu poder e em seu poder persistiu até o fim da guerra.

Poucos dias antes da batalha dos Guararapes assumira o comando supremo dos pernambucanos o general Francisco Barreto de Menezes, mandado do Reino a este fim. O estado em que achou as cousas descreve assim um historiador destes feitos, arauto enfático de Vieira: «Sem armas e soldados venceu [Vieira] o inimigo que o buscava com soldados e armas na batalha das Tabocas. Depois unido com o mestre de campo André Vidal de Negreiros ganharam a vitória ao flamengo no engenho de d. Ana Pais, e nove fortalezas, com outros redutos e casas fortes; perto de oitenta peças de artilharia de diversos calibres, a maior parte de bronze; armas, munições e petrechos de guerra em tanta quantidade quanta bastou para sustentar a guerra viva em cinco anos contínuos».

À primeira seguiu-se a segunda batalha dos Guararapes, em 19 de fevereiro de 49, com o mesmo resultado contrário aos flamengos. Depois dela não houve mais combates notáveis por terra nem por mar. A Companhia estava exausta, apesar dos largos subsídios dados pelos Estados Gerais. Dentro em pouco estes não puderam mais auxiliá-la, envolvidos em guerra contra a Inglaterra. Em compensação Portugal organizara uma companhia de comércio que apareceu na costa pernambucana por dezembro de 53. Os patriotas puseram-se de acordo com ela, como outrora a gente da Bahia com a armada de d. Fadrique de Toledo; o almirante português desembarcou no rio Tapado, o primeiro ponto em que Weerdenburgh tentara o desembarque, e em Olinda combinou com os chefes pernambucanos a marcha a seguir.

Um a um foram caindo os fortes holandeses; a 26 de janeiro de 54 assinava-se a capitulação da Taborda, e terminava esta guerra, levada quase sem interrupções durante trinta anos.

O desfecho fora previsto e publicado anos antes por Pierre Moreau, natural de Charolais, na Borgonha, que passara algum tempo entre os holandeses, em Pernambuco. Suas palavras patenteiam algumas das mais profundas causas do insucesso final da Companhia das Índias Ocidentais.

«Não há aparência», publicava em 1651, «de que os holandeses possam nunca se restabelecer e restaurar no Brasil como eram antes, mesmo se sua frota derrotasse a dos portugueses; mesmo se lhes enviassem outro socorro semelhante ao último, apenas perderiam homens e esgotariam seus tesouros, sem nada adiantar; porque o território que lhes resta desde o Ceará até a cidade de Olinda está inteiramente perdido e sem habitantes, as casas, povoados, aldeias ou vilas, as próprias fruteiras queimadas e arruinadas, portanto seu estado inútil e sem proveito; e embora sejam senhores das fortalezas do Rio Grande e Paraíba, as únicas que resistem com o Recife, para pouco prestam e delas não podem tirar socorros; os que se animam a reconstruir tijupás para cultivar a terra ou se aventuram a alguma distância são surpreendidos e mortos quando menos pensam pelos corsos ordinários dos portugueses, dos Tapuias e dos brasis bravos (desunis) que não têm dó de ninguém.

Os portugueses têm bloqueado o Recife, por terra, de todos os lados, por meio da cidade de Olinda, do cabo de S. Agostinho, das fortalezas construídas em redor; são absolutos por toda a campanha fértil e abundante, e de todas as praças fortes, portos, abras e passagens desde o Recife até a outra extremidade do Brasil além do Rio de Janeiro. Todo o país que possuem é muito bem povoado, com gente de guerra numerosa, sabem subsistir e vivem do que a terra produz com abundância, dispensam facilmente as produções da Europa, coisa impossível aos holandeses, que aliás têm apenas soldados arrebanhados de diversas nações, comprados antes que escolhidos, de cuja fidelidade não podem estar seguros, impróprios aos costumes e ao ar estranho do país, ignorantes dos desvios e das emboscadas dos lugares. Ao passo que os portugueses em sua maioria ali nasceram, dele são originários desde a quarta geração, são robustos, um mesmo povo, dos mesmos costumes e complexões, que se sustentam entre si, não deixam de valorizar e tirar proveito da terra, sabem-lhe até os mínimos recantos, e basta-lhes esperarem os inimigos nas passagens para derrotá-los».

Em outros termos, Holanda e Olinda representavam o mercantilismo e o nacionalismo. Venceu o espírito nacional. Reinóis como Francisco Barreto, ilhéus como Vieira, masombos como André Vidal, índios como Camarão, negros como Henrique Dias, mamalucos, mulatos, caribocas, mestiços de todos os matizes combaterem unânimes pela liberdade divina.

Sob a pressão externa operou-se uma solda, superficial, imperfeita, mas um princípio de solda, entre os diversos elementos étnicos.

Vencedores dos flamengos, que tinham vencido os espanhóis, algum tempo senhores de Portugal, os combatentes de Pernambuco sentiam-se um povo, e um povo de heróis. Nesta convicção os confirmaram os testemunhos do reconhecimento oficial, os encarecimentos dos historiadores, como Manuel Calado e Rafael de Jesus, cujas obras foram logo publicadas, Diogo Lopes de Santiago, inédito até nossos dias, os sobreviventes das lutas, os herdeiros das tradições ligeiramente alteradas com o tempo. Um documento de 1703 resume tais sentimentos nos seguintes termos:

«Entre todas as nações do orbe são os portugueses os que se têm empenhado nas empresas mais árduas e conseguido os maiores triunfos, tendo pelo mais heróico brasão a fidelidade e íntimo afeto com que não só veneram mas adoram aos seus príncipes naturais: e sendo isto assim parece que em Pernambuco se souberam sinalar com maior ventagem, pois quando mais oprimidos, mais sujeitos e mais desamparados, sem favor e sem humana ajuda, desprezando aquele trato que a continuação de tantos anos pudera por familiar ter facilitado, e mais sabendo grangear os ânimos com liberal mão os holandeses, desprezando tudo com soberano impulso, intentaram e conseguiram a mais ilustre ação e digna de imortal fama, não só porque com invicto sofrimento suportaram o duro peso de toda a guerra, até se extinguir de todo a hostilidade, mas ostentando-se ainda mais generosos, nem um privilégio procuraram impetrar por serviço tão relevante, havendo despendido por consegui-lo todos os seus bens e ficando pobres; e assim sem mais prêmio que o interesse do glorioso nome de leais vassalos, fidelíssimos ao seu rei e amantíssimos de sua pátria, recuperada e isenta de alheio domínio lha restituiram como usurpada, sendo uma tão nobre parte da sua real coroa, a custa do caro preço de tantas vidas e de tanto sangue vertido, recuperando, o que é o mais, o culto ao sagrado que tão profanamente viram da heresia infestado tantos anos.»

Passado o primeiro momento de entusiasmo, os reinóis quiseram reassumir a sua atitude de superioridade e proteção. Data daí a irreparável e irreprimível separação entre pernambucanos e portugueses.

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