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Contrastes e confrontos

Euclides da Cunha

Heróis e bandidos

Num dia de setembro de 1820 chegou à tristonha Assunção, do Dr. Francia, um prisioneiro ilustre e sexagenário, a quem, entretanto, não se concedera o preito da mais diminuta escolta. Vinha só; passou, a cavalo, pelas longas ruas retilíneas e retangularmente cruzadas entre janelas de grades, à maneira de extensos corredores de uma prisão vastíssima, e descavalgou no largo onde se erige o palácio do governo.

Viu-se então que a idade o não abatia. Num desempeno de rapaz atlético aprumava-se-lhe a estatura elegantíssima entre as voltas do poncho desbotado que lhe desciam até às botas de viagem, flexíveis e armadas das rosetas largas das esporas retinindo ao compasso de um andar seguro.

Grande sombrero de abas derribadas cobria-lhe a meio a face magra; e naquela face rígida, cindida de linhas incisivas e firmes -como se um buril maravilhoso ali rasgasse a imagem da bravura, num bloco palpitante de músculos e nervos- um olhar dominador e duro, velado de tristeza indescritível.

Era José Artigas, o motim feito homem, o primeiro molde dos caudilhos, primeiro resultado dessa combinação híbrida e anacrônica de D. Quixote, do Cid e de Hernani -a idealização doentia, a coragem esplendorosa e o banditismo romântico- indo perpetuar na América a ociosidade turbulenta, a monomania da glória e o anelo de combates que sacrificaram a Espanha do século XVII.

Correra-lhe a vida aventurosa e tumultuária. Chefe de contrabandistas arremessado à ventura pelas coxilhas da Banda Oriental e do Rio Grande, transformara-se logo depois, com o mais doloroso espanto dos quadrilheiros condutícios, em capitão de carabineiros da metrópole que o captara, impondo-lhe o exercitar sobre os antigos sócios de desmandos uma fiscalização incorruptível e feroz, até que se voltasse contra a mesma metrópole, transmudado em tenente-coronel revolucionário, e avantajando-se aos maiores demolidores do antigo vice-reinado, ou se transfigurasse de chofre em general, Jefe de los Orientales y protector de las ciudades libres, arremetendo com os irmãos de armas da véspera e destruindo a solidariedade platina, com o afastamento do Uruguai.

Salteador, policial, revolucionário, chefe de governo... Por fim, caiu. A tática estonteadora quebraram-lha os voluntários reais de Lecor, endurecidos na disciplina incoercível de Beresford; e traído pelos seus melhores sequazes, sem exército e sem lar, errante e perseguido, viera bater às portas do seu mais sinistro adversário, a quem tanto afrontara nas antigas tropelias.

O ditador não lhe apareceu, mas não o repeliu: mandou-o para um convento.

Extraordinário e enigmático Dr. Francia! Este ato denuncia-lhe do mesmo passo a índole retrincada, a ironia diabólica e a ríspida educação política que tanto o incompatibilizava com o heroísmo criminoso daqueles esmaniados cavaleiros andantes da liberdade. Entre o borzeguim esmoedor e a estrapada desarticuladora só lhe dependiam de um gesto todos os requintes das torturas: escolheu uma cela e constringiu ali dentro, entre paredes nuas, sobre alguns metros quadrados de soalho, uma vida que se agitara desafogadamente nos cenários amplíssimos dos pampas. A vingança era, como se vê, antes de tudo, uma lição duríssima, mas foi improdutiva.

Artigas deixara no Estado Oriental o seu melhor discípulo, Frutuoso Rivera, e em torno deste e de seu êmulo e companheiro de armas, Lavalleja, veio desdobrando-se até ao nosso tempo esta interessantíssima farândola de heróicos degenerados, que invadem desabaladamente a história, fugindo da polícia correcional, e vêm desfilando ante a civilização, surpreendida, sob aspectos vários, que vão do astucioso Urquiza a esse desassombrado Aparício, que nesta hora convulsiona todas as paragens entre o Taquarembó e o Salto.

Em todos, uniformes na disparidade dos temperamentos, do sanguinário Oribe ao destemeroso Lavalleja, que nos arrebatou a Cisplatina, os mesmos traços característicos: a combatividade irrequieta, a bravura astuciosa e a ferocidade não raro sulcada de inexplicáveis lances generosos.

Traçar-lhes a história é fazer em grande parte a nossa mesma história militar. Quase toda a nossa atividade guerreira tem tido uma diretriz predominante naquela fronteira perturbadíssima do Rio Grande, há cem anos batida a patas de cavalos, e estirando-se como longo diafragma por onde nos penetra, numa permanente endosmose, o espírito febril da caudilhagem, obrigando-nos por vezes a colaborar também, a pontaços de lanças, naquelas revoluções crônicas e naquele regime clássico de tropelias.

Ali, na longa faixa que se estira de Jaguarão ao Quaraim, o gaúcho resume, na envergadura possante e no ânimo resoluto e inquieto, os traços proeminentes de dois povos. Não há destacá-los às vezes. O bravo e versátil Rivera copia servilmente o versátil e bravo Bento Manoel; Lavalleja, um Bayard vibrátil e volúvel, afeiçoado a todas as temeridades, se acaso o nobilitasse a disciplina, irromperia na figura escultural do primeiro Mena Barreto.

Ainda agora o Aparício oriental tem uma larva, o João Francisco rio-grandense: acorrentai o primeiro num posto sedentário, e tereis o molosso ferocíssimo da fronteira; arremessai o segundo pelo revesso das coxilhas, e vereis o caudilho...

Daí as surpresas que muitas vezes nos saltearam naquelas bandas. Notemos uma, de relance. A Guerra do Paraguai, em que pese aos seus velhos antecedentes, teve, inegavelmente, um prelúdio muito expressivo nas ruidosas «califórnias», que arrebataram os nossos bravos patrícios aos entreveros entre blancos e colorados. A primeira bandeira que ali congregou brasileiros e orientais foi o pala do general Flores, desdobrado e ruflando nas correrias vertiginosas. E quaisquer que fossem depois os milagres de uma diplomacia que desde 1853 e 1858 vinha lentamente suplantando o malquerer e a vesânia de Lopes, talvez não nô-lo impedisse mais, desde a hora em que os peleadores de um e de outro lado, guascas e gringos, mas uniformemente gaúchos, entrelaçassem, sobre o solo vibrante das campinas, os laços e as bolas silvantes, objetivando a fraternidade sanguinolenta que os atrai àqueles trágicos divertimentos, e às arrancadas súbitas, e às batalhas originalíssimas e minúsculas dispersas em torneios céleres, feitas de perseguições e de fugas, e nas quais raro se queima um único cartucho, porque ao lidador selvagem o que sobretudo apraz é desfechar sobre o contrário os golpes simultâneos de cinco armas formidáveis -a lança e as quatro patas do cavalo...

Ora, esta identidade de estímulos, efeito de antiquíssimo contágio, reveste-nos de importância considerável a situação atual do Uruguai. Entretanto, atraída por outros sucessos, toda voltada para a Amazônia ameaçada, ou para o enorme duelo do Extremo Oriente, a opinião geral mal se impressiona com aquelas desordens. Um ou outro telegrama, impertinente e mal lido, entre outros casos de maior monta, nos denuncia de longe em longe que o caudilho rebelado ainda respira.

A despeito de não sabermos quantas derrotas para logo corrigidas com outras tantas fugas triunfais, rompendo entre as tropas do governo vitoriosas e desapontadas -no «Passo dos Carros», em Taquarembó, em Daimam, em Salto, em Santa Luzia e em Santa Rosa, na Concórdia, no Aceguai e em toda a parte- a revolta irradia para toda a parte, intangível e invencível, espalhando alarmas desde Montevidéu, inopinadamente ameaçada de um assalto, às remotas povoações e estâncias do interior, de súbito despertadas pelo tradicional ahy vienen! que há um século por ali espalha e atira fora dos lares as gentes retransidas de espanto ante o estrupido dos cavaleiros errantes e ferozes...

Vencido pelo general Moniz desde os primeiros dias da luta; acutilado, e algumas vezes morto a golpes de telegramas; erradio, ou fugindo com os restos de uma tropa desmoralizada, para o abrigo da nossa fronteira salvadora, Aparício Saraiva recorda uma paródia grosseira do herói macabro do Romancero, morto e espavorindo os inimigos.

Pelo menos a sua revolução, tantas vezes destruída e tantas vezes renascente, tem a estrutura privilegiada dos pólipos: despedaçá-la é multiplicá-la.

Ainda neste momento, rijamente repelido do Salto, este combate perdido parece ter tido o efeito único de remontar-lhe a cavalhada, permitindo-lhe a divisão das forças em três corpos, que, dirigidos por ele, por Lamas e Muñoz, vão refluir de novo sobre todo o Uruguai e reeditar a mesmice inaturável das refregas inúteis e das correrias e das derrotas e das eternas vitórias telegráficas -enfeixadas todas numa anarquia deplorável cujo termo e cujas conseqüências dificilmente se prevêem.

Lutas à gandaia, adstritas ao sustento aleatório das estâncias saqueadas, em que o soldado surge pronto de todos os lados, laçando os adversários como laça os touros bravios, combatendo ou «parando o rodeio», sem notar diferenças nas azáfamas perigosas, elas podem prolongar-se indefinidamente.

Bastam-lhes como recursos únicos alguns ginetes ensofregados e o pampa: a disparada violenta e o plaino desimpedido; a velocidade e a amplidão...

Daí os seus principais inconvenientes. O duradouro dessas desordens à ourela de uma fronteira agitada fez sempre a mais prejudicial dissipação dos nossos esforços e do nosso valor.

Quando se traçar o quadro emocionante das nossas campanhas do Sul, que vêm, desde as arrancadas na colônia do Sacramento, desdobrando-se numa interminável série de conflitos sulcados de armistícios e de desfalecimentos, ver-se-á que aos nossos melhores generais coube sempre o arriscadíssimo papel de uns tenazes e brilhantes caçadores de caudilhos e de tiranos irrequietos.

Felizmente, mudaram-se os tempos.

E certo não mais nos atrairão a dispendiosas aventuras aqueles estonteados heróis, singulares revenants, que nestes tempos de utilitarismo positivo exigem apenas, prosaicamente, e de acordo com a lição memorável de Francia, um termo de bem viver e uma cadeia.

O Marechal de Ferro

No meio em que surgiu, o marechal Floriano Peixoto sobressaía pelo contraste. Era um impassível, um desconfiado e um cético, entre entusiastas ardentes e efêmeros, no inconsistente de uma época volvida a todos os ideais, e na credulidade quase infantil com que consideramos os homens e as coisas. Este antagonismo deu-lhe o destaque de uma glória excepcionalíssima. Mais tarde o historiador não poderá explicá-la.

O herói, que foi um enigma para os seus contemporâneos pela circunstância claríssima de ser um excêntrico entre eles, será para a posteridade um problema insolúvel pela inópia completa de atos que justifiquem tão elevado renome. É um dos raros casos de grande homem que não subiu pelo condensar no âmbito estreito da vida pessoal as energias dispersas de um povo. Na nossa translação acelerada para o novo regime ele não foi uma resultante de forças, foi uma componente nova e inesperada que torceu por algum tempo os nossos destinos.

Assim considerado, é expressivo. Traduz de modo admirável, ao invés da sua robustez, a nossa fraqueza.

O seu valor absoluto e individual reflete na história a anomalia algébrica das quantidades negativas: cresceu, prodigiosamente, à medida que prodigiosamente diminuiu a energia nacional. Subiu, sem se elevar -porque se lhe operara em torno uma depressão profunda. Destacou-se à frente de um país, sem avançar -porque era o Brasil quem recuava, abandonando o traçado superior das suas tradições...

Diante da sua figura insolúvel e dúbia, os revolucionários apreensivos traçavam na tarde de 14 de novembro o ponto de interrogação das dúvidas mais cruéis, e ao meio-dia de 15 de novembro os pontos de admiração dos máximos entusiasmos. Não se conhece transformação, ao mesmo passo, tão repentina e tão explicável.

Sobretudo explicável. O seu prestígio nascera paradoxalmente antes da revolução. Sabia-se, ou conjecturava-se, que sobre o regime condenado velava, imperceptível, aquela astúcia silenciosa, formidável e cauta, contraminando talvez dentro do próprio exército o traço subterrâneo da revolta; ou acompanhando-o talvez, linha por linha, ponto por ponto, num paralelismo assombroso, e no prodígio de conspirar contra a conspiração, ajustando soturnamente o rigorismo da lei ao lado da rebeldia incauta, de modo que esta, ao estalar, tivesse de improviso, em cima, irrompendo da sombra, a mão possante que a jugularia.

Esta dúvida, ou dolorosíssima suspeita -sabem-no todos os revolucionários, embora muitos a negassem depois- era a mais inibitória incerteza entre tantas outras que nos manietavam.

Revela-o um incidente inapreciável como muitos outros, porque o 15 de novembro foi uma glorificação exagerada de minúcias:

Na véspera daquele dia, às 10 horas da noite, toda a segunda brigada, em plena revolta, estava em forma e pronta para a marcha. Mas antes de a realizar sucedeu o fato ilógico e inverossímil de seguir um capitão mandado pelos chefes revolucionários, a participar o acontecimento ao próprio ajudante-general de exército, ao marechal Floriano. Por um impulso idêntico ao do criminoso que segue, num automatismo doentio, a confessar o crime ao juiz que o apavora, a conspiração denunciava-se. Atirava aquela cartada arriscadíssima; iludia o temor do adversário procurando-o; trocava a expectativa do perigo pelo perigo franco.

Mas nada conseguiu. Diante do oficial rebelde que viera de São Cristóvão a procurá-lo, encontrando-o na única sala que se destacava iluminada no vasto quartel do Campo de Santana imerso na mais profunda treva -o marechal Floriano apareceu ainda mais indecifrável. Determinou, com a palavra indiferente de quem dá a mais desvaliosa ordem a uma ordenança, que se desarmasse a brigada sediciosa. Mas não fez a recriminação mais breve, ou traiu o mais fugitivo espanto; e não prendeu o parlamentário indisciplinado que ao sair adivinhou, adensados no escuro, dentro, no vasto pátio interno, todos os batalhões de infantaria, com as espingardas em descanso, e de baionetas caladas onde se joeirava, salteadamente, em súbitos reflexos, o brilho das estrelas...

A consulta à esfinge complicara o enigma. Como interpretar-se aquela ordem apenas balbuciada pela primeira autoridade militar rodeada da parte mais numerosa da guarnição que os regimentos levantados iriam encontrar vigilante e firme nas formaturas rigorosas?...

A revolta desencadeou-se nesta indecisão angustiosa, e foi quase um arremesso fatalista para a derrota.

Porque a vitória foi uma surpresa; e desfechara-a precisamente o homem singular que equilibrara até ao último minuto a energia governamental e a onda revolucionária -até transmudar a própria infidelidade no fiel único da situação, de súbito inclinado para a última.

Este golpe teatral, deu-o com a impassibilidade costumeira; mas foi empolgante. Minutos depois, quando diante do ministério vencido o marechal Deodoro alteava a palavra imperativa da revolução, não era sobre ele que convergiam os olhares, nem sobre Benjamin Constant, nem sobre os vencidos -mas sobre alguém que a um lado, deselegantemente revestido de uma sobrecasaca militar folgada, cingida de um talim frouxo de onde pendia tristemente urna espada, olhava para tudo aquilo com uma serenidade imperturbável. E quando, algum tempo depois, os triunfadores, ansiando pelo aplauso de uma platéia que não assistira ao drama, saíram pelas ruas principais do Rio -quem quer que se retardasse no quartel-general veria sair de um dos repartimentos, no ângulo esquerdo do velho casarão, o mesmo homem, vestido à paisana, passo tranqüilo e tardo, apertando entre o médio e índex um charuto consumido a meio, e seguindo isolado para outros rumos, impassível, indiferente, esquivo...

E foi assim -esquivo, indiferente e impassível- que ele penetrou na história.

* * *

Vimo-lo depois, de perto, na conspiração contra o golpe de Estado de 3 de novembro.

A sua casa no Rio Comprido era o centro principal da resistência. Ia-se para lá de dia, em plena luz: nenhuns resguardos, nenhuma dessas cautelas, e ânsias ou sobressaltos, com os quais numa conspiração se romanceiam os perigos. Os conspiradores iam, prosaicamente, de bonde; saltavam num portão, à direita; galgavam uma escada lateral, de pedra; e viam-se a breve trecho num salão modesto, com a mobília exclusiva de um sofá, algumas cadeiras e dois aparadores vazios. Lá dentro, janelas largamente abertas, como se se tratasse da reunião mais lícita, rabeava ferozmente a rebeldia: gizavam-se planos de combate; balanceavam-se elementos ou recursos; pesavam-se incidentes mínimos; trocavam-se alvitres, denunciavam-se trânsfugas, enumeravam-se adeptos, e, nas palestras esparsas em grupos febricitantes, vibrava longamente este entusiasmo despedaçado de temores que trabalha as almas revolucionárias.

De repente, uma ducha enregelada: aparecia o marechal Floriano com o seu aspecto característico de eterno convalescente e o seu olhar perdido caindo sobre todos sem se fitar em ninguém. Sentava-se, vagarosamente; e no silêncio, que se formava de súbito, lançava uma longa e pormenorizada resenha dos achaques que o vitimavam. Era desalentador.

Passado, porém, aquele sobressalto invertido, aquela quietude alarmante e aquela calma impertinente, mais cruciante do que a ansiedade anterior, renovava-se a agitação; -e no gisarem-se planos, no balancearem-se recursos, no pesarem-se todos os incidentes, no contraposto, no revolto, no desordenado dos diálogos esparsos, ou cruzando-se, ou afinal fundidos na palavra única de alguém que atirava, de golpe entre os grupos uma notícia emocionante, naquele tumulto, o homem que era a nossa esperança mais alta lançava avaramente um monossílabo, um não apagado, um sim imperceptível no balanço fugitivo da cabeça, ou abria a encruzilhada de umtalvez...

Saía-se jurando que estivera na sala um traidor, impossibilitando-lhe o livre curso das idéias. Porque, isoladamente, a cada um dos que lá iam, ele se manifestava com a sua lucidez incomparável.

Aceitava-se um a um; repelia-nos unidos. E a pouco e pouco naquele retrair-se cauteloso, naquele escorregar precavido sobre todas as questões que se lhe propunham na reunião revolucionária, tão diferente do firme, do definido e do claro de pensar, que, parceladamente, manifestava a cada um dos que a constituíam, ele foi infiltrando na conspiração a sua índole retrátil e precatada. Por fim -confiava-se no melhor companheiro da véspera... desconfiando.

É natural que a trama sediciosa se alastrasse durante vinte dias, inteiramente às claras e imperceptível; e que ao irromper a 23 de novembro o movimento da Armada -simples remate teatral da mais artística das conspirações- o marechal Floriano, imutável na sua placabilidade temerosa, seguisse triunfal e tranqüilo para tomar o governo, «obedecendo» a um chamado do Itamarati, espantosamente disciplinado no fastígio da rebeldia que alevantara -e indo depor o marechal Deodoro vencido, com um abraço, um longo e carinhoso abraço, fraternal e calmo.

* * *

Conta-se que ao estalar a revolução de 6 de setembro, no meio do espanto, e do alarma, e do delírio de adesões e entusiasmos que para logo repontaram de todos os lados, gerando aquela angustiosíssima comoção nacional culminada pela loucura trágica de Aristides Lobo -conta-se que o marechal Floriano requintara na proditória quietude.

Impassível naquele estonteamento, superpôs ao tumulto o seu meio sorriso mecânico e o seu impressionador mutismo.

Num dado momento, porém, abeirou-se de uma das janelas do palácio aberta na direção aproximada do mar; e ali quedou um minuto, meditativo, na atitude habitual da sua apatia, enganosa e falsa.

Depois alevantou vagarosamente a mão direita, espalmada, vertical e de chapa para o ponto onde se adivinhavam os navios revoltosos, no gesto trivial e dúbio de quem atira de longe uma esperança ou uma ameaça...

Traçou naquele momento o molde da sua estátua. Nenhum escultor de gênio o imaginará melhor, a um tempo ameaçador e plácido, sem expansões violentas e sem um tremor no rosto impenetrável, desdobrando silenciosamente, diante do assalto das paixões tumultuárias e ruidosas, a sua tenacidade incoercível, tranqüila e formidável.

Bismarck, sempre tão penetrante nos conceitos que disparava -disparava é o termo próprio àquela sua ironia férrea, que matava como as balas- definiu, certa vez, a política do segundo império, fantasista e frívola, e tão estonteada na Europa, ou na América, na Itália, ou no México, entre deslumbrantes frivolidades, em que se dissipava o heroísmo tradicional da França:

-«Era uma política de gorjetas.»

Depois, esculpiu com quatro pranchadas de pena o homem que a inspirava:

«Napoleão III, com o seu egoísmo de corretor, incidiu no vício dos antigos diplomatas italianos, que confundiam a diplomacia e a perfídia. Tinha uma política ao mesmo passo bem ponderada e quimérica, complicada e ingênua. Pensando trabalhar para a França, abalou-lhe a liberdade e trouxe durante vinte anos, a Europa em contínuo alarma, mercê de suas indefinidas ambições. Faltavam à sua inteligência precisão e eficiência, a par de uma extraordinária fé na sua estrela, levando-o às mais ousadas tentativas com os planos mais quiméricos.»

Ora, Bismarck fazia então, sem o imaginar, o retrato da Alemanha de agora e do Kaiser.

Bem pouco há que alterar naquelas linhas lapidárias.

A terra clássica do bom senso equilibrado, da frieza de propósitos e da perseverança tranqüila, há dez anos que sobressalteia a Europa, graças à imaginação ardente, às fantasias e à vaidade feminil, laivada de arreganhos militares, de seu imperador imensamente francês, e francês antigo, romântico, imprevidente e aventureiro.

É um caso notável -o aspecto transcendental, talvez, dessa revanche tão longamente acariciada pela França e que aparece espontânea, trocadas inteiramente as fisionomias das duas vizinhas irreconciliáveis.

Realmente, a Alemanha, que acordou tarde para a expansão colonizadora -longo tempo iludida pela visão errada de Bismarck, preferindo ao melhor trato de território longínquo o arcabouço do último granadeiro pomerânio- a Alemanha agita-se hoje num estonteamento.

A dilatação territorial impõe-se-lhe como uma condição de vida, não já no sentido superior de um primado de idéias, senão também no sentido estritamente biológico da própria alimentação. O seu industrialismo robusto matou-lhe a produção agrícola, de sorte que a sua vida intensíssima, a mais intensa da Europa, em grande parte desviada à agitação fecunda das fábricas, é de todo aleatória. Não lha garante, mesmo imperfeitamente, a terra, cada vez mais escassa, à medida que lhe vai crescendo o povoamento, constrito entre as fronteiras inteiriças. Daí o seu arremesso dos estaleiros de Kiel para o desimpedido dos mares, visando amplificar a pátria, insuficiente, com o solo artificial e móvel dos conveses de uma frota mercante, que é a segunda do mundo, exigindo, paralelamente, as garantias de uma marinha de guerra formidável.

Mas, neste concorrer à partilha da terra, com todos os inconvenientes de quem chega tarde e encontra os melhores bocados noutras mãos, a política germânica tem sido, de fato, copiando-se a frase do lendário chanceler de ferro, -uma política de gorjetas. Nem lhe disfarça este caráter decaído a maneira arrojada que a reveste. Em todos os seus atos -nos arrogantes ultimata contra a frágil Venezuela, nos assaltos ferocíssimos de Waldersée, em Pequim, ou nas tortuosidades e perfídias diplomáticas que rodeiam a longa história da estrada para Bagdá, ou, ainda, no ganancioso alongar de olhos para os nossos Estados do Sul, a sua ânsia alucinada do ganho, pela pilhagem dos últimos restos da fortuna dos países fracos, pode assumir todas as formas, até mesmo o aspecto heróico: mas destaca-se com aquele traço inferior e irredutível.

Falta-lhe um Witte, falta-lhe um Chamberlain, falta-lhe um Roosevelt, e -note-se esta ironia singular da história- falta-lhe um Delcassé, ou um Combes...

* * *

Tem Guilherme II, um grande homem inédito.

Realmente, o Kaiseré uma promessa cada vez maior e mais irrealizável. Bismarck esboçou-se sem o saber, de ricochete, pela fisionomia de Napoleão III, mas fez-lhe a caricatura apenas, a largos traços, vivos; e os melhores psicólogos, ao escandirem os seus atributos característicos, não descobrem de onde lhe advêm tão antigermânicas qualidades. Perquirem-lhe a linhagem toda, e não lobrigam, nos confins indecisos do século XIII, o príncipe obscuro, misto de minnesänger e de soldado, errante, de castelo em castelo, pela Baviera em fora, todo vestido de ferro, feito um caçador de glórias e de perigos, a cantar o amor e a coragem, que veio, por um milagre de atavismo, surgir tão de pancada e estonteadamente em nossos dias...

É um revenant; e este evadido do passado, ao mesmo passo que se isola na Alemanha, vai isolando a Alemanha do convívio das nações.

Autocrata sem rebuços num império constitucional, em que os seus secretários particulares substituem os ministros responsáveis, aperta-se no estreitíssimo círculo de uma Corte louvaminheira, que não só o afasta do influxo austero da opinião pública germânica, como o impropria a avaliar os desastrosos efeitos de sua garrulice inconveniente sobre todas as nações. Embalde von Treitschke, o notável sucessor de Mommsen, denuncia «o exagerado culto teocrático à majestade que macula a monarquia prussiana» e as formalidades e cerimônias de uma Corte, onde «há a abjeção estagnada do servilismo oriental»; ou o Dr. Hann, secretário da Liga Agrária, denuncia nuamente, em público, o acabamento das qualidades superiores de consistência, de continuidade e de firmeza da inabalável política bismarckiana. O imperador não os ouve; repele-os.

Eles não lhe embalam a vaidade, não lhe aplaudem os discursos, não lhe admiram as concepções, não se enfileiram na numerosa claque que lhe proclama o enciclopedismo distenso. Wirchow atravessou o seu reinado, inteiramente desfavorecido, porque era liberal. Hauptmann, o maior dramaturgo da Alemanha, figura-se-lhe um rabiscador inaturável; a sua grande voz não vinga o abafamento dos reposteiros de Potsdam. Hoje o gênio laureado na terra sonhadora de Goethe é o capitão Lanff, um lírico de caserna. Para este todos os requintes dos favores imperiais, porque os seus dramas, impostos por decreto a todos os teatros subsidiados do Império -os seus dramas tremendos, refertos de cutiladas, de tiros, de urros pavorosos de terribilíssimos heróis, em que os entrechos se embaralham pisoados de cargas de cavalaria- são a apologia sanguinolenta dos Hohenzollerns. Reconhece-se que são maus, que são positivamente idiotas, no tacanhear dos conceitos, na frase cambeateante e perra, nos enredos desconexos e nos desenlaces abstrusos -mas lisonjeiam a vaidade imperial.

Esta vaidade é tudo, e para a satisfazer tudo se sacrifica.

Mostra-o o mesmo exército alemão, que, durante tanto tempo, foi o pavor da Europa. Viu-se-lhe, depois, a imponente fragilidade.

É um exército decorativo, adrede instruído a que rebrilhe ao sol dos dias festivos a espada virginalmente inocente do Kaiser, diante da burguesia assustadiça.

Revelou-o, recentemente ainda, Walf von Schierbraum, e propositadamente escolhemos, não já um prussiano, mas um rígido prussiano da guerra de 70, para que se firme este conceito: «O imperador, graças à sua índole espetaculosa, preparou o exército, não para a luta consoante a tática e as armas atuais, mas como se ainda vivêssemos nos antigos tempos.»

E logo adiante, textualmente: «Há quinze anos que o educa para falsas batalhas, arremetendo com imaginários inimigos, em condições tais, que lhe acarretarão completo extermínio em qualquer campanha destes dias.»

É um exército de paradas. Guilherme II conserva-o, cheio de desvelos de artista e de colecionador de raridades -como um de seus avós, Frederico Guilherme I, conservava os seus granadeiros de dois metros de altura. e os seus dragões torreantes -cuidadosamente, fora das intempéries danosas das batalhas...

Ele é a sua claque favorita e temerosa; e acredita-se, por vezes, que se arma contra a própria Alemanha.

Quando o imperador escreveu, no Livro de Ouro de Munique, o seu célebre suprema lex regis voluntas, ninguém aplaudiu a barbaria deste latim certíssimo, mas os feldmarechais deliraram, eletrizados.

Pouco tempo depois, ao rematar um de seus discursos perigosos com aquele: «Todos vós deveis ter uma vontade, a Minha vontade, e uma só lei, a Minha lei» -houve em toda a Alemanha um doloroso espanto, e o partido socialista, crescente à medida que a vontade imperial impõe ao Reichstag sucessivos aumentos de baionetas, replicou-lhe com uma de suas manifestações ruidosas. O Kaiser assusta-se; mete-se, assombrado, entre as fileiras adensadas, no campo de manobras de março de 1900, e ali, sob a hipnose estonteadora de milhares de espadas rebrilhantes:

«Se Berlim renovar contra o seu rei o insolente levante de 1848, vós, meus granadeiros, corrigireis os rebeldes a pontaços de baionetas!»


E houve um longo, estrepitoso aplauso...

Nada mais límpido no delatar o seu antagonismo com a própria capital do Império, se inúmeros outros casos não o atestassem sob variadíssimas formas.

Sumo árbitro em tudo, em política, como em música, em arquitetura, como em poesia, em pintura, como em qualquer ciência; estrategista, dramaturgo, arqueólogo, teólogo, inédito em tudo, poeta sem um verso, filósofo sem um conceito, músico sem uma nota, guerreiro sem um golpe de sabre, esse dissipar a individualidade irrequieta, espraiando-a largamente sobre todas as coisas, tem-lhe acarretado sucessivos desapontamentos.

Aqui, um edifício, o novo palácio de Reichstag, é o melhor exemplo, que se lhe afigura monstruoso aleijão, na mesma hora em que todos os profissionais alemães consagravam em verdadeira apoteose o arquiteto feliz que o planeou; além, um músico, que se lhe afigura simplesmente detestável -e que se imortaliza, e é Wagner...

Não raro, o antagonismo avulta e enreda-se ao ponto de dirimir-se nos tribunais. Há tempos o imperador, no meio de seus pensares, teve uma idéia surpreendente: construir mais igrejas em Berlim. Uma obsessão de artista. Entristecia-o, talvez, o belo firmamento berlinês, arqueado e vazio sobre as casernas acaçapadas, ou chatos alpendres de fábricas, sem o delicado granito das rosáceas, sem um grande, um arrebatador e vivo tumultuar de campanários alterosos... E a este propósito fez que ressurgisse uma lei obsoleta, de há quatro séculos, pela qual a cidade se obrigava a construir um número de templos proporcional ao de habitantes. O fóssil decreto medieval, porém, caiu estrepitosamente sob a condenação dos juizes...

Assim por diante.

É natural que a Alemanha se isole, perenemente ameaçadora e ameaçada.

Nada se pode prever na sua política ferretoada de caprichos. Rodeia-se a suspeita receosa das nações.

E, no momento agudo que vai passando, nesta vasta crise universal, apenas começada nos recantos do Extremo Oriente, quando os máximos resguardos presidem os atos de todos os governos, devem-se aguardar todas as surpresas da volubilidade alarmante e das arrancadas românticas daquele minúsculo deus do Eda, desgarrado na terra e errando entre as gentes -incompreendido, idealista e temeroso- como se fosse um neto retardatário das Valquírias.

A Arcádia da Alemanha

Este belo título clássico cabe ao Brasil. É o que nos revela um sociólogo qualquer da Contemporary Review, um dos muitos que hoje arremetem, aforradamente, com o indefinido das questões sociais. É inglês; e o argumento essencial ressalta-lhe na resvaladura desta cinca: somos um povo sem juízo, e a vitalidade germânica, em breve, nos absorverá. Registre-se-lhe a frase, onde à massuda sisudez britânica aflora o riso da alacridade ibérica: The brazilians themselves, as Dom Quixote said of Sancho Pansa, are people ol «muy poca sal en la mollera».

É interessante. Para o filósofo, pinturesco no amenizar de jogralidades, cogitações tão maciças, temperando o seu Hegel com Cervantes, somos decididamente um povo pródigo, doidivanas, que anda na história a esperdiçar uma herança. Impõe-se-nos a curadoria de um protetorado ou de uma conquista mansa, o carinhoso puxão de orelhas paterno com que se reaviam os pupilos inexperientes. É um caso em que o direito internacional, cujo elastério vai aumentando à medida que se dilatam as parábolas das balas, pode humanizar-se, transmudando-se no código civil proeminente das nações.

De feito, vai, ao parecer, dando demasiado nas vistas esta nossa vida fácil e perdulária, esta nossa vida à gandaia, ociosa e comodista, sobre a enorme fazenda de uns quatrocentos milhões de alqueires de terras, onde sesteamos, fartos, entre os primores de uma flora que tem tudo, desde o mais reles cereal ao líber, à fibra e ao látex para os lavores da indústria -e que nos dá tudo de graça com a sua exuberância incomparável, permitindo-nos contemplar (contemplar apenas como coisas meramente decorativas de um vasto parque de recreio) as nossas virgens bacias carboníferas, as nossas montanhas de ferro, as nossas cordilheiras de quartzito, os nossos litorais dourados pelas areias monazíticas, e o estupendo dilúvio canalizado dos nossos rios, e os cerros lastrados de ouro das grupiaras, e os pendores numerosos, onde se desatam perpetuamente as longas fitas alvinitentes da hulha branca à espera das roldanas que elas moverão um dia... Coisas que mal vemos, pisando distraídos sobre o macadame sem preço dos cascalhos diamantinos e errando nos paraísos vazios dos geraissem fim...

Enquanto isto acontece, a vida de outras gentes, intensíssima e a crescer, a crescer dia a dia, mais e mais se agita, constrita à força na clausura das fronteiras. De sorte que a nossa esplêndida mediocridade se lhes torna em perpétuo desafio, repruindo-lhes a riqueza torturada e a pletora de forças, que, na ordem econômica, caracteriza o moderno imperialismo.

A Alemanha é o melhor exemplo. É o caso típico de um povo sob a ameaça permanente de seu mesmo progresso. Passando, com uma rapidez sem par na história, do regime agrícola em que se aplicavam, há meio século, três quartos da sua gente, para o máximo regime industrial, onde se aplicam hoje dois terços da sua atividade -ficou duplamente adstrita a todas as exigências do expansionismo obrigatório. Para viver e para agir. De um lado, calcula-se que o seu solo, intensamente explorado, no máximo, bastará a alimentar trinta milhões de homens, e ela tem quase o dobro. De outro, cerca de metade das matérias-primas, que lhe alimentam as indústrias, vêm do exterior. Está numa alternativa. Ou isolar-se num papel secundário e obscuro, procurando, na emigração pacífica, um desafogo à sua sobrecarga humana -ou expandir-se, sistematicamente conquistadora, arriscando-se às maiores lutas.

Preferiu o último caso. Não tinha por onde sair.

A atitude entonada, o recacho atrevido, as hipérboles políticas e todo o gongorismo guerreiro desse Guilherme II, de fartos bigodes repuxados e duros olhos verdes ressumando cintilar de espadas, e os seus arrancos oratórios, as suas inconveniências e os seus exageros, e até as suas temeridades, todas essas coisas anômalas, que, há dez anos, sobressalteiam a Europa -têm o beneplácito dos mais frios pensadores da Germânia.

Há quem descubra naquela figura tumultuária algo de medieval. É, de fato, um revenant.

Mas, por isso mesmo, é o melhor tipo representativo desta situação especialíssima da Alemanha a idealizar, com os mesmos enlevos dos trovadores de suas velhas baladas, a sua missão na terra.

Apenas a odisséia não tem rimas; tem cifras; reponta de argumentos inflexivelmente práticos; e os seus melhores cantores, uns velhinhos mansíssimos, saem do remanso das academias. Resolvem um problema; e não indagam se ele requer, ou dispensa, o processo de eliminação de algumas batalhas.

Para o Dr. Vosberg-Rekow, todo o corpo político-industrial alemão depende do estrangeiro por maneira tal que a súbita parada na remessa das matérias-primas essenciais lhe acarretará desorganização completa -verdadeira ruína que só pode prevenir com uma poderosa marinha apta, do mesmo passo, a fiscalizar os caminhos do mar e a facilitar a conquista de colônias produtivas.

O professor Schmoeller é até alarmante: se a Alemanha se não robustecer bastante nos mares, ao ponto de garantir, perenemente, a importação do trigo de que carece, e, em dadas circunstâncias, exercer uma pressão eficaz sobre os países que lho vendem -a sua própria existência material está em perigo.

Sobre todos, Bassenge, abertamente terrorista, agita três espectros do futuro: a Rússia açambarcando quase toda a Ásia; a América do Norte, com a sua ilimitada energia econômica, derrotando a Europa dentro dos mercados europeus; e a Inglaterra, monopolizando o comércio de um quinto da superfície terrestre. Apelam para a estatística, a serva desleal da sociologia; calculam; perdem-se nas tortuosidades dessa aritmética imaginária, e Schleiden descobre que em 1980 haverá 1.280 milhões de eslavos e anglo-saxônios contra 180 milhões de alemães, o que equivale à morte do pan germanismo pelo simples peso material daquela massa humana.

Sering não vai tão longe. A seu parecer, dentro de vinte anos a indústria russa atenderá por si só ao mercado nacional, o que sucederá também com a norte-americana, -e, se a Inglaterra realizar a planejada Imperial Customs Union, o industrialismo alemão ruirá de todo, restando às populações o abandono da pátria.

* * *

Diante de perspectivas tão sombrias, compreendem-se os lances arrojados da política teutônica, que assumem hoje os mais díspares aspectos -desde a anglofobia exposta durante a Guerra do Transvaal, disfarçando o intento de captar um consumidor na África do Sul, a esta fantástica estrada de ferro de Bagdá, visando transformar Ormuz num Suez prussiano, de onde se facilite uma passagem para o Oceano Índico.

Mas, sobre todos estes expedientes, à medida que faz delirar a quantos filósofos, sábios, meio sábios e sociólogos o fetichismo nacional de Kreisreidee agita entre o reportado von Bulow e o irrequietíssimo imperador, o ideal que estonteia os Wagner, Schmoeller, Hartmann, Vosberg, Schumacher, Voigt, Sering e toda uma legião de foliculários assanhados -é a posse do Brasil do Sul.

Não lhes resta o vacilar mais breve: caímos na órbita da Alemanha, como o Egito na da Inglaterra, e na da Rússia a Manchúria.

O Dr. Leyser -são em geral doutores estes pioneers abnegados- não o disfarça no seu belo livro:

«Hoje, nestas províncias (Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul) cerca de 30% dos habitantes são germanos ou seus descendentes; e, por certo, nos pertence o futuro desta parte do mundo. De feito, ali, no Brasil meridional, há paragens ricas e salubres, onde os alemães podem conservar a nacionalidade, e um glorioso futuro se antolha a tudo que se compreende na palavra -germanismus


Como este, idéiam-se outros projetos imaginários, que fora inútil reproduzir, tão conhecidos são eles. E, intermitentemente, um naturalista de nome arrevesado, H. Meyer, von den Stein, ou qualquer outro, ou esse Dr. Valentim, espécie de repórter enciclopédico de um jornal berlinês, aparece entre nós; traça, em alemão, o melhor das nossas inéditas paisagens, e atira para além-mar, dentro de um livro curioso, ou nas entrelinhas das correspondências admirativas, ou nos cifrões dos relatórios maciços, novos elementos ao fervor expansionista em que, por igual, ali se abrasam, unidos pelo mesmo anelo, militares arrogantes, políticos solertes e austeros pensadores...

* * *

Ora, tudo isto é monstruosamente verdadeiro; tudo isto forma um dos prediletos assuntos de grande número de revistas, e tudo isto é um exaustivo, um absolutamente estéril bracejar entre miragens.

Que não nos assuste este imperialismo platônico...

Um simples, o mais apagado lance de vista sobre o atual momento histórico revela que a Alemanha não pode abalançar-se, tão cedo, a empresas de tal porte. A sua política expansiva gira num círculo vicioso original; precisa de colônias e mercados estranhos para viver e vencer a concorrência de outros povos; precisa dominar, sob todas as formas, esta concorrência, para conseguir aquelas colônias e mercados.

Dificilmente se forrará aos entraves desta situação penosa.

O seu duelo econômico com a América do Norte e com a Inglaterra é dos que não terminam nunca; a sua incompatibilidade com a França é irremediável; e a aliança com a Itália implica com a solidariedade latina renascente. Guilherme II, com o seu desastrado ansiar pelas simpatias de todo o mundo, só conseguiu um amigo, um deplorável amigo, o seu grande amigo Abdul-Hamid, o sultão vermelho, encouchado, traiçoeiramente, nos Dardanelos, na encruzilhada suspeita de dois mundos...

Resta-lhe o gravitar passivo na órbita desmedida da Rússia. Mas esta há de arrebatá-lo para o Oriente, longe.

Além disto, o princípio de Monroe, interpretemo-lo à vontade, com ser um reflexo político dos interesses estritamente comerciais do ianque, tem o valor de nos facilitar ao menos uma longa trégua.

Podemos deixar estas batalhas de frases contra fantasmas e voltar à luta real, à campanha austera do nosso alevantamento próprio.

Que a Alemanha sonhe à vontade: é a grande terra idealista por excelência, onde os mesmos matemáticos da envergadura de Leibniz são poetas.

Ali nasceu Schiller, de quem se conhece um verso admirável,

Arcádia, pátria ideal de toda a gente!



Sendo assim, errou o minúsculo sociólogo precitado. A Arcádia da Alemanha não é o Brasil.

Lá está dentro dela mesmo, no seu melhor retalho, na Prússia liricamente guerreira e fantasista, onde, nesta hora, tumultuam não sabemos quantos marechais devaneadores e não sabemos quantos filósofos belicosos.

A vida das estátuas

O artista de hoje é um vulgarizador das conquistas da inteligência e do sentimento. Extinguiu-se-lhe com a decadência das crenças religiosas a maior de suas fontes inspiradoras. Aparece num tempo em que as realidades demonstráveis dia a dia se avolumam, à medida que se desfazem todas as aparências enganadoras, todas as quimeras e miragens das velhas e novas teogonias, de onde a inspiração lhe rompia, libérrima, a se desafogar num majestoso simbolismo. Resta-lhe, para não desaparecer, uma missão difícil: descobrir, sobre as relações positivas cada vez mais numerosas, outras relações mais altas em que as verdades desvendadas pela análise objetiva se concentrem, subjetivamente, numa impressão dominante. Aos fatos capazes das definições científicas ele tem de superpor a imagem e as sensações, e este impressionismo que não se define, ou que palidamente se define «como uma nova relação, passiva de bem-estar moral, levando-nos a identificar a nossa sinergia própria com a harmonia natural».

É a «verdade extensa», de Diderot, ou o véu diáfano da fantasia, de Eça de Queiroz, distendido sobre todas as verdades sem as encobrir e sem as deformar, mas aformoseando-as e retificando-as, como a melodia musical se expande sobre as secas progressões harmônicas da acústica, e o arremessado maravilhoso das ogivas irrompe das linhas geométricas e das forças friamente calculadas da mecânica.

Daí as dificuldades crescentes para o artista moderno em ampliar e transmitir, ou reproduzir, a sua emoção pessoal. Entre ele e o espectador, ou o leitor, estão os elos intangíveis de uma série cada vez maior de noções comuns -o perpetuum mobile dessa vasta legislação que resume tudo o que se agita e vive e brilha e canta na existência universal. Diminui-se-lhe a primitiva originalidade. Vinculado cada vez mais ao meio, este lhe impõe a passividade de um prisma: refrata os brilhos de um aspecto da natureza, ou da sociedade, ampliando-os apenas e mal emprestando-lhe os cambiantes de um temperamento. Já lhe não é indiferente, nestes dias, a idéia ou o assunto que tenha de concretizar no mármore ou no livro.

O seu trabalho é a homogenia da sua afetividade e da consciência coletiva. E a sua personalidade pode imprimir-se fundamente num assunto, mas lá permanecerá inútil se destoar das idéias gerais e dos sentimentos da sua época...

* * *

Tomemos um exemplo.

Há uma estátua do marechal Ney, em que se têm partido todos os dentes da crítica acadêmica e reportada.

Dos múltiplos aspectos da vida dramática e tormentosa do valente, o escultor escolheu o mais fugitivo e revolto: o final de uma carga vitoriosa.

O general, cujo tronco se apruma num desgarre atrevido, mal equilibrado numa das pernas, enquanto a outra se alevanta em salto impetuoso, aparece no mais completo desmancho: a farda desabotoada, e a atitude arremetente num arranco terrível, que se denuncia menos na espada rijamente brandida que na face contorcida, onde os olhos se dilatam exageradamente e exageradissimamente a boca se abre num grito de triunfo.

É um instantâneo prodigioso. Uma vida que se funde no relance de um delírio e num bloco de metal. Um arremesso que se paralisa na imobilidade da matéria, mas para a animar, para a transfigurar e para a idealizar na ilusão extraordinária de uma vida subjetiva e eterna, perpetuamente a renascer das emoções e do entusiasmo admirativo dos que a contemplam.

Mas para muitos são perfeitamente ridículos aquela boca aberta e muda, aquele braço e aquela perna no ar. Em um quadro, sim, conclamam, à frente de um regimento, aquela atitude seria admirável. Ali, não; não se compreende aquela nevrose, aquela violência, aquela epilepsia heróica no isolamento de um pedestal.

Entretanto, o que a miopia da crítica até hoje ainda não distinguiu, adivinhou-o sempre a alma francesa; e o legitimista, o orleanista, o bonapartista e o republicano divergentes, ali se irmanam, enleados pelos mesmos sentimentos, escutando a ressoar para sempre naquela boca metálica o brado triunfal que rolou dos Pirineus à Rússia, e vendo na imprimadura transparente e clara daqueles ares não o regimento tão complacentemente requisitado, mas todo o grande exército...

E que a escultura, sobretudo a escultura heróica, tem por vezes a simultaneidade representativa da pintura, de par com a sucessão rítmica da poesia ou da música. Basta-lhe para isto que se não limite a destacar um caráter dominante e especial, senão que também o harmonize com um sentimento dominante e generalizado.

Neste caso, malgrado o restrito de seus recursos e as exigências máximas de uma síntese artística, capaz de reproduzir toda a amplitude e toda a agitação de uma vida num bloco limitado e imóvel -este ideal é notavelmente favorecido pelo sentimento coletivo. A mais estática das artes, se permitem o dizer, vibra então na dinâmica poderosa das paixões e a estátua, um trabalho de colaboração em que entra mais o sentimento popular do que o gênio do artista, a estátua aparece-nos viva -positivamente viva, porque é toda a existência imortal de uma época, ou de um povo, numa fase qualquer de sua história que para perpetuar-se procura um organismo de bronze.

Porque há até uma gestação para estes entes privilegiados, que renascem maiores sobre os destroços da vida objetiva e transitória. Não bastam, às vezes, séculos. Durante séculos, gerações sucessivas os modelam e refazem e aprimoram, já exagerando-lhes os atributos superiores, já corrigindo-lhes os deslizes e vão transfigurando-os nas lendas que se transmitem de lar em lar e de época em época, até que se ultime a criação profundamente humana e vasta. De sorte que, não raro, a estátua virtual, a verdadeira estátua, está feita, restando apenas ao artista o trabalho material de um molde.

A de Anchieta, em São Paulo, é expressivo exemplo.

Tome-se o mais bisonho artista; e ele a modelará de um lance.

Tão empolgante, tão sugestiva é a tradição popular em torno da memória do evangelizador, que o seu esforço se reduzirá ao trabalho reflexo de uma cópia.

Não pode errar. As linhas ideais do predestinado corrigem-lhe os desvios do buril. O elemento passivo, ali, não é a pedra ou o bronze, é o seu gênio. A alma poderosa do herói, nascente do culto de todas as almas, absorve-lhe toda a personalidade, e transfigura-o e imortaliza-o com o mais apagado reflexo da sua mesma imortalidade...

Mas há ocasiões (e aqui se nos antolha uma contraprova desta psicologia transcendental e ao parecer singularmente imaginosa) em que a estátua nasce prematura.

Falta-lhe a longa elaboração do elemento popular. Possui talvez admiráveis elementos capazes de a tornarem grande ao cabo de um longo tempo -um longo tempo em que se amorteçam as paixões e se apaguem, pelo só efeito de uma dilatada perspectiva histórica, todas as linhas secundárias de uma certa fase da existência nacional...

Mas não se aguarda esse tempo; não se respeita esse interregno, ou essa quarentena ideal, que livra as grandes vidas dos contágios perniciosos das nossas pequenas vidas; e decreta-se uma estátua, como se fosse possível decretar-se um grande homem.

Então, neste vir fora de tempo, ela é historicamente inviável.

E não há golpes de gênio que a transfigurem.

É uma estátua morta.

O grande missionário reconcilia-nos com a Companhia de Jesus.

É o seu maior milagre.

Votada em parte à antipatia de uma forte corrente de sábios e pensadores, como um elemento dispersivo na solidariedade moral dos povos, a instituição, para eles irrevogavelmente condenada, tem, na história, na feição de José de Anchieta, talvez a sua feição mais atraente.

Combatente, na Europa, como centro de resistência do catolicismo ante a irrupção impetuosa da Reforma, combatente no Extremo Oriente ante as religiões seculares do paganismo, ela, ante as tribos ingênuas da América, foi humana, persuasiva, evangelizadora. Incoerente e sombria, pregando no século XVI, exageradamente, através da justificação singular da estranha teoria do regicídio de Mariana, a soberania do povo, e combatendo, aliada aos tronos, essa mesma soberania quando surgia triunfante no século XVIII; precipitando ora os reis sobre os povos, ora os povos sobre os reis; traçando, através da agitação de três longos séculos atumultuados, os meandros de espantosas intrigas -ela foi, na América, coerente na missão civilizadora e pacífica, seguindo a trajetória retilínea do bem, heróica e resignada, difundindo nas almas virgens dos selvagens os grandes ensinamentos do Evangelho.

Não dispersou, uniu.

Ligou à humanidade, emergente da agitação fecunda da Idade Média, um povo inteiro -espíritos jungidos a um fetichismo deprimente, forças perdidas nas correrias guerreiras dos sertões...

E para esta empresa imensa teve entre nós uma alma simples, sem violentos ímpetos de heroicidade, -amplíssima e casta- iluminada pela irradiação serena do ideal.

Daí todo o encanto que ressalta à simples contemplação da bela figura de Anchieta, entregue hoje à existência subjetiva da história, e cujo nome tem na nossa terra a propriedade de fundir todas as crenças e opiniões numa veneração comum.

É que em virtude de causas múltiplas, em que preponderam de um lado as condições do meio e de outro o próprio sentimento dos missionários, a Companhia de Jesus perdeu, no Novo Mundo, a feição batalhadora.

Longe das controvérsias irritantes que circulavam a dissolução do regime católico-feudal, os apóstolos que agiram fora da convulsão que abalava a Europa, com São Francisco Xavier nas Índias e com Anchieta e Nóbrega no Ocidente, ao desdobrarem, diante do gentio deslumbrado, a significação divina da vida, num cândido misticismo, souberam fazer da humildade a forma mais nobre do heroísmo e venceram pelo incutir nas almas obscuras dos bárbaros todo o fulgor que lhes esclarecia as próprias almas.

E foram além na missão evangelizadora.

A nossa história o diz: depois do combate incruento à idolatria, depois da catequese das tribos, através de esforços que lembram os primeiros séculos da igreja, animou-os a preocupação capital de salvá-las da escravidão.

A ambição extraordinária de audazes aventureiros exigia a força inconsciente do selvagem para as longas pesquisas nos sertões.

A história dolorosa das reduções jesuíticas terminada pelo sombrio epílogo de Guaíra, patenteia uma inversão singular de papéis; o missionário reagia à frente dos bárbaros arrancados às selvas contra os bárbaros oriundos das terras civilizadas.

Desse conflito resulta, em muitos pontos, a feição verdadeiramente heróica do nosso passado.

Ora, os que arcavam, no Brasil, com esta missão múltipla e elevada, definem-se admiravelmente em Anchieta -um nome que é a síntese de uma época.

Grande homem, segundo a definição profunda de Carlyle, a sua história abrange um largo trecho da nossa própria história nacional.

Desde 1554, ao criar o terceiro colégio regular no Brasil, erigindo Piratininga, graças ao estabelecimento de um melhor sistema de proselitismo, esse centro diretor da larga movimentação das missões brasileiras, até 1597, ao expirar em Reritibá, rodeado pelos discípulos e pelas tribos catequizadas, a sua existência, dia por dia, hora por hora, constante no devotamento à mais sagrada das causas, irradia sobre uma época tumultuosa como uma apoteose luminosa e vasta.

Soberanamente tranqüilo sobre a revolta das paixões, nada o perturbou -nem mesmo quando, colaborando diretamente para a organização futura da nossa nacionalidade, ele ligou a palavra ardente de apóstolo ao cintilar da espada heróica de Estácio de Sá ou, impelindo ao combate os guaianáses leais, repelia as hordas ferozes dos tamoios que investiam contra São Paulo.

Preso entre esses últimos, sob a ameaça persistente do martírio e da morte, a sua alma religiosa expande-se em poema belíssimo no qual a dicção aprimorada se alia à erudição notável. Seguindo ásperos itinerários nos sertões em busca do aimoré bravio, à amplitude de seu espírito não escapa a nossa natureza deslumbrante acerca da qual faz estudos, lidos mais tarde com surpresa por todos os naturalistas, que o proclamaram, pela pena de Auguste Saint-Hilaire, um dos homens mais extraordinários do século XVI. Por toda a parte, em todas as situações de uma carreira longa e brilhante, como simples irmão ou no fastígio do provincialado, enfeixando nas mãos poderes extraordinários, não há um salto, um hiato, um acidente ligeiro perturbando a continuidade da sua existência privilegiada de grande homem -útil, sincero e bom.

Fora longo e dificílimo traçá-la, palidamente embora.

Mais alto e com mais eloqüência do que nós, fala este sentimento sagrado de veneração que pressentimos em torno, amplo, forte e generoso, inacessível às diversidades de crenças e sob cujo influxo se opera em nosso tempo a ressurreição do grande morto de há três séculos.

O forasteiro que no último quartel do século XVIII demandasse os povoados de Minas Gerais, eretos da noite para o dia na extensa zona do distrito Diamantino, sentia a breve trecho o mais completo contraste entre a aparência singela daqueles modestos vilarejos e as gentes que neles assistiam.

Entrava pelas ruas tortuosas e estreitas, ora marginando as lezírias dos córregos em torcicolos, ora envesgando, clivosas, pelo viés dos pendores, ladeadas de casas deprimidas de beirais desgraciosos e saídos; percorria-as calcando um áspero calçamento de pedras malgradadas; desembocava num largo irregular onde avultava a picota octogonal do pelourinho, ameaçadora e solitária; deparava mais longe duas ou três pesadas igrejas de taipa; e certo sentiria crescer a desoladora saudade do torrão nativo se naquele curto trajeto não se lhe antolhassem singularíssimos quadros.

Surpreendiam-no, empolgantes, o excesso de vida daqueles recantos sertanejos e o espetáculo original da Fortuna domiciliada em pardieiros.

E, se conseguisse abarcar de um lance a multidão doidejante e inquieta que atestava as vielas e torvelinhava nas praças, teria a imagem estranha de uma sociedade artificial, feita de elementos díspares transplantados de outros climas e mal unidos sobre a base instável, dia a dia destruída, ruindo solapada pela vertigem mineradora -da própria terra em que pisavam.

Acampado nos cerros, o povo errante levava para aqueles rincões -escalas transitórias ocupadas à ventura- todos os hábitos avoengos que não afeiçoavam ao novo meio. E estadeava todos os seus elementos incompatíveis fortuitamente reunidos, mas repelindo-se pelo contraste das posições e das raças: -dos congos tatuados que moirejavam nas lavras, com a rija envergadura mal velada pelas tangas estreitas ou rebrilhando, escura, entre os rasgos das roupas de algodão; aos contratadores ávidos e opulentos, passando por ali como se andassem nas cidades do reino, entrajando as casacas de veludo, de portinholas e canhões dobrados, abertas para que se visse o colete bordado de lantejoulas, descidas sobre os calções de seda de Macau atacados com fivelas de ouro. A grenha inextricável do africano chucro contrastava com a cabeleira de rabicho, empoada e envolta de um cadarço de gorgorão rematando numa laçada, do peralvilho rico; a alpercata de couro cru estalava rudemente junto do sapato fino, pontiagudo, cravejado de pérolas, do reinol casquilho, graciosamente bamboleante com o andar que ensinavam os «mestres de civilidade»; o cacete de guarda-costas vibrava próximo do bastão de biqueira de ouro, finamente encastoado; e o facão de cabo de chifre, do mateiro, fazia que ressaltassem, mais artísticos, os brincos de ourivesaria dos floretes de guarnições luxuosas dos fidalgos recém-vindos.

Ia-se de um salto de uma camada social a outra.

Parecia não haver intermédios àquela simbiose da escravidão com o ouro, porque não havia encontrá-los mesmo no agrupamento incaracterístico, e mais separador que unificador, dos solertes capitães-do-mato, dos meirinhos odientos, dos bravateadores oficiais de dragões, dos guardas-mores, dos escrivães, dos pedestres e dos exatores, açulados pelas ruas, farejando as estradas e as picadas, perquirindo os córregos e os desmontes, em busca do escravo; filando-se às pernas ágeis dos contrabandistas; colados no rastro dos contraventores; e espavorindo os faiscadores pobres, inquirindo, indagando, prendendo, intimando e, quase sempre, matando...

Sobre tudo isto dois tremendos fiscais que a Corte longínqua despachara apercebidos de faculdades discricionárias: o ouvidor da comarca e o intendente dos diamantes.

Tinham a tarefa fácil de uma justiça que por seu turno se exercitava entre extremos, monstruosa e simples, mal variando nos «termos de prisão, hábito e tonsura», oscilando em mesmices torturantes, da devassa ao pelourinho, do confisco à morte, dos troncos das cadeias aos dez anos de degredo em Angola.

É que a terra farta, desentranhando-se nos minérios anelados, não era um lar, senão um campo de exploração predestinado a próximo abandono quando as grupiaras ricas se transmudassem nas restingas sáfaras, e fossem avultando, maiores, mais solenes e impressionadoras, sobre a pequenez dos povoados decaídos, as catas silenciosas e grandes -montões de argila revolvidos e tumultuando nos ermos à maneira de ruínas babilônicas...

* * *

Mas fora da mineração legal adscrita na impertinência bárbara dos alvarás e cartas régias; trabalhada de fintas, alternativamente agravada pelo quinto e pela capitação exaurida a princípio pelos contratadores e depois pela extração real, estendera-se intangível, e livre, e criminosa, irradiante pelos mil tentáculos dos ribeirões e dos rios, desdobrando-se pelos tabuleiros, ou remontando às serras a faina revolucionária e atrevida dos garimpos.

Despejados dos arraiais; esquivos pelas matas que varavam premunidos de cautelas, porque não raro no glauco das paisagens coruscavam, de golpe, os talins dourados e os terçados dos dragões girando em sobre-rondas céleres; caçados como feras -os garimpeiros, incorrigíveis devassadores das demarcações interditas, davam o único traço varonil que enobrece aquela quadra.

Vinham de um tirocínio bruto de perigos e trabalhos, nas velhas minerações; e, únicos elementos fixos numa sociedade móvel, de imigrantes, iam capitalizando as energias despendidas naqueles assaltos ferocíssimos contra a terra.

Desde as primitivas buscas pelos leitos dos córregos, dos caldeirões e das itaipavas, com o almocafre curvo ou a bateia africana, na atividade errante das faisqueiras; aos trabalhos nos tabuleiros, arcando sob os carumbés refertos, ou vibrando as cavadeiras chatas até aos lastros ásperos dos nódulos de hematita das tapanhuacangas; às catas mais sérias, às explorações intensas das grupiaras pelos recostos dos morros, que, broqueados de cavas circulares e sarjados pelas linhas retilíneas e paralelas das levadas, desmantelados e desnudos, tornavam maiores as tristezas do ermo; e, por fim, à abertura das primeiras galerias acompanhando os veios quartzosos, mas sem os resguardos atuais, tendo sobre as cabeças o peso ameaçador de toda a massa das montanhas -eles percorreram todas as escalas da escola formidável da força e da coragem.

Vibraram contra a natureza recursos estupendos.

Abriam canais de léguas ajustados às linhas das cumeadas altas; e adunando a centenas de metros de altura, em vastos reservatórios, as águas captadas, rompiam-nos. Ouviam-se os sons das trompas e buzinas prevenindo os eitos de escravos derramados nas encostas, para se desviarem; e logo após uma vibração de terremoto, um como desabamento da montanha, a avalanche artificial desencadeada pelos pendores, tempesteando e rolando -troncos e galhadas, fraguedos e graieiros, confundidos, embaralhados, remoendo-se, triturando-se, descendo vertiginosamente e batendo embaixo dentro dos amplos mundéus onde acachoava o fervor da vasa avermelhada lampejante das palhetas apetecidas...

Desviavam os rios; invertiam-lhes as nascentes, ou torciam-nos cercando-os; e, por vezes, alevantavam-nos, inteiros, sobre os mesmos leitos. Todo o Jequitinhonha, adrede contido e alteado por uma barragem, derivou certa vez por um bicame colossal, de grossas pranchas presas de gastalhos, deixando em seco, poucos metros abaixo, o cascalho sobre que fluía há milênios... E ali embaixo, centenares de titãs tranqüilos, compassando as modinhas dolentes com o soar dos almocafres e alavancas, labutavam, cantando descuidados, tendo por cima o dilúvio canalizado...

Assim foram crescendo...

De sorte que quando a metrópole, exagerando a antiga avidez ante a fama dos novos «descobertos», se demasiou em rigores e prepotências para tornar efetivo o monopólio da extração, isolando aquela zona de todo o resto do mundo, dificultando as licenças de entrada e os passaportes, multiplicando registos e barreiras, extinguindo os correios, e tentando mesmo circunvalar as demarcações, não lhe bastando o permanente giro das esquadras de pedestres, baldaram-se-lhe em parte os esforços ante os rudes caçadores furtivos da fortuna, inatingíveis às fintas, às multas, às tomadias, aos confiscos, às denúncias, às derramas; e que aliados aos pechilingueiros vivos, aos tropeiros ardilosos passando entre as patrulhas com o contrabando precioso metido entre os forros das cangalhas, aos comboieiros que enchiam os cabos ocos das facas com as pedras inconcessas, ou aos mascates aventureiros intercalando-as nos remontes dos coturnos grosseiros -estendiam por toda a banda, até ao litoral, a agitação clandestina, heróica e formidável.

«Desaforados escaladores da terra!...» invectivavam as ríspidas cartas régias, delatando o desapontamento da Corte remota ao pressentir escoarem-se-lhe as riquezas pelos infinitos golpes que lhe davam nos regimentos aqueles adversários.

E armou contra eles exércitos.

Bateram longamente os caminhos as patas entaloadas dos corpos de dragões.

Adensaram-se em batalhões as patrulhas errantes e dispersas dos pedestres; e avançaram ao acaso pelas matas em busca dos adversários invisíveis.

Os garimpeiros remontavam às serras; espalhavam-se em atalaias; grupavam-se em guerrilhas diminutas; e por vezes os graves intendentes confessavam aos conselhos de ultramar a «vitória de uma emboscada de salteadores».

Finalmente se planearam batalhas.

Rijos capitães-generais, endurados nas refregas da Índia, largaram dos povoados ao ressoar das preces propiciatórias e sermões, chefiando os terços aguerridos, e arrastando penosamente pelos desfreqüentados desvios as colubrinas longas e os pedreiros brutos.

Mas roncearam, inutilmente, pelos ermos.

Enquanto à roda, desafiando-os, alcandorados nos itambés a prumo; relampeando no súbito fulgir das descargas, das tocaias; derivando em escaramuças pelos talhados dos montes; arrebentando à boca das velhas minas em abandono, de repente escancaradas numa explosão de tiros -os «desaforados escaladores da terra», os anônimos conquistadores de uma pátria, zombavam triunfalmente daqueles aparatos guerreiros, espetaculosos e inofensivos.

Uma comédia histórica

Na Europa diplomática do século XVIII o Portugal de D. João V era urna exceção desanimadora. Despeara-se no progresso geral e ia atingir a quadra revolucionária, mal disfarçando, com a exterioridade deslumbrante das minas do Brasil, os máximos desfalecimentos da originalidade e da vida.

Há um atestado expressivo deste fato: a feição literária do tempo, incolor e exótica, laivada de perífrases e trocadilhos, ou sulcada de metáforas extravagantes, reveladoras dos ressaibos corruptores das canzoni alambicadas de Mazzini ou das agudezas e hipérboles assombrosas de Gôngora.

Era um recuo deplorável. O italianismo e o espanholismo, que haviam sido um característico geral da literatura européia, em passado recente, desapareciam em toda a banda. Na Inglaterra, o excêntrico eufuísmo, que lembra um assalto de cansaço depois da formidável elaboração shakespeariana, alastrando-se da fantasia maravilhosa de Milton, às rimas infamíssimas de Wicherley -desaparecia ante a frase lapidária de Burton; na França, o preciosismo acabava pelo próprio exagero, embora se abrisse no salão de Luís XIV o grande molde dourado do classicismo, com o recato do pensar e o requintado polido das maneiras e do dizer; e na mesma Itália, de onde surgira o primado efêmero dos pensieri, o lirismo vigoroso de Metastasio iniciava triunfalmente uma era nova. É que nestes países se formava a energia de uma renovação científica e filosófica, que, com F. Bacon, Descartes e Galileu, alevantara sobre a ruinaria da escolástica os elementos do espírito moderno. Em todos a arte de escrever era apenas um aspecto, o mais sedutor talvez, e nada mais, das inteligências, que, em breve, encontrariam no maior operário da enciclopédia -a um tempo romancista, dramaturgo, crítico, cientista e filósofo- em Diderot, o exemplo vivo do quanto importam ao mais ousado idealizar estético os mais aparentemente, frios recursos positivos.

Em Portugal, não. A língua forte dos quinhentistas gaguejava nas silvas e acrósticos alambicados, nas maravilhas do falar e no requinte estéril de um culteranismo, onde a fragilidade das idéias facultava aos períodos vazios o caprichoso das formas mais bizarras. A terra de Vieira dava quase o espetáculo da desordem da palavra numa espécie de afasia literária.

O século XVIII teve o seu aspecto filosófico e o seu aspecto mundano. Teve Voltaire e teve Crebillon. Portugal copiava o último, ao mesmo tempo que D. João V imitava a frivolidade resplandecente do rei Sol, dos minuetos e das etiquetas, olvidando o Luís XIV dos tratados.

Daí o burlesco daquela tentativa de transferir para Lisboa um lampejo de Versalhes, numa grandeza achamboada e informe que era, como todas as paródias, um contraste. É o contraposto entre o medido das frases e das idéias, que na Corte parisiense transmudavam o classicismo numa sistematização da vulgaridade, e o retumbante e amaneirado das glosas e madrigais dos versejadores portugueses. Comparem-se o Camões do Rocio e Boileau; ou então a pragmática dos saraus de Rambouillet aos festejos ruidosos de Lisboa onde se viam, sem escândalo à fradaria inumerável, rompentes nas procissões ou saracoteando nos salões, ao toar dos alaúdes e guitarras, a poesia, a gramática (a gramática!) e a retórica com a sua ninhada de tropos espalhafatosos, de metáforas nervosas, de gerúndios rotundos e de supinos desfibrados, materializados todos num grande excesso de objetivismo.

Esta literatura refletia uma época.

A terra forte que se sacrificara ao progresso geral, repontando à tona da renascença para mergulhar numa outra Idade Média e reconstituir no Novo Mundo o mundo antigo que acabava -chegava, surpreendida e deslumbrada, à quadra maravilhosa. Quis encalçá-la e só lhe absorveu os estigmas remanescentes.

A própria galanteria, que encontrara no abade Prevost -e na maioria dos padres voltairianos, que embarcavam galantemente para Cítera- intérpretes inimitáveis, ali se derrancara nas requestas perigosas. O amor era brutal, liricamente brutal se o quiserem, armado de capa e espada, de botas e esporas, marchando para as entrevistas como para os fossados arriscados. Ao cair da noite, espessa e impenetrável, sem a fresta única de um lampião mortiço, as ruas de Lisboa tinham os pavores das azinhagas solitárias.

Eram o paraíso tenebroso dos chichisbéus errantes, e mascarados num requinte de resguardos, porque as formas se lhes diluíam no escuro, apagadas e imperceptíveis, num deslizamento silencioso de lêmures cautelosos. E o estrangeiro curioso que os acompanhasse, ou que os apartasse nos duelos subitamente travados ao acaso, no volver das esquinas, podia encontrar o faquista desclassificado, o pródigo doidivanas, o frade corrompido, o fidalgo marialva, ou o rei...

A aventura noturna de D. João IV e D. Francisco Manoel não fora deslembrada. E embora D. João V, mais precavido e prático, preferisse, ao arriscado destes recontros, os recatados cômodos do harém seráfico de Mafra, tinha no irmão, o infante D. Francisco, e no duque de Cadaval, seus dignos continuadores das mesmas tropelias romanescas.

Felizmente entre estes nobres gandaieiros, um espadachim atrevido, um mestiço à volta dos vinte anos, um tal Sebastião José de Carvalho, aparecia, às vezes, compartindo as desordens que ele mais tarde extinguiria, porque lhes aquilatara, experimentalmente, os inconvenientes e as torpezas.

* * *

Mas havia também um homem, o mesmo homem que Oliveira Lima, no Secretário d'El-Rei nos apresenta sob uma de suas mais interessantes modalidades -Alexandre de Gusmão.

Era brasileiro; mas nesta circunstância fortuita não está o interesse que ele nos desperta. O que dele nos impressiona é o contraste de uma individualidade original e forte e a decrepitude do meio em que ela agiu. Aquele escrivão da puridade preso pelo contato diário à Corte e pelo cargo obrigado a submeter-se a todas as exigências da época e a tacanhear o talento nos escaninhos e nas estreitezas dos relatórios enfadonhos -reponta-nos nas suas admiráveis cartas a D. Luís da Cunha, com a atitude inesperada de um fiscal incorruptível, irônico e formidável. Nele, sim, enfeixavam-se todos os estímulos céticos, agressivos e assombrosamente demolidores que se esboçavam na França.

A sociedade pecaminosa de D. João V, onde o monstruoso substituía a grandeza, com as suas antíteses clamorosas, com os seus lausperenes e as suas devassidões, com o trágico da inquisição e a glorificação de todos os ridículos, com o idiota cardeal Mota que acabou com as trovoadas riscando-as da folhinha do ano, com o seu místico tenente Santo Antônio, jogralescamente promovido por atos de bravura, e com o cínico Encerrabodes tolerado em todas as salas -o Portugal paraguaio dos esuítas com as suas monjas, os seus padres, os seus rufiões, a sua patriarcal, a sua escolástica garbosamente fútil e a sua literatura desfalecida, teve no seu primeiro ministro o seu mais implacável juiz.

Sob este aspecto, a figura ainda não bem estudada de Alexandre de Gusmão é impressionadora.

Foi um voltairiano antes de Voltaire: a mesma espiritualidade expansiva, em que pese a uma cultura menor, a mesma mobilidade, os mesmos arrebatamentos, o mesmo sarcasmo diabólico e a mesma emancipação intelectual, revolucionária e brilhante.

Não o considerou sob esta feição complexa Oliveira Lima, que dificílimo fora constringi-lo nos três atos de uma comédia.

Fixou-o, porém, por uma de suas faces encantadoras: a adorável complacência de uma alma sobranceira às ruínas de um amor não correspondido e verdadeiramente heróica no amparar o rival feliz que o compartia.

O assunto, como se vê, é profundamente dramático. A índole do protagonista, entretanto, transmudou-o numa comédia.

O grande homem pareceu-nos talvez apequenado no tortuoso de uma intriga vulgar, mas traça, cortando uma situação trivialíssima, a linha impressionadora de uma individualidade nova no meio de uma sociedade envelhecida. Realmente, o que hoje para nós é uma vulgaridade -este triste humorismo com que na pressão atual da vida moderna disfarçamos cautelosamente as maiores desventuras e este «levar as coisas a rir mesmo quando elas são de fazer-nos chorar»- eram uma novidade na época brutal em que a fraqueza irritável das gentes supersticiosas e incultas predispunha ao impulsivo e ao desafogo máximo das paixões.

Assim considerado, o Secretário d'El-Rei é um livro belíssimo.

Que outros, mais vezados à técnica teatral, lhe apontem todos os defeitos. Nós, não. Satisfez-nos o aprumo impecável, a fidalguia espirituosa com que Alexandre de Gusmão, sem destoar da nota superior do seu caráter, destramou o intrincado de um incidente passional que o colhera de improviso no meio dos seus relatórios e dos livros -sem criar uma situação de fraqueza às suas magníficas rebeldias do pensar e do sentir.

Plano de uma cruzada

I

As secas do extremo norte delatam, impressionadoramente, a nossa imprevidência, embora sejam o único fato de toda a nossa vida nacional ao qual se possa aplicar o princípio da previsão. Habituamo-nos àquelas catástrofes periódicas. Desde a lancinante odisséia de Pero Coelho, no alvorar do século XVII, até ao presente, elas vêm formando, à margem da nossa história, um tristíssimo apêndice de indescritíveis desastres. A princípio, mercê do próprio despovoamento do território, ninguém as percebeu. Notou-as, apreensivo, o primeiro sertanista que se afoitou, naquelas bandas, com o desconhecido; os flagelos revelados mal rebrilham e repontam, fugacíssimos, rompentes da linguagem perra e nebulosa dos roteiros. Depois, à medida que se povoava a terra, cresceu-lhes a influência, e desvendaram-se-lhes os aspectos, deploráveis todos.

Em 1692, em 1793 e em 1903 -para apontarmos apenas as datas seculares entre as quais se inserem, inflexivelmente, como termos de uma série, outras, sucedendo-se, numa razão quase invariável- o seu limbo de fogo abrangendo toda a expansão peninsular que o cabo de São Roque extrema, abriu, intermitentemente, largos hiatos nas atividades. Outrora, completavam-lhe os efeitos as depredações do tapuia -tribos errantes precipitando-se, estonteadas, para o litoral e para o Sul, refluídas pelos sóis bravios; hoje, as incursões dos jagunços destemerosos- almas varonis, que a desventura maligna, derrancando-as nas aventuras brutais dos quadrilheiros; e sobre umas e outras, em todas as quadras, o epílogo forçado das epidemias devastadoras rematando as espantosas tragédias que mal se denunciam no apagado de imperfeitas notícias ou inexpressivas memórias.

Há uma estética para as grandes desgraças coletivas. A peste negra na Europa aviventou um renascimento artístico que veio do verso triunfal de Petrarca à fantasia tenebrosa de Albrecht Dürer e ao pincel funéreo de Rembrandt. A dança-de-são-guido, que sacudiu convulsivamente as populações ribeirinhas do Reno, criou a idealização maravilhosa da dança macabra. A morte imortalizou os artistas definidos pelo gênio misterioso de Holbein, e perdida a aparência lutuosa, o seu espectro hilariante, arrebatado na tarântula infernal, percorreu entre os aplausos de um triunfo doloroso todos os domínios da arte, das páginas de Manzoni às rosáceas rendilhadas das catedrais, às iluminuras dos Livros de horas dos crentes e ao caprichoso cinzelado dos copos das espadas gloriosas...

Mas entre nós estes transes tão profundamente dramáticos não deixam traços duradouros. Aparecem, devastam e torturam; extinguem-se e ficam deslembrados.

Entretanto, senão pelos seus efeitos desastrosos, pela sua insistência, pela impertinência insanável com que se ajustam aos nossos destinos, eles são o mais imperioso desafio às forças do nosso espírito e do nosso sentimento.

Mas criaram sob o ponto de vista artístico raras páginas incolores de um ou outro livro, e alguns alexandrinos resplandecentes de Junqueiro; na ordem administrativa, medidas que apenas paliam os estragos; e no campo das investigações cientificas o conflito estéril de algumas teorias desfalecidas.

É que o fenômeno climático, tão prejudicial a um quinto do Brasil, só nos impressiona quando aparece; é uma eterna e monótona novidade; estudamo-lo sempre nas aperturas e nos sobressaltos dos períodos certos em que ele se desencadeia.

Então a alma nacional, de chofre comovida, ostenta o seu velho sentimentalismo incorrigível desentranhando-se em subscrições e em sonetos, em manifestos liricamente gongóricos e em telegramas alarmantes; os poderes públicos compram sacos de farinha e organizam comissões, e os cientistas apressados -os nossos adoráveis sábios à la minute- ansiando por salvarem também um pouco a pobre terra, imaginam hipóteses.

Ora, a feição proteiforme destas últimas é expressiva. Dos fatos geométricos mais simples (a forma especial do continente norte-oriental), às circunstâncias orográficas da orientação das serras, à fatalidade astronômica da rotação das manchas solares, às considerações mais sérias relativas à constituição litológica dos terrenos -em todos estes pontos, que formam, afinal, toda a fisiografia do extremo norte, têm doidejado as indagações com o efeito único de revelarem o traço característico do nosso espírito afeiçoado a um generalizar espetaculoso com o sacrifício da especialização tenaz, mais modesta, mais obscura e mais útil.

Diante da enorme fatalidade cosmológica, temos uma atitude de amadores; e fazemos física para moças. Daí a instabilidade e o baralhamento dos juízos. Acompanhamos o fenômeno escravizados à sua cadência rítmica; não lhe antepomos à intermitência a continuidade dos esforços. Entretanto, o próprio variar das causas precipitadas nos revela. a sua feição complexa, exigindo longos e pacientes estudos. É evidente que estes serão sempre estéreis, adstritos aos paroxismos estivais, desdobrando-se na plenitude das catástrofes desencadeadas com o objetivo ilusório de as debelar, quando uma intervenção realmente eficaz só pode consistir no prevenir as secas, inevitáveis, do futuro.

Estabelecido de modo iniludível o fatalismo das leis físicas, que estão firmando o regime desértico em mais de um milhão de quilômetros quadrados do território e torturando cerca de três milhões de povoadores, impõe-se-nos a resistência permanente, constante, inabalável e tenaz -uma espécie de «Guerra dos Cem Anos» contra o clima- sem mesmo a trégua dos largos períodos benignos, porque será exatamente durante eles que nos aperceberemos de elementos mais positivos para a reação.

As secas do Norte interessam a dez Estados. Irradiantes do Ceará, vão, pelo levante, ao centro do Piauí, buscando as extremas meridionais do Maranhão, de onde alcançam as do norte de Goiás; alongam-se para o ocidente abarcando com o limbo fulgurante o Rio Grande do Norte, a Paraíba, Pernambuco e Alagoas, lançando as últimas centelhas pelo mar em fora até Fernando de Noronha; e alastram-se pela Bahia e Sergipe, para o Sul, até às raias setentrionais de Minas.

Sendo assim, qualquer que seja o desfalecimento econômico do país, justifica-se a formação de comissões permanentes, de profissionais -modestas embora, mas de uma estrutura inteiriça- que, demoradamente, desvendando com firmeza as leis reais dos fatos inorgânicos observados, possam esclarecer a ação ulterior e decisiva do governo.

Não há mais elevada missão à nossa engenharia. Somente ela, ao cabo de uma longa tarefa (que irá das cartas topográficas, e hipsométricas, aos dados sobre a natureza do solo, às observações meteorológicas sistemáticas e aos conhecimentos relativos à resistência e desenvolvimento da flora), poderá delinear o plano estratégico desta campanha formidável contra o deserto.

Então, poderão concorrer, recíprocos nas suas influências variáveis, os vários recursos que em geral se sugerem isolados: a açudada largamente disseminada, já pelo abarreirar dos vales apropriados, já pela reconstrução dos lanços de montanhas que a erosão secular das torrentes escancelou em boqueirões, o que vale por uma restauração parcial da terra; a arborização em vasta escala com os tipos vegetais que, a exemplo do juazeiro, mais se afeiçoem à rudeza climática das paragens; as estradas de ferro de traçados adrede dispostos ao deslocamento rápido das gentes flageladas; os poços artesianos, nos pontos em que a estrutura granítica do solo não apresentar dificuldades insuperáveis; e até mesmo uma provável derivação das águas do São Francisco, para os tributários superiores do Jaguaribe e do Piauí, levando perpetuamente à natureza torturada do Norte os alentos e a vida da natureza maravilhosa do Sul...

É, por certo, um programa estonteador; mas único, improrrogável, urgente.

Há bem pouco tempo, num artigo notável, Barbosa Rodrigues demonstrou o empobrecimento contínuo das nossas fontes, dos nossos rios e até mesmo das poderosas artérias fluviais da Amazônia.

A palavra austera do naturalista não logrou vingar o reduzido círculo de alguns estudiosos. Vibrou, inutilmente, como o grito de alarma de uma atalaia longínqua, avantajada demais. Entretanto, dela se conclui que, dada a generalidade daquele fato e o seu crescendo desconsolativo, deve engravescê-lo numa escala maior o regime excessivo dos sertões do Norte. O deserto invoca o deserto. Cada aparecimento de uma seca parece atrair outra, maior e menos remorada, dando à terra crescente receptividade para o flagelo.

Os intervalos que as separam estreitam-se, acelerando-lhe o ritmo, agravando-lhe o grau termométrico das canículas que são a febre alta daquela sezão monstruosa da terra. O interessante paralelismo de datas, que lhes dava um movimento uniforme nos séculos anteriores, parece destruir-se a pouco e pouco; e os seus ciclos, outrora amplíssimos, reproduzem-se, cada vez mais céleres e constritos, como arrastados nos giros cada vez menores de uma espiral invertida.

Deste modo não há vacilar numa ação decisiva e, sobretudo, permanente.

Os holandeses não se limitaram a construir grande parte da Holanda: ainda hoje, quando tufam as marés e a onda ensofregada acachoa ruidosa, chofrando a antemural dos diques, escuta-a da outra banda uma legião tranqüila e vigilante de engenheiros hidráulicos, os primeiros do mundo.

A França no arrancar, transfigurada, a Tunísia do Saara, reata a empresa muitas vezes secular dos romanos.

Porque para esses desastrosos desvios da natureza só vale a resistência organizada, permanente e contínua.

Além disto, para o nosso caso, trata-se de uma velha dívida a saldar.

De feito, por um contraste impressionador, as soalheiras, que requeimam o Norte, são elementos benfazejos ao resto do Brasil. Por um lado os alísios, refertos da umidade captada na travessia do Atlântico, ao tocarem a superfície calcinada dos sertões, superaquecem-se, conservando, no altear o ponto de saturação, as chuvas que conduzem; e repelidos pelas colunas ascencionais dos ares em fogo, que se alevantam das chapadas desnudas, refluem às alturas e vão rolando para o sudoeste, indo condensar, nas vertentes dos rios que derivam para o Amazonas e para o Prata, as águas que originam os seus cursos perenes e a fecundidade das terras.

Por outro lado, aqueles titânicos caboclos, que a desventura expulsa dos lares modestíssimos, têm levado a todos os recantos desta terra o heroísmo de uma atividade incomparável: povoaram a Amazônia; e do Paraguai ao Acre estadearam triunfalmente a sua robustez e a sua esplêndida coragem de rija sub-raça já constituída.

Assim, sob um duplo aspecto nós devemos, em parte, à sua miséria um pouco da nossa opulência relativa, e às suas desgraças a melhor parte da nossa glória.

E esta dívida tem mais de quatrocentos anos...

II

Delineando no artigo anterior um fugitivo esboço da reação contra o clima singular que vitima todo o Norte do Brasil, vimos de relance os vários recursos que, simultaneamente aplicados, poderiam melhorá-lo; mas do mesmo passo verificamos que a ação governamental seria ilusória, se não a esclarecessem os elementos e dados positivos adquiridos em um aturado estudo daquelas paragens, sistematicamente executadas por um grupo permanente de profissionais que, mercê de uma longa estada sobre o território, estabelecessem com a sua natureza, ainda em grande parte desconhecida, uma estreita intimidade, facultando-lhes o conhecimento de seus variadíssimos aspectos, e, ao cabo, a revelação completa dos agentes nefastos que a malignam e devastam.

Não vai nisto a teimosia impertinente de um teórico incorrigível. Esta exploração científica da terra -coisa vulgaríssima hoje em todos os países- é uma preliminar obrigatória do nosso progresso, da qual nos temos esquecido indesculpavelmente, porque neste ponto rompemos com algumas das mais belas tradições do nosso passado. Realmente, a simples contemplação dos últimos dias do regime colonial, nas vésperas da Independência, revela-nos as figuras esculturais de alguns homens que hoje mal avaliamos, tão apequenadas andam as nossas energias, e tão grandes o descaso e o desamor com que nos voltamos para os interesses reais deste país. Ricardo Franco de Almeida Serra, Silva Pontes e Lacerda e Almeida são hoje uns quase anônimos. Entretanto, os estóicos astrônomos, que os grosseiros agulhões mal norteavam nas espessuras nunca percorridas, sem o arsenal suntuoso dos atuais aparelhos, determinaram as coordenadas dos mais remotos pontos e desvendaram muitos traços proeminentes da nossa natureza. Ao último não lhe bastou o perlustrar o Brasil de extremo a extremo. Transpôs o mar, e foi atravessar a África...

Não se podiam encontrar melhores mestres, nem mais empolgantes exemplos. Mas, precisamente ao adquirirmos a autonomia política -talvez porque com ela ilogicamente se deslocasse toda a vida nacional para os litorais agitados- olvidamos a terra; e os esplendores do céu, e os encantos das paisagens, e os deslumbramentos recônditos das minas, e as energias virtuais do solo, e as transfigurações fantásticas da flora, entregamo-los numa inconsciência de pródigos sem tutela, à contemplação, ao estudo, ao entusiasmo, e à glória imperecível de alguns homens de outros climas. Ao nosso nativismo nascente -e já ouriçado com os estilhaços dilaceradores da Noite das Garrafadas, não escandalizaram os ww ensarilhados, os yy sibilantes, e o estalar dos kk, e o ranger emperrado dos rr de alguns nomes arrevesados e estranhos. Koster, John Mawe, Wied-Newied, Langsdorf, Aug. Saint-Hilaire... primeiros termos de uma série, onde aparecem, num constrangimento de intrusos, raros nomes brasileiros -e que veio quase ininterrupta até Frederico Hartt, e que aí está contínua, imperecível e fecunda com Eugen Hussack, Orville Derby e Emilio Goeldi.

Ora, quaisquer que sejam os inestimáveis serviços deste grupo imortal de abnegados, são desanimadores.

Não lhes admiremos o brilho até à cegueira. Porque afinal é lastimável que ainda hoje procuremos nas velhas páginas de Saint-Hilaire... notícias do Brasil. Alheamo-nos desta terra. Criamos a extravagância de um exílio subjetivo, que dela nos afasta, enquanto vagueamos como sonâmbulos pelo seu seio desconhecido.

Daí, em grande parte, os desfalecimentos da nossa atividade e do nosso espírito. O verdadeiro Brasil nos aterra; trocamo-lo de bom grado pela civilização mirrada que nos acotovela na rua do Ouvidor; sabemos dos sertões pouco mais além da sua etimologia rebarbativa, desertus; e, a exemplo dos cartógrafos medievos, ao idealizarem a África portentosa, podíamos escrever em alguns trechos dos nossos mapas a nossa ignorância e o nosso espanto: hic habent leones...

Não admiram o incolor, o inexpressivo, o incaracterístico, o tolhiço e o inviável da nossa arte e das nossas iniciativas: falta-lhes a seiva materna. As nossas mesmas descrições naturais recordam artísticos decalques, em que o alpestre da Suíça se mistura, baralhado, ao distendido das landes: nada do arremessado impressionador dos itambés a prumo, do áspero rebrilhante dos cerros de quartzito, do desordenado estonteador das matas, do dilúvio tranqüilo e largamente esparso dos enormes rios, ou do misterioso quase bíblico das chapadas amplas... É que a nossa história natural ainda balbucia em seis ou sete línguas estrangeiras, e a nossa geografia física é um livro inédito.

* * *

Aí está para o demonstrar esta questão gravíssima das secas. Nenhuma outra reclama mais imperativamente conhecimentos positivos acerca da estrutura dos terrenos.

Entre os recursos sugeridos, que se não excluem e cuja simultaneidade é indispensável a uma solução definitiva, aponta-se, preeminente, a açudada em vasta escala.

As mais ligeiras noções climatológicas denotam-lhe o valor: os numerosos e minúsculos lagos largamente espalhados na região terão o efeito moderador de um mediterrâneo subdividido; desaparecerão as colunas ascensionais dos ares adustos, que por ali repulsam vivamente os alísios, e com eles a umidade recolhida nos mares; as irrigações fecundarão a terra, e, a breve trecho, despertas as suas energias adormecidas, a renascença da flora ultimará a intervenção humana. Mas este meio, tão decisivo pelos efeitos prefigurados, será ilusório sem a preliminar de investigações complexas, desdobrando-se dos simples trabalhos de nivelamento, aos exames relativos à permeabilidade ou inclinação dos estratos, até aos estudos mais sérios e delicados da fisiologia vegetal. Porque mesmo na passividade inorgânica os fatos naturais se entrelaçam solidários. Vai para meio século que Elie de Beaumont o demonstrou, num dos lances da sua intuição genial. É uma aliança indestrutível em que os incidentes mais díspares se acolchetam, e os vários aspectos naturais se desenrolam numa seqüência impecável, lembrando um enredo firme de onde ressaltam as grandes vicissitudes, e, diríamos melhor, o drama comovedor da existência indefinida da terra. Jamais o apreenderemos no afogadilho das empreitadas científicas, de todo inaptas a nos facilitarem, numa síntese final, a imagem aproximada desses misteriosos passados geológicos, que tanto esclarecem, às vezes, a nossa situação presente.

Ainda hoje quem contempla, na plenitude do estio, a natureza estranha do Norte, sobretudo nos trechos em que se desatam as chapadas intermitentemente cindidas de serros aspérrimos e abruptos -não sabe bem se está sobre o chão recém-emergido de algum mar terciário, ou se pisa um velhíssimo afloramento do globo, brutalmente trabalhado pelos elementos; se tudo aquilo é a desordem de um cenário em preparativos para novas maravilhas da criação, ou um país que está morrendo; uma construção prodigiosa, em começo, ou o desabar de uma ruinaria imensa...

A drenagem de águas selvagens, que por ali se exercita nas quadras tempestuosas, os seus rios que quando transitoriamente cheios volvem as águas num ímpeto de torrentes colossais, tão céleres que mesmo quando eles cansam, no falar dos matutos, prestes a secarem, não dão vau; e o desmantelo das encostas e os pendores arruinados; e aqueles singulares boqueirões, tão lucidamente vistos por I. Joffili, que as águas rasgaram nas montanhas -tudo isto denuncia a segunda hipótese. E para logo nos empolga a imagem retrospectiva de uma terra admirável e farta e feracíssima -um vastíssimo jardim à margem dos grandes lagos- nos velhíssimos tempos fora da órbita da nossa história, antes que estourassem os seus diques de montanhas e a natureza viesse lentamente definhando -roída pelas torrentes e calcinada pelos sóis, até ao melancólico aspecto que hoje patenteia...

Ora, se uma série suficiente de realidades observadas desse algum valor a esta demasiado imaginosa conjectura e pudéssemos reconstruir este episódio assombrosamente dramático dos nossos fastos geológicos, bastaria, certo, à nossa intervenção o acompanhar, numa marcha invertida, os rastos indeléveis dos estragos. Encadeadas as torrentes e os rios, e restauradas as velhas represas naturais, ligando-se, mesmo sem a primitiva imponência, os muramentos arruinados das serras -todo aquele território volveria à fisionomia antiga, pelo simples jogo equilibrado dos mesmos agentes físicos que hoje tumultuariamente o devastam.

Mas para que isto suceda, para que nos aparelhemos de uma série completa de elementos garantidores de uma ação decisiva, faz-se mister que este problema urgentíssimo das secas seja um motivo para que demos maior impulso a uma tarefa, que é o mais belo ideal da nossa engenharia neste século: a definição exata e o domínio franco da grande base física da nossa nacionalidade.

Aí está a nossa verdadeira missão.

A outros destinos talvez mais altos: a organização das atividades e do regime geral da riqueza, o doutrinamento filosófico e a direção política, a remoção das dificuldades presentes e o alevantamento das tradições históricas; mas todos esses grandes atos exigem antes de tudo um cenário amplíssimo que os abranja e não se reduza como até hoje às bordas alteadas dos planaltos e à estreita faixa de uma costa desmedida. Tudo quanto fizermos fora deste traçado será vão ou efêmero. Será o eterno tatear entre as miragens de um progresso falaz e duvidoso, até agora medido pelos estoques das sacas de café, pelas levas de imigrantes e por umas combinações políticas que ninguém entende.

III

A expansão imperialista das grandes potências é um fato de crescimento, o transbordar naturalíssimo de um excesso de vidas e de uma sobra de riquezas em que a conquista dos povos se torna simples variante da conquista de mercados. As lutas armadas que daí resultam, perdido o encanto antigo, transformam-se, paradoxalmente, na feição ruidosa e acidental da energia pacífica e formidável das indústrias. Nada dos velhos atributos românticos do passado ou da preocupação retrógrada do heroísmo. As próprias vitórias perderam o significado antigo. São até dispensáveis. A Inglaterra suplantou o Transval ao cabo de sucessivas derrotas, e amanhã a Rússia, constantemente batida, talvez esmague o Japão. Estão fora dos lances de gênio dos generais felizes e do fortuito dos combates. Vagas humanas desencadeadas pelas forças acumuladas de longas culturas e do próprio gênio da raça, podem golpeá-las à vontade os adversários que as combatem e batem debatendo-se, e que se afogam. Não param. Não podem parar. Impele-as o fatalismo da própria força. Diante da fragilidade dos países fracos, ou das raças incompetentes, elas recordam, na história, aquele horror ao vácuo, com que os velhos naturalistas explicavam os movimentos irresistíveis da matéria.

Revelam quase um fenômeno físico.

Por isso mesmo nesta expansão irreprimível, não é do Direito, nem da Moral com o mais imponentes maiúsculos, nem de alguma das maravilhas metafísicas de outrora que lhes despontam obstáculos.

É da própria ordem física.

Realmente, à parte a Rússia, seguindo para o levante entre os mesmos paralelos, a Europa e os Estados Unidos abandonam as latitudes onde se formaram; e, como qualquer que seja a flexibilidade do homem para o clima, os limites históricos dos povos se traçam pelas zonas terrestres onde surgiram, o problema capital do imperialismo está menos no adquirir um pedaço de território que na adaptação do território adquirido. Trata-se de inquirir se a raça branca afeiçoada às zonas temperadas, que são as das civilizações duradouras, poderá viver e crescer fora do seu deslumbrante habitat.

Porque as disposições geográficas imutáveis lhe oferecem os maiores cenários precisamente na África adusta, na Ásia meridional ardentíssima ou na Austrália desértica, deixando-lhe como únicas paragens, próprias a uma aclimação rápida, um trecho do Brasil do Sul, a Argentina, o Chile, uma faixa do Canadá, a ponta da África e algumas ilhas do Pacífico.

Daí, seguindo de par com a marcha expansionista, industrial e guerreira, das potências, um movimento científico adrede disposto a facilitar estas mudanças de povos.

Desbravados os caminhos pelos exércitos, estabelecidas as primeiras levas de colonos e delineados os primeiros entrepostos -os governos entregam aos cientistas de todos os matizes a campanha maior e mais longa contra o clima, e toda a responsabilidade deste transplante das civilizações sem prejuízo do organismo das raças que as representam. Felizmente a empresa coincide com a época em que, dominando a máxima especialidade de ofícios, se entrelaçam em generalizações admiráveis todos os resultados das ciências. Profissões, ontem distintas, fundem-se, vinculadas. À engenharia não lhe bastam os recursos que vão da matemática à química; as próprias exigências da tecnologia sanitária dilatam-na à biologia e às mais altas indagações sobre a vida, enquanto a medicina, deparando na radiologia nascente inesperados elementos, se alonga pela física, ou vai, pela bacteriologia, para a amplitude das ciências naturais.

Médicos ou geômetras, ou geógrafos, todos por igual naturalistas, confundem-se, indistintos, numa tarefa inteiramente nova, a do saneamento da terra. Passam, sem um desvio na profissão complexa, da geologia maciça à física quase espiritualizada, do rádio, ou às indagações biológicas; e, inscrita de todo no quadro dos agentes exteriores, a existência humana vai aparecendo-lhes feita um índice abreviado de toda a vida universal.

Pelo menos hoje a amparam leis naturais tão rigorosas, que já se não considera vã a tentativa de bater-se vantajosamente a fatalidade cosmológica dos climas.

Esta empresa belíssima, porém, realiza-se obscuramente. As linhas telegráficas não a espalham, são poucas a irradiarem as notícias e os mínimos pormenores das batalhas. Mal se adivinham no rastro dos exércitos os agrupamentos pacíficos, armados de inofensivos aparelhos, dos que observam, e experimentam, e comparam, e induzem; profissionais e operários, estudando as modalidades climáticas ou corrigindo-as, lucidamente teóricos ou maciçamente práticos, passando da análise dos estratos do solo à dinâmica das correntes atmosféricas; aqui, redimindo pelas drenagens uma superfície condenada, mais longe fazendo ressurgir, transfigurado pela irrigação, um trato morto, de deserto -e por toda a parte polindo ou afeiçoando o chão daninho, ou os ares perniciosos, às novas vidas que os procuram.

Obedecem a um programa prescrito e inviolável. Na Franca e na Inglaterra as escolas de «Medicina Colonial», onde se matriculam engenheiros e oficiais de marinha, denunciam, pelo simples título, a carreira nova destinada a sistematizar todos os dados e a balancear todos os recursos decisivos para esta luta contra os novos meios, desdobrada dos mais simples trabalhos de campo à mais difícil profilaxia das moléstias que lhes são imanentes, de modo a auxiliar a adaptação compensadora do organismo europeu a ambientes tão díspares dos que lhe são habituais.

E assim se transfiguraram a Tunísia e o Egito à ourela dos desertos, a ilha de Cuba, recentemente; e vão-se transfigurando o Sudão, a Índia e as Filipinas...

Ora, inegavelmente, um tal objetivo basta a nobilitar as invasões modernas. Redime-lhes todas as culpas e as grandes brutalidades da força esta empresa maravilhosa, que é uma espécie de reconstrução da terra, aparecendo cada dia maior e oferecendo à história novos cenários no seio das paragens mortas que ressurgem.

* * *

Mas para nós, brasileiros, tudo isto é um desapontamento.

Realmente, nesta agitação utilíssima, que fazemos nós?

À parte os Estados do Sul, estamos num país que a aclimação apenas favorecida pela mestiçagem condena às formas medíocres da humanidade.

A faixa da zona tórrida que entra no litoral do Pacífico ao norte do Peru inflete para o sul, abrange Mato Grosso e vem sair perto de Santos, deixando-se interferir e cortar pela linha tropical. Deste modo o Brasil, na sua maior área, está vinculado pelas condições físicas mais evidentes à África Central, à Índia, às ilhas que se salteiam de Madagascar a Bornéu e à Nova Guiné, e ao extremo norte calcinado da Austrália -em plena regio adusta fechada à aristocracia dos povos. É um fato plenamente sabido. Ressalta ao mais breve olhar sobre um mapa. Não há fantasias patrióticas que no-lo escondam.

E quaisquer que sejam as teorias e hipóteses e imaginosas teses que desde Montesquieu se digladiam, irreconciliáveis, acerca do valor das influências externas -não há desconhecer-se que temos aquele perpétuo coeficiente de redução do nosso desenvolvimento, atirando-nos em plano inferior ao da Argentina e do Chile.

Entretanto, não nos impressionamos. Num tempo em que se demonstra a eficácia da ação do homem sobre o meio, capaz de deslocar os climas, quedamos numa indiferença muçulmana sob o clima que nos fulmina. Não o estudamos mesmo rudimentarmente, pela rama, e sem objetivo de o transfigurar. Não temos mesmo esparso, mesmo reduzido nos pontos principais dos Estados, um serviço meteorológico sistemático e plenamente generalizado de modo a permitir uma comparação permanente e contínua das modalidades climáticas. Da terra, sob os infinitos aspectos que vão da rocha à flor, sabemos apenas o que se colhe em vários livros estrangeiros e raras monografias nacionais; e ainda hoje, quando se nos antolha uma bacia de carvão de pedra, ou um veeiro farto de ouro, faz-se-nos mister a importação de um sábio.

Deslumbrados pelo litoral opulento e pelas miragens de uma civilização que recebemos emalada dentro dos transatlânticos, esquecemo-nos do interior amplíssimo onde se desata a base física real da nossa nacionalidade. Ali se patenteiam dois casos invariáveis: ou as populações, sobre o solo estéril, vegetam miseravelmente decaídas pelo impaludismo, tão característico das regiões incultas, e vão formando, pela hereditariedade dos estigmas, uma raça de mestiços lastimáveis, agitantes num quase deserto; ou as populações, sobre o solo exuberante, atacam-no ferozmente, a ferro e fogo, nas derrubadas e nas queimadas das largas culturas extensivas, e vão fazendo o deserto.

Este caso é notável no refletir o círculo vicioso da atividade nacional. Numa época em que dominam os milagres da engenharia e da biologia industrial -tão grandes os ianques em três anos transformaram num prado o deserto clássico de Colorado- a nossa cultura tem como efeito final o barbarizar a terra.

Malignamo-la, desnudamo-la rudemente, sem a mínima lei repressiva refreando estas brutalidades -e a pouco e pouco, nesta abertura contínua de sucessivas áreas de insolação, vamos ampliando em São Paulo, em Minas, em todos os trechos, mais apropriados à vida, a faixa tropical que nos malsina.

Não há exemplo mais típico de um progresso às recuadas. Vamos para o futuro sacrificando o futuro, como se andássemos nas vésperas do dilúvio.

Não nos contentamos em resolver a golpes de subscrições intermitentes a fatalidade das secas, que vitimam o Norte; vamos além: alargamo-las criando no Sul, sobre as vastas áreas insoladas, continuadamente crescentes, todas as mínimas barométricas que no-las atrairão mais tarde...

E tudo isto -esta indiferença ou esta intervenção, ambas prejudiciais, se observa numa época em que o único significado verdadeiramente civilizador do movimento expansionista das raças vigorosas sobre a terra está todo em afeiçoar os novos cenários naturais a uma vida maior e mais alta- compensando-se o duro esrnagamento das raças incompetentes com a redenção maravilhosa dos territórios...

A missão da Rússia

A Rússia é bárbara.

Entre a sociabilidade cortês, o sentimento da justiça e a expansiva espiritualidade latina ou saxônia, penetrou vigorosamente o impulsivo e a rude selvatiqueza do tártaro, para se criar o tipo histórico do eslavo -isto é, um intermediário, um povo de vida transbordante e forte e incoerente, refletindo aqueles dois estádios, sob todas as suas formas, da mais tangível à mais abstrata, desde uma arquitetura original, em que se passa do bizantino pesado para o gótico ligeiro e deste para a harmonia retilínea das fachadas gregas- ao temperamento emocional e franco, a um tempo infantil e robusto, paciente e ensofregado, em que se misturam uma incomparável ternura e uma assombradora crueldade.

Polida demais para o caráter asiático, inculta demais para o caráter europeu -funde-os. Não é a Europa, e não é a Ásia: é a Eurásia desmedida, desatando-se, do Báltico ao Pacífico, sobre um terço da superfície da terra e desenrolando no complanado das estepes o maior palco da história.

A Rússia veio ocupá-lo retardatária.

Nasceu quando os demais povos renasciam. Tártara até o século XV, apareceu -engatinhando para o futuro e balbuciante na sua língua sonora e incompreendida- quando a Europa em peso, num repentino refluxo para o passado, ia transfigurar-se entre os esplendores da Renascença e iniciava os tempos modernos, deixando-a a iniciar, tateante e tarda, a sua longa Idade Média, talvez não terminada.

Mas aí está a sua força e a garantia de seus destinos. Ninguém pode prever quanto se avantajará um povo que, sem perder a energia essencial e a coragem física das raças que o constituem, aparelha a sua personalidade robusta, impetuosa e primitiva, de bárbaro, com os recursos da vida contemporânea.

E nenhum outro, certo, no atual momento histórico, talvez gravíssimo -porque devem esperar-se todas as surpresas deste renascer do Oriente, que o Japão comanda- é mais apto a garantir a marcha, o ritmo e a diretriz da própria civilização européia.

Há quem negue isto. No último número, de junho, da North American Review, Carl Blind, nome que se ajusta bem a um deslumbrado diante do grande plágio do Japão -negando ao império moscovita o papel de campeão da raça ariana contra o perigo amarelo, esteia-se numa sabidíssima novidade: o russo é duplamente mongólico: é-o pela circunstância inicial de o constituírem as tribos cássares e turanas, e pelo fato acidental da conquista tártara, no século XIII, dos netos de Gengis khan.

Atraído pela simplicidade deste argumento, conclui que não pode ser uma barreira ao pan mongolismo um povo tão essencialmente asiático.

Mas se esquece de que o russo é, antes de tudo, o tipo de uma raça histórica. Turano pelo sangue, transmudou-se, em quinhentos anos de adaptação forçada, sob o permanente influxo do Ocidente.

A sua melhor figura representativa é a daquele original e inquieto Pedro, o Grande, perlustrando a Europa toda num perquirir incansável, que o arrebatava das escolas para os estaleiros, dos estaleiros para as oficinas, das oficinas para os salões, entre os filósofos, entre os mestres e artífices, entre os cortesãos e os reis, observando, indagando e praticando, imperador, aprendiz e discípulo, bárbaro perdidamente enamorado da civilização, propelido por uma ânsia inextinguível de saber e iniciar-se em todos os segredos da existência nova, que anelava transplantar ao seu povo ingênuo, grandioso e robusto...

Sabe-se quanto foi longa a tarefa.

Durante todo este tempo, não rebrilha o mais apagado nome eslavo. Houve as tormentas sociais do século XV com a renascença literária e a renascença religiosa; houve o deslumbramento do período clássico, e a renovação filosófica subseqüente, e o cataclismo revolucionário; por fim, de par com o desafogo franco das ciências, o alvorecer encantador do romantismo.

A mesma Turquia teve no renascimento a sua idade de ouro, na Corte do magnífico Solimão, onde imperava absolutamente o místico Baki, «o sultão da poesia lírica».

A Rússia, não. Na sua iniciação demorada, impondo-lhe o abandono da originalidade de pensar e sentir pela imitação e pela cópia obrigatórias, quedou pouco além das rudes rapsódias heróicas dos calmucos.

Apareceu de golpe, já feita, e foi um espanto. Na região tranqüila das ciências e das artes, parecia reproduzir-se a invasão da «Horda Dourada» dos mongóis. De um lado, Wronsky, uma espécie de Átila da matemática, convulsionando-a com a sua alucinação prodigiosa de gênio, ora transviado nos maiores absurdos, ora nivelado com Lagrange na interpretação positiva do cálculo; e de outro lado, Puchkin, prosador e poeta, imprimindo no verso e na novela o vivo sentimentalismo e a energia e as esperanças do seu país. Então, o poder assimilador do gênio eslavo ostentou-se em toda a plenitude; e, pouco depois, a nação, educada pela Europa, aparecia-lhe com uma originalidade inesperada, apresentando-lhe aos olhos surpreendidos e aos aplausos que rebentaram, espontâneos, com Turgueniev, com Dostoiévski, com Tchecov e com Tolstoói, esse naturalismo popular e profundo repassado de um forte sentimento da raça, que tanto contrasta com a organização social e política da Rússia.

Estava feita a transformação: as gentes, constituídas de fatores tão estranhos, surgiam revestidas das melhores conquistas morais do nosso tempo. Mostra-o essa mesma literatura, onde vibra uma nota tão impressionadoramente dramática e humana. Qualquer romance russo é a glorificação de um infortúnio. Quem quer que os deletreie, variando à vontade de autores e de assuntos, deparará sempre a dolorosa mesmice da desdita invariável, trocados apenas os nomes aos protagonistas: todos os humildes, todos os doentes, todos os fracos: o mujique, o criminoso impulsivo, o revolucionário, o epilético incurável, o neurastênico bizarro e louco. Desenvolvendo este programa singular e inexplicável, porque, segundo observa Talbot, não há país que possua menor número relativo de degenerados, o que domina o escritor russo não é a tese preconcebida, ou o caráter a explanar friamente, senão um largo e generoso sentimento da piedade, diante do qual se eclipsam, ou se anulam, o platônico humanitarismo francês e a artística e seca filantropia britânica.

Nada mais expressivo no trair a alma nova de uma raça do mesmo passo em conflito com a retrógrada organização social, que a comprime, e com o utilitarismo absorvente destes tempos. Conforme um asserto de F. Loliée, o que caracteriza esta mentalidade é a preocupação superior dos fatos morais, o eterno problema altruísta, para que tendem todos os impulsos individuais ou políticos, através de uma análise patética dos menores abalos da natureza humana e visando, essencialmente, no franco estadear dos males profundos da Rússia, estimular as suas grandes aspirações e a sua marcha para o direito e para a liberdade. O próprio niilismo, com as suas mulheres varonis, os seus pensadores severos, os seus poetas sentimentais e ferozes, e os seus facínoras românticos -um desvario dentro de um generoso ideal- reponta às vezes, nesta crise, como a forma tormentosa e assombradora da justiça.

No conflito o que se distingue bem é o choque inevitável das duas Rússias, a nova, dos pensadores e artistas, e a Rússia tradicional dos czares; o recontro do ária, e do calmuco.

Daí a sua fisionomia bárbara, porque é incoerente e revolta, surgindo numa profusão extraordinária de vida, em que os velhos estigmas ancestrais, cada vez mais apagados, mal se denunciam entre os esplendores de um belo idealismo cada vez mais intenso e alto...

* * *

Mas daí também a sua missão histórica neste século. Conquistada pelo espírito moderno, a Rússia tem, naqueles estigmas remanescentes, admiráveis recursos para a luta que nesta hora se desencadeia no extremo oriente. O seu temperamento bárbaro será o guarda titânico invencível, não já de sua civilização, mas também de toda a civilização européia.

O conceito é de Havelock Ellis: o centro da vida universal dos povos tende a deslocar-se para o Pacífico, circundado pelas nações mais jovens e vigorosas da terra -a Austrália, o Japão e as Américas.

Ali a Rússia não tem apenas o privilégio de ser a única representante da Europa, senão o de ser a única entre as nacionalidades que, por um longo contacto com a barbaria, pelo hábito de vencer e dominar os impérios orientais tipicamente bárbaros e por conservar ainda vivazes os atributos guerreiros do homem primitivo -está mais bem aparelhada a constituir-se o núcleo de resistência do bloco ocidental contra a ameaça asiática.

E inevitavelmente -quaisquer que sejam os prodígios dos bravos generais e dos bravíssimos almirantes japoneses- a civilização seguirá para aquele novo mundo do futuro -que margeará o Pacífico- tomando uma passagem no Transiberiano.

Transpondo o Himalaia

Um despacho para o War Office transmitiu as informações do coronel Younghusband, acerca da primeira vitória decisiva das tropas que constituem a expedição do Tibete -e aquele telegrama mal desviou a atenção geral, toda entregue à emocionante luta russo-japonesa.

Entretanto, ali estão as primeiras linhas de um drama menos teatral e ruidoso, mas, talvez, mais profundo e de mais imprevistas conseqüências.

Prática como sempre, a Inglaterra aproveitou as aperturas atuais da Rússia e transpôs a muralha do Himalaia.

Que vai fazer? Adiante, deixada a orla formosíssima do vale de Cachemira, desata-se-lhe o planalto, asperamente revolto, que recorda uma dilatação lateral da enorme cordilheira. Os terrenos ondulam, riçados de gargantas, dobrando-se em vales numerosos e empinando-se em contrafortes crespos de fraguedos, formando-se os pamirs desolados e ásperos, quase despidos, onde uma flora escassa, mal abrolhando entre pedras, reflete todo o excessivo de um clima impiedoso: de verão, calcinando no revérbero fulgurante das soalheiras; de inverno, amortalhando a natureza toda no sudário branco das geadas.

Ali não há firmar-se a mais indecisa continuidade de um esforço. A vida deriva-se tolhiça e incompleta, num permanente mal das montanhas.

Dada uma centena de passos, o forasteiro estaca, ofegante, no delíquio de um repentino assalto de fadiga, sentindo que não lhe basta aos pulmões, afeiçoados aos ares nativos, toda a atmosfera rarefeita que o envolve. Fala, e mal percebe a própria voz. Grita, e o grito extingue-se logo, sem ecos, num abafamento de segredo. Depara os primeiros habitantes e assombra-se. Está diante de uns originalíssimos colossos-anões, que resumem na estatura meã todos os extremos da plástica: amplos torsos de atletas sobre pernas bambeantes e finas, de cretinos.

Compreende então, de pronto, as terríveis exigências de aclimação deformadora, capaz daquela caricatura horripilante de titãs.

O inglês, desempenado e rijo, tem naqueles lugares, na sua impecável harmonia orgânica, uma condição desfavorável e a fraqueza paradoxal da própria robustez, meio asfixiada num ambiente que lhe não basta. Suplanta-o o indígena desfibrado, o chepang, ou o hayn, o mostrengo que vive à custa da redução da vida e da miséria orgânica, largamente satisfeita com uma hematose imperfeitissíma.

Este, sim, lá se equilibra. Não lhe pula o sangue, a escapar-se no afogueado rubor das arteríolas refertas; não o estonteia a vertigem: e o seu pulmão, amplificado à custa da atrofia de todo o organismo, colhe bem, no espaço rarefeito, a exígua meia ração de ar de que precisa.

Chegam-lhe, além disso, a fartar, os aleatórios recursos do solo esterilizado e pobre. E quando não lho bastassem, lá está, para ampará-lo e transmudar-lhe em benefícios as misérias, a sua religiosidade extraordinária, maior que todas as outras, no sistematizar a renunciação e os sacrifícios.

Realmente, o Tibete -este «teto do mundo», consoante a hipérbole oriental- tem, na sua maior cidade, Lassa, o Vaticano do budismo.

A filosofia, que é um prodígio de imaginação e de incoerências -toda baseada na idéia essencial do nada, ao mesmo passo que vê na natureza uma infinita série de decomposições e recomposições sem princípio e sem fim- não podia encontrar melhor cenário, nem mais apropriada gente.

O Tibete é uma vasta Tebaída misteriosa. Um terço de sua população é de lamas -monges miseráveis e repulsivos, vestidos de trapos de mortalhas, meio idiotas e errantes de mosteiro em mosteiro, de povoado em povoado, ou à toa, pelos descampados, a pregarem, alucinadamente, a extinção da personalidade, o dogma do desespero e o tédio universal da vida: enquanto os dois terços restantes se abatem aniquilados, inteligências mortas sob o fardo de deuses e de mundos e de calpas seculares da mitologia formidável, que as estonteia e que as esmaga...

Toda essa gente ali se agita, num meio sonambulismo. O viajante encontra, por vezes, em todos os cantos de ruas, à entrada das casas, ou dos templos, incontáveis moinhos, tocados pelos escravos, ou pelos ventos, ou pela água -e tem a ilusão do trabalho. Mas a ilusão apenas. A breve trecho, nota que os cilindros girantes não esmoem o trigo, ou separam a lã; sacodem, esterilmente, as orações e as fórmulas consagradas que contêm.

As energias escassíssimas das gentes vão-se naquele industrialismo místico da reza.

Então, avalia bem a identidade admirável, que, no Tibete, associa, indissoluvelmente, o homem e a terra. Lança o olhar em volta. Contempla as paragens desoladas e abruptas, tumultuando em píncaros desnudos, perdidos no silêncio misterioso das alturas, e compreende que para aquele recanto do planeta, alternadamente trabalhado pelos maiores estios e pelos maiores invernos -só mesmo a quietude eterna e a imensidade vazia do Nirvana...

* * *

Que vai fazer, ali, o inglês?...

Vai defender a Índia. Lorde Curzon, o atual vice-rei, declara-o formalmente; a Índia é uma enorme fortaleza triangular, tendo o Índico como um fosso envolvente por dois lados, e, pelo outro, o muro do Himalaia.

Transposto este, está uma esplanada, o glacis, que deve jazer na mais absoluta neutralidade. É a região ao sul do Tibete. Este, porém, abandonando, nos últimos tempos, o seu isolamento milenário, mandou emissários ao tzar, abrindo espontaneamente à política asiática da Rússia um dilatado campo, que se expande, a partir das fronteiras orientais do Turquestão. Deste modo, a Rússia, sobre o glacis, irá ajustar-se, por terra, às lindes da mais imponente das possessões inglesas, bloqueando-lhe daquele lado trezentos milhões de súditos.

Daí, esse movimento de contrapolítica, que o Times resume limpidamente: «A resolução do governo inglês é clara. Para o russo dominante no Turquestão, o Tibete é um país muito distante, que tem muito perto, a um passo, a Índia. E, embora este passo tenha de dar-se por cima do Himalaia, a grande cordilheira de modo algum se compara ao imenso planalto enregelado, onde o caminhante opresso, numa altitude de 5.000 metros, calca, durante dois meses, a neve sem ver um homem, sem ver uma única árvore entre os plainos do Turquestão e as primeiras cabanas dos caçadores, a 200 quilômetros de Lassa. Este planalto, e não a cordilheira, é que forma a fronteira setentrional da Índia; e o governo inglês não permite que lha ocupem num movimento ameaçador e contorneante.»

«A Inglaterra não vai conquistar, povoar, ou colonizar aquele trato do território. O que a Inglaterra não quer, e tenazmente, é que lhe extingam aquele deserto -e que penetre no país, perpetuamente malignado pelo clima, pela imbecilidade dos lamas e pela vadiagem aventureira dos tchandalas, a alma forte e maravilhosa dos russos.»

Ressalta, nesta circunstância, o significado interessantíssimo do caso.

A nação mais prática entre todas -onde a inteligência, conforme a frase de Emerson, está numa espécie de materialismo mental, porque nada produz sem se basear num fato positivo- coloca-se, inesperadamente, ao lado da infinita idealização estagnada do budismo...

Porque, afinal, o que convém à política inglesa na Índia é a permanência da sociedade decaída e apática, o vazio da célebre «esplanada» -com tanta seriedade e tão involuntário humorismo exposta pelo previdente Lorde Curzon.

E, para isso, armou-se uma expedição, que lá está, há meses, assoberbada de dificuldades de toda a ordem, num solo onde as armas inglesas, encontrando nos tibetanos uma resistência inesperada, ainda não perderam o brilho, somente devido à bravura e à tenacidade inamolgável dos gurkas e siks do Nepal, os melhores soldados do Velho Mundo.

A tomada de Giantsé, efetuada pelo coronel Younghusband, depois de um rude canhoneio, deu-lhes um ponto estratégico de primeira ordem. Aquela cidade era o primeiro objetivo da campanha. Segundo se colhe de notícias anteriores, o governador da Índia pretendia, expugnando-a, transformá-la num centro de negociações diplomáticas com os grandes lamas e com o Dalai-Lama de Lassa, por maneira a firmar o prestígio britânico, sem maiores dispêndios de sacrifícios.

A este propósito, citou-se, mesmo, o grande lama de Tashe Lump, «o grande mestre», como o denominam, que assiste em Shigtsé, a poucas léguas de Giantsé.

Ao que se figura, porém, as tentativas neste sentido fracassaram.

Os últimos despachos noticiam que a expedição, agora sob o mando direto do general MacDonald, segue rumo decisivo para o seu objetivo lógico, para Lassa, para o âmago do país, para a Roma intangível do budismo...

Vai desenrolar-se um dos mais empolgantes episódios da história universal.

Realmente, devem aguardar-se todas as surpresas, e até as revelações mais imprevistas, deste recontro: um conflito entre o povo que melhor equilibra as energias da civilização moderna e a velhíssima raça, onde melhor se conserva o desvairado das sociedades primitivas.

Entre os enredos prováveis que em breve embaralharão a luta do Extremo Oriente avulta, a ressaltar em destaque sobre todas as conjecturas, uma ação interventiva da Inglaterra.

Tudo a sugere. À parte sem, número de outras circunstâncias, mostram-na, com toda a clareza de um traçado geométrico, os itinerários seguidos pelas duas grandes nacionalidades no Velho Mundo.

A princípio marcharam paralelamente: o inglês pelo Egito, pelo Afeganistão, pela Índia; o russo pelo norte do Turquestão e pela Sibéria em fora a defrontar o Pacífico; e, certo, teriam no Tibete e na China propriamente dita uma larga superfície isolante, que devia garantir a imiscibilidade de suas poderosas vagas invasoras, se uma delas, a russa, não houvesse de infletir forçadamente para o sul, tendendo para um encontro, que será um conflito.

De feito, a rota do eslavo para o Oriente -a mais lenta e a maior de todas as invasões- não denuncia, como a do saxônio, um excesso de vida, porém a mesma necessidade inflexível de viver. Não obedece a um traçado sistemático e seco; não vai num percurso de gentes disciplinadas avançando adstritas à retitude de programas prefixos -é um espraiamento largo a assoberbar fronteiras, o refluxo desordenado e em massa de um povo rudemente repelido num final espantoso de batalhas.

Realmente, a guerra da Criméia fechou o ocidente da Europa à Rússia e despenhou-a sobre a Ásia. A típica bonomia política de Napoleão III, com servir tão complacentemente aos interesses da Inglaterra, em 1853, afigura-se-nos hoje um lance aquilino de estadista maquiavélico, porque toda aquela campanha recorda um reconhecimento armado preparando meio século mais tarde uma luta titânica à adversária secular da França.

Era fácil prevê-la. O colosso moscovita, vencido, ficara inteiramente bloqueado: o Bósforo interdito seqüestrava-o nas suas estepes, sem saída; e a indústria triunfante das raças vitoriosas malsinava-lhe, suplantando-lho, o desenvolvimento econômico incipiente. A Rússia, com a sua estrutura social variadíssima e imperfeita e a sua atividade ainda tateante entre a servidão e a liberdade, seria para sempre vencida pelo trabalho organizado e pelas riquezas estáveis de todo o resto da Europa.

Mas dominou a situação gravíssima. Contornou-a; transmudou todo aquele recuo num avançamento; e abalou para o levante num movimento de flanco admirável, entre ameaçador e pacífico, porque não lho estimulava ou inspirava apenas o velho sonho guerreiro de Pedro, o Grande, a conquista do mar, senão também o anelo de deparar, em outras terras, novos centros produtivos, de cultura. Ao revés da expansão britânica na Índia, não buscava mercados para o desafogo de indústrias que não tinha, mas novas áreas de produção industrial e agrícola, onde as caravanas anuais dos mujiques das Terras Negras -dois milhões de homens periodicamente postos fora dos lares pela miséria- encontrassem o abrigo salvador dos territórios ferozes que demoram além dos plainos estéreis do Turquestão ou da Sibéria.

Para a sua grande vida vacilante e distensa procurou a base econômica da China -uma Canaã vastíssima...

E assim se traçou a «estrada do império», o transiberiano, menos um caminho comercial do que um dreno desmedido canalizando para a Rússia européia toda a força vital da Ásia conquistada.

Para isso se demasiou em esforços em que as empresas militares mal se destacam entre os prodígios de uma diplomacia incomparável.

Não há resumi-los. Diante dos hábeis diplomatas, de Mouraviev a Cassini, abria-se o desconhecido: o Império do Meio, com a sua contextura política indecifrável, onde a autoridade periclitante de uma dinastia intrusa mal se equilibra entre os Canatos anárquicos da Mongólia -e a força religiosa dos lamas do Tibete. Neste sistema desfalecido, em que divergem os poderes mal unidos pela identidade das crenças difundidas na amplitude do budismo, penetrou a componente dominante da política russa, que os equilibrou ou os dirigiu, ou os anulou pelo contraste dos interesses em jogo; de sorte que a breve trecho a nacionalidade, que se perdia na grandeza inútil da Sibéria, tendo no Pacífico, em Petropavlosky, uma saída única obstruída pelos gelos, se dilatou para o sul até Vladivostock; firmou-se depois, mais avantajada, em Porto Arthur -de onde, assoberbando todo o vale do Amur, abrangeu a Manchúria, e conquistou o protetorado franco da Mongólia, onde se estia a suserania do Tibete...

Em cinqüenta anos expandiu-se em superfície capaz de cobrir a de toda a Europa ocidental, de onde refluíra em 1853.

Foi um triunfo e um revide.

Completa-os -fato sugestivo, ainda que desvalioso- uma destas minúcias pinturescas tão em destaque às vezes entre os maiores acontecimentos.

De fato, o último aspecto desta estupenda hipertrofia territorial recorda-lhe o ponto de partida. A extremidade peninsular de Liao-Tong -neste momento o mais ruidoso palco do drama russo-japonês- é a miniatura da Criméia. Ali ainda se retrata, estereotipado no desmantelamento da terra, o cataclismo geológico que destacou o Japão da Coréia, deixando-lhes de permeio a ruinaria esparsa das «Dez mil ilhas», que fervilham entre Fuzan e Nagasaqui. A ponte extrema da peninsular Kuang-Tong, a «espada do regente», embebida no mar à feição de gládio desmedido, denteia-se de numerosas enseadas ou reentrâncias nos ásperos costões de micaxisto... Numa delas o acesso se faz por uma passagem estreita, breve angustura de taludes a pique à maneira de brecha de muralha.

E lá dentro, no encerro da baía, as falésias a prumo desatam-se em cortinas unidas, encimadas de baluartes, desenrolam-se ou entrelaçam-se entrincheiramentos, acompanhando os sulcos das ravinas, e os cerros torreados crivam de fortalezas as alturas...

É Porto Arthur -a Sebastopol ameaçadora do Pacífico.

* * *

Ora, esta expansão vitoriosa contrabate, de um lado, os interesses imediatos do Japão transfigurado nos últimos trinta anos, com uma vida intensíssima a desbordar no âmbito de suas ilhas para o cenário maior do continente fronteiro -e de outro, aos interesses futuros da Inglaterra na Índia, sobre a qual descerá direta e esmagadoramente o peso morto formidável deste antigo mundo restituído à história.

Daí a luta -a luta às claras do Japão, arrojando na Manchúria todo o seu exército, e a luta surda da Inglaterra, mal disfarçada sob a forma meio diplomática, meio militar, da missão do Tibete, que deste modo chega aos muros de Lassa, a «impenetrável».

Mas neste investir com a capital interdita do budismo, as armas inglesas vão bater precisamente no centro irradiante das inspirações superiores da diplomacia moscovita. De fato, toda ela, a despeito da sua complexidade e das infinitas maranhas em que enleou a metade da Ásia, tem consistido em destacar o prestígio eslavo entre a fidelidade precária dos chineses à dinastia reinante e a aversão nacional à expansão econômica do Ocidente. Teve que harmonizar coisas opostas: captar a confiança da primeira, protegendo-a ou dirigindo-a, e ao mesmo tempo o apoio da grande maioria do povo, em quem o nacionalismo antidinástico é um caso particular da xenofobia, o ódio ao estrangeiro, que o caracteriza.

Ora, o instrumento desta maquinação -a maior e mais vasta de quantas intrigas rememora a história- foi o mais alto fator da vida oriental, o clero búdico, a oligarquia teocrática de Lassa, o árbitro preexcelente de todas as questões asiáticas.

Tudo mais está num plano subordinado; os nove mil quilômetros de rails que prendem Porto Arthur a Petersburgo; os possantes locomóveis que correm hoje pelos plainos da Mongólia, arrastando pesadíssimos trens e resolvendo o problema da rápida viação sem trilhos; as cidades russas emergentes com os seus nomes caracteristicamente russos por toda a Manchúria; as operações em vasta escala do Banco Russo-Chinês, açambarcando todas as finanças do Oriente; e todo o vasto acampamento que perlonga as vias férreas, onde em cada estação se abarraca uma sotnia de cossacos: todas estas formas materiais e imponentes do domínio têm a garantia maior da aliança habilmente estabelecida, desde 1901, entre o papa ortodoxo do Neva e o imperador teocrático de Lassa.

Graças a ela, desenvolveu-se o protetorado russo na Mongólia e a suserania virtual do czar sobre toda a China. E quando a Corte manchu, rudemente molestada pela última intervenção européia, se acolheu sob o amparo da Rússia, desvendou-se inteiramente, diante da Europa surpreendida, a aliança singularíssima entreabrindo uma nova fase na história do Oriente.

Delatou-a incidente expressivo. O chefe do budismo, o super-homem tibetano, modificou a cerimônia tradicional com que através dos séculos ele consagra os poderes supremos da Ásia: o chanceler de Lassa, conduzindo os presentes simbólicos do domínio, não se dirigiu mais a Pequim. Dirigiu-se para a Livádia.

Era a sagração do czar -logo depois sancionada pela própria dinastia manchu com o tratado confidencial de julho de 1902. E o enorme bloco russo-búdico, descendo esmagadoramente sobre a Ásia meridional, cerrou todas as passagens à expansão inglesa.

Compreende-se, então, a última entente cordialíssima entre a Inglaterra e a França, rematando tão de improviso uma rivalidade secular. Não no-la explicam as simples tendências galófilas do antigo príncipe de Gales. A política inglesa é a menos sentimental das políticas, e embora a inquinassem os nossos belos defeitos latinos, o seu aparelho complexo repele todos os influxos pessoais. A explicação reponta das linhas anteriores. A arrogância britânica, tão desafiadora ainda há pouco em Fashoda, transmudou-se em dócil cortesia, porque se lhe antolhava, depois do problema africano resolvido no Transval, o problema asiático, mais sério e quase misterioso no intricado de infinitas incógnitas.

Previu próxima e inevitável deslocação da sua força para a Ásia, a enterreirar um antagonista que além da própria robustez lhe tem às portas, separado pelas seis horas de travessia da Mancha, um aliado respeitável. Era-lhe preciso remover todas as interpretações inconvenientes da aliança franco-russa. Daí as suas transigências quanto aos pontos controvertidos em Sião, o abandono dos projetos de linhas férreas contrapostos aos interesses franceses no sudoeste chinês, assim como as suas imprevistas concessões no norte da África e na Terra Nova -e sobretudo o afogo, a ânsia, a vibratibilidade perfeitamente latina com que se precipitam os debates do acordo anglo-francês, na Câmara dos Comuns. De qualquer modo, deixando o seu esplêndido isolamento, o Reino Unido enfraquecerá os compromissos franceses na dupla aliança e poderá abalançar-se à maior das guerras.

A situação é clara.

Se a Rússia for vencida, não terá o apoio do Ocidente num trabalho de paz que lhe salve ao menos uns restos de domínio. A convenção anglo-japonesa de julho de 1902, tão denunciativa do largo descortino de Chamberlain, e destinada sobretudo a fechar as estradas da Índia e do Pacífico à Rússia, terá todos os seus efeitos, e o governo de Micado ficará largamente compensado do amargo desapontamento daquele ilógico tratado de Simonosaki, em que as nações interventoras, entoando um vae victoribus! extravagante, lhe remataram as vitórias sobre a China, obrigando-o a respeitar a integridade territorial do vencido. A Coréia, o Império da Manhã Serena, cairá inteiramente na órbita do Sol Levante...

E se a Rússia triunfar -o historiador futuro terá de narrar uma campanha tão anormal, tão vasta e cheia de titânicas batalhas, que todos os recontros e assaltos desta rude refrega, desencadeada agora no Oriente, surgirão apequenados, feitos simples combates de vanguardas.

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