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Capítulo XIV

Os últimos românticos

I. Prosadores

Anacrônico e amaneirado procrastinava-se o Romantismo, conservando os seus traços distintivos; a intenção nacionalista, realizada no poema ou no romance, já indianista, já do pitoresco patrício da paisagem ou da vida, e a sentimentalidade idealista. Afora os românticos da primeira hora, que se sobreviviam a si mesmos -e eram quase todos porque esta geração, ao invés da segunda, viveu velha, -havia os que, aparecendo quando já se acabava o alento literário que a criara, ainda lhe sofreram a influência ou cediam também ao prestígio daqueles fundadores. Os mesmos que se desviam de Alencar, a principal figura literária do tempo, o reconhecido chefe da literatura nacional, até os que o negam (aliás poucos) não contestam ou sequer duvidam a legitimidade do propósito nacionalista. É que este revia o íntimo sentimento a que, com a sua ordinária propriedade de expressão, Machado de Assis chamaria de «instinto de nacionalidade». Presume esta História haver cabalmente verificado o desabrochar desse instinto desde ainda mal iniciada a formação do nosso povo, bem como o seu constante desenvolvimento a par com o deste. A espontaneidade do fenômeno não prova, entretanto, que não assentasse em um errado conceito do nacionalismo na literatura. Desde 1873, no artigo de que acabo de citar uma feliz expressão, Machado de Assis oferecia a primeira contrariedade, que me conste, à opinião ao seu parecer errônea, que só nas obras consoantes aquele propósito reconhecia espírito nacional e conceituosamente escrevia «não há dúvida que uma literatura, sobretudo uma literatura nascente, deve principalmente alimentar-se dos assuntos que lhe oferece a sua região; mas não estabelecemos doutrinas tão absolutas que a empobreçam. O que se deve exigir do escritor, antes de tudo, é certo sentimento íntimo que o torne homem do seu tempo e do seu país, ainda quando trata de assuntos remotos no tempo e no espaço». Este programa devia ele cumpri-lo com peregrina distinção, despreocupadamente.

Iniciava-se, porém, a reação contrária ao Romantismo, sob o seu aspecto de nacionalismo exclusivista. Após largos anos de paz, de tranqüilidade interna, de remansosa vida pacata sob um regime liberal e bonachão, apenas abalada por mesquinhas brigas partidárias que não logravam perturbá-la, rebentou a guerra do Paraguai, que durante os últimos cinco anos do decênio de 60 devia alvoroçar o país. Pela primeira vez depois da Independência (pois a guerra do Prata de 1851 mal durou um ano e não chegou a interessar a nação) sentiu o povo brasileiro praticamente a responsabilidade que aos seus membros impõem estas coletividades chamadas nações. Ele, que até então vivia segregado nas suas províncias, ignorando-se mutuamente, encontra-se agora fora das estreitas preocupações bairristas do campanário, num campo propício para estreitar a confraternidade de um povo, o campo de batalha. De província a província trocam-se idéias e sentimentos; prolongam-se após a guerra as relações de acampamento. Houve enfim uma vasta comunicação interprovincial do Norte para o Sul, um intercâmbio nacional de emoções, cujos efeitos se fariam forçosamente sentir na mentalidade nacional. A mocidade das escolas, cujos catedráticos se faziam soldados e marchavam para a guerra, alvoroçou-se com o entusiasmo próprio da idade. Os que não deixavam o livro pela espada, bombardeavam o inimigo longínquo com estrofes inflamadas e discursos tonitruantes, excitando o férvido entusiasmo das massas. O amor, a morte, o desgosto da vida, os queixumes melancólicos, remanescentes do Romantismo, cederam lugar a novos motivos de inspiração. Por outro lado, acontecimentos exteriores que tinham aqui grande repercussão, as lutas do liberalismo francês contra o Segundo Império napoleônico, lutas em que a poesia e a literatura tomavam tão grande parte, a implantação de uma monarquia européia na América, a revolução republicana na Espanha e o fenômeno de um grande poeta, Victor Hugo, contrapondo-se em toda a grandeza do seu gênio e da sua cólera republicana ao Império e desafiando-o em face do mundo atônito, comoviam também a mente nacional. Impressões de todos esses sucessos há na poesia do tempo. Poetas e ainda prosadores eram por eles solicitados em outras direções que o estreme subjetivismo romântico. Debuxou-se então a reação anti-romântica. Iniciava-se, porém, sem alvoroto, nem decisão como que a medo. Ainda vencedora, não o suplantara de todo na radicada opinião de que o assunto brasileiro primasse em a nossa literatura e até em quaisquer lucubrações nossas. Salvo o que o cumprimento deste preceito pudesse ter de excessivo, não era ele inteiramente desarrazoado. A função faz o órgão. A aplicação constante dos nossos sentimentos nacionais na idealização literária ou noutro labor intelectual a assuntos brasileiros devia em rigor acabar por criar e desenvolver em nós aquele instinto. A história da nossa literatura prova, aliás, que assim sucedeu.

Já começada a reação, menos contra esse instinto legítimo e necessário que contra o conceito abusivo da sua aplicação, apareceu nas nossas letras um escritor que, sem embargo da sua procedência francesa e ser de raça um puro europeu, o possui como poucos brasileiros da nossa formação tradicional, o visconde de Taunay. Em 1872, Machado de Assis, que viria a suceder a Alencar no principado das nossas letras, estreava no romance com um livro a todos os respeitos novo aqui, Ressurreição. No mesmo ano publicou Taunay a Inocência, formoso exemplar do «romance brasileiro» segundo a fórmula aceita. Um ano antes estreara com a Mocidade de Trajano. Apesar da antipatia posteriormente manifestada pelo autor, na sua obra crítica, às novas correntes que começavam a arrastar para fora do Romantismo a ficção francesa, figurino sempre canhestramente copiado da nossa, sente-se-lhe todavia o influxo em ambos os romances.

Alfredo d'Escragnolle Taunay, visconde de Taunay, nasceu no Rio de Janeiro em 22 de fevereiro de 1843 e nesta cidade faleceu em 1899. Engenheiro militar e oficial de exército, fez a campanha do Paraguai e exerceu várias comissões técnicas. Professou também letras e ciências naturais na Escola Militar e, como Alencar, foi homem político, deputado geral, presidente de província e senador do Império. Teve talentos e aptidões variadas, era pintor e músico, e possuía, com boa educação liberal, prendas de homem do mundo. Foi um dos escritores mais versáteis e fecundos do seu tempo, mesmo o foi talvez com desleixada facilidade, acaso com menosprezo da sua situação literária. Aludo a livros como o Encilhamento ou Como e porque me tornei kneipista e que tais escritos seus. Esta falha, porém, revia a sua esquisita bonomia e o ingênuo ardor de propagandista que nele houve sempre e se manifestou nas suas campanhas de imprensa e de tribuna por questões públicas tomadas calorosamente a peito. Não é ocioso recordá-lo, pois mostra a feição prática do gênio de Taunay, feição que não foi estranha à sua fórmula literária.

À sua obra, considerada pela cópia e ainda pela qualidade, faltou coesão e intensidade que lhe dessem mais solidez e distinção. E como quer que seja dispersiva, feita com facilidade que roça pelo banal e inconseqüente. Além da propriamente literária, romance, crítica, teatro, compreende viagens e explorações de engenheiro, relatórios técnicos, relações de guerra, estudos etnográficos, escritos políticos e sociais, questões públicas, biografias, história e peças musicais. Dois livros destacam-se de toda ela, que lhe asseguraram em vida nomeada de bons quilates e lhe dão um lugar na nossa literatura: a narrativa, feita com grande talento literário, de um episódio da guerra do Paraguai, a Retirada da laguna e o romance de costumes sertanejos Inocência, já referido.

Taunay, a quem tive a ventura de conhecer de perto, não obstante a sua dupla origem estrangeira, era um genuíno brasileiro de índole e sentimento. Não lhe faltavam sequer sinais das nossas peculiaridades, o que lhe completava a caracterização nacional. A sua literatura de inspiração, sentimento e intenção brasileira é a expressão sincera desta sua feição. O seu europeísmo ainda muito próximo, apenas lhe transparece no ardor com que, apesar de conservador de partido, se empenhou por idéias liberais que a seu ver deviam atrair e facilitar a imigração européia, da qual foi ardoroso propugnador. Sob o pseudônimo, logo descoberto, de Sílvio Dinarte, estreou na literatura com o já citado romance A mocidade de Trajano, em 1871. Quer neste, quer em Inocência, que se lhe seguiu de perto, atenua-se a sentimentalidade excessiva e o romanesco do romance em voga. Paisagens e costumes são descritos com mais senso da realidade e mais sobriedade e exatidão de traços. E não somente a sua representação interessa ao autor, senão também aspectos políticos, sociais e morais, que ressaiam da ação, das personagens ou dos usos. Não se libertara ainda da preocupação doutrinal dos seus antecessores, tinha-a, porém, com mais largueza espiritual e mais desenvoltura de expressão. Em A Mocidade de Trajano havia manifestações de livre-pensamento e sátira quer aos nossos costumes políticos, quer a práticas devotas, desusadas na nossa ficção.

Tinha feitio diferente de tudo o que no gênero aqui se publicara, a Inocência. Romance feito de impressões diretas de paisagens, cenas, tipos e fatos gerais, apenas idealizados por uma recordação que devia de ser saudosa, havia neste, com uma representação esteticamente verdadeira, ao mesmo tempo singela e forte, do sertão e da vida sertaneja no Brasil central, um sincero sentimento, uma simpatia real, sem excesso de sensibilidade, do seu objeto. Não obstante desfalecimentos de estilo, havia mais nele o mérito da novidade. Estavam em voga os romances de Alencar, Macedo e Bernardo Guimarães. O primeiro era nimiamente romanesco e idealista, feições que ao tempo as suas reais qualidades de escritor não bastavam para atenuar. Macedo, mestre de que aliás Taunay se confessava discípulo, sobre romanesco, de língua desleixada e estilo frouxo, pode dizer-se que não tinha propriamente feitio literário. Bernardo Guimarães, com qualidades artísticas inferiores, como Macedo, era como Alencar, mas sem o seu talento, um romântico idealista piorado pelo romanesco sentimental. Sem falar em Manoel de Almeida, cujo único romance não teve repercussão, é Taunay quem na Inocência, talvez sem propósito, levado apenas dos instintos práticos do seu gênio e nativo realismo do seu temperamento, e ainda pelo que chamarei o seu materialismo literário, escreve o primeiro romance realista, no exato sentido do vocábulo, da vida brasileira num dos seus aspectos mais curiosos, um romance ressumando a realidade, quase sem esforço de imaginação, nem literatura, mas que a emoção humana da tragédia rústica, de uma simplicidade clássica, idealiza nobremente. Precedera-o de três anos o Casamento no arrabalde, de Franklin Távora, de idêntica feição. Sobre não ter a intensidade e o compendioso de Inocência, nem, portanto, a sua emoção, publicado na província, passou despercebido menos por uma conspiração de silêncio, como erradamente suporia o autor, mas em virtude mesmo das necessárias condições da nossa vida literária. Ao contrário, o romance de Taunay saía acompanhado da calorosa recomendação considerável de Francisco Otaviano, que lhe augurava longa vida e acertou no vaticínio. Não havia em Inocência os arrebiques e enfeites com que ainda os melhores dos nossos romances presumiam embelezar-nos a vida e costumes e a si mesmos sublimarem-se. E com rara simplicidade de meios, língua chã e até comum, estilo natural de quase nenhum lavor literário, composição sóbria, desartificiosa, quase ingênua, e, relativamente a então vigente, original e nova, saía uma obra-prima.

Infelizmente se não repetiria jamais na obra do romancista. Os seus seguintes romances terão quase todos o mérito, ainda extraordinário, de melhor observação, de intenção de psicologia e estudo e desenho de caracteres, de língua mais cuidada. Esta, porém, por demasiado impessoal e dessangrada, nunca logrou ser um estilo. Depois de Inocência, a sua obra mais viva, e digno par desta, é a Retirada da Laguna, ou antes La Retraite de Lagune, pois foi escrita em francês. O ser escrita nesta língua porventura contribuiu para lhe dar a sóbria elegância e o intenso vigor descritivo que a distinguem na sua obra, mas de alguma sorte a desterra da nossa literatura. Taunay aumentou o nosso cabedal literário, enriquecendo do mesmo passo a nossa ficção, com outros romances, Lágrimas do coração (1873), republicado nos anos de 90 com o título menos romântico de Manuscrito de uma mulher, Ouro sobre azul (1874), Histórias brasileiras (1878), Narrativas militares (1878) e No declínio (1899). Dons de observação, qualidades de narração e também de composição, apesar da fraqueza e ineficiência da aplicação psicológica e maior simplicidade de estilo, geralmente os sobrelevam aos romances de Macedo ou Bernardo Guimarães e até, embora menos, aos de Alencar. Nos últimos era já evidente o influxo do naturalismo na sua fase extrema. Eram, porém, acaso mais realistas que naturalistas, porque o realismo estava no fundo do engenho literário de Taunay, como o idealismo no de Alencar.

Ensaiou igualmente Taunay o teatro (Amélia Smith) e a crítica (Estudos críticos, 1881-1883), mas em nenhum destes gêneros deixou obra considerável. O seu lugar na história da nossa literatura são os seus romances somente que merecidamente lho conferem.

A precedência de Franklin Távora aos dois romancistas atrás nomeados, Taunay e Machado de Assis, é apenas cronológica. Não obstante se haver estreado no romance desde 1862, com os Índios de Jaguaribe, só de fato começou o seu nome a sair da obscuridade provinciana pelos anos de 70, primeiro com a publicação escandalosa das Cartas a Cincinato, depois com os romances O cabeleira (1876), O matuto (1878), Lourenço (1881).

Joaquim Franklin da Silveira Távora era do Ceará, nascido em 13 de janeiro de 1843. Passou a maior parte da sua vida no Norte, onde se lhe formou o espírito e pelo qual tinha um apego bairrista. Os seus últimos anos viveu-os no Rio de Janeiro, e aqui faleceu em 18 de agosto de 1888. Acaso mais por espírito de insubordinação dos escritores novéis contra os consagrados, que por justificadas razões, foi dos que se insurgiram contra a hegemonia literária de Alencar. Tem sido sempre aqui a literatura uma cousa à parte na vida nacional. Feita principal se não exclusivamente por moços despreocupados da vida prática, que sacrificavam a ingênuas ambições de glória ou à vaidade de nomeada, nunca assegurou aos seus cultores posições ou proveitos, como não constituiu jamais profissão ou carreira. Nestas condições tal insurreição, como outras quejandas, e tanta cousa da nossa vida literária, era apenas uma macaqueação de idênticas rebeliões nos centros literários europeus. Com violência que tanto pode haver sinceridade de convicções como a congênita irritabilidade dos poetas, e sob pseudônimo de Semprônio, atacou Franklin Távora a José de Alencar, e aos seus livros, nomeadamente a Iracema e o Gaúcho, em uma série de cartas primeiro publicadas num periódico do Rio, depois reunidas em livro de nítida edição de Paris.

Sob o disfarce de Cincinato eram endereçadas ao escritor português José Feliciano de Castilho. Ainda banindo da literatura e da vida, como devem ser, quaisquer estreitas prevenções nacionais, de todo impertinentes na ordem intelectual, essa obra de Franklin Távora, aliás apreciável como crítica e como estilo, era uma má ação. Fossem quais fossem os defeitos da de Alencar, não eram tais que o desclassificassem do posto que ocupava nas nossas letras. Determinava-a demais uma verdadeira vocação literária, como a inspiravam uma sincera e nobre ambição de promover a literatura nacional. E em verdade o fazia com honrado labor e engenho no momento incomparável. Ao mesmo empenho, aliás, se consagrara Franklin Távora, encetando a sua atividade literária com livros da chamada «literatura brasileira», Os índios de Jaguaribe, Um casamento no arrabalde. E o mesmo propósito teve o resto da sua vida. Nem ao cabo a sua literatura diferia notavelmente da de Alencar, senão por lhe ser inferior. Os índios de jaguaribe, O cabeleira, O matuto, Lourenço, que são as suas obras típicas como indianismo ou regionalismo pitoresco, não se diferenciam essencialmente dos romances de Alencar da mesma inspiração, e menos ainda os excedem em merecimento. São-lhes antes somenos como imaginação e estilo. E era a um escritor estrangeiro que se fizera aqui o negador sistemático ou o instigador da negação sistemática, do nosso engenho e capacidade literária, que Franklin Távora tomava por parceiro nesse jogo de descrédito do escritor que com tanta bizarria, e não sem sucesso, se empenhava no fomento da literatura nacional. Mas na vida literária não há maior satisfação nem melhor prêmio, de que vermos seguir-nos os passos os mesmos que nos contestam e nos atacam. Se Alencar fosse um homem de espírito, a investida de Franklin Távora, acompanhada de seus «romances brasileiros», devia intimamente rejubilá-lo. Sem embargo de endereçadas ao irmão de Antônio de Castilho, o serôdio árcade contra quem se tinha revoltado não havia muito a mocidade literária portuguesa, as Cartas a Cincinato eram acaso repercussão do famoso e ridículo motim literário do Bom senso e bom gosto. Não tiveram, porém, o eco da célebre carta deste título de Antero de Quental àquele, nem motivaram senão as respostas malignas e ainda ferinas do seu equívoco destinatário.

Com excelentes qualidades literárias, tinha Franklin Távora, mais do que é lícito a um homem de espírito, preconceitos provincianos, quizila à «Corte», cujos literatos, aliás na maioria provincianos, imaginava apostados em desconhecer e hostilizar os escritores da província. Algum tempo, justamente naquele em que fazia as suas primeiras armas literárias Franklin Távora, prevaleceu este estado de espírito, que o revia mesquinho, em certo grupo de homens de letras nortistas, indiscretamente revoltados contra a legítima e natural preponderância mental do Rio de Janeiro. Como se, dada a nossa formação histórica e cultural, e organização política, não fosse absurdo o regionalismo espiritual que lhes apetecia. Desta ridicularia ainda haverá algum representante anacrônico, e nunca se emancipou Franklin Távora. Manifestou-o ainda no prefácio da 2.ª edição, aqui publicada, de Um casamento no arrabalde. Esta prevenção lhe teria gerado a desinteligente ojeriza a Alencar, como um dos «sacerdotes sumos», segundo o seu dizer, da literatura dos que no Rio de Janeiro menosprezavam a da província. Do mesmo preconceito lhe viria a infeliz idéia da repartição da literatura brasileira em «literatura do Norte» e «literatura do Sul», conforme a região brasileira que lhe fornecia a inspiração e o tema. Quão melhor alumiado não andou Alencar escolhendo os seus sem preferência de regiões, para compor segundo o belíssimo dizer de Machado de Assis «com as diferenças da vida, das zonas e dos tempos a unidade nacional de sua obra».

Mas a obra construtiva de Franklin Távora, os seus quatro ou seis romances publicados de 1869 a 1881, excluídos os Índios de Jaguaribe, tentativa malograda de indianismo da sua juventude inesperta, sobreleva de muito este seu mal-avisado trabalho de demolição. Ele não tem nem a imaginação nem o alinde do estilo literário de Alencar, escreve todavia com mais apuro e observa com mais fidelidade. A sua representação da natureza e da vida é mais exata, se não mais expressiva. A sua língua mais simples, menos enfeitada, atingindo mesmo às vezes, como no Casamento no arrabalde, uma singeleza encantadora, livra-o da retórica sentimental que Alencar nem sempre evitou. Este último romance é no seu gênero um dos melhores da nossa literatura, um daqueles em que a vida burguesa provinciana, e não só nas suas exterioridades, mas nos seus caracteres intrínsecos e essenciais, se acha mais fiel e artisticamente reproduzida. Um casamento no arrabalde, como a Inocência, de Taunay, é um romance de um realista espontâneo, para quem o realismo não exclui por completo a idealização artística, que é como o sopro divino que lhe anima a feitura. Algo deste caráter realista se nos depara em todos os romances de Távora, o que faz dele, como do seu contemporâneo Taunay, um dos reatores contra a romântica aqui ainda então prevalecente, um dos precursores, portanto, do naturalismo.

O teatro e a literatura dramática no Brasil não tiveram nunca a importância, nem o mérito, do romance ou da poesia. Ficaram-lhes sempre somenos em quantidade e em qualidade. A época de maior florescimento, sob estas duas espécies, do nosso teatro e da nossa literatura dramática, são as duas décadas de 1860 a 1880. Pertence-lhes quase todo ou o melhor do teatro de Macedo, de Alencar, de Quintino Bocaiuva, de Agrário de Meneses, de Pinheiro Guimarães e de outros numerosos autores de teatro, cujos nomes, entretanto, cabem mais na história deste que na da literatura em geral. Não só no Rio de Janeiro, mas nas capitais das províncias principais, existiam e mantinham-se casas de espetáculos de peças nacionais, portuguesas ou traduzidas, representadas por companhias compostas quase por igual de atores brasileiros e portugueses fixados no Brasil, e até aqui feitos, dos quais alguns nomes ainda vivem na tradição, como Joaquim Augusto, Furtado Coelho, Florindo, Vicente de Oliveira, Eugênia Câmara, Ismênia dos Santos, Manuela Luci, Xisto Baía, Corrêa Vasques, e ainda outros. Mas, ou por deficiência dos nossos autores dramáticos, ou por defeito do próprio meio de que se inspiravam, faltou sempre ao nosso teatro capacidade de representação teatral da nossa sociedade, que invariavelmente falsificava. E como também não tiveram o talento de expressão mais alta da nossa vida que, embora a desnaturando, atingisse a uma realidade humana geral, a nossa literatura dramática consta antes de ótimas intenções que de boas obras.

Nela trabalhou também Franklin Távora, de quem se conhecem pelo menos três dramas: Um mistério de família (1861), Três lágrimas (1870) e Antônio, representado aqui no Rio, mas que parece se não chegou a imprimir. Os impressos corroboram o conceito acima, não se distinguem nem como representação da nossa vida, neles adulterada ao influxo da dramaturgia francesa, sempre aqui dominante, mas aqui sempre estéril, nem como expressão geral de sentimentos e atos humanos.

Deixou Franklin Távora também algumas excelentes páginas de crítica, gênero que tratou com evidente disposição e talento, mas que não cultivou bastante para destacar a figura nele.

Pela época em que se estrearam estes romancistas, as principais feições ou correntes da poesia brasileira, no que tinha esta de mais peculiar, eram ainda, se não o indianismo, o brasileirismo dos primeiros românticos, e o sentimentalismo doentio, de envolta com o ceticismo literário e a desilusão e desalento, dos segundos. Esgotavam-se essas duas correntes quando surgiram, com pouco intervalo, Machado de Assis (1839-1908), Tobias Barreto (1839-1889), Fagundes Varela (1841-1875), Luís Guimarães Júnior (1847-1898) e Castro Alves (1847-1871), que podemos considerar os últimos românticos da nossa poesia, que já não sejam anacrônicos.

Aliás nenhum traço comum saliente liga estes poetas. Quando muito, o teriam Tobias Barreto e Castro Alves na feição oratória do seu estro, a que se deu o nome de condoreirismo, porque os seus arroubos poéticos presumiam semelhar-se ao surto do condor. Denominação aliás, como tantas outras inventadas na nossa literatura, de pouca propriedade. Naquele grupo não caberia senão aos dois poetas nomeados ou a algum seu secundário imitador, indigno de menção particular. Demais não foram nem Tobias, nem Castro Alves os inventores desse falso gênero de poesia enfática e declamatória. Antes deles, Pedro Luís publicara os seus poemas Nunes Machado, A sombra de Tiradentes, Os voluntários da morte (1863), Terribilis Dea, Justamente no diapasão que devia dar àqueles dois poetas o epíteto extravagante de condoreiros. E na procura das últimas fontes do mesmo veio, poderíamos acaso remontar ao Napoleão em Waterloo, de Magalhães, a certos poemas de José Bonifácio, o Moço, e a outras anteriores amostras da nossa facúndia poética. Está esta no nosso temperamento, e o condoreirismo não era uma novidade na nossa poesia, mas apenas o exagero, sob a influência do entusiasmo patriótico do momento e da retórica hugoana, desse defeito do nosso estro poético. O aparecimento simultâneo de Varela com o seu Pavilhão auviverde, e de Vitoriano Palhares com o seu A D. Pedro II, a propósito do conflito anglo-brasileiro de 1862, e de numerosos poemas tão patrióticos como bombásticos de José Bonifácio e Pedro Luís, coincidindo com os de Castro Alves e Tobias Barreto, da mesma entoação, estão atestando que não havia novidade essencial no chamado condoreirismo de 60 a 70.

O Romantismo byroniano, temperado por Álvares de Azevedo, de Musset e Spronceda e de outros condimentos de idêntico sabor literário, tinha certamente desviado da sua direção primeira, cristã, patriótica e moralizante, o movimento literário com que aqui se iniciara a nossa literatura nacional. Mas além da parcial impressão que fez nos três principais poetas da mesma geração, mal fizera escola com Aureliano Lessa, Bernardo Guimarães e menores poetas, desvairados sobretudo com as extravagâncias da Noite na taverna. Nos anos de 60, mesmo no atrasado Brasil, já não havia atmosfera para ele. A voz do desespero, da ironia, do ceticismo daqueles poetas europeus substituía-se como um clarim de guerra vibrante de cóleras, mas rica de esperanças, ora flauta bucólica, ora lira amorosa, tuba canora e belicosa ou doce avena da paz, mas em suma otimista, a voz de Victor Hugo. Esta ouviram e seguiram mais ou menos de perto da geração que entrou a cantar por esta época. Também os houve que escutaram de preferência a melodia lamartiniana impregnada do idealismo cristão. Mas não se sai imune de uma corrente literária para outra. Levam-se sempre ressaibos daquela. Estes poetas apresentam um misto de romantismo e das tendências estéticas que em nascendo para a vida literária encontraram no seu ambiente. Tem em dose quase igual o desalento sentimental, mesmo o ceticismo, apenas menos anunciado daquela geração e os ideais práticos, as emoções sociais, a preocupação humana, ainda política, com os instintos de propaganda da corrente hugoana. E apenas alguma leve nota de indianismo ou brasileirismo nela transformada num mais íntimo que ostensivo sentimento nacional. E como em Victor Hugo, além da feição social e humanitária, o que mais os impressiona são os aspectos verbais do seu estro, a sua altiloqüência poderosa, caem no arremedo, geralmente infeliz, desse feitio da sua poética. Daí derivaria a alcunha, que cumpre não tomar a sério, que de hugoanos tiveram alguns.

A facúndia poética do grande vate francês, cujo prestígio se aumentava do seu papel político, achava no meio escolar onde se ia fazer este novo movimento literário, terreno propício. Às predisposições oratórias ou verbosas da raça, amiga da frase empolada e do vocábulo pomposo, juntava-se aquela venturosa idade em que nem a reflexão nem o estudo apuraram ainda o gosto e o discernimento. Em tal meio, as tiradas poéticas de Tobias Barreto e Castro Alves, que hoje nos parecem extravagantes despropósitos, eram achadas sublimes:

A lei sustenta o popular direito,

nós sustentamos o direito em pé!

Um pedaço de gládio no infinito,

um trapo de bandeira na amplidão.

Ver o mistério eriçado,

rodeando os mausoléus,

Morrer... subindo agarrado

no escarpamento dos Céus.

Pernambuco anelante

suspende na mão possante

o peso do Paraguai!



Quejandos versos, estrofes, que digo?, poemas inteiros neste estilo alvoroçavam aquela mocidade, cujo indiscreto entusiasmo não serviria senão para mais perverter o estro desses poetas e desvairar o gosto público.

Dos chamados condoreiros apenas dois, os já nomeados Tobias Barreto e Castro Alves, lograram distinguir-se por outras partes que essa falaz poesia, entre os que, como eles, presumiam reproduzir aqui a Victor Hugo, quando não faziam senão contrafazer-lhe os mais patentes defeitos.

Tobias Barreto de Menezes nasceu em Sergipe em 7 de junho de 1839, e a 20 do mesmo mês de junho de 1889 faleceu no Recife, em cuja Faculdade de direito se formou e onde principalmente exerceu a sua atividade literária. Não obstante o dispersivo, o incoerente e até, de algum modo, o extravagante dessa atividade, que não lhe permitiu deixar em qualquer direção em que se exerceu, mais que uma obra fragmentária e incongruente, certo é ele uma das figuras singulares das nossas letras. Tinha grande talento, memória acaso ainda mais grande, rara aptidão para línguas como para música, e decidida vocação para o estudo, ora servida, ora prejudicada, pelos seus estímulos desencontrados de mestiço impulsivo e malcriado. Orador nativo, amava a pompa dos grandes gestos e das grandes frases. Apenas a sua educação roceira e rudimentar atenuava e amortecia esta sua predileção com a vulgaridade, que não raro chegava ao chulismo da expressão, em que o rústico transparecia sob o letrado. Fazendo filosofia, crítica, sociologia e ainda poesia, freqüentemente se lhe revela este vício de origem ou temperamento. É justamente o contrário do honnête homme consoante La Rochefoucauld. A sua fama, um pouco factícia, a deveu mais às suas brigas e polêmicas, por via de regra descompostas, ou ao pregão temerário de discípulos, que propriamente à sua obra, de fato muito pouco lida. Como filósofo que presumiu ser ou pretenderam fazê-lo, como crítico, como sociólogo, foi sobretudo um negador dos valores existentes da nossa intelectualidade, um contemptor sistemático da cultura francesa e portuguesa e um pregoeiro e vulgarizador da cultura alemã. Tinha ao menos a desculpa de que sabia perfeitamente o alemão, -e puerilmente se desvanecia de o haver aprendido consigo mesmo,- o que não aconteceu talvez a nenhum outro dos seus discípulos, presunçosos germanistas. Como jurista, nada mais fez que recomendar, com o descomedimento que é um dos traços do seu temperamento literário, as novas idéias jurídicas alemãs, contrapondo-as apaixonadamente às idéias clássicas aqui vigentes.

Se o pensador e o jurista em Tobias Barreto iam à cultura germânica, tratada embora por ele mais lírica que objetivamente, o seu temperamento estético, em música e em poesia, revê demais o mestiço luso-africano. Como poeta é simultaneamente um sentimental, um orador sem algo da profunda ingenuidade da poesia alemã. Em música, não obstante a sua, ao que parece, grande ciência desta arte, confessa ele próprio que não compreendia senão a italiana. Não é incontestável que fosse o introdutor do hugoísmo na nossa poesia. Tal invento, aliás, não bastaria para afamá-lo. De parte a sua inspiração política, social, objetiva em suma, a poesia de Hugo influiu aqui, ainda nos seus melhores discípulos, muito mais pelos seus aspectos extreriores e pelo defeito da sua feição oratória, que pelo profundo lirismo íntimo e alto sentimento poético que acaso a sobreleva entre toda a poesia do século.

Muito menor foi o renome e a influência de Tobias Barreto como poeta do que como pensador. Eclipsou-lhos Castro Alves, seu feliz êmulo no condoreirismo e seu triunfante rival em toda a poesia. O lirismo de Tobias Barreto, no que tem de melhor, é em suma da mesma espécie do comum lirismo brasileiro, amoroso ou antes namorado, sensual, dolente, abundante em voluptuosidades ardentes e queixumes melancólicos. Se alguma cousa o distingue é, de um lado, o tom oratório, ainda épico, em que oscila entre as extravagância dos Voluntários pernambucanos e quejandos poemas e os belos rasgos do Gênio da humanidade; de outro, a nota popular simples, vulgar, mesmo trivial, que às vezes lhe dá a cantiga um sainete particular e, ocasionalmente, encantador. Mas dessa nota abusa, bem como barateia e vulgariza o estro em glosar notas, à moda dos poetas seiscentistas e arcádicos, e em celebrar com inaudita facilidade de admiração e trivialidade de emoção a quanto cabotino ou cabotina acertava de passar pelo Recife. Quer como poeta, quer como prosador, uma das maiores falhas de Tobias Barreto foi a de gosto. A atividade poética de Tobias Barreto exerceu-se aliás, principalmente nos primeiros anos da sua vida literária (1862-1871), quando ainda estudante, o que lhe explica e desculpa as deficiências e senões. Que, apesar do seu incontestável estro, não era propriamente uma vocação de poeta, prova-o o haver quase abandonado a poesia pela filosofia, o direito, a crítica e outros estudos.

É a Antônio de Castro Alves que por consenso geral pertence a primazia entre os poetas desta geração. Nasceu ele na Bahia a 14 de março de 1847, e ali morreu em 6 de junho de 1871. Da sua terra natal, ainda não completos os estudos de preparatórios, passou-se a Pernambuco para os acabar, e estudar Direito. Foi lá que realmente estreou em 1862. Seis anos depois deixou Pernambuco por S. Paulo, passando pelo Rio de Janeiro, onde lhe serviram de introdutores José de Alencar e Machado de Assis. Trazia na sua bagagem literária, com vários poemas soltos avulsamente publicados, o drama Gonzaga ou a Conjuração Mineira, já representado na Bahia. Em S. Paulo, ao contato de uma juventude entusiasta de poesia e eloqüência, ao estímulo de festas repetidas que lhe depararam ensejo de dar provas de ambas, acabou de se lhe desabrochar o engenho poético. No fim de 1869, dali recolheu enfermo à terra natal, onde pouco depois faleceu, tendo antes dado a lume os seus versos reunidos, sob o título de Espumas flutuantes (1870). Poucos livros brasileiros, e menos de versos, têm sido tão lidos.

Tem-se dito que os latinos não temos poesia, senão eloqüência. Não discuto o asserto. Nós brasileiros, que apenas seremos por um terço latinos, sei que somos nimiamente sensíveis à retórica poética. Não nos impede isso aliás de comovermo-nos também, embora superficialmente talvez, ao sentimento da poesia quando ela canta as fáceis paixões sensuais do nosso ardor amoroso de mestiços ou chora os nossos fáceis desgostos de gente mole. São exemplos os casos de Gonçalves Dias, poeta do amor, e dos realmente deliciosos cantores da segunda geração romântica, e de Fagundes Varela, ainda hoje os poetas mais vivos na nossa memória e no nosso coração. A ingenuidade, porém, a virtude cardial dos maiores poetas anglo-germânicos, essa sim, é quase de todo estranha à nossa poesia, que assim carece de um dos mais sedutores elementos da arte, quando, após os últimos românticos, os nossos poetas se fizeram refinados e se puseram a apurar com a forma o sentimento à moda dos parnasianos franceses, deixaram de fato de comover o público, ou só continuaram a impressioná-lo pelo aspecto externo dos seus poemas perfeitos, pela sonoridade constante dos seus versos. Porque em suma o que preferimos é a forma, mormente a forma eloqüente, oratória, a ênfase, ainda o «palavrão», as imagens vistosas, aquelas sobre todas, que por seu exagero, sua desconformidade, sua materialidade, mais impressionam o nosso espírito, de nenhum modo ático. É este no fundo o motivo do nosso antigo afeto ao épico e da nossa moderna predileção pelos poetas sobretudo eloqüentes e brilhantes, como os condoreiros, Pedro Luís, José Bonifácio e o Sr. Bilac. É verdade que nenhum destes vale apenas por qualidades de brilho e facúndia poética. Essas tinha-as em alto grau, e da boa espécie, Castro Alves, mas tinha outras além delas.

Passada a sentimentalidade sincera, mas pouco variada, e que sob o aspecto da expressão acabara por se tornar monótona, das gerações precedentes, a inspiração de Castro Alves apareceu como uma novidade. Era, pois, bem-vindo o jovem poeta baiano, e não lhe custou a assumir no breve tempo que viveu e poetou o principado da poesia. É possível que Tobias Barreto o precedesse de dois ou três anos no arremedo de Hugo e na facúndia poética alcunhada de condoreirismo. Esta precedência meramente cronológica, não seguida de influência apreciável, por forma alguma prejudica o fato incontestável da preeminência poética de Castro Alves neste momento. Além de maior talento poético, de mais rica inspiração, de estro mais poderoso e da expressão ao cabo mais formosa e mais tocante, concorreram para o sobrelevar ao poeta sergipano a sua saída de Pernambuco e vinda ao Rio e S. Paulo, e que lhe dilatou a fama além do estreito círculo pernambucano, no qual se confinou a de Tobias Barreto, e, mais ainda, a publicação em 1870 dos seus versos, ao passo que os do seu rival só vieram à luz onze anos depois. E em tanto que as Espumas flutuantes, de Castro Alves, têm hoje oito ou dez edições, afora numerosas publicações avulsas de alguns dos seus poemas, os Dias e noites de Tobias Barreto não alcançaram mais de duas. Este fato marca suficientemente o grau de estima em que os dois poetas são tidos.

Havia em Castro Alves, como em Álvares de Azevedo, que ele grandemente admirava e imitou, o fogo sagrado, alguma cousa que à nossa observação superficial e pendor para o exagero de juízos, parecia gênio, um grande talento verbal, uma sincera eloqüência comunicativa, um simpático entusiasmo juvenil. Tudo isto encobria as imperfeições evidentes da sua obra, e disfarçava-lhe as incorreições de pensamento e expressão. Não se viu então que à farragem daquela verbosidade de escola sobrelevava de muito a feição por onde se ele ligava ao nosso lirismo e o continuava dando-lhe -e este é o seu mérito e importância- com um verbo mais vivo, mais brilhante, mais sonoro, uma vida nova, formas mais variadas, cores mais rutilantes, sentimentos menos comuns, maior fundo de idéias, maior riqueza de sensações. Não é que naquele estilo pomposo não tenha Castro Alves dous ou três poemas verdadeiramente belos. Há, por exemplo, em Vozes d'África, e ainda no Navio negreiro, mais que a ênfase ou a retórica da escola, eloqüência dos melhores quilates, profundo sentimento poético, emoção sincera e, sobretudo no primeiro, uma formosa idealização artística da situação do continente maldito e das reivindicações que o nosso ideal humano lhe atribui. E mais uma então ainda não vulgar perfeição de forma. Não a perfeição métrica simplesmente, porém, mérito mais alto e mais raro, a correlação da palavra com o pensamento, a sobriedade da expressão que se não desvia e derrama do seu curso, e por vezes uma concisão forte que realça singularmente toda a composição, além de imagens novas, verdadeiras, belas de fato, e uma representação que em certas estrofes atinge do perfeito senão ao sublime. São disso exemplo esses versos que têm o vigor de uma grande pintura:

Lá no solo onde o cardo apenas medra,

boceja a esfinge colossal de pedra

fitando o morno céu.

De Tebas nas colunas derrocadas

as cegonhas espiam debruçadas,

o horizonte sem fim

onde branqueja a caravana errante

e o camelo monótono, arquejante,

que desce de Efraim...



Com Castro Alves pode dizer-se que se alarga a nossa inspiração poética, objetiva-se o nosso estro e os poetas entram a perceber que o mundo visível existe. Poeta nacional, se não mais nacionalista, poeta social, humano e humanitário, o seu rico estro livrou-o de perder-se num objetivismo que, não temperado de lirismo, é a mesma negação da poesia. As cousas sociais e humanas as viu e entendeu e as cantou como poeta, às vezes com prevalência da eloqüência sobre o sentimento, mas sempre com sentida emoção de poeta. A sua influência foi enorme, senão sempre estimável. Atuou vantajosamente em alguns dos seus melhores sucessores, o que desculpa a calamidade dos imitadores medíocres.

Foi contemporâneo destes poetas em Pernambuco, quiçá os emulou, Luís Nicolau Fagundes Varela, fluminense do Rio Claro, onde nasceu em 17 de agosto de 1841. Na sua mesma província, em Niterói, faleceu em 18 de fevereiro de 1875. Poetou entre os anos de 60 e 75. Cronológica e literariamente sucede aos primeiros poetas da segunda geração romântica, que admirou e imitou. Além da deles, sofreu visível e confessadamente como aliás aconteceu a todos os poetas posteriores a Gonçalves Dias, a influência do poeta maranhense. Estes diversos influxos foram decisivos na formação do estro e estilo poético de Varela. Foi menor o de Tobias Barreto e Castro Alves, não obstante ter Varela assistido em Pernambuco no tempo em que os dous emulavam ali pela supremacia poética. Varela era de essência um puro sentimental, e isso ficou apesar das suas medíocres tentativas de poesia patriótica. Mas a sua originalidade, se a tinha, ressentiu-se demasiado de todas essas influências. Lido após aqueles poetas, deixa-nos a impressão do já lido. No tom propriamente lírico dos seus poemas, nada se depara de novo, nem no fundo nem na forma. E como ambos não têm nele quaisquer virtudes notáveis ou sinais particulares de distinção, e haja em seus versos demasiadas reminiscências daqueles poetas, e repetições de seus próprios pensamentos e dizeres, à impressão de falta de originalidade junta-se a da banalidade. É que poeta espontâneo, de uma inspiração quase popular, é também poeta muito descuidado do seu estro e da sua arte, todo entregue à pura inspiração, que as reminiscências e o prestígio daqueles poetas queridos freqüentemente comprometem. Havia, entretanto, nele um grande fundo de poesia, isto é, de sentimento poético. Se não tivera cedido com demasiada negligência do seu próprio engenho às influências que banalizaram parte considerável da sua obra, outro poderia ter sido o valor desta. Juvenília é um dos mais admiráveis trechos do nosso lirismo, como o é também o Cântico do calvário, uma das mais eloqüentes, quero dizer uma das mais comoventes, uma das mais belas entre as elegias da nossa língua. Mas enfim a sinceridade que parece haver no seu sentimento, a simplicidade às vezes deliciosa do seu cantar, a melancólica voluptuosidade e o íntimo brasileirismo daquele sentimento, com a mesma ingenuidade da sua poética seduzem-nos irresistivelmente e justificam a estima que, apesar das restrições feitas, ele merece e teve dos seus contemporâneos. Dos poetas do seu tempo é o que mais tem a inspiração nacionalista então em declínio, talvez o único de inspiração americana, ainda indianista. Foi parte principal nesta a sua devoção por Gonçalves Dias, a quem evoca no Evangelho das selvas, como o «mestre da harmonia». Este poema seria a derradeira manifestação do indianismo. A de Machado de Assis tem feições próprias que a separam do indianismo tradicional. Com belíssimos versos brancos, há ainda neste poema de Varela formosos trechos, mas, em suma, revela o cansaço da escola e o seu esgotamento, se não a mesma insuficiência do poeta para o gênero. Os seus poemas patrióticos, inspirados de um momento crítico da vida nacional, e que dele e dos sentimentos que agitavam o país tiravam interesse, foram por isso mesmo parte grande na fama que em vida adquiriu Varela, acaso acima do seu valor real. Passado o motivo de sua inspiração, nos parecem agora apenas declamatórios, não tendo guardado nada que esteticamente nos comova. O que há de bom, às vezes mesmo de excelente, em Varela, é o seu lirismo sentimental, as suas manifestações de dor de pai ou de amante, os seus lamentos de poeta infeliz, ou que, por amor do romantismo, se fez infeliz, quando, o que desgraçadamente acontece com demasiada freqüência, não lhe desmerecem o canto imitações ou reminiscências de outros poetas.

Machado de Assis e Luís Guimarães Júnior, cronologicamente desta geração, estrearam com ela. Machado de Assis, porém, mesmo como poeta, tem um lugar à parte e merece capítulo especial da história da nossa literatura. Luís Guimarães Júnior, a despeito da cronologia, pertence antes à geração parnasiana que a esta. Foi como parnasiano que ele teve na poesia brasileira um lugar, se não distinto, notável, que os seus Corimbos (Pernambuco, 1869), pelos quais pertence aos últimos românticos, não bastariam para dar-lhe.

Capítulo XV

O Modernismo

O movimento de idéias que antes de acabada a primeira metade do século XIX se começara a operar na Europa com o positivismo comtista, o transformismo darwinista, o evolucionismo spenceriano, o intelectualismo de Taine e Renan e quejandas correntes de pensamento, que, influindo na literatura, deviam pôr termo ao domínio exclusivo do Romantismo, só se entrou a sentir no Brasil, pelo menos, vinte anos depois de verificada a sua influência ali. Sucessos de ordem política e social, e ainda de ordem geral, determinaram-lhe ou facilitaram-lhe a manifestação aqui. Foram, entre outros, ou os principais: a guerra do Paraguai, acordando o sentimento nacional, meio adormecido desde o fim das agitações revolucionárias conseqüentes à Independência, e das nossas lutas o Prata; a questão do elemento servil, comovendo toda a nação, e lhe despertando os brios contra a aviltante instituição consuetudinária; a impropriamente chamada questão religiosa, resultante de conflito entre as pretensões de autonomia do catolicismo oficial e as exigências do tradicional regalismo do Estado, a qual alvoroçou o espírito liberal contra as veleidades do ultramontanismo e abriu a discussão da crença avoenga, provocando emancipações de consciências e abalos da fé costumeira; e, finalmente, a guerra franco-alemã com as suas conseqüências, despertando a nossa atenção para uma outra civilização e cultura que a francesa, estimulando novas curiosidades intelectuais. Certos efeitos inesperados da guerra do Paraguai, como o surdo conflito que, apenas acabada, surgiu entre a tropa demasiado presumida do seu papel e importância e os profundos instintos civilistas da monarquia, não foram sem efeito neste momento da mentalidade nacional. Também a Revolução Espanhola de 1868 e conseqüente advento da República em Espanha, a queda do segundo império napoleônico e imediata proclamação da república em França, em 1870, fizeram ressurgir aqui com maior vigor do que nunca a idéia republicana, que desde justamente este ano de 70 se consubstanciara num partido com órgão na imprensa da capital do império. Esta propaganda republicana teve um pronunciado caráter intelectual e interessou grandemente os intelectuais, pode dizer-se que toda a sua parte moça, ao menos. Outro caráter da agitação republicana foi o seu livre-pensamento, se não o seu anticatolicismo, por oposição à monarquia, oficialmente católica.

Atuando simultaneamente sobre o nosso entendimento e a nossa consciência, pela comoção causada nos espíritos aptos para lhes sofrer o abalo, estes diferentes sucessos produziram um salutar alvoroço, do qual evidentemente se ressentiu o nosso pensamento e a nossa expressão literária. Às idéias, nem sempre coerentes, às vezes mesmo desencontradas daquele movimento, fautoras também nos acontecimentos sociais e políticos apontados, chamamos aqui de modernas; expressamente de «pensamento moderno». A novidade que tinham, ou que lhe enxergávamos, foi principalíssima parte no alvoroço com que as abraçávamos. Na ordem mental e, particularmente literária, os seus efeitos se fizeram sentir numa maior liberdade espiritual e num mais vivo espírito crítico.

Foi um dos seus principais agentes, mormente no norte do país, onde então a vida intelectual, com o seu centro em Pernambuco, tinha certa atividade, Tobias Barreto, já atrás estudado como poeta. Eis como o porventura mais inteligente dos seus alunos, o Sr. Graça Aranha, no estilo com que a nossa gente se escusa a clarificar as próprias idéias e se embriaga de palavras, lhe diz o feito insigne: «Em 1882, Tobias Barreto, que os seus condiscípulos não compreenderam e de cuja intensa reputação ainda se espantam e sorriem, abalava como um ciclone a sonolenta Academia do Recife. Ele invade a sociedade espiritual do seu tempo como um verdadeiro homem da sua raça. E o segredo da sua força está na absoluta e constante fidelidade a esse temperamento, em cuja formidável composição entram doses gigantescas de calor, de luz e de todas aquelas ondas de vida, que o sol transfunde regiamente ao sangue mestiço... Tinha a exuberância, a seiva, a negligência que o fazia estranho a todo o cálculo, mesmo o da sua reputação de além-túmulo, o prodigioso dom de fantasiar, o fabuliren dos criadores, e mais a impaciência e a temível explosão da revolta que permanecerá como o traço vivaz do seu caráter. Não houve vaso que o amoldasse; não conheceu senão os limites inabordáveis da liberdade e os de extrema irresponsabilidade. Pôde como um sertanejo viver com o povo, foi descuidado, miserável e infeliz. Cresceu músico e poeta. E mais tarde, quando lhe chegar a cultura, ela virá na barca fantástica da poesia. E foi pelo impulso dessa volátil essência do seu temperamento, que Tobias Barreto passou da arte para a filosofia. O pensador nele é uma modelação do vate. Transportará para a metafísica, para as ciências biológicas, para o direito, a magia da adivinhação, o improviso milagroso, a necessidade de idealizar e de imaginar, que é a poesia. Quase toda a sua ciência, quando não vem da legislação ou da língua, é feita principalmente da intuição, e os seus vastos descortinamentos, os clarões que abre, a vida que dá às idéias apenas entrevistas no prisma da sua visão, é mais a criação do poeta que a lógica do sábio. E nisto foi um homem do seu tempo e da nossa raça. É preciso que o sangue corra longamente, durante séculos, numa infinita descendência, para que o precipitado das forças originais do nosso espírito seja a idealização científica. O máximo, o que por enquanto podemos atingir, foi o que nos deu Tobias Barreto, a filosofia através das cores solares da poesia».

Esta página, aliás bela, é por mais de um título preciosa. Primeira como documento do nosso gosto do verbo pelo verbo, quanto mais pomposo e rutilante mais amado, «imensa reputação», «abalava como um ciclone», «formidável composição de um temperamento», «doses gigantescas», «prodigioso dom de fantasiar», «a magia da adivinhação», «o improviso milagroso», «os vastos descortinamentos», e tudo mais assim magnificado e exorbitante.

Nunca os máximos pensadores dos grandes países de alta cultura, um Kant, um Spencer, um Comte lograram ser assim tão grandiloquamente celebrados pelos seus compatriotas.

Mas é sobretudo precioso este discurso, porque o próprio vago e ambíguo desta representação de Tobias Barreto e sua obra revê o incerto e equívoco dessa figura e dessa obra, ainda hoje ambas mal definidas, graças principalmente aos seus indiscretos panegiristas. Já vimos em que verdadeiramente lhe consistiu a ação, que, ainda reduzida a essas proporções, foi todavia considerável, como estímulo e impulso. As nossas academias ou faculdades superiores foram desde o meio do século passado os principais focos da nossa atividade literária. Dessa origem lhe virá a fraqueza dos resultados, a sua imperfeição e inconsistência. A nossa literatura desde o Romantismo foi principalmente feita por estudantes ou moços apenas saídos das faculdades, com pouca lição dos livros e nenhuma da vida. Nelas se geraram quase todos os nossos movimentos, e todas as novidades de ordem mental, como era natural, acharam nelas terreno adequado, tanto para o joio como para o trigo. Foi sobretudo mediante os seus alunos do Recife, literariamente deslumbrados pela facúndia do professor, deslumbramento aumentado da simpatia que lhes inspiravam os seus hábitos boêmios e alguns dos seus mesmos defeitos, tudo levado à conta de poesia ou filosofia, que Tobias Barreto influiu na mente brasileira. Sem outra originalidade, talvez, que a do seu verbo, como ele desordenado e exuberante, sem nenhum saber científico realmente sólido, agitou, entretanto, uma porção de idéias novas, pregou ou doutrinou concepções desconhecidas da maioria, citou, com enfáticos encômios, nomes alemães e russos de quase todos ignorados, e cujo valor raríssimos podiam verificar, e firme e desassombradamente proclamou a necessidade de refazermos completamente a nossa cultura em outras fontes que aquelas onde até aí principalmente bebiam as portuguesas e francesas. A estas não conseguiu aliás que de todo as deixássemos, pois nela é que principalmente bebemos ainda. Não foi, porém, inteiramente perdido o seu reclamo. Concorreu muito para entrar conosco a dúvida salutar de que as nascentes tradicionais da nossa cultura não seriam as únicas benéficas, e a curiosidade do nosso espírito se alargou consoantemente. Basta isso para lhe assegurar um posto proeminente na nossa evolução literária, ou antes cultural, sem necessidade de lhe exagerarmos o valor da obra.

Esta é a fragmentária e dispersiva, e não guarda outra unidade que a da inspiração acaso mais lírica que filosófica do seu gênio e da sua fé, na superioridade da cultura alemã e na legitimidade da sua hegemonia. Em estilo descomposto como lhe era a vida, numa forma muito pessoal, e por isso mesmo viva e interessante, com propositada ou congenial carência daquela urbanidade de que os latinos faziam uma virtude literária, escreveu dezenas de opúsculos, artigos e ensaios. Teoria literária, crítica, filosofia, sociologia, religião, direito, psicologia, literatura comparada, filosofia científica, biologia, história, em suma de omni re scibili, tudo versou neles. Esta afetação de saber universal, sempre suspeito num puro autodidata, realçado em verdade por um grande e sincero calor de exposição, em que superabundavam provas de talento, abalou a mocidade da escola onde professava e por ela boa parte da mentalidade moça do país. Livro, não publicou em vida mais que os Estudos alemães, coleção de artigos diversos, e Menores e loucos, monografia de direito criminal. A maior parte da sua obra saiu póstuma. A sua ação foi sobretudo oral, a do seu ensino, dos seus discursos, das suas palestras, e reflexa, operada por intermédio dos seus discípulos. E de fato se não exerceu e tornou sensível com prioridade que lhe assegure a primazia de precursor do movimento modernista aqui. Sem falar dos seus anos de estudante no Recife (1862-1871), em que «cultivou preponderamente a poesia», a sua ação útil só verdadeiramente começou com o seu professorado ali em 1882. Os dez anos anteriores (1871-1881) passara-os ele na pequena cidade pernambucana da Escada, obscuro e desconhecido. Nesse lugarejo, que não era nenhuma Weimar, publicou opúsculos em português e alemão. Destes últimos seria ele próprio um dos raríssimos leitores, porque, segundo nos exprobrava como de uma infâmia, não havia então aqui mais que umas escassas dezenas de pessoas que lessem essa língua. Esta excêntrica atividade literária da Escada não teve nenhuma publicidade e menos repercussão. Só foi lembrada quanto Tobias Barreto se tinha feito conhecido como professor no Recife e começava a criar prosélitos. Ninguém que de todo não ignore as condições da nossa vida intelectual, admitirá a influência de um escritor, por mais genial que o suponhamos, cuja atividade se exerça esporádica e fragmentariamente em magros folhetos e efêmeros periódicos, numa cidade sertaneja. Somente em 1882 começou, pois, a ação de Tobias Barreto a se fazer sentir, e de primeiro exclusivamente no Recife.

Antes disso, porém, desde os primeiros anos do decênio de 70, e sob as influências notadas, manifestava-se no Rio de Janeiro o movimento modernista. Foi nos próprios livros franceses de Litré, de Quinet, de Taine ou de Renan, influenciados pelo pensamento alemão e também pelo inglês, que começamos desde aquele momento a intruir-nos das novas idéias. Influindo também em Portugal, criara ali a cultura alemã uma plêiade de escritores pelo menos ruidosos, como Teófilo Braga, Adolfo Coelho, Joaquim de Vasconcelos, Antero de Quental, Luciano Cordeiro, amotinados contra a situação mental do Reino. Além destes, Eça de Queirós e Ramalho Ortigão vulgarizavam nas Farpas, com mais petulância e espírito do que saber, as novas idéias. Todos estes, aqui muito mais lidos do que nunca o foi Tobias Barreto, atuaram poderosamente a nossa mentalidade. E o movimento coimbrão, como se chamou à briga literária do «Bom senso e bom gosto», pelos anos de 65, teve certamente muito maior repercussão na mentalidade literária brasileira do tempo, do que a pseudo-escola do Recife. Muito mais daquele movimento do que da influência de Tobias Barreto, derivou a Literatura brasileira e a Crítica moderna (1880) do Sr. Sílvio Romero, e bem assim os seus principais estudos da história da literatura brasileira. O positivismo comtista inaugurava aqui e em S. Paulo a sua propaganda, primeiro somente do aspecto científico da doutrina. Essa pregação convencida, tenaz, teve desde logo a seu lado, a prestigiá-la, alguns bons sabedores das ciências positivas, particularmente das matemáticas. E em 1875, estranho a qualquer influência do excêntrico filósofo da Escada, um velho diplomata, Araújo Ribeiro (visconde do Rio Grande), publicava no Rio de Janeiro o seu volumoso livro O fim da criação, o primeiro de doutrina darwinista, se não materialista, escrito no Brasil.

Na mesma década entrou a instrução pública a ocupar mais seriamente a atenção dos governos e do público. A Tipografia Nacional tirava em volume as traduções dos livros de Hippeau sobre o ensino público nos Estados Unidos, na Inglaterra e na Prússia. Reformava-se, procurando-se desenvolvê-lo, o Colégio de D. Pedro II, único foco de estudos clássicos que possuíamos, hoje quase extinto. Criavam-se conferências e cursos públicos, onde se começaram a agitar as novas idéias filosóficas, científicas e literárias. Remodelava-se o antigo curso da Escola Central, organizando-se a Escola Politécnica, acrescentando-se-lhe aos cursos profissionais as duas importantes seções de ciências físicas e naturais e ciências físicas e matemáticas. Para reger as novas cadeiras vieram da Europa professores especiais, como o físico Guignet, o fisiologista Couty, o mineralogista e geólogo Gorceix, logo depois incumbido da fundação e direção da Escola de Minas de Ouro Preto, nesse tempo criada. Também o ensino médico foi reformado, acrescido de matérias e cadeiras novas. A reforma que igualmente sofreram o Museu e a Biblioteca Nacional determinou maior atividade e mais útil efeito destas velhas e paradas instituições. O Museu começou a publicar os seus interessantes Arquivos em cujos três primeiros volumes (1876-1878) se encontram trabalhos originais de antropologia, fisiologia, arqueologia e etnografia e história natural de sabedores brasileiros, Lacerda, Rodrigues Peixoto, Ladislau Neto, Ferreira Pena, e estrangeiros ao serviço do Brasil, Hartt, Orville Derby, Fritz Müller e outros. Simultaneamente com os Arquivos do Museu vêm a lume os Anais da Biblioteca Nacional, ricos de informações bibliográficas, de eruditas memórias e monografias interessantes para a nossa história literária e geral. Nos ensaios de ciência (1873), Batista Caetano de Almeida Nogueira funda o estudo das línguas indígenas brasileiras segundo os novos métodos da ciência da linguagem, recriada pelos alemães, tirando-o do fantasioso empirismo em que até então andou. Os estudos da história do Brasil no século XVI (1880), não obstante o seu exíguo tomo, revelavam no Sr. Capistrano de Abreu raras capacidades, posteriormente confirmadas por outros trabalhos, para essa ordem de estudos, aqui também depois da morte de Varnhagen quase que entregues à pura improvisação. Pelo fim do mesmo decênio, Araripe Júnior, um dos melhores espíritos deste momento, começara a publicar o seu perfil literário de José de Alencar, uma das obras capitais da crítica brasileira, e no prefácio da primeira edição, em 1882, declarava que a reconstituição das suas idéias datava de 1873. No Ceará, donde era e onde residia Araripe Júnior, formara-se por aquele tempo um grupo literário composto dele, de Capistrano de Abreu, do malogrado Rocha Lima, de Domingos Olímpio, de Tomás Pompeu e doutros nomes menos conhecidos, grupo ledor de Spencer, Buckle, Taine e Comte e entusiasta das suas novas idéias. Esse grupo ficou estranho à influência da Escada e precedeu de dez anos a do Recife. O José de Alencar, de Araripe Júnior, inspirava-o manifestamente o critério crítico de Taine, como o descobrimento do Brasil e seu desenvolvimento no século XVI (1883), de Capistrano de Abreu, o evolucionismo spenceriano. Em 1874, um médico de S. Paulo, o Dr. Luís Pereira Barreto, publicava, sob o título de Três filosofias, a exposição e discussão, que ficou aliás incompleta, dos três estados do espírito humano, conforme a doutrina de Augusto Comte. E as questões históricas, filosóficas, jurídicas, políticas e ainda culturais que se prendem ao grave tema do poder e autoridade do papa e das suas relações com o século eram, em 1877, larga e eruditamente discutidas pelo Sr. Rui Barbosa numa copiosíssima introdução à sua versão para o português da obra alemã do Cônego Doellinger, O Papa e o Concílio. Nessa prefação, o Sr. Rui Barbosa revelava, acaso excessivamente, a vastidão da sua literatura não só francesa ou alemã, mas universal.

Destes fatos não é lícito senão concluir que a ação de Tobias Barreto, conquanto considerável, não foi tal qual se tem presumido, e que efetivamente só entrou a exercer-se pelo ano de 1882. Então já no Ceará e em S. Paulo pelo menos, e no Rio de Janeiro, desde o princípio do século passado o nosso mais considerável centro intelectual, manifestamente se desenhava o movimento a que tenho chamado de modernismo. Principalmente reflexa, a ação de Tobias Barreto nesse movimento operou-se mediante os seus discípulos imediatos, dos quais um ao menos, o Sr. Sílvio Romero (S. Paulo de quem Tobias é o Cristo), teve considerável influência na juventude literária dos últimos vinte anos do século passado. No empenho, aliás simpático na sua inspiração, de o exaltarem, inventaram uma «escola do Recife», da qual o fizeram instituidor. Não viram, como atiladamente nota o mesmo Sr. Graça Aranha, que «a força singular desse homem estava na genialidade poética por onde lhe veio a intuição científica e filosófica» e que «essa genialidade, essa imaginação faltaria aos seus discípulos porque ela era uma expressão puramente individual e que se não repete... Extrairiam dos livros e das frases do mestre apenas as fórmulas audazes, confundiriam a sátira com a seriedade do pensamento, tomariam os vagos delineamentos por conclusões definitivas e espalhariam numa língua bárbara a dogmática doutrina para as quais não teriam nem a ciência, nem adivinhação profética». A «escola do Recife» não tem de fato existência real. O que assim abusivamente chamaram é apenas um grupo constituído pelos discípulos diretos de Tobias Barreto, professor diserto e, sobretudo, ultrabenévolo, eloqüente orador literário e poeta facundo, mais do que Tobias pensador e escritor. Cumpre, aliás, repetir que esse grupo, salvo imigrações individuais posteriores, restringiu-se ao Norte, donde era a máxima parte de seus alunos, e mais exatamente a Pernambuco.

Mas ainda reduzida a estas proporções, que me parecem as verdadeiras, a figura de Tobias Barreto e o seu papel na nossa literatura, ou mais exatamente na nossa mentalidade, é relevante. Ele atuou duplamente, primeiro, e acaso principalmente, como demolidor dos nossos valores mentais que pela sua própria imobilidade se tornavam um impedimento ao nosso progresso espiritual, depois como uma força de estímulo e reforma para essa mentalidade. Apontou, se não abriu, caminhos novos e novas direções à nossa inteligência, criou discípulos em que se lhe frutificaram os ensinamentos e cuja ação foi considerável, suscitou discussões e polêmicas com que agitou o nosso meio intelectual, em suma, deu um forte e útil abalo ao nosso pensamento, como quer que seja no momento inerte. Não foi, porém, nem um sábio, nem um pensador original ou profundo. O seu darwinismo não podia ser senão de mera predileção sentimental. Carecendo da instrução científica, e especialmente biológica, para apreciar idoneamente as doutrinas de Darwin e seus discípulos ou êmulos, não podia, sem impertinência, pronunciar-se sobre elas e menos professá-las. Aliás quase todos os nossos pseudo-filósofos evolucionistas, transformistas ou darwinistas o foram, como ele, de palpite. Um princípio, um conceito, uma idéia sua, não se lhe conhece naqueles domínios. Não fez de fato senão expor, ao que parece com grande eloqüência professoral, em todo caso, mesmo escrevendo, com grande calor comunicativo, a arrogância própria para impor, o que em filosofia, em crítica, em literatura, em direito, faziam os alemães, por cuja cultura se enrabichou com exclusivismo pouco abonatório do seu espírito crítico. Como a sua pregação, endereçava-se a um público para quem a Alemanha, sob o aspecto da cultura, era terra incógnita, e mais um público principalmente constituído de rapazes tão ignorantes como facilmente impressionáveis, nada mais fácil do que alcançar foros de oráculo.

O modernismo de que, em todo caso, foi ele aqui um dos principais fautores, produto de forças heterogêneas, teve também desencontrados efeitos na ordem literária: na ficção em prosa, deu o naturalismo, ou melhor favoreceu o advento do naturalismo francês; na poesia simultaneamente o parnasianismo e a extravagância da chamada poesia científica. Em outras ordens de atividade, na filosofia, na crítica, em sociologia, em história, influiu com outros métodos e porventura mais esclarecido entendimento. Mas também, e em maior número talvez, produziu repetições, descorados ou desajeitados arremedos do que nesses ramos de conhecimento se fazia lá fora. Desvairando, porém, a nossa fraca ciência deu lugar ao que Herculano chamou com propriedade de «gongorismo científico». Acaso o seu mais útil e notável efeito foi, apesar destas máculas, o desenvolvimento do espírito crítico. Efetivamente nesta fase da nossa literatura, mais que em qualquer das que a precederam, se nos depara esse espírito e às vezes da boa qualidade. Fora, porém, da poesia e do romance, ou da oratória parlamentar, justamente em plena e brilhante florescência nos últimos anos do Império, não produziu um conjunto de obras que se possam agrupar sob uma qualificação particular ou a que una qualquer pensamento ou idéia geral comum. A mais considerável saída desse movimento, menos aliás por virtudes intrínsecas, que pelos seus efeitos, e essa produto direto do estilo criado em Pernambuco por Tobias Barreto, mas concebida e realizada no Rio de Janeiro, é talvez a já citada História da literatura brasileira do Sr. Sílvio Romero (1888).

O romance romanesco e nimiamente sentimental de Alencar, Macedo ou Bernardo Guimarães, quando já o naturalismo francês não era uma novidade, acabara por, ainda em antes deste movimento, ceder o passo ao de Taunay, Machado de Assis e Franklin Távora, únicos dos romancistas sucessores daqueles que fizeram uma obra equivalente à sua. Esta, porém, salvo no segundo, era ainda, como a dos românticos, intencionalmente nacionalista, e em Franklin Távora até propositadamente regionalista. Somente continuando com o nacionalismo literário, estes e outros que os acompanharam, o fizeram com atenuação da fórmula romântica dominante. Eles pertencem antes à última fase do Romantismo. Os verdadeiros naturalistas segundo as receitas francesas já aviadas em Portugal por Eça de Queirós e seus discípulos vieram depois, quando esses últimos românticos iam em meio da sua literária, e até quando o naturalismo entrava já a declinar em França.

Capítulo XVI

O Naturalismo e o Parnasianismo

Rarissimamente, se alguma vez acontece, exprimem fielmente as etiquetas literárias o fenômeno que presumem definir, ou lhe compendiam exatamente o caráter. Não escapou o naturalismo a esta regra. Nenhuma das suas várias definições satisfaz plenamente. Para a mesma ficção em prosa, a que primeiro e particularmente foi esse nome dado, não se lhe acha explicação cabal. No entanto, os autores o aplicam à crítica, à oratória, à filosofia, à história e até à poesia. Historiadores da literatura francesa, por exemplo, sob este vocábulo designam o período literário de 1850 a 1890.

É, que, como o Romantismo, o naturalismo foi sobretudo uma tendência geral. Como aquele fora uma reação contra o classicismo, foi o Naturalismo um levante contra o Romantismo. Caracteriza-o e distingue-o a sua inspiração diversa do Romantismo, mormente a sua inspiração muito menos espiritualista que a deste, e conseqüentemente a sua vontade de proceder diferentemente dele. Revela-se este seu íntimo sentimento e propósito no sacrifício ou diminuição da personalidade do autor, exuberante no Romantismo; numa observação mais rigorosa e até presumidamente inspirada em métodos científicos; numa representação mais fiel do observado, reduzindo ao mínimo a idealização romanesca; no menosprezo dos constantes apelos à sensibilidade do leitor, pelo abuso do patético; na invasão, não só do romance, mas de todos os gêneros literários, pelo espírito crítico, que era principalmente o do tempo. Tudo isto revia o momento, da prevalência das ciências exatas e de uma filosofia inspirada de seus métodos e baseada nos seus resultados sobre a metafísica eclética do princípio do século.

O nosso naturalismo, que foi uma das resultantes do modernismo, nada inovou ou sequer modificou no naturalismo francês seu protótipo. Ao naturalismo inglês, anterior a este, e ao mesmo tempo tão sóbrio e distinto, ficou de todo alheio. Apenas se lhe vislumbra o contágio na ficção de Machado de Assis. Mas estreitamente ainda que o nosso Romantismo seguira o francês, arremedou o naturalismo indígena o naturalismo da mesma procedência modelando-se quase exclusivamente por Émile Zola e o seu discípulo português Eça de Queirós. De novelas, contos, curtas e ligeiras ficções e ainda romances, segundo a fórmula pessoal destes dois escritores, houve aqui fartura deste 1883 até o rápido esgotamento dessa fórmula pelos anos de 90, quando ela se não procrastinou em exemplares inferiores que importunamente ainda a empregavam. Obras realmente notáveis e vivedouras, ou sequer estimáveis, bem poucas produziu, e nomes que mereçam historiados são, acaso, apenas três: Aluísio de Azevedo, Júlio Ribeiro e Raul Pompéia.

Além de haver formulado estes fiéis discípulos, e muitos outros somenos, atuou o naturalismo aqui, como fica atrás verificado, modificando e atenuando em romancistas como Franklin Távora e Taunay e nas nossas letras em geral, as feições e os excessos do Romantismo. Resultou em visão mais clara das cousas, observação mais sincera e expressão em suma melhor.

Aluísio de Azevedo nasceu no Maranhão em 14 de abril de 1857 e veio a morrer como cônsul do Brasil em Buenos Aires em 31 de janeiro de 1913. Como tantos dos nossos escritores, com insuficientes letras lançou-se no jornalismo, que, as dispensando, é uma boa escola de escrita corrente e fácil. O seu primeiro livro foi um romance, na pior maneira romântica, Uma lágrima de mulher (Maranhão, 1880). Logo depois enveredou pelo caminho que lhe antolhava o naturalismo, conservando, contudo, ressaibos daquela moda. Quando apareceu o seu segundo livro, outro romance, O mulato (Maranhão, 1881), onde, ao jeito da nossa estética, era estudado o caso do preconceito de cor na província natal do autor, protraía-se ainda o Romantismo nos romances sempre lidos de Alencar e Macedo e de Bernardo Guimarães, ainda vivo. Como tipos de transição entre as duas correntes literárias, romântica e naturalista, haviam aparecido desde 1870 Taunay e Franklin Távora, para não citar senão os que fizeram obra mais considerável. Estreando-se no romance em 1872, com a Ressurreição, eximira-se Machado de Assis quase completamente do Romantismo, sem cair, porém, no que ao seu claro engenho lhe parecia o engano do naturalismo. Ele de fato nunca pertenceu a escola alguma, e através de todas manteve isenta a sua singular personalidade literária.

Não obstante a sua procedência provinciana, teve O mulato o mais simpático acolhimento do Rio de Janeiro e do país em geral. A novidade um pouco escandalosa que trazia, ajudada demais do cansaço, de fórmula romântica, foi grata ao nosso paladar enfastiado do romanesco dos nossos novelistas, e pouco apurado para saborear as finas iguarias do Brás Cubas, de Machado de Assis, publicado em 1881. A gente habituada ao despejado naturalismo, mesmo cru realismo das discussões políticas e brigas jornalísticas, aqui sempre descompostas ambas, e mais à proverbial licença da nossa conversação, a maneira zolista devia forçosamente de agradar.

Passando-se da terra natal para o Rio de Janeiro, continuou Aluísio de Azevedo a obra encetada com O mulato, e continuou aperfeiçoando-se, o que de comum não tem sucedido nas nossas letras, onde, como já fica notado, não são poucos os autores cujos melhores livros são justamente os primeiros. Aluísio de Azevedo não só reformou O mulato, melhorando-lhe em nova edição a composição e o estilo, mas, não obstante a boêmia que por um resto anacrônico do Romantismo ainda praticou, pôs sério empenho de aperfeiçoamento na obra subseqüente. Os romances A casa de pensão (1884), O homem (1887), O cortiço (1890), confirmaram o talento afirmado no Mulato e asseguraram-lhe na nossa literatura o título de iniciador do naturalismo e do seu mais notável escritor.

O principal demérito do naturalismo da receita zolista, já, sem nenhum ingrediente novo, aviada em Portugal por Eça de Queirós e agora no Brasil por Aluísio de Azevedo, era vulgarização da arte que em si mesmo trazia. Os seus assuntos prediletos, o seu objeto, os seus temas, os seus processos, a sua estética, tudo nele estava ao alcance de toda a gente, que se deliciava com se dar ares de entender literatura discutindo de livros que traziam todas as vulgaridades da vida ordinária e se lhe compraziam na descrição minudenciosa. Foi também o que fez efêmero o naturalismo, já moribundo em França quando aqui nascia.

Não seria, porém, justo contestar-lhe o bom serviço prestado, tanto aqui como lá, às letras. Ele trouxe à nossa ficção mais justo sentimento da realidade, arte mais perfeita da sua figuração, maior interesse humano, inteligência mais clara dos fenômenos sociais e da alma individual, expressão mais apurada, em suma uma representação menos defeituosa da nossa vida, que pretendia definir. Dos que aqui por vocação ou mero instinto de imitação, demasiado comum nas nossas letras, seguiram o naturalismo e se nele ensaiaram, o que mais cabalmente realizou este efeito da nossa doutrina literária foi Aluísio de Azevedo, com uma obra de mérito e influência consideráveis, qual a daqueles seus quatro romances, aos quais podemos juntar o último que escreveu, o livro de uma sogra. Este aliás não é mais plenamente naturalista, e a sua execução lhe saiu inferior à dos primeiros. O resto de sua obra, de pura inspiração industrial, é de valor somenos.

Foi também naturalista de escola, mais talvez por amor da sua novidade e voga que por sincera simpatia com ela, Júlio Ribeiro, no seu único romance dessa fórmula, A carne (S. Paulo, 1888).

Júlio César Ribeiro, filho de norte-americano com brasileira, nasceu em Minas Gerais aos 16 de abril de 1845 e faleceu em S. Paulo, onde exerceu a sua atividade literária, em 1 de novembro de 1890. Como é aqui muito comum, era autodidata, votado por natural inclinação aos estudos lingüísticos. De atividade dispersiva e índole móbil, acaso trêfega, foi cumulativamente professor de línguas, jornalista, polemista, pondo nestes dois ofícios grande ardor e até veemência. Além dos antigos, necessários à sua educação filológica, estudou ou simplesmente leu desordenadamente os modernos, sobre todos os moderníssimos, sem talvez os meditar bastante. De seu natural ardoroso, alvoroçou-se com as mais frescas novidades intelectuais. O melhor fundamento da sua reputação é a sua gramática portuguesa (S. Paulo, 1881), um dos mais notáveis produtos da nossa copiosa literatura do gênero. Com suficiente saber e inteligência do assunto, há talvez nessa obra demasiado e quiçá indiscreto entusiasmo pelas últimas novidades glotológicas e pelos seus inventores. Da mesma especialidade publicou também Júlio Ribeiro outros estudos. A sua obra propriamente literária cifra-se, porém, naquele romance e no que o precedeu Padre Belchior de Pontes (Campinas, S. Paulo, 1876-1877, nova edição, Lisboa, 1904). Chamou-lhe ele de «romance histórico original», mas a despeito do aparato de erudição de que o cercou, e de serem históricos fatos, episódios e algumas principais personagens bem como o protagonista, ainda o é menos que os de Alencar ou Macedo. Nada no livro nos dá a ilusão da época e do meio romanceados, antes pelo contrário. Padre Belchior de Pontes, não obstante a afetação de ciência, afetação que na Carne sedes desmandaria até ao ridículo, não obstante maior objetividade de inspiração e da representação romanesca, era ainda uma pura novela romântica, canhestramente composta. Não tem sequer este romance as excelências de expressão que imaginaria encontrar num gramático profissional quem não soubesse que por via de regra são os gramáticos mofinos escritores.

O modernismo teve em Júlio Ribeiro, como fica insinuado, um dos seus fervorosos adeptos. Seguindo, menos acaso e inspiração que por enlevo da novidade, então muito festejada, a corrente do romance naturalista, escreveu A carne nos mais apertados moldes do zolismo, e cujo título só por si indica a feição voluntária e escandalosamente obscena do romance. Salva-o, entretanto, de completo malogro o vigor de certas descrições. Mas A carne vinha ao cabo confirmar a incapacidade do distinto gramático para obras de imaginação já provada em Padre Belchior de Pontes. É, como dela escrevi em 1889, ainda vivo o autor, o parto monstruoso de um cérebro artisticamente enfermo. Mas ainda assim no nosso mofino naturalismo sectário, um livro que merece lembrado e que, com todos os seus defeitos, seguramente revela talento.

É do mesmo ano da Carne, O ateneu de Raul Pompéia. Nascido em 12 de abril de 1863 e falecido a 25 de dezembro de 1895. Raul d'Ávila Pompéia escreveu este romance ainda em começo da juventude. Inexperiente na vida, com aquela «vigorosa ignorância que faz a força da mocidade», de que fala Brunetière, mais com a impressão forte, como seriam todas em a sua natureza excitável e vibrátil, das novas idéias e pressentimentos que alvoroçavam a mocidade do tempo, Raul Pompéia deu no Ateneu a amostra mais distinta, se não a mais perfeita, do naturalismo no Brasil. Ao contrário dos seus dous principais êmulos nessa moda literária, Aluísio de Azevedo e Júlio Ribeiro, que, achegando-se demasiado ao seu figurino francês, sacrificaram-lhe a originalidade que acaso tinham, Raul Pompéia, com dotes de pensador e de artista superiores aos dous, não perdeu a sua. O seu romance é mais original e o mais distinto produto da escola aqui, sem ser tão bem composto como os melhores de Aluísio de Azevedo. Pelo Desenvolvimento, volume e ainda qualidade de sua obra, este ficaria, entretanto, e como tal é considerado, o principal representante indígena da escola. No que decididamente os sobreleva a todos Raul Pompéia é, não só na maior originalidade nativa e na distinção, sob o aspecto artístico, do seu único romance, mas ainda no talento superior revelado na abundância, roçando acaso pela demasia de idéias e sensações não raro esquisitas e sempre curiosas, que dão ao seu livro singular sainete e pico. Nesse livro, porém, que tantas promessas trazia e tantas esperanças despertou, parece se esgotou todo o engenho do malogrado escritor e espírito brilhantíssimo.

Não houve no Brasil, como não houve em parte alguma, poesia a que se possa chamar de naturalista no mesmo sentido em que se fala de romance, e ainda de teatro, naturalista. É que não existe poesia sem certa dose de idealismo, incompatível com tal naturalismo. Enganavam-se redondamente, como ao tempo lhes mostrou Machado de Assis, os imitadores indígenas de Baudelaire que nas Fleurs du mal buscavam justificação do seu realismo ou naturalismo. E a sua inteligência os condenou à imitação pueril e falha.

A poesia brasileira contemporânea da romântica naturalista foi, como ficou averiguado, o parnasianismo, e, com manifestações minguadas e somenos, a alcunhada poesia científica, que de poesia só teve o exprimir-se em versos, geralmente ruins.

Influiu de fato o modernismo na poesia com a sua inspiração científica e filosófica, produzindo isso que aqui se denominou de «poesia científica», o que é de si mesmo uma contradição, enquanto as verdades científicas se não fizerem sentimento na alma do poeta. Pôr em versos, ainda excelentes -o que aliás nunca aconteceu- noções científicas ou idéias filosóficas é retrogradar à poesia didática, cousa que de poesia só tem o nome. Já vimos que não deu aqui nada de si, e nada deixou por que sequer mereça lembrada, senão como um fato, aliás insignificante, da nossa evolução literária.

Desde 1879, Machado de Assis, no escrito citado, verificava que «a poesia subjetiva chegara efetivamente aos derradeiros limites da convenção» e simultaneamente a influência das ciências modernas que deram à mocidade «diferentes noções das cousas e um sentimento que de nenhum modo podia ser o da geração que os precedeu».

Com estas noções mais sofregamente bebidas que cabalmente assimiladas, entraram a impressionar a nossa imaginação e faculdades poéticas, Teodoro de Banville, Baudelaire, Leconte de Lisle, os poetas do Parnasse contemporain, e, ainda e sempre, Victor Hugo, o Hugo da Légende des siècles (1859-77-83), o vate social e político. Simultaneamente as impressionaram os poetas portugueses da reação coimbrã contra Castilho e o ultra-romantismo, em que demoradamente agonizava, sob o patrocínio deste extraordinário versejador, a poesia portuguesa: João de Deus, Teófilo Braga, Antero de Quental, Guerra Junqueiro.

Ao contrário do que superficialmente se pensa, as influências intelectuais européias nunca demoraram menos de vinte anos a se fazerem aqui sentir. Banville e Baudelaire apareceram com as suas obras típicas em 1857, aquela revista de poesia publicou-se de 1865 a 66, e os poetas portugueses que nos traziam o eco do movimento das idéias, que havia pelo menos cinco lustros abalavam os espíritos europeus, eram todos do decênio de 60.

Ao feitio poético que no Brasil correspondeu ao naturalismo no romance, e que de parte modalidades diversas e indefiníveis de inspiração se caracterizou pela preocupação da forma e pela maior abstenção da personalidade do artista, chamou-se de parnasianismo. Naturalismo e parnasianismo são ambos filhos daquele movimento. Mesmo em França, a denominação de parnasianismo é arbitrária. Não houve propriamente ali escola parnasiana. A não ser o do trabalho exterior, do lavor do verso, nenhum vínculo de sentimento ou inspiração comum liga os poetas que, reunidos em torno de Leconte de Lisle, colaboravam no Parnasse contemporain, do qual lhes veio a alcunha. O único que com ele tinha alguma analogia era José Maria Heredia.

A forma rigorosa, impessoal, impassível, em que se quis ver a marca da escola -desmentida aliás mesmo em França, por alguns dos seus mais distintos alunos, como Coppée- se não coadunava com o lirismo português e brasileiro, ambos essencialmente feitos de sentimentalidade e de personalismo, ambos muito pessoais. Em Portugal, mais ainda que no Brasil, não houve nunca verdadeiros parnasianos, segundo o conceito comum do parnasianismo, se não o forem os seus árcades do fim do século XVIII.

Transplantado para o Brasil, o parnasianismo francês modificou-se sensivelmente sob a ação das nossas idiossincrasias sentimentais, da nossa fácil emotividade e das tradições da nossa poesia. A impersonalidade e sobretudo a impassibilidade não vão com o nosso temperamento. São dos anos de 70 as primeiras manifestações do paranasianismo na nossa poesia. Foram talvez as Miniaturas de Gonçalves Crêspo a sua primeira manifestação. Publicadas em 1871, com poemas de 69 e 70, traziam sob o nome do poeta a menção «natural do Rio de Janeiro». Brasileiro de nascimento e mestiço, também de temperamento, de intenção, e, o que é mais, de sentimento, era o autor genuinamente brasileiro. Os seus deliciosos poemas, porém, de parnasianos apenas tinham o escrúpulo da fatura. Muitos livros de versos publicaram-se aqui no decênio de 70 a 80: Falenas e Americanas, de Machado de Assis; Névoas matutinas e Alvoradas, de Lúcio de Mendonça; Flores do campo, de Ezequiel Freire; Telas Sonantes, do Sr. Afonso Celso; Sonetos e rimas, de Luís Guimarães Júnior, e outros. Distingue estas coleções de poemas maior abundância de temas objetivos, uma notável diminuição na sentimentalidade e subjetivismo, acaso excessivos, dos românticos e, sobretudo, um mais esmerado trabalho de forma. Algumas delas, como as de Machado de Assis e Luís Guimarães Júnior, já traziam, sob este aspecto, distinta excelência. Estes dous poetas, porém, desde os seus primeiros versos se mostravam, mais do que era aqui comum, cuidadosos da forma.

A inspiração romântica tão consoante com a nossa índole literária, como é de ver, se não desvanecera totalmente ao influxo da nova poética. Não só é ainda visível naqueles poemas mas em dois novos poetas que por esse tempo apareceram, o Sr. Alberto de Oliveira, que viria a ser talvez o mais típico dos nossos parnasianos, e o malogrado Teófilo Dias. Tanto as Canções românticas do primeiro, como a Lira dos verdes anos e os Cantos tropicais do segundo são de 1878, e em ambos, de mistura com a toada geral do nosso lirismo romântico, há claros toques da nova poética. A estas diversas coleções seguiram-se as Sinfonias (1883) e Versos e versões (1887), de Raimundo Correia, as Meridionais, do Sr. Alberto de Oliveira, as Contemporâneas, do Sr. Augusto de Lima e, finalmente, em 1888 as Poesias do Sr. Bilac, que ficariam como talvez o mais acabado exemplar do nosso parnasianismo, tanto pelas qualidades formais como de inspiração. Não vale a pena citar mais: uns, embora com estro, apenas ocasionalmente foram poetas, outros não o souberam ser com virtudes tais que mal decorrido um quarto de século não ficassem de todo esquecidos. Como felizmente passara a época em que os nossos poetas morriam moços, estão, Deus louvado, vivos esses e outros seus imediatos sucessores, dos quais alguns têm um nome e um lugar na poesia brasileira. Acode naturalmente o do Sr. Luís Murat, estreado nesta época com muito ruído, aplauso, abundância e brilho e que assim poetou até há pouco. O Sr. Luís Murat, porém, apenas parcialmente pertence a esta fase poética, pois ao contrário dos poetas que a assinalam, seus contemporâneos e companheiros, tanto a sua inspiração como a sua maneira refletem notavelmente, não obstante meras aparências de novidades, a poética anterior. É como ele, embora de feição muito diferente, mais romântico que parnasiano, o Sr. Melo Morais Filho, o poeta dos Cantos do Equador. Com o propósito de nacionalismo voltou ao indianismo, repetindo com muito menos engenho a Gonçalves Dias.

Dos citados poetas, dois dos mais estimados vinham do Romantismo, do qual ainda conservam ressaibos Machado de Assis e Luís Guimarães Júnior. Machado de Assis, que desde o princípio se distinguira pela arte excelente dos seus versos, apenas a teria apurado mais com o advento do parnasianismo. Mas nele os efeitos da nova poética e das correntes que a originaram só são manifestos na sua última coleção, as Ocidentais. Luís Guimarães Júnior, que ia pelos trinta anos, o que é aqui quase a velhice para um poeta, fora desde os seus primeiros versos (Corimbos, 1869) versificador esmerado. Sofrendo a impressão da nova moda, não foi só a sua versificação que se aperfeiçoou, mas toda a sua expressão poética, e os Sonetos e Rimas (Roma, 1880) são, sob este aspecto, um dos mais distintos livros da nossa poesia e não sei se não também um dos melhores exemplares do parnasianismo à francesa aqui. O seu lirismo, de qualidades muito nacionais, não sofreu modificação essencial do parnasianismo e por muitos rasgos ele continuou com originalidade e sentimento próprios, e melhor expressão, os poetas das últimas gerações românticas. Mas poemas como História de um cão, Satanás, A esmola, A morte de águia, revelam a ação do novo pensamento que influía a poesia. A distinta arte do verso fazia-o um dos corifeus da sua renovação aqui.

Pelo mesmo tempo começou a aparecer com maior reputação e lustre o nome de Luís Delfino, que talvez desde os anos de 50 se vinha lendo sob versos publicados em diversos periódicos. Luís Delfino dos Santos é uma das figuras mais curiosas, mais extraordinárias até da nossa poesia. Era de Santa Catarina, onde nasceu em 25 de agosto de 1834, o que o faz da geração dos segundos românticos, quase todos nesse decênio nascidos. Formou-se em medicina no Rio de Janeiro, onde se deixou ficar clinicando e onde faleceu a 30 de janeiro de 1910.

Desde muito jovem até às vésperas de morrer, com setenta e seis anos, poetou constante e despreocupadamente, sem esforço, sem presunção, acaso sem maior afeto e certamente sem paixão pela sua habilidade poética. A poesia foi-lhe antes um hábito contraído na mocidade e continuado pelo resto da vida que um ofício, ou sequer uma ocupação literária. Sendo o mais copioso poeta que jamais tivemos, e não raro um dos mais excelentes, não deixou entretanto um livro de versos, em terra onde todo o versejador se precipita em pôr em volume os seus. Como certamente lhe não teriam faltado oportunidades de o fazer, pois além da posição social que alcançou, era abastado, pode-se ver nesta sua negligência ou uma singular indiferença pela sua arte ou uma peregrina forma de faceirice literária. Tanto pela qualidade da sua ideação, como pela da sua expressão, Luís Delfino motivadamente impressionou os poetas que, quando ele começava a envelhecer, entravam a despir-se do Romantismo. Ainda com as qualidades comezinhas do nosso lirismo, e a sua, mais que volutuosidade, lascívia, mostrava-se ele mais esquisito e mais requintado. Trazia maior riqueza, maior variedade, maior novidade de imagens, expressas em formas menos vulgares. Sente-se-lhe, entretanto, a rebusca, o que não era para lhe desafeiçoar os moços que pospunham o espontâneo da inspiração ao caprichoso do lavor artístico. Nesta rebusca cai freqüentemente no extravagante do pensamento e no anfiguri da expressão. A relativa serenidade do seu estro, contido nas suas naturais exuberâncias indígenas pela feição do poeta ao requinte da expressão, o seu amor da bela forma, o seu menos absorvente subjetivismo, o seu ar mais de refinado galanteador que de apaixonado, libertando-o dos mais comuns vícios da nossa poesia de então, estremaram Luís Delfino dos últimos românticos. Na voga do parnasianismo aqui, e não no seu início, foi que o nome de Luís Delfino saiu da penumbra em que se vinha fazendo desde aqueles anos, para ser reconhecido e proclamado pelos poetas da nova geração como um dos seus cabeças e por eles celebrado como um mestre de verso. Valia-lhe a predileção, tão contrário aos nossos costumes literários, o afastamento do velho poeta das rodas em que aqueles jovens, que poderiam ser seus filhos, reciprocamente se disputavam a preeminência. De fato ele não lhes era um concorrente. Foram principalmente os seus numerosos sonetos nos moldes da nova poética, alguns realmente belos, que lhe trouxeram ao público o nome, até então pouco menos que obscuro. Até que ponto a importância que mais talvez que o seu engenho lhe deram as circunstâncias, se haja traduzido em influência suficientemente apreciável, não sei dizer. Houve em sua fama, que aliás mal ultrapassou as rodas literárias, muito do que os franceses chamam succès d'estime. Em suma, Luís Delfino foi talvez antes um insigne virtuose do verso do que um grande poeta, como liberalmente chegaram a chamar-lhe.

No decênio de 70 a 80 repetiu-se em S. Paulo o que ali sucedera de 50 a 60: um grupo de moços estudantes da respectiva Faculdade de Direito, amigos das letras, particularmente da poesia e entusiastas das «idéias modernas», tomaram a frente do movimento poético. Desse grupo, donde todos mais ou menos poetavam, saíram alguns dos melhores, poetas desta fase, nomeadamente além dos Srs. Augusto de Lima e Olavo Bilac, ainda felizmente vivos, sem falar dos que ficaram em estréias, Teófilo Dias e Raimundo Correia.

Nesse grupo, a poesia, sofrendo embora as influências do pensamento moderno, não exorbitava da sua natureza. Mantinha-se entre o nosso lirismo tradicional e a nova poética, oriunda dos parnasianos franceses. Misturava-lhes aliás Baudelaire, que não chegou a entender, e continuava a admirar e imitar Hugo. Mas em suma, com menos corriqueira inspiração, certas novidades de pensamento e, sobretudo, expressão mais apurada, é poesia da que dispensa qualificativo. Dos poetas que a iniciaram, e com mais distinção a fizeram, os que, por já falecidos, têm lugar nesta História, são os mais notáveis Teófilo Dias e Raimundo Correia, ambos maranhenses.

Teófilo Dias de Mesquita nasceu em Caxias em 28 de fevereiro de 1857. Era, por sua mãe, sobrinho de Gonçalves Dias. Este próximo parentesco não deixou de ser parte tanto na sua feição poética como no renome que adquiriu. Ele próprio parece se desvanecia, e com razão, dele, e de bom grado se deixava impressionar desta consangüinidade gloriosa. Mais do que a confessada admiração pelo seu ilustre parente, o grande poeta dos Cantos, o feitio do engenho poético de Teófilo Dias lhe revê o afeto e as naturais afinidades. Ele não é só um puro parnasiano, o que, como fica assentado, não tivemos aqui, por o não consentir nem o nosso temperamento nacional, nem a nossa feitura mental. Mais do que em Raimundo Correia, Bilac, Alberto de Oliveira, Augusto de Lima, que do grupo parnasiano de S. Paulo e do Rio de Janeiro e pode dizer-se do Brasil, foram os corifeus e os mais distintos poetas, são em Teófilo Dias evidentes os ressaibos do Romantismo, ainda na sua feição, aqui a mais saliente, de nacionalismo. É nestas que se lhe sente o parentesco de Gonçalves Dias. Do seu natural feitio romântico há também indícios no seu vezo romântico da boêmia. A julgar pelas reminiscências dos seus contemporâneos e camaradas, ele foi o último dos nossos boêmios literários à moda romântica, piorada em S. Paulo por Álvares de Azevedo e os estudantes literatos do tempo e os seus subseqüentes macaqueadores.

A atividade poética de Teófilo Dias vai de 1876, ano em que estréia com a Lira dos verdes anos (Cp. Lira dos vinte anos, de Álvares de Azevedo), a 1887, em que publicou a Comédia dos deuses. Entrementes publicara os Cantos tropicais (1878) e Fanfarras (1882). Faleceu a 29 de março de 1889 em S. Paulo, onde casara na família dos Andradas, a cuja proteção deveu modesta posição política nessa província. Segundo o comum conceito do parnasianismo, Teófilo Dias, não obstante haver poetado no melhor período da escola aqui, apenas pelo apuro intencional da forma, abuso do descritivo e outras particularidades e feições de virtuosidade, será um parnasiano. De parte tais feições, é ainda um romântico modificado, atenuado pelo «pensamento moderno», que nele influiu mais do que nos seus camaradas de geração. Mostra-o notavelmente a sua Comédia dos deuses, poema confessadamente calçado no Aasvero, de Edgard Quinet, sem quase nenhuma invenção essencial de fundo e de expressão. Esta é aliás em Teófilo Dias mais rica do que naqueles. Mas não tal que lhe tenha sobrelevado o estro até uma obra de vida e beleza duradoura. É, entre os poetas da mesma grei, talvez o menos vivo.

Ao contrário, vive de uma vida ainda muito prezada e que não parece deva extinguir-se breve, o seu companheiro Raimundo Correia. Este delicioso poeta nasceu a bordo de um vapor, em águas do Maranhão, aos 13 de maio de 1860. Valetudinário, de um nervosismo doentio, que aliás mal se revela em seus poemas ou apenas se vislumbra no tom de melancolia e desalento que é talvez o seu mais íntimo encanto, em extremo sensitivo, encontrou nas suas mesmas condições físicas e morais o melhor do seu estro. Filho de um magistrado do velho feitio, que até nos aspectos exteriores punham a gravidade profissional do seu estado, severamente educado numa família rigorosamente católica, e ele próprio magistrado, Raimundo Correia, não obstante a perda das crenças paternas e a deletéria influência da seródia boêmia dos poetas estudantes de S. Paulo, conservou, com o fundo de tristeza que lhe era congenial, a sua honestidade nativa e uma intemerata alma de poeta idealista e intimamente romanesco. Como todos os nervosos da sua espécie, era um desconfiado e um tímido. De todas estas suas feições pessoais há vestígios na sua poesia, e foi a consubstanciação perfeita do seu estro com o seu temperamento que, apesar do seu apego às fórmulas da poética parnasiana, fez dele talvez o mais comovido e por isso mesmo o mais interessante poeta da sua geração. Sem maior originalidade (e a falta de originalidade é talvez o mais visível defeito da nossa geração parnasiana) tem, como nenhum dos seus confrades, um raro e particular dom de assimilação com que soube transubstanciar em próprias emoções alheias, emprestando-lhes um sentimento mais profundo e uma expressão mais intensa e mais formosa. Os temas dos seus dous mais belos e mais justamente afamados poemas As pombas e mal secreto não lhe pertencem, mas nem por isso esses admiráveis sonetos são menos seus, tantos ele lhes recriou e ressentiu o sentimento original e tão formosamente os afeiçoou consoante com a sua índole poética. Não só pelo seu real talento poético e peregrinas qualidades da sua expressão foi Raimundo Correia um dos maiores dos nossos poetas de após o Romantismo, mas também porque foi de todos eles aquele em que o apuro, mesmo a rebusca da forma, não prejudicou nem a ingenuidade do sentimento, nem a sua expressão natural, nem tampouco a essência do nosso lirismo tradicional. Com menores aptidões verbais que os seus êmulos, ele entretanto os excedeu a todos em propriedade, singularidade e beleza de expressão poética. Raimundo Correia morreu em Paris, a 13 de setembro de 1911.

Em Pernambuco, também no meio escolar se operou paralela mas não igual renovação poética. Em S. Paulo, o «pensamento moderno», ou diretamente ou mediante os parnasianos franceses, influía os estros poéticos sem os desviar enormemente dos domínios e da expressão própria da poesia. Eram «novos», mais ficavam poetas. O contrário sucedia em Pernambuco. Ao influxo de Tobias Barreto, dos repetidos e impertinentes apelos à Ciência, à Filosofia, ao Pensamento Moderno (tudo com maiúscula), em uma palavra, do cientificismo, como barbaramente se chamou a esta presunção de ciência, nasceu o propósito desta coisa híbrida e desarrazoada que apelidaram de poesia científica. Não deu aliás senão frutos pecos ou gorados ainda em flor. Poesia científica é incongruência manifesta. Que a ciência, influindo a mentalidade humana e aperfeiçoando-a consoante as suas soluções definitivas, ou os seus critérios, possa acabar por atuar também o sentimento humano, é uma verdade psicológica de primeira intuição. Não o é menos que o sentimento assim feito possa comover-se conformemente com os motivos que o produziram ou segundo a emotividade resultante de determinações daquelas soluções a critérios. Se for cabal a conversão da noção em sentimento, se este já for bastante intenso, poderá a sua expressão corresponder-lhe à intensidade e ser, pois, do ponto de vista estético, legítima e bela. Mas para que isto aconteça, cumpre seja completa e perfeita a transformação da idéia em sentimento íntimo capaz de expressão artística, subjetiva. Senão será uma pura emoção sentimental, cuja expressão poética dispensa qualificativo ou, o que foi a nossa «poesia científica», uma aberração de pseudopoetas e pseudocientistas, um efeito de moda ou uma ocasião oratória. Poesia, como arte que é, é síntese, uma síntese emotiva. Limitando-se os nossos poetas científicos a versejar noções, princípios, conhecimentos científicos, e mais nomes do que coisas, resvalavam à poesia didática, de ridícula memória.

Tobias Barreto, o principal causador, pelo seu ensino todo imbuído de «cientificismo», desta suposta poesia, mas muito mais poeta que os seus discípulos, não caiu tão em cheio como estes no engano para o qual tanto concorreu. Quem principalmente a apadrinhou foi Martins Júnior, poeta em que era maior o fogo juvenil que o estro.

José Isidoro Martins Júnior nasceu no Recife em 24 de novembro de 1860, e faleceu no Rio de Janeiro em 22 de agosto de 1904. Desde os bancos da Faculdade de Direito, onde se formou, foi um espírito agitado das idéias mais adiantadas, das opiniões mais recentes, de entusiasmos fogosos, tudo traduzido em manifestações e gestos de orador. Prodigalizava-se em discussões, palestras, escritos do efêmero jornalismo escolar, discursos e versos, num movimento infatigável do seu temperamento caloroso e impulsivo. Desde 1879 publicou folhetos de direito, filosofia, literatura, e os seus primeiros versos, com o título intencionalmente expressivo de Estilhaços, As visões de hoje (1881), republicadas, refundidas cinco anos depois, são o seu livro principal. Foi aí que fez e propagou a «poesia científica» em poemas que eram a condenação do gênero como esse da Síntese científica, do qual só estes versos bastavam para o desmoralizar definitivamente:

Mas só Comte

pôde, estóico, escalar o alevantado monte

no píncaro do qual via-se a neve branca

da nova concepção do mundo reta e franca!

Deixando embaixo Kant, Simon, Burdin, Turgot,

Newton e Condorcet e Leibnitz, - voou

ele para as alturas mágicas da glória,

após ter arrancado ao pélago da História

a vasta concha azul da Ciência Social!



E mais é que houve quem tomasse a sério estas infantilidades, e só como tais perdoáveis, de rapaz de escola!

Acompanharam-no, com efeito, outros moços tão pouco reflexivos e tão pouco poetas como ele. Apenas menos declaradamente seguiu a corrente, a que afluíam também caudais da Lenda dos séculos, de Victor Hugo, e da Visão dos templos, do Sr. Teófilo Braga, o Sr. Sílvio Romero (Cantos do fim do século, Rio de Janeiro, 1878). Pelo nome que justamente adquiriu nas nossas letras, e pela sua mesma obra poética desta errada tendência, foi talvez o Sr. Sílvio Romero o mais considerável destes poetas. Sem nenhuma superioridade, mas também sem tamanha insuficiência quanto lhe assacaram, versificou noções científicas, pensamentos filosóficos, conceitos históricos, opiniões sociais com maior ardor que sucesso. Esta poesia científica de que Martins Júnior se fizera o arauto (Poesia científica, Recife, 1883), e que poucos mais cultores teve além dele e do Sr. Sílvio Romero, e nenhum certamente credor de estimação, era ainda, por muitos aspectos, um remanescente do condoreirismo. Acabada a guerra do Paraguai e esgotado um dos principais estimulantes desta maneira poética, exatamente quando novas idéias científicas e filosóficas nos chegavam da Europa e começava aqui ao menos o momento de cândida fé na ciência que durou até há pouco, foi esta, por isso mesmo que pouco sabida, que alvoroçou a mocidade.

É este o grande mal da literatura brasileira: que por circunstâncias peculiares à nossa evolução nacional, ela tem sido sobretudo, quase exclusivamente até, feita por moços, geralmente rapazes das escolas superiores, ou simples estudantes de preparatórios, sem o saber dos livros e menos ainda o da vida. Ora a literatura, para que valha alguma cousa, há de ser o resultado emocional da experiência humana. A nossa tem principalmente sido uma literatura de inspiração e fundo, mais livrescos que vividos.

Capítulo XVII

O teatro e a literatura dramática

Senão como literatura, como espetáculo data o teatro no Brasil do século do descobrimento. Foram seus inventores ou introdutores aqui os jesuítas. Na sua obra de catequese e educação, a mais inteligente sem dúvida que jamais se fez, recorriam esses padres, desde a Europa, a todos os recursos, ainda os mais grosseiros, de sugestão. Desses foram as grandes solenidades, meio profanas, meio religiosas, dos seus colégios, com representações, recitações, cânticos e danças e espetáculos a que já podemos chamar de teatrais. Mediante estes, os seus mais rudes palcos achariam acaso ouvintes mais caroáveis que o seu púlpito.

Desde o século XVI, na citada Narrativa epistolar de Fernão Cardim e em outros cronistas, no século XVII, nos longos títulos dos poemas de Gregório de Matos15 e em mais de um noticiador do Brasil de então, e com freqüência maior nos cronistas do século XVIII, encontram-se notícias desses espetáculos, que uma crítica incompetente pretendeu arvorar em início do nosso teatro.

Desses talvez o primeiro de que há notícia foi o que o Padre José de Anchieta realizou em S. Vicente, em 1555, fazendo representar por índios seus catecúmenos e portugueses, em tupi, e em português, o auto da Pregação universal, ruim arremedo dos «autos de devoção» que se representavam no Reino, dos quais o contemporâneo Gil Vicente deixou os melhores exemplares.

Mas nem esse pobre auto, nem outros que se lhe seguiram, representados em estabelecimentos jesuíticos ou alhures, não são propriamente teatro no sentido da literatura dramática. Todos eles desapareceram sem deixar prole, nem seqüência.

As representações ou espetáculos teatrais, que aqui mais tarde se viram, e de que há notícias desde os meados do século XVIII, de comédias, entremezes, momos, loas, portugueses e espanhóis, ou, quem sabe?, já produto colonial, nenhuma afinidade teriam com os autos jesuíticos ou quejandos. Desde, pelo menos, a segunda metade do século XVIII que em festas públicas celebradas por ocasião da exaltação ao trono de reis portugueses, ou de nascimentos, desposórios principescos, se faziam aqui representações teatrais, em geral de peças espanholas, como também sucedia na metrópole. Em 1761, na Bahia, por motivos dos esponsais da futura D. Maria I, foi representado um Anfitrião, acaso o mesmo do nosso engenhoso e desgraçado patrício Antônio José.

Destas representações, e sempre por idênticos motivos, em outras partes do Brasil, ainda em antes da fundação da Casa da Ópera no Rio de Janeiro, em 1767, se encontram notícias nas crônicas e relatos contemporâneos. Se não é ainda possível asseverar que Alvarenga Peixoto, um dos poetas da plêiade mineira, tenha de fato composto um drama Enéias no Lácio e traduzido a Mérope, de Maffei, e, menos ainda, que por volta de 1775 estes se hajam representados na referida Casa da Ópera, não parece duvidoso que outro poeta do mesmo grupo, Cláudio Manoel da Costa, tenha composto «poesias dramáticas» que, segundo declaração sua, se tinham «muitas vezes representado nos teatros de Vila Rica, Minas em geral e Rio de Janeiro» e feito «várias traduções de dramas de Metastásio».

Nesses teatros, de existência forçosamente precária, e atividade esporádica e intermitente, eram principalmente, tal qual como em Portugal, peças espanholas que se representavam. Quando ele começou, já ali mesmo se não representava mais Gil Vicente. O teatro português vivia de peças estrangeiras, e menos de entremezes e óperas nacionais -alguma coisa como o moderno vaudeville francês- sendo as principais e melhores destas as do Judeu, cuja popularidade foi grande e que, sem o nome do seu malogrado autor, se representavam freqüentemente no Reino, e porventura também no Brasil. Este teatro, pois, de brasileiro só tem a circunstância de estar no Brasil. O teatro brasileiro propriamente dito, de autores, peças e atores brasileiros ou abrasileirados, que fosse já um produto do nosso gênio e do meio, é, por assim dizer, de ontem. Pode existir quem o tenha visto nascer.

Como simples curiosidade histórica, uma história exaustiva de teatro brasileiro, compreendendo o espetáculo e a literatura, podia, porventura devia, recordar essas primeiras representações. Nessa relação caberiam os autos, diálogos, loas e quejandos espetáculos dados nos estabelecimentos jesuíticos e em festividades públicas ou particulares nos tempos coloniais. Há para tal notícia material bastante em documentos contemporâneos. Não existe, porém, um só de literatura dramática, por onde possamos avaliar-lhe a importância e mérito. Os primeiros que apareceram são de 1838 para cá, os dramas ou tragédias de Magalhães e as comédias ou farsas de Martins Pena.

Foi o Romantismo, com o qual se iniciou o que já podemos chamar de literatura nacional, o criador também do nosso teatro. Este ficou de todo estreme de qualquer influxo daquelas remotas e, pode dizer-se, ignoradas representações coloniais. Na sua primeira fase produziu o Romantismo Gonçalves de Magalhães e Martins Pena, e logo depois Macedo e José de Alencar. Simultaneamente apareceu aqui um grande ator que, com seu nativo talento e ardor pela arte dramática, realizou no palco, mediante companhias em que chegou a interessar os mesmos estadistas do tempo e outros conspícuos cidadãos, e com aplauso e colaboração do público, o teatro brasileiro. O nome desse ator, João Caetano (+ 1863), chegou até nós com tal auréola de admiração e de glória, tão saudosamente lembrado, que se lhe dispensa a biografia ou mais positivos testemunhos do seu valor real. A impressão que ele causou nos seus contemporâneos, impressão profunda e duradoura, basta para assegurar-lhe a primazia na realização cênica daqueles e doutros autores e, portanto, na criação de «teatro» aqui.

Como literatura, o seu criador foi, segundo vimos, Gonçalves de Magalhães, com o seu Antônio José ou o poeta e a Inquisição, tragédia em verso, em 5 atos, representada pela primeira vez por João Caetano e sua companhia, no seu teatro da Praça da Constituição (depois Teatro de S. Pedro de Alcântara) em 13 de março de 1838. Esta data asseguraria a Magalhães e ao Brasil a prioridade do teatro romântico na literatura da nossa língua. A peça com que Garrett inaugurou o moderno teatro português, Um auto de Gil Vicente, foi representada em Lisboa quatro meses depois da do nosso patrício. Esta prioridade, porém, pouco mais é que cronológica. O drama de Garrett, sobre ter outro valor literário, é bem mais romântico do que a tragédia de Magalhães. Aproveita, entretanto, a primazia da data, para comprovar que não foi de Portugal que Magalhães recebeu o impulso renovador, e portanto que o nosso Romantismo, por ele inaugurado na poesia com os Suspiros poéticos (1836), compostos e publicados no foco do romantismo latino, Paris, se originou de outras fontes que a portuguesa.

Magalhães como Porto Alegre, seu amigo e êmulo nesta renovação, não eram por temperamento e índole literária dois verdadeiros românticos, quanto o seriam por exemplo Gonçalves Dias e Alencar. Foram-no antes de estudo e propósito que de vocação. A sua íntima característica literária seria antes o pseudoclassicismo ou o serôdio arcadismo do fim do século XVIII e princípio do XIX em Portugal e alhures, e do qual Ponsard, em França, era no teatro o mais eminente representante. Quando o Romantismo francês proclamava a falência ou esgotamento da tragédia, substituindo-a pelo drama em que os elementos da comédia se misturavam ao patético do teatro trágico, Magalhães escrevia tragédias feitas ainda segundo as clássicas regras aristotélicas. De fora parte a sobriedade austera dos grandes moldes gregos, seguidos por Ferreira e Racine, e a inferioridade do seu estro, renasciam estas no palco de S. Pedro de Alcântara, ao gesto poderoso de João Caetano. Eram, porém, antes uns arremedos da tragédia clássica do que o verdadeiro drama romântico qual o conceberam Schiller e Hugo. Trasladando para o nosso teatro, e poderíamos dizer para o teatro português, o drama shakespeariano, que é o mais remoto e ilustre avoengo do Romantismo, fazia-o Magalhães das descoradas versões com que Ducis amaneirou ao gosto francês o teatro de Shakespeare. Mas Antônio José ou o poeta e a Inquisição, que pelo tema moderno, pelo espírito liberal e sobretudo pelo título é bem romântico, Olgiato, que o é de inspiração e expressão, e o mesmo Otelo, deviam ficar na nossa literatura dramática, se não no nosso teatro, como bons exemplares da nossa obra literária nesse gênero. O importante, porém, estava feito, um belo exemplo estava dado, uma fecunda iniciativa realizada, e não sem superioridade. Atores brasileiros ou abrasileirados, num teatro brasileiro, representavam diante de uma platéia brasileira entusiasmada e comovida, o autor brasileiro de uma peça cujo protagonista era também brasileiro e que explícita e implicitamente lhe falava do Brasil. Isto sucedia dezesseis anos após a Independência, quando ainda referviam e bulhavam na jovem alma nacional todos os entusiasmos desse grande momento político e todas as alvoroçadas esperanças e generosas ilusões por ele criadas. Nada mais era preciso para que na opinião do público brasileiro, em quem era ainda então vivo o ardor cívico, aquele teatro com os que nele oficiavam como autores e atores, tomasse a feição de um templo onde se celebrava literariamente a pátria nova.

Martins Pena, como aliás todos os românticos, aproveitou deste sentimento. A individualidade que certamente tinha, a sua originalidade nativa, em uma palavra a sua vocação, livraram-no, porém, de ceder ao duplo ascendente de Magalhães e de João Caetano, e fizeram dele o verdadeiro criador do nosso teatro. Mais porventura que a Magalhães, assegura-lhe este título a cópia de peças que escreveu e fez representar, quer pela cena, quer pela imprensa, e, sobretudo, o seu muito mais acentuado caráter nacional. Por tudo isso a obra teatral de Martins Pena certamente influiu mais no advento do teatro nacional que a de Magalhães.

Luís Carlos Martins Pena nasceu no Rio de Janeiro a 5 de novembro de 1815 e faleceu em Lisboa a 7 de dezembro de 1848. A sua instrução parece não ter tido método nem seqüência. Passou pela Aula de Comércio então existente, e pela Academia de Belas-Artes. Estudou línguas estrangeiras e completou consigo mesmo os seus estudos. Cultivou também a música, que o ajudaria na composição dos couplets que lhe exornam as peças. Foi empregado público em dois ministérios e mais tarde adido à legação brasileira em Londres, onde esteve quase um ano. Dando-se mal com o clima londrino, veio já bastante doente para Lisboa e aí faleceu apenas passado um mês. Seria, pois, mais culto e mais instruído pela freqüentação de sociedades mais civilizadas que a da pátria do que o deixam supor as suas comédias. Não se lhe vislumbra na obra conhecida nada que revele algo de gênio teatral inglês ou da literatura inglesa, nem de qualquer outra. A sua graça, pois a tem em quantidade, é já a resultante da fusão aqui da chalaça portuguesa com a capadoçagem mestiça, a graçola brasileira, sem sombra da finura do espírito francês ou do humor britânico. Esta sua imunidade, como a já verificada ao prestígio de Magalhães e João Caetano, a despeito da predileção pública pelo dramalhão e pela tragédia, está atestando a individualidade própria, a inspiração nativa, a originalidade de Martins Pena.

Estreando no teatro após o grande sucesso de Magalhães, servido por João Caetano, e os vários triunfos por este e seus companheiros alcançados com os dramalhões românticos, e sem lhe dar da voga deste teatro, antes seguindo o seu gênio e vocação, como deve fazer todo o artista sincero, Martins Pena começa e prossegue com a comédia. Ingenuamente, desartificiosamente, com observação sem profundeza, mesmo banal mas exata e sincera, traz para o teatro -pela primeira vez, note-se, porque o seu sucesso explica-o a só novidade do seu feito -a nossa vida popular e burguesa e quotidiana do tempo. Evidentemente não tem presunções nem propósitos literários como os teve Magalhães; apenas vê claro, observa com atenção e reproduz fielmente, com a naturalidade em que se revela o escritor de teatro. E Martins Pena não é senão isto, um escritor de teatro. Do autor dramático possui, em grau de que se não antolha outro exemplo na nossa literatura, as qualidades essenciais ao ofício e ainda certos dons, que as realçam: sabe imaginar ou arranjar uma peça, combinar as cenas, dispor os efeitos, travar o diálogo, e tem essa espécie de observação fácil, elementar, corriqueira e superficial, mas no caso preciosa, que é um dos talentos do gênero. Não raro tem o traço psicológico do caricaturista, e o jeito de apanhar o rasgo significativo de um tipo, de uma situação, de um vezo. Possui veia cômica nativa, espontânea e ainda abundante, infelizmente, porém, (defeito desta mesma virtude) com facilidade de se desmandar na farsa. Martins Pena e Manoel de Almeida, o singular e malogrado autor das Memórias de um sargento de milícias, são porventura os melhores, se não os únicos, exemplos de espontaneidade literária que apresenta a literatura brasileira.

A maior parte das peças de Martins Pena são antes farsas que comédias. Independentemente dessa denominação, que ele próprio lhes deu, a sua feição e estilo é de farsa. Ele exagera o feitio cômico das situações e personagens, acumula o burlesco sobre o ridículo, manifestamente no intuito de melhor divertir, provocando-lhe o riso abundante e descomedido, o seu público. É tradição que o conseguiu plenamente. Ainda hoje se representam as comédias de Pena com o mesmo sucesso de franca hilaridade que lhe fizeram nossos pais. A mais de meio século de distância, lidas ou ouvidas, deixam-nos a impressão de representarem suficientemente no essencial e característico o meio brasileiro que lhe serviu de modelo e tema. E só talvez delas, em todo o nosso teatro, se poderá dizer a mesma cousa.

Foi considerável, sobretudo em relação ao tempo, a atividade literária de Martins Pena, exercida de 1838 a 1847. Além de um romance e folhetins teatrais, de que apenas temos notícia incerta, deixou vinte e tantas peças de teatro, das quais três dramas. Dezenove pelo menos foram representadas e nove impressas, sendo algumas reimpressas, ainda em vida do autor ou posteriormente. Ultimamente foram reeditadas em um só volume, infelizmente com bem pouco cuidado editorial.

O exemplo de Magalhães e Martins Pena frutificou. Dos românticos da primeira hora, os principais, Norberto, Teixeira e Sousa, Porto Alegre, Gonçalves Dias, Macedo e até Varnhagen, com fortuna e sucesso diverso, em geral medíocre, escreveram também teatro. Alguns além de Macedo, conseguiram ver-se representados. Já fica dito da obra teatral de cada um deles, no que ela interessa à literatura. São, porém, muitos os autores de peças de teatro de todo o gênero escritas ou representadas nessa fase da nossa literatura e na que imediatamente se lhe segue. Desses apenas um ou outro nome não está de todo esquecido. Tais são os de Carlos Cordeiro, Castro Lopes, Luís Burgain, Pinheiro Guimarães, Agrário de Meneses, Quintino Bocaiúva, cujo teatro é de 1850 a 1870. Estes mesmos são apenas uma recordação cada dia mais apagada, pois não concorre para avivá-la a sua obra dramática que não mais se representa e ninguém lê.

Nesse momento, que corresponde à segunda fase do Romantismo, as duas principais figuras do nosso teatro foram José de Alencar e Macedo, já atrás como tais estudados. São dois talentos diversos, dois engenhos quase opostos. Há mais arte, mais gravidade, maior sentimento e respeito da literatura no primeiro que no segundo. Mas também menos espontaneidade, menos naturalidade, menor vis comica e somenos dons de autor de teatro. Macedo é o legítimo continuador de Martins Pena, com melhorias de composição e mais largo engenho dramático. É, sobretudo, principalmente comparado com Alencar, um autor burguês e para a burguesia, se é lícito o uso de tais expressões aqui. Na representação da vida burguesa, ou antes da vida medíocre brasileira, nos deixou Macedo no seu teatro, como no seu romance, de parte os seus nunca emendados defeitos de linguagem e estilo, exemplares estimáveis. Geralmente tem as suas peças boas qualidades teatrais, e há atos seus, como o primeiro de Luxo e vaidade, excelentes. A torre em concurso, que criou o tipo popular do capitão Tibério, embora descambe na farsa, tem todo o sabor de uma crítica hilariante feita às nossas brigas políticas, das quais é ótimo retrato. Nesta, como na maioria de suas peças, mormente nas estremes de presunções literárias e portanto mais espontâneas e naturais, enredo, tipos, situações, expressão, é tudo muito nosso. Quaisquer que sejam as deficiências e defeitos do teatro de Macedo, a vida brasileira ou mais propriamente a vida carioca do seu tempo, acha-se nele, como aliás no seu romance, sinceramente representada.

Alencar, natureza literariamente mais fina que Macedo, ao invés deste leva para a literatura vistas de artista e de pensador, aponta mais alto. O seu teatro não quer ser, como o de Pena ou o de Macedo, a simples representação elementar da vida nacional. Representando-a como melhor lhe permite o seu congênito idealismo, pretende também educar, Para Alencar, o teatro, segundo o conceito no seu tempo incontestado, é uma escola. Cabe-lhe a honra de haver trazido para a cena brasileira o que depois se chamou o teatro de idéias. Mãe (1860), drama cheio de defeitos, mas não sem intensidade e por partes belo, é uma das primeiras manifestações literárias do sentimento nacional contra a escravidão. O crédito (1858) trouxe para o nosso teatro a questão do dinheiro, que com Dumas Filho, começara a ser um dos temas do teatro francês. Também as questões sociais e morais contemporâneas acham eco ou encontram cabida no teatro de Alencar. No mais agudo da questão religiosa aqui (1875), ele fez representar o Jesuíta, malograda concepção de um tipo que o teatro não comportava tal qual ele o concebeu, ao contrário não só do que parece ser a verdade, mas, o que é o importante, do conceito vulgar do jesuíta. E é a inferioridade do teatro que ele não comporta o que abertamente contraria esses preconceitos.

Alencar, que tinha muito menos graça e veia cômica que Pena e Macedo, escreveu também puras comédias de costumes, e uma delas ao menos ficou na nossa literatura teatral com a expressão arguta e espirituosa de um grave mal da nossa sociedade, não de todo acabado com a extinção da escravidão: a influência nefasta do moleque, da «cria da casa», fâmulo da nossa intimidade, intrometido na nossa vida, e que, graças à nossa proverbial bonacheirice ou desleixo e aos nossos costumes extremamente igualitários, toma nela uma situação desmoralizadora do decoro doméstico. É o Demônio familiar, réplica indígena do criado ou lacaio da antiga comédia italiana, francesa e ainda portuguesa, mas na de Alencar, criação original, filha somente da sua observação, da qual, porém, nem ele nem os seus êmulos não souberam tirar todo o proveito que porventura ela comportava.

O período da maior atividade de Alencar e Macedo, como escritores dramáticos, vai de meados do decênio de 50 aos fins do de 70. É esse também o de mais vida do nosso teatro, quer como espetáculo, quer como literatura dramática. Com estes dous escritores concorreram, além de alguns dos já citados (Quintino Bocaiúva, Agrário de Meneses, Pinheiro Guimarães e outros somenos), Augusto de Castro, Aquiles Varejão, França Júnior, que sem notável mérito literário, tiveram entretanto relativo e não de todo imerecido sucesso no palco.

Agrário de Menezes, baiano (1834-1863), goza de uma reputação exagerada que a literatura da sua obra absolutamente não justifica. O seu Calabar, tão gabado quão pouco conhecido, como aqui muito freqüentemente sucede, não lhe abona nem a imaginação criadora, nem o estro poético. Como escritores de teatro, mais valor têm Pinheiro Guimarães e França Júnior. Aquele como dramaturgo, que principalmente foi, tem os mesmos defeitos de Macedo e Alencar, com menos espontaneidade que o primeiro e pior estilo que o segundo. França Júnior, com muito da veia cômica popular de Martins Pena, a mesma observação superficial dos tipos e ridículos sociais, a mesma graça um pouco vulgar no apresentá-los, carece da ingenuidade que realça o engenho de Pena. No teatro de França Júnior sente-se o trato com o teatro cômico francês. Em todo caso, é com Martins Pena e Macedo um dos nossos autores dramáticos ainda porventura representáveis.

No assinalado período não só muitos dos nossos literatos escreveram para o teatro e acharam quem lhes representasse as peças, mas quem os fosse ouvir, o que nunca mais aconteceu. A nossa bibliografia teatral de então é a mais copiosa de toda a nossa literatura e para ela não concorreu somente o Rio de Janeiro, mas outras capitais brasileiras, como Pará, Maranhão, Ceará, Pernambuco, Bahia, S. Paulo, Porto Alegre. Havia pelo teatro vernáculo, brasileiro ou português, ou estrangeiro nacionalizado por traduções aqui feitas (e numerosas foram então as traduções do francês), interesse e curiosidade que depois desapareceram de todo com a concorrência do teatro estrangeiro, trazido por companhias adventícias. O espetáculo bem mais divertido e interessante por elas apresentado foi um tremendo confronto para o nosso teatro, que também não tinha mais para ampará-lo aquele antigo ingênuo sentimento nativista, que tanto aproveitara aos iniciadores do nosso teatro e da nossa literatura em geral. Ao contrário com o desenvolvimento das nossas comunicações com a Europa pela mais freqüente e mais rápida navegação a vapor, começara a prevalecer na nossa «sociedade» o gosto exótico. Antes floresceram várias empresas teatrais que ofereciam aos autores oportunidades de se fazerem representar e até lhes desafiavam o engenho. Nas principais capitais do país, companhias locais ou aventícias era certo darem em estações adequadas espetáculos com peças nacionais, portuguesas ou traduzidas. Dos atores que as compunham escaparam alguns nomes, famosos no seu tempo, e que ainda vivem na tradição. Além dos da primeira hora do nosso teatro e seus fundadores, João Caetano, Florindo, Estela Sezefreda, Costa, citam-se mais os de Joaquim Augusto, Furtado Coelho, Germano Amoedo, Vicente de Oliveira, Eugênia Câmara, Ismênia dos Santos, Manuela Luci, Xisto Baía, Corrêa Vasques e outros.

Produto do Romantismo, o teatro brasileiro finou-se com ele. Parece-me verdade que não deixou de si nenhum documento equivalente aos que nos legou o Romantismo no romance o na poesia. A literatura dramática brasileira nada conta, ao meu ver, que valha o Guarani ou a Iracema, a Moreninha ou as Memórias de um sargento de milícias, a Inocência ou Brás Cubas, os Cantos de Gonçalves Dias ou os poemas da segunda geração romântica.

O modernismo, última fase da nossa evolução literária, nenhum documento notável deixou de si no nosso teatro ou na nossa literatura dramática. O seu advento coincidiu com a inteira decadência de ambos pelos motivos apontados. O naturalismo, à feição do modernismo que poderia ter influído nesse gênero de literatura, também não produziu nada de distinto nela. Com excelentes intenções e incontestável engenho para o teatro, Artur Azevedo (1856-1908) não conseguiu senão tornar mais patente o esgotamento do nosso, pela descorrelação entre a sua boa vontade e a sua prática de autor dramático. Vencidos pelas condições em que o encontraram, e que não tiveram energia suficiente para contrastar, Artur Azevedo e os moços seus contemporâneos e companheiros no empenho de o reformarem (Valentim Magalhães, Urbano Duarte, Moreira Sampaio, Figueiredo Coimbra, Orlando Texeira e outros) sem maior dificuldade trocaram as suas boas intenções de fazer literatura dramática (e alguns seriam capazes de fazê-la) pela resolução de fabricar com ingredientes próprios ou alheios, o teatro que achava fregueses: revistas de ano, arreglos, adaptações, paródias ou também traduções de peças estrangeiras. Intervindo o amor do ganho, a que os românticos tinham romanticamente ficado de todo estranhos, baixou o nosso teatro em proporções nunca vistas, e, por uma ironia das cousas, justamente no momento em que Artur Azevedo e os seus citados companheiros lhe pregavam a regeneração nos jornais onde escreviam. Uma ou outra peça de valor literário ou teatral que estes autores fizeram não bastou para levantá-lo. O público se desinteressava, e continuava a desinteressar-se, pelo que se chama teatro nacional. E como só acudisse àquele teatro de fancaria, de arreglos, revistas de ano e paródias, esses escritores pouco escrupulosos tiveram de servir esse público consoante o seu grosseiro paladar.

Apesar da sua grande inferioridade relativamente à ficção novelística e à poesia, o nosso teatro e literatura dramática têm feições que não devem ser desconhecidas e desatendidas da crítica. Durante a época romântica, foi intencional e manifestamente nacionalista, e o foi ingênua e naturalmente, de assuntos, temas, figuras e, o que mais é, de sentimento. Ainda imediatamente depois inspirou-o o mesmo sentimento. Assim, as principais questões que agitaram o espírito público pelo fim do Romantismo e logo depois a guerra do Paraguai, a questão religiosa, a da escravidão, repercutiram no nosso teatro, quer da capital, quer das províncias. Não são poucas as peças, comédias e dramas, a que estas questões forneceram temas ou deram motivo. Com todos os seus defeitos, apresenta o teatro brasileiro de 1850-1880, certos caracteres ou simples sinais que lhe são próprios, e até lhe dão tal qual originalidade, tirada da sua mesma imperfeição. Canhestros embora, e por via de regra imitadores do teatro francês, os seus autores não são sempre copistas servis, e sobrelevam o seu arremedo com um íntimo sentimento do meio, que ainda não tinha sido de todo amesquinhado ou extraviado pelo estrangeirismo logo depois triunfante. Na comédia, em que se mostravam mais capazes, talvez porque em Martins Pena se lhe deparou modelo apropriado, há em geral boa observação, representação exata e dialogação conforme as situações, personagens e fatos. Por via de regra tudo isto falta ao drama brasileiro, que ofende sempre o nosso sentimento da verossimilhança, à qual mais do que nunca somos hoje sensíveis, e nos deixa infalivelmente uma impressão de artificialidade. Seja defeito da mesma sociedade dramatizada, seja falha do engenho dos nossos escritores de teatro, é fato que nenhum nos deu já uma cabal impressão artística da nossa vida ou representação dela que não venha eivada de mal disfarçados exotismos de inspiração, de sentimento e de estilo. Demasiados modismos estrangeiros de costumes, de atos, de gestos e de linguagem a desfiguram como definição que presumem ser dessa vida e lhe viciam a expressão literária. A nossa sociedade, quer a que se tem por superior, quer a média, não tem senão uma sociabilidade ainda incoerente e canhestra, de relações e interdependências rudimentares e limitadas. Poucos e apagados são por ora os conflitos de interesses e paixões que servem de tema ao drama moderno. Carece também ainda de estilo próprio nas maneiras e na linguagem. Tendo perdido no arremedo contrafeito do estrangeiro, isto é do francês, o seu caráter cômico, não adquiriu ainda feições peculiares que lhe facultem a expressão teatral. Quanto à literária, esta é no nosso teatro, e foi sempre, ainda mais defeituosa e insuficiente do que no nosso romance.

Com crassa ignorância ou estólido menosprezo da nossa história literária, estão agora mesmo tentando criar um «teatro nacional» ab ovo, como se nada houvesse feito antes. As amostras até agora apresentadas desta tentativa não autorizam ainda, acho eu, alguma esperança no seu bom sucesso.

Capítulo XVIII

Publicistas, oradores, críticos

Segundo temos verificado, no período colonial compunha-se sobretudo a nossa literatura de poesia, lírica ou épica, com alguma rara e insignificante amostra da dramática, e mais de crônicas, notícias e informes do país, história, obras de edificação e moral religiosa e sermões. Com o Romantismo, com que lhe iniciamos o período nacional, apareceram outros e mais variados gêneros literários, a filosofia, a crítica e a história literária, o teatro, a oratória política e parlamentar, a ficção em prosa e as vernaculamente chamadas questões públicas, ou publicística, segundo o barbarismo em voga.

Esta como aquelas duas variedades novas de oratória, não podiam aliás existir senão num regime de livre opinião e publicação de pensamento que só com a Independência tivemos. O estabelecimento da imprensa conseqüente ao da sede da monarquia portuguesa aqui, em 1808, sobre haver servido para estimular o sentimento nacional excitado por essa mudança política, veio favorecer o advento de novas expressões da nossa atividade mental, naturalmente influída por esse mesmo alvoroço. Não foram poucas, embora sejam na maioria somenos, as publicações de assuntos econômicos, políticos e sociais feitas pela Imprensa Régia, depois Imprensa Nacional, desde o ano da sua fundação até o da Independência, já originais, já traduções.

O movimento político que antecedeu e seguiu a Independência suscitou vocações de estudo e discussão das questões públicas de imediato interesse do país. Aparece então o mais célebre dos nossos publicistas, o criador dos estudos econômicos e sociológicos no Brasil, José da Silva Lisboa, visconde de Cairu, de quem já dissemos. Vêm logo depois ou simultaneamente com ele, os jornalistas cujos nomes acaso impertinentes na história da nossa literatura, qual a concebemos, pertencem à da nossa formação política, e tão notáveis se tornaram que ainda hoje, não obstante nunca mais lidos, nos são familiares: Hipólito da Costa (tinha o comprido nome de Hipólito José da Costa Pereira Furtado de Mendonça), o fundador e redator do Correio Brasiliense (1808-1822); Januário da Cunha Barbosa, então muito apreciado orador sagrado e poeta, e Joaquim Gonçalves Ledo, redatores do Revérbero Constitucional Fluminense (1821-1822); José Bonifácio, o padrinho e o mais eminente estadista da Independência, com o seu Tamoio (1823), e por fim, já ao cabo do período, Evaristo Ferreira da Veiga, da Aurora Fluminense (1828-1835), jornal grandemente influente no seu tempo, sem falar dos escritores ou simples foliculários dos numerosos e efêmeros jornais dessa época agitada. Já vimos que uma revista de exíguo formato, mas de nome expressivo e de intenção claramente nacionalista, o Patriota (1813-1814), fundada e dirigida pelo prestante polígrafo Manuel Ferreira de Araújo Guimarães, atuou utilmente na literatura imediatamente anterior ao Romantismo, agrupando como seus colaboradores os homens de melhores letras do tempo.

Abundaram no momento da fundação do Império os jornais e panfletos políticos ou simplesmente facciosos que mais que idéias representavam as paixões de momento e lhes traziam no estilo os ardores e violências. A literatura, porém, não recolheu nenhum deles. Ainda os que com esses, ou posteriormente com a Aurora, mais doutrinais e mais bem escritos, se tornaram relevantes pela ação que acaso tiveram, ou somente pela impressão que porventura fizeram, redigidos alguns por indivíduos consideráveis, esses mesmos carecem de virtudes literárias que os façam viver senão como documentos para a nossa história política ou testemunhos do nosso pensamento político contemporâneo. Entre tais opúsculos e panfletos, citam-se como mais notáveis, isto é, como tendo tido mais repercussão no seu tempo, Carta aos eleitores, de Bernardo de Vasconcelos (1828); Facção aulica, por Firmino Rodrigues Silva (1847); Libelo do povo, por Timandro Sales Torres Homem (1849); Ação, reação, transação, de Justiniano Rosa da Rocha (1855); Conferência dos divinos, por Antônio Ferreira Viana (1867); e, mais notavelmente, as Cartas de Erasmo, de José de Alencar (1865-66), às quais o grande nome literário do autor emprestou merecimento que talvez não tivessem.

Contemporâneos destes, de uma atividade literária dispersiva e passada quase toda na província, a de Pernambuco, donde ambos eram, foram dois escritores cujos nomes tiveram certa popularidade, não de todo extinta, Miguel do Sacramento Lopes Gama (1791-1852) e José Inácio de Abreu e Lima (1796-1869). O primeiro, além de numerosas traduções do francês e do italiano, de obras de filosofia, religião, economia política, educação, nenhuma importante, deixou poemas herói-cômicos e satíricos, e prosas também satíricas, mas é sobretudo conhecido pelo seu jornal da mesma natureza O carapuceiro (Pernambuco, 1832-1847). Foi autor didático e um dos escritores mais corretos do seu tempo. Abreu e Lima deixou na sua terra natal, e ainda no Brasil ilustrado, o renome de um polígrafo notável. Escreveu com efeito compêndios de história do Brasil, polêmica literária e religiosa, o primeiro livro sobre socialismo aqui publicado (O socialismo, Recife, 1855, 352 págs.), obras de direito ou sobre questões públicas, estudos diplomáticos e médicos, etc., tudo com certo vigor de estilo, mas com graves falhas sob o aspecto da linguagem.

Quando o Império sai vitorioso das dificuldades dos seus primeiros vinte e cinco anos, e o Romantismo triunfara inteiramente com esta literatura quase somente política, entram a aparecer escritos de outro e mais alto interesse e valor sobre questões públicas, problemas de administração e economia nacional. Versaram-nos principalmente jornalistas muito apreciados no seu tempo e cujos nomes chegaram até nós ainda celebrados, como Justiniano da Rocha, Saldanha Marinho, Quintino Bocaiúva (que fez também literatura escrevendo teatro e crítica e dirigindo revistas e empresas editoriais), Ferreira Viana, Tôrres Homem, José Maria do Amaral (também bom poeta), José de Alencar, Otaviano de Almeida Rosa, Silva Paranhos. Alguns destes e outros cujos nomes se lhes poderia razoavelmente juntar, se haviam ensaiado como publicistas nas suas províncias, onde também floresceu esta literatura política. Como dentre essas é o Maranhão aquela cujo concurso foi mais considerável e precioso para o nosso movimento literário do Romantismo, foi também essa província que principalmente contribuiu com alguns nomes, dos quais o maior é o de João Lisboa, para aumentar a lista dos publicistas brasileiros dessa época. Em todo o país, porém, nomeadamente em Pernambuco, Bahia, S. Paulo e Minas, foi então notável a obra da imprensa jornalística, que produziu alguns escritores de mérito, cujos nomes, apesar da forçosa caduquez da sua literatura, não estão ainda de todo esquecidos.

O publicista de livros de maior capacidade e de obra mais considerável desde o Romantismo ao Modernismo foi, além de João Lisboa, cujo Jornal de Timon literariamente o sobreleva a todos, Tavares Bastos (Aureliano Cândido, 1839-1875). Consta a sua obra de Cartas do solitário, estudo sobre várias questões públicas (1863), O Vale do Amazonas, estudos de economia política, social e estatística (1866), A Província (1870), estudo da mesma natureza sobre a descentralização política da nação, e mais meia dúzia de obras menores. Distingue-as a todas a quase novidade de tais estudos aqui, onde apenas se depararia algum feito com a mesma objetividade, a mesma sincera e desinteressada aplicação, a mesma seriedade de intuitos e de pensamento, estreme de paixões partidárias ou tendências egoísticas. Se Tavares Bastos se não distingue por notáveis qualidades de escritor, o seu estímulo é todavia fácil e corrente, e a sinceridade dos seus estímulos e a sua íntima convicção lhe dão não raro vigor e brilho. Mais do que um simples penteador de frases, foi um disseminador de idéias, que germinaram e que aí estão em parte realizadas. Foi em suma um precursor, de fato mais eficaz do que muitos cujos nomes andam injustamente mais celebrados que o seu.

Mas obras como as suas, quando porventura não as salvam qualidades excepcionais de pensamento e expressão, perdem, com a oportunidade que as motivou, o melhor do seu interesse. Se a história literária pode lembrá-las como um documento a mais da atividade mental de uma época, que ajuda a lhe completar a feição e relevar a importância, a literatura -à qual não se incorpora de fato se não o que por virtudes de ideação e de forma tem um interesse permanente- as deixa de lado.

Quando Tavares Bastos publicava o seu último livro, em 1870, iniciava-se já o movimento geral que ia modificar a mente brasileira e as suas manifestações escritas, e simultaneamente a feição política da nação. Dele era importante a questão que aqui se chamou do elemento servil e que no seu mais saliente aspecto, a emancipação dos escravos, tanto interessou e tão intensamente alvoroçou o país. Dela há impressões notáveis, e até fortes, na literatura nacional, no romance, no teatro, na poesia, na oratória e nos estudos econômicos e sociais. Um poeta que acaso poderia vir a ser grande, Castro Alves, celebrizou-se então como «cantor dos Escravos», título do poema em que lhes idealizava a miséria da condição e os sofrimentos. A publicística com este objeto foi abundante, e nela a declamação, a retórica, a oratória presumidamente eloqüente porque retumbante e ruidosa, deram-se largas. Além de livros como os de Perdigão Malheiros, A escravidão no Brasil, ensaio histórico, jurídico, social (Rio de Janeiro, 1866-67), aliás de distinto merecimento, e que antecedeu e preparou a fase decisiva do movimento abolicionista, destacam-se outros de propaganda direta como os de Joaquim Nabuco, e os que procuravam servir servindo à causa do desenvolvimento econômico do país, mediante outros fatores e processos que não o escravo e a escravidão, pelos seus autores condenados e combatidos. São exemplo dessa literatura subsidiária da propaganda abolicionista Trabalhadores asiáticos, de Salvador de Mendonça, e Garantia de juros e Agricultura nacional, de André Rebouças. É, porém, o Abolicionismo, de Joaquim Nabuco (1833), a melhor manifestação literária do gênero e momento.

Também a questão religiosa, como aqui impropriamente se chamou ao conflito de dois bispos com o governo imperial por motivo de interdição por aqueles, sem beneplácito deste, de irmandades religiosas, deu lugar ao aparecimento de livros e folhetos discutindo a questão. É ao cabo somenos o valor doutrinal e literário dessa literatura. O mérito principal da discussão acesamente travada entre regalistas defensores do poder temporal, ultramontanos propugnadores do pleno direito da Igreja e livres-pensadores hostis a ambos, foi ter despertado aqui o eco de controvérsias histórico-político-religiosas travadas na Europa e atingindo à mesma religião oficial, desde então mais desenganadamente posta em debate público, não só no seu privilégio, mas na sua essência. Como principais documentos da contenda ficaram: A Igreja e o Estado e vários opúsculos com o mesmo motivo por Ganganeli (Joaquim Saldanha Marinho, 1873-1876), Direito contra o Direito, pelo bispo do Pará, D. Antônio de Macedo Costa (1874), A Igreja no Estado, por Tito Franco de Almeida (1874), Missão especial a Roma em 1873 (1881) e o Bispo do Pará ou a missão a Roma (1887), pelo Barão de Penedo (Francisco Inácio de Carvalho Moreira), e a longa, exaustiva e sábia Introdução posta pelo Sr. Rui Barbosa à sua tradução do famoso panfleto de Janus (o cônego Suíço-Alemão Doellinger), O Papa e o Concílio (1877). Também o interesse e sabor destes e de muitos outros escritos do mesmo motivo e ocasião, dos quais apenas poucos terão algum mérito intrínseco, desapareceram com as circunstâncias que os produziram.

Cabe aqui a interessantíssima figura de Joaquim Nabuco. Historiador, crítico, sociólogo, economista, orador parlamentar ou tribuno popular e moralista, em tudo foi essencialmente um publicista, se por publicista podemos também entender o escritor que escreve por amor e interesse da causa pública e cuja íntima inspiração é política. Temperamento de raiz político, espírito curioso e interessado pela causa pública e nimiamente sensível aos seus movimentos e manifestações, incapaz de satisfazer-se de temas puramente literários, Joaquim Nabuco, na maioria e no melhor do que escreveu, é um escritor político no mais alto significado da expressão. Nele, porém, exemplo talvez único entre os nossos publicistas, o talento literário realçou de tal maneira a feição política, que era a principal do seu espírito, que fê-lo um verdadeiro, um grande escritor. Constituía-lhe o talento literário, além da imaginação, que é uma das suas faculdades dominantes, grande riqueza de ideação, aumentada da facilidade de apropriar idéias e afeiçoá-las consoante o seu próprio espírito. Tinha mais peregrina distinção de pensamento e notável capacidade de idéias gerais. E os seus dons naturais de expressão graciosa e elegante, eloqüente e comovida, eram tais que não alcançaram minguá-las as suas insuficiências na língua. Se não é, como Macedo, Alencar ou Machado de Assis, um literato, esses dons e mais as suas faculdades estéticas, o seu fino sentimento artístico, fizeram dele um dos mais completos e insignes homens de letras que temos tido.

Ao contrário da máxima parte do escritores brasileiros, que quase todos tiveram origens medíocres senão ínfimas, Joaquim Aurélio Nabuco de Araújo procedia de estirpe fidalga, da antiga nobreza territorial de Pernambuco, e era de uma família senatorial. Seu avô e seu pai foram senadores do Império e ocuparam nele altas situações de administração pública. Nasceu na capital daquela Província em 19 de agosto de 1849. Na respectiva faculdade formou-se em Direito. Diplomata no princípio da sua vida pública, como tal acabou embaixador em Washington, em 17 de janeiro de 1910. Entrementes foi jornalista, parlamentar, propagandista da abolição da escravidão, escreveu versos e ensaios, fez crítica e conferências literárias e políticas, publicou folhetos e livros, propugnou a Confederação das províncias sob o Império. Caído este, Joaquim Nabuco fez-se por alguns anos o seu mais caloroso e brilhante paladino. A sua viva imaginação, a sua ativa inteligência, o seu profundo gosto de ação pública e de notoriedade não lhe consentiam, ainda mau grado seu, deixar sem emprego um talento em toda a sua força e um espírito pouco feito para a abstenção, o isolamento ou a intransigência teimosa. Arrastado por estas forças, «procurou reconciliar-se com os nobres destinos da nossa pátria e, religiosamente, segundo a sua bela imagem, envolveu a sua fé monárquica na mortalha de púrpura em que dormem as grandes dinastias fundadoras».

Apenas a trama do espírito de Nabuco seria brasileira, pelas heranças de raça onde haveria acaso uma gota de sangue indígena, pela ação do meio rústico onde lhe passou a primeira infância recontada por ele numa página imortal, pela influência do ambiente em que se criou e fez homem, pelas suas afinidades de orgulho de estirpe com a gente consular de que procedia. Mas o lavor e recamo posto nessa delgada trama nacional era todo estrangeiro, metade francês, metade inglês, e pontos escassos mais firmes da cultura greco-romana. De formação, de índole, de sociabilidade, mais um europeu que um brasileiro. Nem era isso privilégio seu. Crescido número dos nossos intelectuais o compartilham com ele. Ele, porém, o foi mais e mais distintamente que todos. A sua vida literária começou (excetuadas as produções menores da adolescência) por um livro de versos em francês e acabou por um livro de pensamentos também nessa língua, que porventura escrevia tão bem quanto a própria. Nela ainda escreveu Le droit au meurtre, carta a Ernesto Renan sobre o L'Homme Femme, de Dumas Filho, e um drama em verso L'Option, postumamente publicado.

Da literatura da sua língua, a figura que melhor conheceu, quem sabe se não a única que conheceu, e amou foi Camões. Consagrou-lhe um livro, o primeiro que publicou em português, Camões e os Lusíadas (Rio, 1872, in-8º, 294 págs.), e para o cabo da sua vida, já embaixador nos Estados Unidos, três conferências em universidades americanas. Nesse livro, do qual ultimamente desdenhava, havia, com a marca indelével de quem o escreveu, vistas certas e originais da nossa literatura. Era, mesmo para o tempo, falha a sua erudição camonianna, e sua crítica, e ele próprio o reconhece, demasiado objetiva e ainda muito escolástica. Atenuavam-lhe os defeitos essenciais, o belo dizer e os rasgos de talento que foram sempre, em todos os assuntos, apanágio seu.

Antes que o tomasse quase exclusivamente a política, fez conferências, folhetins e artigos literários ou artísticos, discursos acadêmicos, jornalismo político. Quando, por volta de 1880, começou a maior campanha contra a escravidão, de que todos os brasileiros, pode dizer-se, se sentiam envergonhados, Nabuco entrou nela com todo o ardor de um coração desejoso de servir uma nobre causa e ansioso da glória que daí lhe resultaria. Entre os nossos abolicionistas da vanguarda foi ele talvez o mais intelectual. Exteriorizou-se numa ação pública a que o seu engenho literário, os seus dotes de orador, o brilho da sua personalidade e até a beleza do seu físico e a elegância do seu porte e maneiras emprestaram lustre singular. Além de discursos, conferências, artigos de jornais, escreveu o livro O Abolicionismo, acaso o mais excelente produto, sob o aspecto literário, desse movimento. Não era, como a maioria daqueles a que o assunto deu ensejo, obra de retórica propagandista, declamatória ou altiloqüente, senão livro de raciocínio e argumentação, em suma uma obra de pensador e escritor.

O melhor, porém, da sua obra literária, a que lhe assegura um eminente posto nas nossas letras, a faz nos quinze últimos anos, entre os 46 e os 61, de sua vida. São desse período os seus livros Balmaceda e a Guerra civil do Chile (1895), A intervenção estrangeira durante a revolta (1896) e, a maior e mais importante de todas, Um estadista do Império, J. F. Nabuco de Araújo, sua vida e opiniões: sua época (1898), em que, com a vida de seu pai, político e jurisconsulto eminente, historia uma fase importante do segundo império.

Embora inspirados todos de espírito político, mas do seu espírito político, muito diferente pela elevação e pela cultura do que costuma ser aqui esse espírito, esses livros são eminentemente obra de escritor distintíssimo, e encerram algumas das mais belas páginas da prosa brasileira. Por este aspecto valem como argumento contra o preconceito do casticismo, provando que um autor brasileiro de real talento literário, isto é, com as qualidades essenciais de pensamento, imaginação e expressão, pode, a despeito do português estreme, ser em todo o vigor da expressão um grande escritor. Tal o foi sem dúvida Joaquim Nabuco. Tal fora também, embora com menor vigor e elegância, José de Alencar. Estes exemplos, porém, são muito poucos, e de forma alguma autorizam, máxime a quem não tenha as qualidades destes dous excepcionais escritores, o descuido da língua.

Outro publicista de talento, muito espírito, boa linguagem e estilo elegante, ensaísta fecundo e original, polemista vigoroso e agudo, um verdadeiro escritor em suma pelas peregrinas qualidades da sua ideação e expressão, é Eduardo Prado. Chamava-se com todo o seu nome Eduardo Paulo da Silva Prado. Nasceu na capital de S. Paulo de uma velha, importante e opulenta família, ali vinculada, em 27 de fevereiro de 1860, e na mesma cidade formou-se em Direito e veio a falecer em 30 de agosto de 1901.

A sua obra é copiosa e foi toda feita em jornais e revistas, um pouco ao acaso das circunstâncias e ocasiões. Hoje acha-se toda reunida em nove volumes e compõe-se de artigos literários, viagens, ensaios, discursos, crítica literária, social ou política, polêmica, etc. Na literatura brasileira, Eduardo Prado tem duas singularidades: ser um dos poucos senão o único homem rico e certamente o de mais valor que aqui se deu, sequer como diletante, às letras, e ser talvez em a nossa literatura o único escritor reacionário. Refiro-me a escritor e não a políticos que ocasionalmente tenham escrito, nem a jornalistas, cuja obra efêmera não considero aqui. Joaquim Nabuco, conquanto católico praticante e monarquista convicto, não pode ser tudo por um reacionário, porque achou jeito de conciliar com o seu catolicismo, porventura mais de imaginação que de sentimento, o seu profundo liberalismo, e foi sempre, conquanto aristocrata de raça e temperamento, irredutivelmente um liberal, um democrata em política. Eduardo Prado, que em tudo, em costumes, em opiniões e gostos, parece ter sido um diletante, um espírito cosmopolita, pode ser que fosse também em crença religiosa e política. A sua curiosidade intelectual, o seu gosto do novo e do exótico, diga-se, a dose de esnobismo que havia nele, e certo senso de elegância e mudanismo hostil à nossa baixa democracia, e mais a sua freqüentação de meios monárquicos e reacionários de Paris, explicam talvez o seu reacionarismo católico e monárquico, em oposição com a sua natural independência mental e irreverência espiritual. É o nosso mais acabado tipo de diletante intelectual, do amador das coisas de espírito. E amador e diletante o foi em tudo, com bom humor, muito espírito e inconseqüentemente. Com pontos de contato com Nabuco, não tem o seu talento, e menos a sua seriedade espiritual. O brilho mundano da sua existência de moço rico e pródigo, as suas longas viagens, a sua existência européia, o seu íntimo comércio com homens de letras europeus, deram-lhe um prestígio que a sua só obra literária, aliás documento de talento literário pouco vulgar, acaso não lhe teria só por si dado. Aumentou-lho a perseguição tolamente feita pelo Governo Provisório da República ao seu brilhante panfleto A ditadura militar no Brasil e a atitude por ele tomada em face não só da República mas do geral sentimento liberal do país.

Como escritor, Eduardo Prado foi, em suma, um jornalista, porém com mais talento, mais espírito, mais cultura e mais experiência do mundo que o comum deles. Da causa pública teve menos o interesse que a curiosidade do seu elemento dramático. A política foi-lhe apenas um tema literário, que tratou com a desenvoltura de um espírito no fundo cético e paradoxal.

A publicística, no seu mais exato sentido de literatura das questões públicas, nunca de fato se incorporou aqui à literatura propriamente dita ou a enriqueceu com exemplares de maior valor que o ocasional e de emoção menos efêmera que a do momento. Salvo em um ou outro jornalista de mais vigoroso pensamento e de mais perfeita expressão, como Justiniano da Rocha, Otaviano Rosa, Quintino Bocaiúva e os já atrás citados Tito Franco de Almeida, Saldanha Marinho, Ferreira Viana, José de Alencar e outros, e mais perto de nós Salvador de Mendonça, Ferreira de Araújo, Ferreira de Meneses, Leão Veloso, Rodolfo Dantas, Belarmino Barreto, José do Patrocínio, cujos nomes, acaso por outros motivos que os puramente literários, sobrevivem, careceu sempre a nossa publicística de qualidades com que se pudesse legitimamente incorporar na nossa literatura e viver nela por obras sempre estimáveis. Joaquim Nabuco e Eduardo Prado apenas são publicistas por parte de sua obra e pela intenção política de quase toda ela.

Mais ainda do que a publicística, a oratória política não podia existir antes de um regime de livre discussão, qual o aqui inaugurado com a Independência. Os sucessos que imediatamente a precederam, bem como os que se lhe seguiram, deram justamente lugar ao aparecimento de sociedades e clubes patrióticos, juntas de governo e assembléias políticas por amor dela convocadas, donde resultou essa espécie de eloqüência num país que até então outra não conhecera que a sagrada ou, em importância e escala muito menor, a acadêmica.

A primeira teria aliás nesta fase da nossa história um brilho que ainda se não apagou de todo da tradição. Foram seus mais eminentes cultores e deixaram alguns documentos que até certo ponto lhes justificam a fama contemporânea, Sousa Caldas, o vigoroso poeta lírico do qual aliás como pregador apenas resta a memória do apreço em que o tiveram os seus ouvintes; Fr. Francisco de S. Carlos, o secundário poeta da Assunção da Virgem; Fr. Francisco de Sampaio e o cônego Januário Barbosa, ambos jornalistas e agitadores políticos, e o último medíocre poeta e estimável literato, e, finalmente, o maior de todos, Monte Alverne.

Este com S. Carlos e Sampaio formaram um trio de oradores sacros que no seu tempo, em que ainda se apreciava o gênero, e ir ao sermão era um dos poucos divertimentos da população e dos raros recreios da gente culta, se disputavam a preferência do público e a primazia do púlpito. Deu-lhes principalmente relevo à oratória, sobretudo a de Monte Alverne, que decididamente os sobreleva a todos, o terem-na exercitado no momento de comoção política e alvoroço patriótico, que lhes atuou na facúndia e lhes deu ao estro uma emoção nova e renovadora da cansada eloqüência sagrada aqui em antes praticada. Pode dizer-se que neles, que não foram somente pregadores mas oradores patrióticos e ainda políticos, preludia a oratória política de 1823.

Francisco de Monte Alverne nasceu no Rio de Janeiro em 9 de agosto de 1784 e faleceu em Niterói a 2 de janeiro de 1858. A sua atividade oratória vai de 1819 a 1856, isto é, passa-se na época climatérica que imediatamente precedeu e seguiu a da Independência e fundação do Império, cujo extremo propugnador foi. Aparece como uma das vozes do sentimento nacional nesse momento exuberante de entusiasmo. Segundo as notícias, umas ainda pessoais, outras tradicionais e algumas escritas que dele temos, e que a sua obra confirma, foi uma bela figura de frade soberbo, personalíssimo, ingenuamente desvanecido do seu saber e facúndia. Este manifesto, mas não antipático, contraste entre a humildade reclamada pelo seu instituto e o seu orgulho intelectual, e mais as circunstâncias do tempo, lhe fizeram a fisionomia particular e distinta que tem na nossa vida mental. Professor de filosofia, mestre sem alguma originalidade, mas eloqüente e dominador, teve por discípulos, dos quais se soube fazer admiradores e devotos, boa porção dos homens que vieram a intelectualmente florescer nos anos subseqüentes e o melhor da mocidade do tempo. Exerceu grande influência -talvez a primeira de ordem mental que aponte a nossa história literária- nas jovens gerações que com ele aprenderam ou o ouviram. Durante todo o período romântico, poetas e prosadores o celebraram em biografias e notícias, em poemas que lhe dedicam ou lhe comemoram o engenho. Não é demais dizer que, para as gerações suas contemporâneas ou imediatamente posteriores ele foi o primeiro dos nossos heróis intelectuais. Não os enganava a intuição dos românticos. Pelo seu arrogante pessoalismo, pela sua exuberante individualidade, pela mistura na sua oratória de emoções patrióticas e religiosas; e pela sua indisciplina, sem quebra aliás da sua austeridade monástica, espiritual, e mais pelo tom e estilo pitoresco dos seus sermões, onde sentimos estes vários impulsos, foi Monte Alverne o verdadeiro precursor do Romantismo aqui.

A primeira eloqüência política brasileira, inaugurada na Assembléia Constituinte de 1823, tem uma dupla feição. Por mais de um rasgo lembra a oratória da Revolução Francesa, em cuja história eram lidos os principais de seus membros, e ressuma algo também da oratória sagrada da nossa língua, que era o modelo mais presente aos iniciadores dessa eloqüência aqui. Alguns deles já o haviam aliás ensaiado nas juntas e sessões políticas de antes da Independência ou a tinham praticado como deputados do Brasil nas Cortes de Lisboa, em 1821. Mas os mesmos oradores portugueses destas seriam bisonhos parlamentares, cuja educação oratória, feita sob o duplo influxo da eloqüência revolucionária francesa e do sermão nacional, não podia ser aos nossos de grande exemplo.

Como o sermão, o discurso político, salvo casos sempre raros de peregrinas excelências de fundo e forma, por sua mesma efemeridade e contingência, como pelo ocasional dos seus motivos e inspiração, só muito excepcionalmente conserva o interesse da emoção original. Nem sequer concorria aqui para prolongá-lo além da sua hora, o livro que os recolhesse. Apenas o Anais das assembléias onde foram proferidos lhes guardaria o eco, de todo extinto aliás nesses cartapácios nunca lidos.

Teve a Constituinte alguns oradores notáveis, dos quais se pode dizer que o eram mais de nascença que de feitura. O maior deles, ao menos o mais célebre, foi Antônio Carlos Ribeiro de Andrada Machado e Silva (1775-1845), cuja fama vinha das Cortes portuguesas de 1821, e devia confirmá-la a sua ulterior carreira de orador em assembléias posteriores à Constituinte.

Nestas, os nomes cuja reputação excedeu ao seu tempo são os de Rebouças, Maciel Monteiro, Rodrigues dos Santos, Bernardo de Vasconcelos, Sousa Franco, Alves Branco, Nabuco de Araújo, Rio Branco, Silveira Martins, talvez o maior de todos nas qualidades propriamente oratórias, Torres Homem, José de Alencar, José Bonifácio, o Moço, cujos discursos lidos hoje lhe não abonam a fama contemporânea, Joaquim Nabuco, Fernandes da Cunha. Destes, bem poucos, fora dos Anais parlamentares, deixaram documento escrito por onde possamos avaliar-lhes, quanto um orador pode ser julgado pelo discurso não ouvido, o fundamento da celebridade. Temos, pois, que contentar-nos com a tradição. Segundo esta, foram estes, com alguns mais, e muito antes bons parlamentares, bons discutidores, que oradores, os melhores exemplares da nossa oratória política. Literariamente, salvo as exceções de um Rebouças, um Maciel Monteiro, um Nabuco pai e filho, um Torres Homem e um José de Alencar, pouco valem. Raríssimos serão os seus discursos cuja leitura não nos seja agora displicente. É que sobretudo «oradores de negócios», segundo a expressão francesa, isto é de questões políticas ou partidárias de ocasião, o interesse das suas arengas passou com o dos seus motivos, e tanto mais completamente quando por via de regra eles não lhes souberam dar qualidades de pensamento e de expressão que as fizessem viver.

A crítica no Brasil nasceu com as academias literárias do século XVIII. Os seus primeiros ensaios foram os pareceres ou juízos nelas apresentados sobre os trabalhos sujeitos à sua apreciação. Continuavam esses pareceres o costume português, também oriundo das academias, de que as nossas foram um arremedo. Eram por via de regra inchados de pensamento e de expressão, grávidos de erudição literária contemporânea e, como estalão de estima, usavam rigorosamente a pauta da retórica clássica consoante Horácio e Quintiliano, e aferiram das obras conforme elas lhes pareciam ou não acordes com essas pautas. A inspiração geral desses primeiros ensaios de crítica, não só aqui mas em Portugal -aos quais cumpre juntar os juízos dos censores oficiais, que às vezes se desmandavam em críticos,- era de regra exageradamente benévola, e facilmente escorregava para os mais desmarcados encômios e excessivos louvores, em linguagem, como era a literária da época, túrgida e hiperbólica. Dizendo, por exemplo, de um ruim poema feito à Virgem Maria pelo poeta José Pires de Carvalho e Albuquerque, hoje absolutamente ilegível, os críticos -chamavam-se então censores- da Academia dos Renascidos, asseveravam que o livro do seu confrade continha «em si matérias tão sublimes e cantos tão suaves, que aparece ser todo inspirado do céu, ainda que organizado na terra, favor na verdade particular de que foi dotado o autor, não só como devoto, mas como poeta». E não satisfeitos, acrescentaram: «É tão sublime a musa do nosso acadêmico que a sair do eminente cume do Parnaso só passaria como passou ao mais elevado ápice do Olimpo»16.

Não fora impossível ou sequer difícil mostrar ainda agora ressaibos deste estilo de crítica em quejandos documentos das nossas sociedades literárias e nos mesmos críticos de ofício. Com poucas exceções permaneceu este estilo essencialmente o mesmo até o advento do modernismo, cujo espírito foi notavelmente crítico, sem que entretanto lograsse refugá-lo de todo da crítica indígena. Não raro aquele tom empolado da velha crítica portuguesa para aqui transplantada foi apenas substituído por mal assimiladas novidades pseudofilosóficas por pseudocientíficas expressas em nova forma de gongorismo, que, como o outro, nos vinha também de Portugal.

A crítica como um ramo independente da literatura, o estudo das obras com um critério mais largo que as regras da retórica clássica, e já acompanhado de indagações psicológicas e referências mesológicas, históricas e outras, buscando compreender-lhes e explicar-lhes a formação e a essência, essa crítica derivada aliás imediatamente daquela, pelo que lhe conservou alguma das feições mais antipáticas, nasceu com o Romantismo. Precedeu-o mesmo, nos estudos biográficos e literários do Patriota, de Araújo Guimarães, do Parnaso Brasileiro, de Cunha Barbosa, de Niterói, de Gonçalves de Magalhães e Porto Alegre. Era, porém, sobretudo louvaminheira e derramada em impertinentes considerações gerais, e acreditava ingenuamente que preconizar a produção literária nacional era o mesmo que valorizá-la e que o louvor, ainda indiscreto, seria estímulo bastante ao fomento das nossas letras. Esse estímulo imprudente achou-o que fartasse o Romantismo na crítica, que com ele surgiu em jornais e revistas como a citada Niterói, a Minerva Brasiliense, a Guanabara, a Revista do Instituto e mais tarde a Revista Popular e outras publicações semelhantes. E não se pode dizer que esta crítica ainda nimiamente encomiástica, e que convencidamente atestava de primas obras cuja leitura nos é hoje insuportável, não tenha, em suma, tido uma ação benéfica. À falta de outro qualquer prêmio do seu esforço, encontravam nela os autores «o favor com que mais se acende o engenho.» Apenas a maioria delas não teria o que acender.

Iludindo-os sobre o seu próprio merecimento, essa crítica não só os desvairava, mas desservia os que acaso tinham e cujos defeitos ela se abstinha, por mal entendida caridade, de apontar, faltando assim à sua tarefa de educar o público, que mui confiadamente a seguia. Com essa crítica que se traduzia em louvores indiscretos acompanhados de divagações a mais das vezes ociosas e até impertinentes, crítica ainda em suma retórica, surgiu pela mesma época a crítica erudita e mais a história literária, seu natural suporte. Desprezadas, como é de razão, umas primeiras malogradas tentativas de Cunha Barbosa, Magalhães, Ferreira da Silva, o criador dessa espécie de crítica aqui, e simultaneamente da história da nossa literatura, foi Varnhagen. É ele, com efeito, o primeiro que pesquisa e assenta, com dados seguros, fatos e datas literárias, e os correlaciona com a nossa evolução política, o primeiro que estuda diretamente os autores, descobre alguns apenas vagamente conhecidos, publica-lhes ou revela-lhes as obras, identifica-os ou comprova-lhes a existência e atividade. Foi com efeito o primeiro que investigou com capacidade de erudito e um critério que é essencialmente o mesmo da nossa posterior história literária, as nossas origens literárias, e fez das nossas letras a exposição mais cabal e exata que até então se fez. Foi igualmente o primeiro que as viu no seu conjunto e não só na sua poesia, como mais ou menos o fizeram os seus predecesores, e, embora de relance, ocupou-se de todos os autores nacionais que pode conhecer, e ainda de portugueses abrasileirados pela sua estadia no Brasil e preocupações brasileiras, fossem poetas ou historiadores, moralistas, viajantes, cronistas, economistas, etc. Alguns descobriu e desencavou e divulgou de escusos repertórios portugueses, corrigindo datas, aventando informações ignoradas, emendando outras, publicando antologias e edições críticas dos nossos poetas e de escritores de cousas brasileiras. Este trabalho, grandíssimo e importantíssimo para o tempo, fê-lo ele na edição dos Épicos Brasileiros (1845), no Florilégio da poesia brasileira (1850) e na História geral do Brasil (1854-57), em memórias, monografias e artigos da Revista do Instituto e outras publicações. No Florilégio assentou, em bases que não foram ainda sensivelmente modificadas, a história da nossa literatura. Nas 54 páginas do «Ensaio histórico sobre as letras no Brasil», que vem como introdução desse precioso livrinho, acham-se pelo menos indicados o critério etnológico como elemento das investigações da nossa literatura e da sua mesma inspiração, o elemento indígena americano como concorrente nela, as origens imediatas ou o primeiro impulso da poesia e do teatro no Brasil, a necessidade de serem os nossos poetas sobretudo americanos, o interesse da poesia popular, a correlação dos fenômenos mentais com os sucessos históricos e outros que muito posteriormente seriam trazidos à luz como novidade da última hora.

Neste gosto e trabalho de investigação da história da nossa literatura o seguiu, com menor cabedal de conhecimentos e menor capacidade, mas com igual boa vontade e não sem sucesso, Norberto Silva. Devemos-lhe principalmente um mais exato conhecimento dos poetas mineiros, vários estudos biográficos literários e alguns ensaios de uma história da nossa literatura, que não chegou a escrever. Também Porto Alegre fez crítica literária e foi aqui o criador da crítica artística. Como tal devem-se-lhe os primeiros estudos sobre a nossa pintura e arquitetura e da iconografia e música brasileira, publicados no Ostensor, na revista Guanabara, no Íris, na Revista Brasileira e na Revista do Instituto, entre 1845 e 1856. O entusiasmo patriótico dos da sua geração levou-o à invenção indiscreta de uma «escola fluminense de pintura». Outros românticos da primeira hora, Magalhães, Macedo, Ferreira da Silva, Gonçalves Dias, fizeram igualmente crítica literária. Pelo tempo adiante, com certa assiduidade e algum mérito, Paula Menezes, Dutra e Melo, Paranhos Schutel, Jaci Monteiro; e alguns estrangeiros que aqui colaboraram com os nossos na constituição da nossa literatura nacional, tais os franceses Burgain e Adet, o espanhol Pascoal, o chileno Santiago Nunes Ribeiro, os portugueses Zaluar e Montoro distinguiram-se como críticos. Essa crítica, porém, foi sempre feita dispersamente em jornais e revistas, e nunca se sistematizou. Raro era outra cousa que um artigo de ocasião a favor de um livro ou autor. Toda ela tendia à exaltação freqüentemente inconsiderada da mente nacional e dos seus produtos. É patriótica como a literatura que lhe servia de assunto. Mais tarde e serodiamente, o mau exemplo das brigas literárias da «guerra dos poetas» e das arcádias portuguesas produziu aqui os seus efeitos na acrimônia, na diatribe, nos doestos e até na arrogância doutrinária, que muitas vezes substituíram a longanimidade e complacência da nossa primitiva crítica.

Na segunda geração romântica, Álvares de Azevedo escreveu alguns ensaios de crítica, que por lampejos de talento, novidade de idéias gerais e qualidades da expressão literária sobrelevam o que aqui se fazia no gênero, e mostravam ainda uma vez a compassibilidade da crítica e da criação estética. Junqueira Freire, outro poeta dessa geração, também se ensaiou na crítica, com menos romantismo e acaso mais agudeza que Álvares de Azevedo, mas também mais de passagem ainda que este. Fizeram-na igualmente em jornais, outros poetas e prosadores desta fase, nomeadamente Bernardo Guimarães e José de Alencar, que reuniu em livro a sua crítica da Confederação dos Tamoios, de Magalhães (1856).

Feita assim dispersamente, ao acaso dos ensejos, sem seqüência nem sistema, como uma manifestação pessoal de impressões recebidas dos livros lidos, mas talvez por amor dos autores que da literatura, como um estímulo ou um reclamo, e também às vezes, mas raras, como um anátema, não chegou essa crítica a ser um gênero literário separadamente cultivado. E os seus produtos havemos de ir buscá-los em jornais e revistas, prefácios de livros ou reproduzidos e citados em páginas posteriores. Quem mais sistematicamente a fez depois das duas primeiras gerações românticas, pelo menos como professor oficial de literatura, foi o cônego Fernandes Pinheiro, que deixou dois livros consideráveis de matéria cujo docente era no Colégio de Pedro II, Curso elementar de literatura nacional (1862) e Resumo da história literária (1873). De fundo próprio, quer de erudição, quer de pensamento, pouco havia do autor destes livros, onde se continuavam extemporaneamente sistemas críticos já ao tempo obsoletos. Demais, apesar do título, o seu Curso era sobretudo de literatura portuguesa, para o qual o autor achava o trabalho já feito. A brasileira, mormente no seu mais importante período, o nacional, apenas ocupava algumas páginas. Com melhor sentimento literário, com mais fina percepção estética, e sobretudo com muito melhor estilo, mas apenas acidental e esporadicamente, também fez crítica Machado de Assis.

Ao tempo em que o cônego Pinheiro professava aqui as lições, que depois tirou em livro, um outro professor de literatura no Maranhão, Sotero dos Reis, fazia o Curso de literatura brasileira e portuguesa, publicado depois em quatro tomos, de 1866 a 1868. Com o seu desenvolvimento e proporções, é não só a primeira obra de estudo histórico literário e crítico da nossa literatura, mas ainda da portuguesa, e era na nossa língua uma novidade. Transplantava Sotero dos Reis para ela, como ainda no seu tempo foi notado, a renovação da crítica operada em França por Villemain. Abalizado conhecedor por um comércio mais direto do que o tinha o cônego Pinheiro das letras portuguesas e do seu desenvolvimento aqui, fez delas mais cabal exposição que se podia então querer. O processo histórico, que era o daquele seu principal modelo, levou-o ao estudo, acaso por demais particularizado, da literatura portuguesa, de suas origens até ao fim do século XVIII. No estudo da literatura brasileira, que ocupa parte menor do seu Curso, Sotero dos Reis não lhe remontou às origens nem lhe acompanhou a evolução. Expô-la por alguns dos seus tipos mais preeminentes -como o fazia Taine com a literatura inglesa- começando em Santa Rita Durão e vindo até Gonçalves Dias. Nunca, porém, se fizera estudo tão completo e com tão boa arte de composição literária, e em suma tão bem feito como no livro de Sotero dos Reis.

Menos ainda do que qualquer dos gêneros literários aqui versados, não se constituiu a crítica em aplicação particular da atividade literária. E como não tivesse outra doutrina que o gosto pessoal dos que eventualmente a faziam, fosse pura externação de impressões individuais, mais no intuito de louvor ou censura, que no de exame e explicação da obra, afetasse um tom retórico e ordinariamente se excedesse em divagações escusadas de trivialidades literárias ou em banalidades conceituosas, essa crítica, afora o que é propriamente história literária feita por um Varnhagen, um Norberto, um Sotero e ainda um Fernandes Pinheiro, apenas deixou de si um outro documento estimável. Nada obstante foi útil e, ainda com as suas falhas e defeitos, serviu ao desenvolvimento das nossas letras.

O movimento que tenho chamado de modernismo e cujo mais evidente sinal foi, como o europeu de que se originou, o espírito crítico, deu aqui à crítica outra direção e outros critérios.

A revolta da escola coimbrã, em Portugal, contra o que um dos seus chefes chamou as «teocracias literárias» do velho Reino, o resto de pseudoclássicos, de anacrônicos árcades ou de serôdios românticos que, com Antônio de Castilho à testa, entorpeciam a evolução literária portuguesa, não só ecoou aqui, mas influiu, acaso mais poderosamente que o coevo pensamento europeu, no motim que aqui também se levantou contra os nossos escritores consagrados. A este alvoroto brasileiro faltou, porém, a coesão que teve o português, e ficou longe da importância daquele. A sua inspiração ou antes os seus inspiradores estrangeiros foram diversos: Sainte-Beuve, Taine, Scherer, Renan, Spencer e até Comte, não obstante a sua aversão sistemática à crítica, e também os muito proclamados mas de fato pouco sabidos críticos alemães de nomes estranhos aos nossos ouvidos. Se a reação pela cultura germânica em Portugal, atuadora da nossa, fez ali uma dúzia de germanistas capazes, aqui não conseguiu formar sequer a metade, o que prova a inconsciência do arremedo e a inconsistência do movimento e concomitantemente a nossa madraçaria nacional. Salvo Tobias Barreto, que foi o mais distinto prócer do movimento e cuja cultura germânica parece ter sido cabal, os nossos outros germanistas seus discípulos ou seguidores a fizeram superficialmente e através do francês.

Como quer que seja, operou-se um salutar movimento de reação e houve manifesto alargamento do nosso espírito literário e do nosso espírito em geral. Começou-se a compreender que a crítica tinha um papel distinto e uma função necessária na literatura e a abandonar os seus processos puramente retóricos por outros em que entravam novos elementos de consideração na apreciação das obras literárias, a história, a psicologia, a etnografia, a sociologia, a política, enfim quanto atuava os escritores e os podia explicar e às suas obras. Em 1873, em um artigo em que é lícito enxergar o influxo das idéias que iam dar nova direção ao nosso pensamento literário e à crítica, Machado de Assis, verificando a carência aqui da crítica como ofício literário, lastimava-lhe a falta e reclamava-a como uma necessidade da nossa literatura. De 1875 em diante entram a aparecer livros propriamente de crítica, os Ensaios e estudos de filosofia e crítica, desse ano, e os Estudos alemães, de 1883, de Tobias Barreto, a Crítica e literatura, do malogrado escritor do grupo literário formado no Ceará por esse tempo, Raimundo Antônio da Rocha Lima (1878). Outro escritor desse grupo, Araripe Júnior (Tristão de Alencar -27 de julho de 1848- 29 de outubro de 1911, Fortaleza, Ceará), conquanto se houvesse ensaiado, aliás sem nenhum sucesso, na ficção, foi principalmente um crítico, já em jornais e revistas da sua terra natal, de Pernambuco e do Rio, já em livros, José de Alencar (1882), Gregório de Matos, Movimento literário e outros. Seguindo muito de perto as doutrinas críticas de Taine, esforçou-se por praticá-las e divulgá-las aqui, temperando-as entretanto com a sua fantasia, incongruente com o espírito geométrico do seu apregoado mestre, e fazendo da complacência imoderado uso. Entre os nossos livros de crítica desse momento, destacam-se pelo seu volume e importância os Estudos sobre a literatura brasileira; O lirismo brasileiro (1877), do escritor maranhense domiciliado em Portugal, Sr. José Antônio de Freitas discípulo muito fiel do Sr. T. Braga; o Camões e os Lusíadas (1872), de Joaquim Nabuco, mais explanação entusiástica, feita aliás com talento, que apreciação crítica; os Estudos críticos, por Sílvio Dinarte (Escragnolce Taunay, 1881-1883, 3 vols.). Mas o primeiro dos escritores brasileiros que, de parte um breve e malogrado excurso pela poesia, fez obra copiosa de crítica geral e particular, é o Sr. Sílvio Romero, simultaneamente discípulo, por Tobias Barreto, dos alemães e, muito mais diretamente, dos franceses por Taine e Scherer, pelo que é da literatura propriamente dita, e de Spencer, Haeckel, Noiré e Iehring, pelo que é filosofia e pensamento geral.

É singular que o maior e mais universal dos críticos franceses do século passado, o que mais influência exerceu no seu tempo, mesmo fora da França, Sainte-Beuve, tenha muito pouco influído, ao menos de modo direto e claro, na constituição definitiva da nossa crítica, como atividade literária distinta. Só talvez em Machado de Assis se lobriga algo do seu exemplo.

Capítulo XIX

Machado de Assis

Chegamos agora ao escritor que é a mais alta expressão do nosso gênio literário, a mais eminente figura da nossa literatura, Joaquim Maria Machado de Assis. No bairro popular, pobre e excêntrico do Livramento, no Rio de Janeiro, nasceu ele, de pais de mesquinha condição, a 21 de junho de 1839. Nesta mesma cidade, donde nunca saiu, faleceu, com pouco mais de 69 anos, em 29 de setembro de 1908. A data do seu nascimento e do seu aparecimento na literatura o fazem da última geração romântica. Mas a sua índole literária avessa a escolas, a sua singular personalidade, que lhe não consentiu jamais matricular-se em alguma, quase desde os seus princípios fizeram dele um escritor à parte, que tendo atravessado vários momentos e correntes literários, a nenhuma realmente aderiu senão mui parcialmente, guardando sempre a sua isenção. São obscuros e incertos os seus começos, os informes que deles há, duvidoso ou suspeitos. Ninguém na literatura brasileira foi mais, ou sequer tanto como ele, estranho a toda a espécie de cabotinagem, de vaidade, de exibicionismo. De raiz odiava toda a publicidade, toda a vulgarização que não fosse puramente a dos seus livros publicados. Do seu mesmo trabalho literário, como de tudo o que lhe dizia respeito, tinha um exagerado recato. Refugia absolutamente às confidências tanto pessoais como literárias. Por cousa alguma quisera que as humildes condições em que nascera servissem para exalçar-lhe a situação que alcançara. Ao seu recatadíssimo orgulho repugnava, como um expediente vulgar, fazer entrar no lustre que conquistara esse elemento de estima. A sua biografia eram os seus livros, a sua arte era a sua prosápia. Não lhes quis misturar nada que pudesse parecer um apelo à benevolência dos seus contemporâneos em prol da exaltação do seu nome. Fazer reclamo da mesquinhez das suas origens, como é tão vulgar, lhe era profundamente antipático. Só a incapacidade de compreender natureza tão finamente aristrocrática como Machado de Assis e a esquisita nobreza destes sentimentos poderia reprochar-lhos.

Era dos engenhos privilegiados que, sentindo fortemente a vocação literária, com a clara consciência da necessidade de ajudá-la pela aplicação e trabalho, a si mesmo se educam. Fez-se ele próprio. Teria apenas freqüentado a ínfima escola primária da sua meninice, aprendido ao acaso das oportunidades algo mais do que ali lhe ensinaram, e lido assídua e atentamente. Precisando cuidar muito cedo de si, pois os pais, sobre paupérrimos, lhe morreram quando lhe começava a puberdade, trabalhou então, ao que parece, como sacristão da Igreja da Lampadosa, e depois caixeiro da pequena Livraria e Tipografia de Paula Brito, prazo dado dos escritores feitos ou por fazer da época. Talvez ali se iniciasse na arte tipográfica, que mais tarde parece exerceu como compositor na Imprensa Nacional. Desde 1856 pelo menos se encontram na Marmota Fluminense, «jornal de modas e variedades», editado e redigido por aquele singular, estimável e prestimoso amador das nossas letras que foi Paula Brito, e colaborado por nomes depois nela notáveis, alguns poemas seus. Tem o tom melancolicamente sentimental, a religiosidade romântica e também laivos de descrença, da poesia daquele decênio. É de crer que Machado de Assis houvesse versejado desde antes dessas datas. Depois da Marmota, encontram-se-lhe versos na Revista Popular e Jornal das Famílias, de Garnier, na Biblioteca Brasileira, de Quintino Bocaiúva, e no Diário do Rio de Janeiro, de 1862. Da redação deste jornal, em lugar subalterno, fez parte com Saldanha Marinho, Quintino Bocaiúva e outros já então ou depois conhecidos jornalistas. Entrementes aprendera o inglês, língua pouco vulgar aos nossos literatos e cuja literatura não teria concorrido pouco para ajudar a tendência natural de Machado de Assis ao humor, de que foi aqui o único mestre insigne. Também lhe daria o esquisito sentimento de decoro que distingue a sua obra, e o defendeu das influências do naturalismo francês. Em 1863, da tipografia daquele jornal saiu o seu primeiro livro, um folheto, Teatro de Machado de Assis. Constava de duas comédias em um ato, representadas ambas no ano anterior e prefaciadas por Quintino Bocaiúva, que parece ter sido, com Paula Brito, o seu introdutor na vida literária. Desde então Machado de Assis mostrava-se a figura extraordinária e, em toda a significação do termo, distinta que viria a ser nas nossas letras, tanto pelo seu engenho como pela sua elevação moral. Estreante, publicava uma obra já notável pelas qualidades de espírito e composição, para a qual o seu prefaciador desenganadamente declarava que lhe não achava jeito, e a publicava sem apelar desse juízo, acaso rigoroso. Fizera teatro não só porque o momento, o de maior florescimento do nosso, lho acoroçoava, mas por confessada ambição juvenil de ensaiar as forças nesse gênero que o atraía, cuidando que nas qualidades para ele se apurariam com o tempo e trabalho. Mas só em 1864, com as Crisálidas, é que verdadeiramente começa a sua vida literária, não mais como tentativa, senão como atividade nunca descontinuada. Vinte e dous poemas, escritos entre 1858 e 64, compunham essa coleção. Distinguiam-se pela emoção menos desbordante que o nosso comum lirismo e por um apuro de forma insólito na nossa poesia. À perfeição com que já manejava o alexandrino, verso ainda mal-aclimado na nossa língua, o pechoso cuidado que punha nos ritmos e rimas dos seus, para os fazer menos triviais e mais tersos sem perda da sonoridade, juntava-se o polido da língua e o escolhido da frase poética: Aspiração, que é de 1862, mormente Versos à Corina, de 1864, documentam este juízo. Tanto pelo valor do sentimento como da sua expressão, este último é uma das mais belas amostras do nosso lirismo. Como as obras verdadeiramente clássicas, isto é, que não são de ocasião ou de moda, tão vivo e novo hoje como à data da sua composição, há quase meio século. Estava-se ainda em pleno viço do subjetivismo e do sentimentalismo poético de Álvares de Azevedo e dos seus companheiros de geração, poesia de descrença e desconsolo, de desengano e tristeza, dominada pela idéia da morte. De todos esses poetas eram os versos, como dos seus dizia exatamente aquele, flores da sua alma, «murchas flores que só orvalha o pranto». Machado de Assis, que, pela mesquinha condição em que viera ao mundo, não devia ter sofrido e lutado menos do que eles, tem desde então o altivo pudor de não pôr a sua alma em público, de não fazer estendal da sua desgraça. A musa é para ele a «consoladora em cujo seio amigo e sossegado respira o poeta o suave sono, quando a mão do tempo e o hálito dos homens lhe tenham murchado a flor das ilusões e da vida». Este sentimento revigora-se no Prelúdio das Falenas, a sua segunda edição das poesias:

O poeta é assim: tem, para a dor e o tédio,

um refúgio tranqüilo, um suave remédio:

és tu, casta poesia, ó terra pura e santa!

Quando a alma padece, a lira exorta e canta;

e a musa que, sorrindo, os seus bálsamos verte,

cada lágrima nossa em pérola converte.



Não era das falazes costumeiras profissões de fé de poetas. Toda a sua vida literária, de um tão alevantado e peregrino no decoro, a confirma.

Vários são os motivos de inspiração nas Crisálidas desde as mais intensas emoções de poeta amoroso ou antes preocupado já, como nenhum outro aqui, do eterno feminino, e rasgos de pensamento que nos formosos tercetos de No Limiar, como nos belos alexandrinos de Aspiração, pressagiam o poeta perfeito das Ocidentais, até os temas subjetivos sentidamente idealizados do Epitáfio do México, de Polônia, de Monte Alverne. Mas nem naqueles havia o comum excesso de sentimentalismo, nem nestes algum exagero de idealismo, e uns e outros vinham estremes da moléstia constitucional da nossa poesia, a oratória.

Trazem certamente o cunho do tempo, porém com tal medida e acerto que, no seu encantador lirismo, muito nosso, nos são contemporâneos. É dos poucos de então que não envelheceram, isto é, que não precisam que nos ponhamos no diapasão do seu tempo para os sentirmos e estimarmos. Digam-no estas estrofes de Visio, que são de 64:

Eras pálida. E os cabelos,

aéreos, soltos novelos,

sobre as espáduas caíam...

Os olhos meio cerrados

de volúpia e de ternura

entre lágrimas luziam...

E os braços entrelaçados,

como cingindo a ventura,

ao teu seio me cingiam...

Depois, naquele delírio,

suave, doce martírio

de pouquíssimos instantes,

os teus lábios sequiosos,

frios, trêmulos, trocavam

os beijos mais delirantes,

e no supremo dos gozos

antes os anjos se casavam

nossas almas palpitantes...

Depois... depois a verdade,

a fria realidade,

a solidão, a tristeza;

daquele sonho desperto,

olhei... silêncio de morte

respirava a natureza, -

era a terra, era o deserto,

fora-se o doce transporte,

restava a fria certeza.

Desfizera-se a mentira:

tudo aos meus olhos fugira;

tu e o teu olhar ardente,

lábios trêmulos e frios,

o abraço longo e apertado,

o beijo doce e veemente;

restavam meus desvarios,

e o incessante cuidado,

e a fantasia doente.

E agora te vejo. E fria

tão outra estás da que eu via

naquele sonho encantado!

És outra, calma, discreta,

com o olhar indiferente,

tão outro o olhar sonhado,

que a minha alma de poeta

não ver se a imagem presente

foi a visão do passado.

Foi, sim, mas visão apenas;

daquelas visões amenas

que à mente dos infelizes

descem vivas e animadas,

cheias de luz e esperança

e de celestes matizes:

mas, apenas dissipadas,

fica uma leve lembrança,

não ficam outras raízes.

Inda assim, embora sonho,

mas, sonho doce e risonho,

desse-me Deus que fingida

tivesse aquela ventura

noite por noite, hora a hora,

no que me resta de vida,

que, já livre da amargura,

alma, que em dores me chora,

chorara de agradecida!



Há neles certamente o toque do tempo, e algo de garrettiano, mas também uma alma de verdadeiro poeta, que sobrevive à época.

Atividade poética de Machado de Assis se continuou com as Falenas em 1869, as Americanas em 1875 e as Ocidentais em 1902. Quer em verso, quer em prosa, a sua produção -outra singularidade deste singular escritor- sem ser nunca de improviso ou apressada, é contínua, sempre trabalhada e aperfeiçoada. Modesto por índole e por civilidade, tímido de temperamento, modéstia e timidez que encobriam grande energia moral e íntima consciência de sua capacidade, Machado de Assis, estranho a toda a petulância da juventude, estuda, observa, medita, lê e relê os clássicos da língua e as obras-primas das principais literaturas. Ao contrário de alguns notáveis escritores nossos que começaram pelas suas melhores obras e como que nelas se esgotaram, tem Machado de Assis uma marcha ascendente. Cada obra sua é um progresso sobre a anterior. Ou de própria intuição do seu claro gênio, ou por influência do particular meio literário em que se achou, fosse porque fosse, foi ele um dos raros senão o único escritor brasileiro do seu tempo que voluntariamente se entregou ao estudo da língua pela leitura atenta dos seus melhores modelos. Foram seus amigos e companheiros alguns portugueses escritores ou amadores das boas letras, como José de Castilho, Emílio Zaluar, Xavier de Novais, Manuel de Melo, o esclarecido filólogo de cuja casa e rica livraria foi habituado, Reinaldo Montoro, o bibliófilo Ramos Paz e outros. Nesta roda a língua se teria conservado mais estreme das corrupções americanas, seria melhor falada e mais estudada. Considerando-se, porém, que outros brasileiros que viveram e até se educaram em Portugal, nem por isso lucraram no seu português, mais que à influência dessa roda, ao seu íntimo sentimento literário e à sua intuição da importância da expressão na literatura, deveu Machado de Assis a excelência incomparável da sua. Sabia-se por confidência sua que, escasseando-lhe recursos para adquirir os clássicos, associou-se no Gabinete Português de Leitura para os ter consigo e extratá-los. Confirmando esta sua confissão, acharam-se-lhe no espólio literário numerosas notas e extratos dessas leituras. Sobretudo foi o único que soube ler os clássicos, mestres dobres e equívocos, com discernimento e finíssimo tato de escritor nato. Não aprendeu deles mais que a propriedade do dizer, o boleio castiço da frase, a lídima expressão vernácula, sem lhes tomar as fórmulas bárbaras repugnantes ao nosso gosto moderno, nem trasladar-lhes indiscretamente para os seus escritos -como impertinentemente fizeram Camilo Castelo Branco e Castilho- o vocabulário ou fraseado obsoleto. As Falenas justificam o seu título simbólico, nelas se desenvolvem as qualidades já manifestadas nas Crisálidas, notadamente as da forma poética, métrica, língua, estilo, esquisito dom de expressão, em que geralmente sobrelevam a poesia do tempo. Vinte anos antes do parnasianismo tinham já rasgos deste no sóbrio e requintado da emoção, no menor individualismo do poeta, que, ao contrário dos últimos românticos, seus contemporâneos, se escondia e se esquivava. Os temas pura ou demasiadamente subjetivos, as confissões impudentes do mais recôndito da sua alma, tão do gosto deles, cediam o passo a temas mais gerais, menos pessoais ou, quando o eram, tratados mais discretamente, com mais refinada sensibilidade. Algumas peças desta coleção, como as da Lira chinesa e Uma ode de Anacreonte, poemeto dramático em que finura da imaginação pede meças à rara formosura de expressão, descobrem um poeta em toda a força do seu talento. Musset e Lamartine, e também André Chenier, e mais Antônio de Castilho e Garrett, são então os seus principais mestres de poética. Nenhum, porém, com tal prestígio que lhe ofusque a originalidade própria. Outros mestres seus, dous poetas nossos por quem era grande a sua admiração, foram Basílio da Gama e Gonçalves Dias. Este, não obstante a diferença dos seus gênios, o impressionou grandemente. Porventura a essa impressão devemos atribuir a inspiração das Americanas, que, com o Evangelho das selvas, de Fagundes Varela, do mesmo ano, são a derradeira manifestação apreciável do indianismo da nossa poesia.

Escritor desde os seus princípios consciente e reflexivo, que nunca se deixou arrastar pelas modas literárias, e menos correu após a voga do dia, Machado de Assis, ainda cedendo à influência da inspiração americana, fê-lo com tão discreto sentimento e em forma tão pessoal e tão nova, que o seu indianismo, certamente inferior ao de Gonçalves Dias como emoção e expressão tocante, tem um sainete particular e uma generalidade maior, o que acaso lhe assegura um melhor futuro. «Algum tempo, escreveu ele na «advertência» das Americanas explicando o seu novo livro, foi de opinião que a poesia brasileira devia estar toda, ou quase toda, no elemento indígena. Veio a reação, e adversários não menos competentes que sinceros, absolutamente o excluíram do programa da literatura nacional. São opiniões extremas que, pelo menos, me parecem discutíveis.» E não as querendo discutir, limita-se a esta observação que dirimia definitivamente a questão, se, como me parece certo, o só critério da obra d'arte é o talento com que é realizada: «Direi somente que, em meu entender, tudo pertence à invenção poética, uma vez que traga os caracteres do belo e possa satisfazer as condições da arte. Ora, a índole dos costumes dos nossos aborígines estão muita vez neste caso; não é preciso mais para que o poeta lhes dê a vida da inspiração. A generosidade, a constância, o valor, a piedada, hão de ser sempre elementos da arte, ou brilhem nas margens do Scamandro ou nas do Tocantins. O exterior muda: o capacete de Ajax é mais clássico e polido que o canitar de Itajuba; a sandália de Calipso é um primor de arte que não achamos na planta nua de Lindóia. Esta é, porém, a parte inferior da poesia, a parte acessória. O essencial é a alma do homem.»

Este final compendia a estética de Machado de Assis. Poeta ou prosador, ele se não preocupa senão da alma humana. Entre os nossos escritores, todos mais ou menos atentos ao pitoresco, aos aspectos exteriores das cousas, todos principalmente descritivos ou emotivos, e muitos resumindo na descrição toda a sua arte, só por isso secundária, apenas ele vai além e mais fundo, procurando, sob as aparências de fácil contemplação e igualmente fácil relato, descobrir a mesma essência das cousas. É outra das suas distinções e talvez a mais relevante.

Da impressão que o indianismo havia feito na nossa mente, dá testemunho o fato deste mesmo arguto e desabusado espírito ter-se ainda deixado enganar por ele, e lhe haver também sacrificado. Mas ainda assim o seu sentimento não é o mesmo de Gonçalves Dias ou de Alencar. Tinha Machado de Assis mais espírito crítico que estes e menos sentimento romântico, e era de todo estranho a quaisquer influências ancestrais ou mesológicas que porventura atuaram nos dous, para que caísse completamente no engano do indianismo, como ainda sucedeu a Varela. Dos costumes, figuras, manhas e feições do índio e da sua vida que põe em poema, procura sobretudo descobrir a essência sob as exterioridades exóticas, e por ela revelar-lhe a alma. Ainda assim esta porção da sua obra é a menos estimável. Releva-a, porém, a sua interpretação poética dos temas e a formosura da expressão, nele singular. Dous ao menos desses poemas, e justamente aqueles que mais se afastam da fórmula indianista, nos quais a trivial descrição ou exposição de feitos e gestos indianos é substituída pela sua interpretação psicológica, Niani e última jornada, são de superior beleza poética e de rara feitura artística.

As Ocidentais, publicadas na edição das suas Poesias completas (1901), revêem a influência em Machado de Assis do modernismo, do qual, desde o seu citado artigo sobre a nova geração de poetas que se estrearam depois de 1870, ele dera tão exata definição. São, infelizmente, poucos os poemas cuja inspiração vem dessa nova corrente. O desfecho, Círculo vicioso, Uma criatura, Mundo interior, Suavi Mari Magnum, A mosca azul, No alto, mais os distintos quilates dessa poesia lhe ressarcem sobradamente a quantidade. Com todas as suas brilhantes e não raro tocantes qualidades de emoção, faltou sempre à poesia brasileira profundeza de sentimento. Viva, eloqüente até à facúndia, exuberante, colorida e vistosa, carece por via de regra de intensidade na sensação e de sobriedade na expressão. Não quero dizer que estas virtudes lhe faltem de todo, mas apenas que não são propriamente as suas. Machado de Assis é um dos poucos poetas nossos que as teve, e distintamente, e as manifestou, como já ficou notado, desde a sua estréia. Elas, principalmente sob o aspecto da profundeza, se lhes aperfeiçoaram nos citados poemas das Ocidentais. É ainda que aí ele não cedeu à moda do momento, nem acompanhou inconsideradamente, como fizeram tantos outros, a onda modernista. Apenas desenvolveu-se no sentido dela, que era o mesmo sentido que trazia o seu pensamento, o do ceticismo sem desespero e do pessimismo benevolente, ambos de raiz. Mais que sinais, amostras de ambos encontram-se já nas suas coleções anteriores. O que, distinção raríssima, acaso única, se não encontra em nenhum destes poemas é a indiscreta transplantação para a poesia de cousas científicas ou filosóficas ou algo da respectiva gíria. Tudo nele, como no verdadeiro poeta, se faz sentimento e sensação e como tal se exprime, e em forma que é, sem o rebuscado do Parnasianismo, porventura a mais perfeita alcançada pela nossa poesia.

Poeta dos mais importantes da literatura brasileira, é Machado de Assis o mais insigne dos seus prosadores e, no domínio que lhe é próprio, a ficção romanesca, o maior dos nossos escritores. Não é somente um escritor vernáculo, numeroso, disserto e elegantíssimo. Às qualidades de expressão que possui como nenhum outro, junta as de pensamento, uma filosofia pessoal e virtudes literária muito particulares, que fazem dele um clássico, no mais nobre sentido da palavra, -o único talvez da nossa literatura.

Como prosador compreende a sua obra, além de numerosos livros de conto, romances, teatro, crítica e crônicas jornalísticas. Do conto foi ele, se não o iniciador, um dos primeiros cultores e porventura o primacial escritor na língua portuguesa.

Efetivamente ninguém jamais nesta contou com tão leve graça, tão fino espírito, tamanha naturalidade, tão fértil e graciosa imaginação, psicologia tão arguta, maneira tão interessante e expressão tão cabal, historietas, casos, anedotas de pura fantasia ou de perfeita verossimilhança, tudo recoberto e realçado de emoção muito particular, que varia entre amarga e prazenteira, mas infalivelmente discreta. Histórias de amor, estados d'alma, rasgos de costumes, tipos, ficções da história ou da vida, casos de consciência, caracteres, gente e hábitos de toda a casta, feições do nosso viver, nossos mais íntimos sentimentos e mais peculiares idiossincrasias, acha-se tudo superior e excelentemente representado, por um milagre de transposição artística, nos seus contos. E sem vestígio de esforço, naturalmente, num estilo maravilhoso de vernaculidade, de precisão, de elegância.

No romance estreou Machado de Assis, em 1872, com o já citado Ressurreição. A grande novidade deste romance era não ser senão o primeiro de análise de caracteres e temperamentos, o primeiro ao menos que com este só propósito aqui se escrevia. Não trazia vislumbre de intencional brasileirismo vigente. Ao invés declaradamente apontava a outra cousa que o romance de costumes. O interesse do livro era deliberadamente procurado no «esboço de uma situação e no contraste de dois caracteres». Alencar com Cinco minutos, A viuvinha (1856), aliás simples novelas, Lucíola (1862) e Diva (1864), e o mesmo Manoel de Almeida com o Sargento de milícias (1857) podem em rigor cronológico ser considerados os precursores do nosso romance da vida urbana ou mundana, da pintura de caracteres e situações e que estes se encontram e definem, ou mesmo do romance que ao tempo ainda se chamava de fisiológico e que depois se chamaria de psicológico. Mas o seu criador, pela arte consciente e engenho com que já o fez em Ressurreição, e o ensaiara com bom sucesso nos contos e novelas que precederam este livro, foi Machado de Assis. Neste mesmo romance, como naquelas ficções menores, embora refugissem ao particularismo nativista, havia já uma notação exata, ou antes uma clara intuição das nossas íntimas peculiaridades nacionais. O sempre progressivo exercício desta faculdade de análise do ambiente, estreme das suas fáceis representações pitorescas, fariam de Machado de Assis não obstante o seu desprendimento do brasileirismo, qual o entendiam aqui, porventura o mais intimamente nacional dos nossos romancistas, se não procurarmos o nacionalismo somente nas exterioridades pitorescas da vida ou nos traços mais notórios do indivíduo ou do meio. Como o que sobretudo lhe interessa é a alma das cousas e dos homens, é ela que ele procura exprimir e que geralmente exprime com insigne engenho e arte. Ainda em algum tipo, episódio, ou cena de pura fantasia, nunca a ficção de Machado de Assis afronta o nosso senso da íntima realidade. Assim, por exemplo, nesse conto magnífico O Alienista ou nessoutra jóia Conto alexandrino, como na admirável invenção de Brás Cubas, e todas as vezes que a sua rica imaginação se deu largas para fora da realidade vulgar, sob os artifícios e os mesmos desmandos da fantasia, sentimos a verdade essencial e profunda das cousas, poderíamos chamar-lhe um realista superior, se em literatura o realismo não tivesse sentido definido.

Havia entretanto no primeiro romance de Machado de Assis e ainda mais talvez nos que mais de perto o seguiram, A mão e a luva (1874), Helena (1876), visíveis ressaibos de romantismo senão do Romantismo. Temperava-os, porém, já, diluindo-os num sabor mais pessoal e menos de escola, e sua nativa ironia e a sua desabusada visão das cousas, que o forravam ao romanesco, à sentimentalidade amaneirada que tanto viciou e desluziu a nossa ficção. E, mais dons de expressão em que ficou até agora único e que, sob este aspecto ao menos, o sobrelevam a todos os nossos escritores, e, não receio dizê-lo, ainda aos portugueses seus contemporâneos.

Em 1881, com as Memórias póstumas de Brás Cubas atingia Machado de Assis o apogeu do seu engenho literário, num romance de rara originalidade, uma obra, a despeito do seu tom ligeiro de fantasia humorística, fundamente meditada e fortemente travada em todas as suas partes, porventura a mais excelente que a nossa imaginação já produziu. As Memórias póstumas de Brás Cubas são a epopéia da irremediável tolice humana, a sátira da nossa incurável ilusão, feita por um defunto completamente desenganado de tudo. Desde a sua cova conta-nos Brás Cubas, numa língua primorosa de simplicidade, a sua vida do nascimento à morte, a sua família, a sua educação, o seu meio, os seus primeiros namoros de rapaz e amores de homem, as suas ambições, os seus amores adulterinos com certa Virgília, enfim, quanto na vida sequer um momento o interessou ou ocupou de modo a impressionar-lhe a memória e o entendimento. E só estas faculdades se deixaram nele tocar por tais sucessos. Viu Brás Cubas, ainda pressentiu a vaidade de tudo, e como ao cabo todas as cousas são naturais, necessárias, determinadas por um conjunto de condições que não são essencialmente nem boas, nem más, e pelas quais é sábio não nos abalarmos, não se deixou jamais comover. No fundo de tudo há sempre um todo nada de ridículo, de comédia, de falsidade, de fingimento, de cálculo. Tolo é quem se deixa enganar com as aparências, «empulhar», segundo o verbo muito do gosto de escritor. Mas a humanidade, a sociedade, é assim feita e não há revoltar-nos contra ela e menos querê-la outra. A vida é boa, mas com a condição de não a tomarmos muito a sério. Tal é a filosofia de Brás Cubas, decididamente homem de muitíssimo espírito. Ele viveu quanto pode, segundo este seu pensar, e se com o seu pessimismo conformado e indulgente não se achou logrado «ao chegar ao outro lado do mistério», foi porque verificou um pequeno saldo no balanço final da sua existência. «Não tive filhos, -escreveu na última página das suas Memórias,- não transmiti a nenhuma criatura o legado da nossa miséria.»

Desta arriscada repetição do velho tema da vaidade de tudo e do engano da vida, a que o Eclesiaste bíblico deu a consagração algumas vezes secular, saiu-se galhardamente Machado de Assis. Transportando-o para o nosso meio, incorporando-o no nosso pensamento, ajustando-o às nossas mais íntimas feições, soube renová-lo pela aplicação particular, pelos novos efeitos que dele tirou, pelas novas faces que lhe descobriu e expressão pessoal que lhe deu.

As Memórias póstumas de Brás Cubas eram o rompimento tácito, mais completo e definitivo de Machado de Assis, com o Romantismo sob o qual nascera, crescera e se fizera escritor. Aliás conquanto necessariamente lhe sofresse a influência, nunca jamais se lhe entregara totalmente nem lhe sacrificara o que de pessoal e original havia no seu engenho, e acharia em Brás Cubas a sua cabal expressão. A sua primeira obra de contador, Histórias da meia-noite (1869), Contos fluminenses (1873), com os seus primeiros livros de romancista, o já nomeado Ressurreição, A mão e a luva (1874), Helena (1876), Iaiá Garcia (1878), traziam ressaibos românticos, embora atenuados pelo congênito pessimismo e nativa ironia do autor. Ora o Romantismo não comportava nem a ironia nem o pessimismo, na forma desenganada, risonha e resignada de Machado de Assis. Mas os contos que sucederam imediatamente àqueles, Papéis avulsos (1882), Histórias sem data (1884), Várias histórias (1905), muitos deles anteriores a Brás Cubas, trazem já evidente o tom deste. Desde, portanto, os anos de 70, renunciando ao escasso Romantismo que nele havia, criava-se Machado de Assis uma maneira nova, muito sua, muito particular e muito distinta e por igual estreme daquela escola e das novas modas literárias. Nessa maneira, particularmente em Brás Cubas e em Quincas Borba (1891), que se lhe seguiu e que a certos respeitos o continua, vislumbra-se mais do que se percebe, o remoto influxo dos humoristas ingleses, e antes dos seus processos formais que do fundo, que este é de raiz do autor. Com a escrupulosa probidade literária que foi uma das suas virtudes, ele próprio o publicou no prefácio do primeiro. Em Dom Casmurro (1899), em Esaú e Jacó (1904) e sobretudo em Memorial de Aires (1908), o seu último livro, desaparecem esses laivos de influência peregrina. Como correspondessem perfeitamente à sua própria índole literária, transubstanciaram-se-lhe no engenho e estilo.

Com a variedade de temas, de enredos de ações, de episódios, que distinguem cada romance de Machado de Assis no conjunto de sua obra, há em todos uma rara unidade de inspiração, de pensamento e de expressão. Todos, porém, representam, talvez com demasiado propósito, mas sem excesso de demonstração, a tolice e a malícia humanas. É este o tema geral, e ao mesmo tempo o duende, o espantalho do escritor. Ele descobriu esses estigmas e os expôs sob todas as suas faces e modalidades, até ao amor paterno ou na ternura materna, nas ações mais sublimes e nos atos mais corriqueiros, e não por um propósito também malicioso ou simplesmente literário, mas porque os seus olhos de artista -o que pode ser uma inferioridade ou um defeito- não os viam senão assim, e a sua íntima sinceridade lhe não permita modificar a própria visão por comprazer com o gosto vulgar. Mas como a sua faculdade mestra é a imaginação humorística, isto é, a visão pessimista das cousas, através da inteligência da sua necessidade e contingência e do sentimento da nossa importância contra elas, as viu com risonho desdém ou com irônica benevolência. Essa visão ele a tem agudíssima, e a sua análise das almas sem alguma presunção de psicológica, antes desdenhosa do epíteto, tem uma rara percepção dos seus mais íntimos segredos. Dom Casmurro é exemplo desta sua superior faculdade de romancista, comprovada aliás em toda a sua obra. É o caso de um homem inteligente, sem dúvida, mas simples, que desde rapazinho se deixa iludir pela moça que ainda menina amara, que o enfeitiçara com a sua faceirice calculada, com a sua profunda ciência congênita de dissimulação, a quem ele se dera com todo ardor compatível com o seu temperamento pacato. Ela o enganara com o seu melhor amigo, também um velho amigo de infância, também um dissimulado, sem que ele jamais o percebesse ou desconfiasse. Somente o veio a descobrir quando lhe morre num desastre o amigo querido e deplorado. Um olhar lançado pela mulher ao cadáver, aquele mesmo olhar que trazia «não sei que fluido misterioso e enérgico, uma força que arrastava para dentro, como a vaga que se retira da praia, nos dias de ressaca», o mesmo olhar que outrora o arrastara e prendera a ele e que ela agora lança ao morto, lhe revela a infidelidade dos dois. Era impossível em história de um adultério levar mais longe a arte de apenas insinuar, advertir o fato sem jamais indicá-lo. Machado de Assis é, com a justa dose de sensualismo estético indispensável, um autor extremamente decente. Não por afetação de moralidade, ou por vulgar pudicícia, mas em respeito da sua arte. Bastava-lhe saber que a obscenidade, a pornografia, seriam um chamariz aos seus livros, para evitar esse baixo recurso de sucesso, ainda que a fidalguia nativa dos seus sentimentos não repulsasse tais processos.

Porque este sujeito tímido, apagado, pequenino, modesto, que parecia deslizar na vida com a preocupação de não incomodar a ninguém, de não ser molesto a pessoa alguma, era, de fato, um homem com energias íntimas, caladas, recônditas, mas invencíveis. Assim como fazer-se uma posição social, nunca transigiu com a sociedade e suas mazelas, também nunca, como escritor, condescendeu com as modas literárias que não dissessem com o seu temperamento artístico, ou seguiu por amor da voga as correntes mais no gosto do público. A este pode afirmar-se que não fez em toda a sua obra a menor concessão.

Já velho, com sessenta e oito anos, e não foi jamais robusto, escreveu ainda um livro admirável, o Memorial de Aires, inspirado na saudade da esposa e companheira muito amada, já chorada no sublime soneto que antepusera às Relíquias de casa velha, o primeiro que deu à luz depois da morte dela. Memorial de Aires é talvez o único livro comovido, de uma comoção que se não procura esconder ou disfarçar e de emoção cordial e não somente estética, que escreveu Machado de Assis. Com a peregrina arte de transposição que possuía e que só revelaria plenamente a história de seus livros, mas que podemos avaliar pelo pouco que dela sabemos, idealizou Machado de Assis, num suave romance contado por terceiro, um velho diplomata espirituoso e desenganado, o Conselheiro Aires, o seu palácio e feliz viver doméstico. Não que o indicasse ou sequer o insinuasse. Descobriram-no os que lhe conheceram a vida, e eram bem poucos, pois nunca se «derramou» e odiava os «derramados», na emoção nova que discretamente, sobriamente, recatadamente, como que receosa de profanar na publicidade cousas íntimas e sagradas, aparecia nesse delicioso livro, um dos mais tocantes da nossa literatura.

As estréias literárias de Machado de Assis coincidiram com o melhor momento do nosso teatro em toda a evolução da nossa literatura, entre os anos de 50 e 70, particularmente o decênio intermédio. Os melhores dos nossos literatos de então escreveram para o teatro e acharam quem os representasse e quem os fosse ouvir, o que nunca mais aconteceu depois. A nossa bibliografia teatral dessa época é a mais copiosa de toda a nossa literatura, e havia pelo teatro nacional interesse e curiosidade que depois desapareceu de todo, com a concorrência do teatro estrangeiro importado por companhias alienígenas. A influência do momento e o gosto que pessoalmente tinha pelo teatro, mais que decidida vocação, levaram Machado de Assis a tratá-lo. Com a segura consciência que do seu próprio engenho tinha, ele próprio mal se iludira sobre a sua aptidão para o teatro. Numa carta-prefácio de suas peças publicadas em 1863, O caminho da porta e O protocolo, confessava, podemos crer que sinceramente: «Tenho o teatro por cousa muito séria e as minhas forças por cousa insuficiente; penso que as qualidades necessárias ao autor dramático desenvolvem-se e apuram-se com o tempo e o trabalho...» Sem dúvida, mas as qualidades, sobretudo as inferiores, as habilidades do ofício de autor dramático, a acomodação ao gosto público e à perspectiva particular da rampa, uma porção de dons somenos, mas essenciais ao bom sucesso na arte inferior que é o teatro, faltavam a Machado de Assis. No teatro nunca pode ele passar de composições ligeiras, ao gosto de «provérbios» franceses, sainetes, contos porventura espirituosamente dialogados, algumas encantadoras de graça fina e elegante estilo, mas sem grande valor teatral. Tais são os Deuses de casaca, comédia levemente satírica da nossa vida social e política, em formosos alexandrinos, em que se revê a influência de Castilho; Tu, só tu, puro amor, pequena obra-prima, alguma cousa como uma deliciosa figurinha de Tânagra no meio das esculturas de Fídias; Não consultes médico, sainete digno de Musset. Tudo, porém, não passava de um ano, excelente como literatura amena para deleitar-nos uma hora, mas sem a ação, a força, a emoção que deve trazer a obra teatral. Basta que esta por sua mesma natureza se enderece a uma platéia, que será sempre em maioria composta de ignaros ou simples, para que lhe não bastem as qualidades propriamente literárias.

Como crítico, Machado de Assis foi sobretudo impressionista. Mas um impressionista que, além da cultura e do bom gosto literário inato e desenvolvido por ela, tinha peregrinos dons de psicólogo e rara sensibilidade estética. Conhecimento do melhor das literaturas modernas, inteligência perspicaz desabusada de modas literárias e hostil a todo pedantismo e dogmatismo, comprazia-lhe principalmente na crítica a análise da obra literária segundo a impressão desta recebida. Nessa análise revelava-se-lhe a rara finura e o apurado gosto. Que não era incapaz de outra espécie de crítica em que entrasse o estudo das condições mesológicas em que se produziu a obra literária, deu mais de uma prova. Com o fino tato literário e reflexivo juízo, que o assinalam entre os nossos escritores, no ensaio crítico atrás citado sobre o Instituto da nacionalidade, na nossa literatura ajuizou com acerto, embora com a benevolência que as mesmas condições da sua vida literária lhe impunham, os seus fundadores e apontou com segurança os pontos fracos ou duvidosos de certos conceitos literários aqui vigentes, emendando o que neles lhe parecia errado e aventando opiniões que então, em 1873, eram de todo novas. Ninguém, nem antes nem depois, estabeleceu mais exata e mais simplesmente a questão do indigenismo da nossa literatura, nem disse cousas mais justas do indianismo e da sua prática.

Em suma Machado de Assis, sem ter feito ofício de crítico, é como tal um dos mais capazes e mais sinceros que temos tido. Respeitador do trabalho alheio, como todo o trabalhador honesto, mas sem confundir esse respeito com a condescendência camaradeira, estreme de animosidades pessoais ou de emulações profissionais, com o mínimo dos infalíveis preconceitos literários ou com a força de os dominar, desconfiado de sistemas e assertos categóricos, suficientemente instruído nas cousas literárias e uma visão própria, talvez demasiadamente pessoal, mas por isso mesmo interessante da vida, ninguém mais do que ele podia ter sido o crítico cuja falta lastimou como um dos maiores males da nossa literatura. Em compensação deixou-lhe um incomparável modelo numa obra de criação que ficará como o mais perfeito exemplar do nosso engenho nesse domínio.