À
memória de
Meu Pai, de Minha Mãe
e de Meu Irmão O. D. C.
Prólogo
Era por uma dessas
tardes, em que o azul do céu oriental -é
pálido e saudoso, em que o rumor do vento nas vergas-
é monótono e cadente, e o quebro da vaga na amurada
do navio -é queixoso e tétrico.
Das bandas do
Ocidente o sol se atufava nos mares «como um brigue em
chamas»... e daquele vasto incêndio do
crepúsculo alastrava-se a cabeça loura das ondas.
Além... os
cerros de granito dessa formosa terra da Guanabara, vacilantes, a
lutarem com a onda invasora de azul, que descia das alturas...
recortavam-se indecisos na penumbra do horizonte.
Longe, inda mais
longe... os cimos fantásticos da serra dos
Órgãos embebiam-se na distância, sumiam-se,
abismavam-se numa espécie de naufrágio celeste.
Só e
triste, encostado à borda do navio, eu seguia com os olhos
aquele esvaecimento indefinido e minha alma apegava-se à
forma vacilante das montanhas -derradeiras atalaias dos meus
arraiais da mocidade.
É que
lá, dessas terras do Sul, para onde eu levara o fogo de
todos os entusiasmos, o viço de todas as ilusões, os
meus vinte anos de seiva e de mocidade, as minhas esperanças
de glória e de futuro:... é que dessas terras do Sul,
onde eu penetrara «como o moço Rafael subindo as
escadas do Vaticano;»... volvia agora silencioso e
alquebrado... trazendo por única ambição -a
esperança de repouso em minha pátria.
Foi então
que, em face destas duas tristezas -a noite que descia dos
céus,- a solidão que subia do oceano-, recordei-me de
vós, ó meus amigos!
E tive pena de
lembrar que em breve nada restaria do peregrino na terra
hospitaleira, onde vagara; nem sequer a lembrança desta
alma, que convosco e por vós vivera e sentira, gemera e
cantara...
Ó
espíritos errantes sobre a terra! Ó velas enfunadas
sobre os mares!... Vós bem sabeis quanto sois
efêmeros... -passageiros que vos absorveis no espaço
escuro, ou no escuro esquecimento.
E quando
-comediantes do infinito- vos obumbrais nos bastidores do abismo, o
que resta de vós?
-Uma esteira de
espumas... -flores perdidas na vasta indiferença do oceano.
-Um punhado de versos... -espumas flutuantes no dorso fero da
vida!...
E o que são
na verdade estes meus cantos?...
Como as espumas,
que nascem do mar e do céu, da vaga e do vento, eles
são filhos da musa -este sopro do alto; do
coração- este pélago da alma.
E como as espumas
são, às vezes, a flora sombria da tempestade, eles
por vezes rebentaram ao estalar fatídico do látego da
desgraça.
E como
também o aljofre dourado das espumas reflete as opalas
rutilantes do arco-íris, eles por acaso refletiram o prisma
fantástico do entusiasmo -estes signos brilhantes da
aliança de Deus com a juventude!
Mas, como as
espumas flutuantes levam, boiando nas solidões marinhas, a
lágrima saudosa do marujo... possam eles, ó meus
amigos! -efêmeros filhos de minh'alma- levar uma
lembrança de mim às vossas plagas!...
São Salvador,
fevereiro de 1870
Antônio de
Castro Alves
Dedicatória
A pomba d'aliança o vôo
espraia
na superfície azul do mar
imenso,
rente... rente da espuma já
desmaia
medindo a curva do horizonte
extenso...
Mas um disco se avista ao longe...
A praia
5
rasga nitente o nevoeiro
denso!...
Ó pouso! ó monte!
ó ramo de oliveira!
Ninho amigo da pomba
forasteira!...
Assim, meu pobre livro as asas
larga
neste oceano sem fim, sombrio,
eterno...
10
O mar atira-lhe a saliva
amarga,
o céu lhe atira o temporal
de inverno...
O triste verga a tão pesada
carga!
Quem abre ao triste um
coração paterno?...
É tão bom ter por
árvore -uns carinhos!
15
É tão bom de uns
afetos -fazer ninhos!
Pobre órfão! Vagando
nos espaços
embalde às solidões
mandas um grito!
Que importa? De uma cruz ao longe
os braços
vejo abrirem-se ao mísero
precito...
20
Os túmulos dos teus
dão-te regaços!
ama-te a sombra do salgueiro
aflito...
Vai, pois, meu livro! e como louro
agreste
traz-me no bico um ramo de...
cipreste!
Bahia, janeiro de
1870
O livro e a América
Ao Grêmio Literário
Talhado para as grandezas,
pra crescer, criar, subir,
o Novo Mundo nos
músculos
sente a seiva do porvir.
-Estatuário de
colossos-
5
cansado d'outros
esboços
disse um dia Jeová:
«Vai, Colombo, abre a
cortina
Da minha eterna oficina...
Tira a América de
lá.»
10
Molhado inda do
dilúvio,
qual Tritão descomunal,
o continente desperta
no concerto universal.
Dos oceanos em tropa
15
um -traz-lhe as artes da
Europa,
outro -as bagas de
Ceilão...
E os Andes petrificados,
como braços levantados,
lhe apontam para a
amplidão.
20
Olhando em torno então
brada:
Tudo marcha!... Ó grande
Deus!
«As cataratas -pra
terra,
as estrelas -para os
céus.
Lá, do pólo sobre as
plagas,
25
o seu rebanho de vagas
vai o mar apascentar...
Eu quero marchar com os
ventos,
com os mundos... co'os
firmamentos!!!»
E Deus responde
-«Marchar!»
30
«Marchar!»... Mas
como?... Da Grécia
nos dóricos Partenons
a mil deuses levantando
mil marmóreos
Panteons?...
Marchar co'a espada de Roma
35
-leoa de ruiva coma
de presa enorme no
chão,
saciando o ódio
profundo...
-Com as garras nas mãos do
mundo,
-com os dentes no
coração?...
40
«Marchar!»... Mas como
a Alemanha
na tirania feudal,
levantando uma montanha
em cada uma catedral?...
Não!... Nem templos feitos
de ossos,
45
nem gládios a cavar
fossos
são degraus do
progredir...
Lá brada César
morrendo:
«No pugilato tremendo
quem sempre vence é o
porvir!»
50
Filhos do sec'lo das luzes!
filhos da Grande
nação!
Quando ante Deus vos
mostrardes,
tereis um livro na mão:
O livro -esse audaz guerreiro
55
que conquista o mundo inteiro
sem nunca ter Waterloo...
Éolo de pensamentos,
que abrira a gruta dos ventos
donde a Igualdade voou!...
60
Por uma fatalidade
dessas que descem de
além,
o séc'lo, que viu
Colombo,
viu Guttenberg também.
quando no tosco estaleiro
65
da Alemanha o velho obreiro
a ave da imprensa gerou...
O Genovês salta os
mares...
busca um ninho entre os
palmares
e a pátria da
imprensa achou...
70
Por isso na impaciência
desta sede de saber,
como as aves do deserto-
As almas buscam beber...
Oh! bendito o que semeia
75
livros... livros à
mão cheia...
e manda o povo pensar!
O livro caindo n'alma
É gérmen -que faz a
palma,
é chuva -que faz o mar.
80
Vós, que o templo das
idéias
largo -abris às
multidões,
pra o batismo luminoso
das grandes
revoluções,
agora que o trem de ferro
85
acorda o tigre no cerro
e espanta os caboc'los nus,
fazei desse «rei dos
ventos»
-Ginete dos pensamentos,
-Arauto da grande luz!...
90
Bravo! a quem salva o futuro
fecundando a
multidão!...
Num poema amortalhada
nunca morre uma
nação.
Como Goëthe moribundo
95
brada «Luz!» o Novo
Mundo
num brado de Briareu...
Luz! pois, no vale e na
serra...
Que, se a luz rola na terra,
Deus colhe gênios no
céu!...
100
Bahia
Hebréia
Flos campi et lilium
convalium.
Cântico dos Cânticos
Pomba d'esp'rança sobre um
mar d'escolhos!
Lírio do vale oriental,
brilhante!
Estrela vésper do pastor
errante!
Ramo de murta a rescender
cheirosa!...
Tu és, ó filha de
Israel formosa...
5
Tu és, ó linda,
sedutora Hebréia...
Pálida rosa da infeliz
Judéia
sem ter o orvalho, que do
céu deriva!
Por que descoras, quando a tarde
esquiva
mira-se triste sobre o azul das
vagas?
10
Serão saudades das infindas
plagas,
onde a oliveira no Jordão se
inclina?
Sonhas acaso, quando o sol
declina,
a terra santa do oriente
imenso?
E as caravanas no deserto
extenso?
15
E os pegureiros da palmeira
à sombra?!...
Sim, fora belo na relvosa
alfombra,
junto da fonte, onde Raquel
gemera,
viver contigo qual Jacó
vivera
guiando escravo teu feliz
rebanho...
20
Depois nas águas de cheiroso
banho
-Como Susana a estremecer de
frio-
fitar-te, ó flor do
Babilônio rio,
fitar-te a medo no salgueiro
oculto...
Vem pois!... Contigo no deserto
inculto
25
fugindo às iras de Saul
embora,
davi eu fora, -se Micol tu
foras,
vibrando na harpa do profeta o
canto...
Não vês?... Do seio me
goteja o pranto
qual da torrente do Cedrón
deserto!...
30
Como lutara o patriarca
incerto
lutei, meu anjo, mas caí
vencido.
Eu sou o Lótus para o
chão pendido.
Vem ser o orvalho oriental,
brilhante!...
Ai! guia o passo ao viajor
perdido,
35
estrela vésper do pastor
errante!...
Bahia, 1866
Quem dá aos pobres, empresta
a Deus
Ao Gabinete
Portuguez de Leitura, por ocasião de oferecer o produto de
um
enefício às famílias dos soldados mortos na
guerra
Eu, que a pobreza de meus pobres
cantos
dei aos heróis -aos
miseráveis grandes-,
eu, que sou cego, -mas só
peço luzes...
que sou pequeno, -mas só
fito os Andes...
Canto nest'hora, como o bardo
antigo
5
das priscas eras, que bem longe
vão,
o grande NADA dos heróis,
que dormem
do vasto pampa no funéreo
chão...
Duas grandezas neste instante
cruzam-se!
Duas realezas hoje aqui se
abraçam!...
10
Uma -é um livro laureado em
luzes...
Outra -uma espada, onde os
lauréis se enlaçam.
Nem cora o livro de ombrear co'o
sabre...
Nem cora o sabre de chamá-lo
irmão...
Quando em loureiros se biparte o
gládio
15
do vasto pampa no funéreo
chão.
E foram grandes teus heróis,
ó pátria,
-Mulher fecunda, que não
cria escravos-,
que ao trom da guerra
soluçaste aos filhos:
«Parti -soldados, mas
voltai-me- bravos!»
20
E qual Moema desgrenhada,
altiva,
eis tua prole, que se arroja
então,
de um mar de glórias
apartando as vagas
do vasto pampa no funéreo
chão.
E esses Leandros do Helesponto
novo
25
se resvalaram -foi no chão
da história...
Se tropeçaram -foi na
eternidade...
Se naufragaram -foi no mar da
glória...
E hoje o que resta dos
heróis gigantes?...
Aqui -os filhos que vos pedem
pão...
30
Além -a ossada, que
branqueia a lua,
do vasto pampa no funéreo
chão.
Ai! quantas vezes a criança
loura
seu pai procura pequenina e
nua,
e vai, brincando co'o vetusto
sabre,
35
sentar-se à espera no portal
da rua...
Mísera mãe, sobre teu
peito aquece
esta avezinha, que não tem
mais pão!...
Seu pai descansa -fulminado
cedro-
do vasto pampa no funéreo
chão.
40
Mas, já que as águias
lá no Sul tombaram
e os filhos d'águias o Poder
esquece...
É grande, é nobre,
é gigantesco, é santo!...
Lançai -a esmola, e
colhereis- a prece!...
Oh! dai a esmola... que, do infante
lindo
45
por entre os dedos da pequena
mão,
ela transborda... e vai cair nas
tumbas
do vasto pampa no funéreo
chão.
Há duas coisas neste mundo
santas:
-O rir do infante, -o descansar do
morto...
50
O berço -é a barca,
que encalhou na vida,
a cova -é a barca do
sidéreo porto...
E vós dissestes para o
berço -Avante!-
enquanto os nautas, que ao Eterno
vão,
os ossos deixam, qual na praia as
âncoras,
55
do vasto pampa no funéreo
chão.
É santo o laço, em
qu'hoje aqui se estreitam
de heróicos troncos -os
rebentos novos-!
É que são
gêmeos dos heróis os filhos
inda que filhos de diversos
povos!
60
Sim! me parece que n'est'hora
augusta
os mortos saltam da feral
mansão...
E um «bravo!» altivo de
além-mar partindo
rola do pampa no funéreo
chão!...
São Salvador,
31 de outubro de 1867
O laço de fita
Não sabes, criança?
'Stou louco de amores...
Prendi meus afetos, formosa
Pepita.
Mas onde? No templo, no
espaço, nas névoas?!
Não rias, prendi-me
num laço de fita.
5
Na selva sombria de tuas
madeixas,
nos negros cabelos da moça
bonita,
fingindo a serpente
qu'enlaça a folhagem,
formoso enroscava-se
o laço de fita.
10
Meu ser, que voava nas luzes da
festa,
qual pássaro bravo, que os
ares agita,
eu vi de repente cativo,
submisso
rolar prisioneiro
num laço de fita.
15
E agora enleada na tênue
cadeia
debalde minh'alma se embate, se
irrita...
O braço que rompe cadeias de
ferro,
não quebra teus elos,
ó laço de fita!
20
Meu Deus! As falenas têm asas
de opala,
os astros se libram na plaga
infinita.
Os anjos repousam nas penas
brilhantes...
Mas tu... tens por asas
um laço de fita.
25
Há pouco voavas na
célere valsa
na valsa que anseia, que estua e
palpita.
Por que é que tremeste?
Não eram meus lábios...
Beijava-te apenas...
Teu laço de fita.
30
Mas ai! findo o baile, despindo os
adornos
n'alcova onde a vela ciosa...
crepita,
talvez da cadeia libertes as
tranças
mas eu... fico preso
No laço de fita.
35
Pois bem! Quando um dia na sombra
do vale
abrirem-me a cova... formosa
Pepita!
Ao menos arranca meus louros da
fronte,
e dá-me por c'roa...
Teu laço de fita.
40
São Paulo,
julho de 1868
Ahasverus e o gênio
Ao poeta e amigo J.
Felizardo Júnior
Sabes quem foi Ahasverus?... -o
precito,
o mísero judeu, que tinha
escrito
na fronte o selo atroz!
Eterno viajor de eterna
senda...
Espantado a fugir de tenda em
tenda
5
fugindo embalde à
vingadora voz!
Misérrimo! Correu o mundo
inteiro,
e no mundo tão grande... o
forasteiro
não teve onde...
pousar.
Co'a mão vazia -viu a terra
cheia.
10
O deserto negou-lhe -o grão
de areia,
a gota d'água -rejeitou-lhe
o mar.
D'Ásia as florestas -lhe
negaram sombra
a savana sem fim -negou-lhe
alfombra
o chão negou-lhe o
pó!...
15
Tabas, serralhos, tendas e
solares...
Ninguém lhe abriu a porta de
seus lares
e o triste seguiu só.
Viu povos de mil climas, viu mil
raças,
e não pôde entre
tantas populaças
20
beijar uma só
mão...
Desde a virgem do norte à de
Sevilhas
desde a inglesa à crioula
das Antilhas
não teve um
coração!...
E caminhou!... E as tribos se
afastavam
25
e as mulheres tremendo
murmuravam
com respeito e pavor.
Ai! Fazia tremer do vale à
serra...
Ele que só pedia sobre a
terra
-Silêncio, paz e amor!-
30
No entanto à noite, se o
Hebreu passava,
um murmúrio de inveja se
elevava,
desde a flor da campina ao
colibri.
«Ele não morre»
a multidão dizia...
E o precito consigo respondia:
35
-«Ai! mas nunca
vivi!»-
O gênio é como
Ahasverus... solitário
a marchar, a marchar no
itinerário
sem termo de existir.
Invejado! A invejar os
invejosos.
40
Vendo a sombra dos álamos
frondosos...
E sempre a caminhar... sempre a
seguir...
Pede u'a mão de amigo
-dão-lhe palmas:
Pede um beijo de amor -e as outras
almas
fogem pasmas de si.
45
E o mísero de glória
em glória corre...
Mas quando a terra diz: -«Ele
não morre»
Responde o desgraçado:
«Eu não vivi!...»
São Paulo,
outubro de 1868
Mocidade e morte
E perto avisto o porto
imenso, nebuloso e sempre
noite
chamado -Eternidade.-
Laurindo
Lasciate ogni speranza, voi ch'entrate.
Dante
Oh! eu quero viver, beber
perfumes
na flor silvestre, que embalsama os
ares;
ver minh'alma adejar pelo
infinito,
qual branca vela n'amplidão
dos mares.
No seio da mulher há tanto
aroma...
5
Nos seus beijos de fogo há
tanta vida...
-Árabe errante, vou dormir
à tarde
à sombra fresca da palmeira
erguida.
Mas uma voz responde-me
sombria:
Terás o sono sob a
lájea fria.
10
Morrer... quando este mundo
é um paraíso,
e a alma um cisne de douradas
plumas:
Não! o seio da amante
é um lago virgem...
Quero boiar à tona das
espumas.
Vem! formosa mulher -camélia
pálida,
15
que banharam de pranto as
alvoradas.
Minh'alma é a borboleta, que
espaneja
o pó das asas
lúcidas, douradas...
E a mesma voz repete-me
terrível,
com gargalhar sarcástico:
-impossível!
20
Eu sinto em mim o borbulhar do
gênio.
Vejo além um futuro
radiante:
Avante! -brada-me o talento
n'alma
e o eco ao longe me repete
-avante!-
O futuro... o futuro... no seu
seio...
25
Entre louros e
bênçãos dorme a glória!
Após -um nome do universo
n'alma,
um nome escrito no Panteon da
história.
E a mesma voz repete
funerária:
Teu Panteon -a pedra
mortuária!
30
Morrer -é ver extinto dentre
as névoas
o fanal, que nos guia na
tormenta:
Condenado -escutar dobres de
sino,
-voz da morte, que a morte lhe
lamenta-
Ai! morrer -é trocar astros
por círios,
35
leito macio por esquife
imundo,
trocar os beijos da mulher -no
visco
da larva errante no sepulcro
fundo.
Ver tudo findo... só na
lousa um nome,
que o viandante a perpassar
consome.
40
E eu sei que vou morrer... dentro
em meu peito
um mal terrível me devora a
vida:
Triste Ahasverus, que no fim da
estrada,
só tem por braços uma
cruz erguida.
Sou o cipreste, qu'inda mesmo
flórido,
45
sombra de morte no ramal
encerra!
Vivo -que vaga sobre o chão
da morte,
morto -entre os vivos a vagar na
terra.
Do sepulcro escutando triste
grito
sempre, sempre bradando-me:
maldito!-
50
E eu morro, ó Deus! na
aurora da existência,
quando a sede e o desejo em
nós palpita...
Levei aos lábios o dourado
pomo,
mordi no fruto podre do
Asfaltita.
No triclínio da vida -novo
Tântalo-
55
o vinho do viver ante mim
passa...
Sou dos convivas da legenda
Hebraica,
o estilete de Deus quebra-me a
taça.
É que até minha
sombra é inexorável,
Morrer! morrer! soluça-me
implacável.
60
Adeus, pálida amante dos
meus sonhos!
Adeus, vida! Adeus, glória!
amor! anelos!
Escuta, minha irmã, cuidosa
enxuga
os prantos de meu pai nos teus
cabelos.
Fora louco esperar! fria
rajada
65
sinto que do viver me extingue a
lampa...
Resta-me agora por futuro -a
terra,
Por glória -nada, por amor-
a campa.
Adeus!... arrasta-me uma voz
sombria
já me foge a razão na
noite fria!...
70
1864
Ao dous de julho
Recitada no teatro
de S. João
É a hora das
epopéias,
das Ilíadas reais.
Ruge o vento -do passado
pelos mares sepulcrais.
É a hora, em que a
Eternidade
5
dialoga a Imortalidade...
Fala o herói com
Jeová!...
E Deus -nas celestes plagas-
colhe da glória nas
vagas
os mortos de Pirajá.
10
Há destes dias augustos
na tumba dos Briareus.
Como que Deus baixa à
terra
sem mesmo descer dos
céus.
É que essas lousas
rasteiras
15
são -gigantes
cordilheiras
do senhor aos olhos nus.
É que essas brancas
ossadas
são -colunas arrojadas
dos infinitos azuis.
20
Sim! Quando o tempo entre os
dedos
quebra um sec'lo, uma
nação...
Encontra nomes tão
grandes
que não lhe cabem na
mão!...
Heróis! Como o cedro
augusto
25
Campeia rijo e vetusto
dos sec'los ao perpassar,
vós sois os cedros da
história,
á cuja sombra de
glória
vai-se o Brasil abrigar.
30
E nós, que somos
faíscas
da luz desses arrebóis,
nós, que somos
borboletas
-das crisálidas de
avós,
nós, que entre as bagas dos
cantos,
35
por entre as gotas dos prantos
inda os sabemos chorar,
podemos dizer: «Das
campas
sacudi as frias tampas!
Vinde a Pátria
abençoar!...»
40
Erguei-vos, santos fantasmas!
Vós não tendes que
corar...
(Porque eu sei que o filho
torpe
faz o morto soluçar...)
Gemem as sombras dos Gracos,
45
dos Catões, dos
Espartacos
vendo seus filhos tão
vis...
Dize-o tu, soberbo
Mário!
Tu, que ensopas o
sudário
vendo Roma -meretriz!...
50
Ai! Que lágrimas
candentes
choram órbitas sem
luz!-
Que idéia terá
Leônidas
vendo Esparta nos pauis?!...
Alta noite, quando pena
55
sobre Árcole, sobre
Iena,
Bonaparte -o rei dos reis-,
que dor d'alma lhe rebenta,
-ao ver su'águia
sangrenta
no sabre de Juarez!?...
60
Porém aqui não
há grito,
nem pranto, nem ai, nem dor...
O presente não desmente
do seu ninho de condor...
Mãos, que, outrora de
crianças
65
a rir -dentaram as
lanças
dos velhos de Pirajá...
De homens hoje, as empunhando,
nas batalhas afiando,
vão caminho de
Humaitá!...
70
Basta!... Curvai-vos, ó
povo!...
Ei-los os vultos sem par,
só de joelhos podemos
n'est'hora augusta fitar
Riachuelo e Cabrito,
75
que sobem para o infinito
como jungidos leões,
puxando os carros dourados
dos meteoros largados
sobre a noite das
nações.
80
Bahia, 1867
Os
três amores
I
Minh'alma é como a fronte
sonhadora
do louco bardo, que Ferrara
chora...
Sou Tasso!... a primavera de teus
risos
de minha vida as solidões
enflora...
Longe de ti eu bebo os teus
perfumes,
5
sigo na terra de teu passo os
lumes...
-Tu és Eleonora...
II
Meu coração desmaia
pensativo,
cismando em tua rosa
predileta.
Sou teu pálido amante
vaporoso,
10
sou teu Romeu... teu lânguido
poeta!...
Sonho-te às vezes virgem...
seminua...
Roubo-te um casto beijo à
luz da lua...
-E tu és Julieta...
III
Na volúpia das noites
andaluzas
15
o sangue ardente em minhas veias
rola...
Sou D. Juan!... Donzelas
amorosas,
vós conheceis-me os trenos
na viola!
Sobre o leito do amor teu seio
brilha...
Eu morro, se desfaço-te a
mantilha...
20
Tu és -Júlia, a
Espanhola!...
Recife, setembro de
1866
O
fantasma e a canção
Orgulho! desce os olhos dos
céus sobre
ti mesmo; e vê como os nomes
mais poderosos
vão se refugiar numa
canção.
Byron
-Quem bate? -«A noite é
sombria!»
-Quem bate? -«É rijo o
tufão!...
não ouvis? a ventania
ladra à lua como um
cão.»
-Quem bate? -«O nome
qu'importa?»
5
Chamo-me dor... abre a porta!
Chamo-me frio... abre o lar!
Dá-me pão... chamo-me
fome!
Necessidade «é o meu
nome!»
-Mendigo! podes passar!
10
«Mulher, se eu falar,
prometes
a porta abrir-me?»
-Talvez.
-«Olha... Nas cãs
deste velho
verás fanados
lauréis.
Há no meu crânio
enrugado
15
o fundo sulco traçado
pela c'roa imperial.
Foragido, errante espectro,
meu cajado -já foi
cetro!
Meus trapos -manto
real!»
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-Senhor, minha casa é
pobre...
ide bater a um solar!
-«De lá venho... O rei
fantasma
baniram do próprio lar.
Nas largas escadarias,
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nas vetustas galerias,
os pajens e as
cortesãs,
cantavam!... Reinava a
orgia!...
Festa! Festa! E ninguém
via
o rei coberto de
cãs!»
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-Fantasma! Aos grandes que
tombam,
é palácio o
mausoléu!
-«Silêncio! De longe eu
venho...
Também meu túmulo
morreu.
O sec'lo -traça que
medra
35
nos livros feitos de pedra-
rói o mármore,
cruel.
O tempo -Átila
terrível
quebra co'a pata
invisível
sarcófago e
capitel».
40
Desgraça então para o
espectro,
quer seja Homero ou Solon,
se, medindo a treva imensa
vai bater ao Panteon...
O motim -nero profano-
45
no ventre da cova insano
mergulha os dedos
cruéis.
Da guerra nos paroxismos
se abismam mesmo os abismos
e o morto morre outra vez!
50
«Então, nas sombras
infindas,
s'e esbarram em
confusão
os fantasmas sem abrigo
nem no espaço, nem no
chão...
As almas angustiadas,
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como águias
desaninhadas,
gemendo voam no ar.
E enchem de vagos lamentos
as vagas negras dos ventos,
os ventos do negro mar!
60
«Bati a todas as portas
nem uma só me
acolheu!...»
-Entra! -Uma voz argentina
dentro do lar respondeu.
-Entra, pois! Sombra exilada,
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entra! O verso -é uma
pousada
aos reis que perdidos
vão.
A estrofe -é a
púrpura extrema,
último trono -é o
poema!
último asilo -a
Canção!...
70
Bahia, 13 de
dezembro de 1869
O
gondoleiro do amor
Barcarola
Dama negra
Teus olhos são negros,
negros,
como as noites sem luar...
São ardentes, são
profundos,
como o negrume do mar;
sobre o barco dos amores,
5
da vida boiando à flor,
douram teus olhos a fronte
do Gondoleiro do amor.
Tua voz é a cavatina
dos palácios de
Sorrento,
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quando a praia beija a vaga,
quando a vaga beija o vento;
e como em noites de
Itália,
ama um canto o pescador,
bebe a harmonia em teus cantos
15
o Gondoleiro do amor.
Teu sorriso é uma
aurora.
Que o horizonte enrubesceu,
-Rosa aberta com o biquinho
das aves rubras do céu;
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nas tempestades da vida
das rajadas no furor,
foi-se a noite, tem auroras
o Gondoleiro do amor.
Teu seio é vaga dourada
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ao tíbio clarão da
lua,
que, ao murmúrio das
volúpias,
arqueja, palpita nua;
como é doce, em
pensamento,
do teu colo no langor
30
vogar, naufragar, perder-se
o Gondoleiro do amor!?
Teu amor na treva é -um
astro,
no silêncio uma
canção,
é brisa -nas calmarias,
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é abrigo -no
tufão;
por isso eu te amo, querida,
quer no prazer, quer na
dor,...
Rosa! Canto! Sombra! Estrela!
Do Gondoleiro do amor!
40
Recife, janeiro de
1867
Sub tegmine fagi
A Melo Morais
Dieu parle dans le calme plus haut
que dans la tempête.