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Capítulo XIV

De como o ouvidor-geral foi da Paraíba a Copaíba

Da cidade de Nossa Senhora das Neves, onde o ouvidor-geral Martim Leitão deixou Pero de Albuquerque por capitão em quatro jornadas, chegou a grande cerca de Penacama, que era um grande e principal Potiguar, aonde Duarte Gomes da Silveira havia ido o outubro atrás, e depois de lhe suceder muito bem, ao recolher lhe mataram oito ou dez homens, que foi a maior perda que esta empresa da Paraíba teve depois de correr por Martim Leitão, e que ele em extremo sentiu; porque além das guerras, que todos estes anos lhes dava por sua pessoa, sempre lhe mandava dar outros assaltos, assim pelo dito Duarte Gomes como pelo capitão João Tavares e outras pessoas nesta jornada foi infinito o trabalho, principalmente o da água, que não havia senão de muito ruins poços, pouca, e tão fedorenta, que era necessário com uma mão tapar o nariz, com a outra beber.

Desta cerca marcharam para a Copaíba direitos, onde ao segundo dia pela manhã deram com outra dos inimigos, e por o nosso gentio dar o seu urro primeiro que entrasse, fugiram alguns, ainda que se fez incrível matança, e se tomaram 70 ou 80 vivos; aos fugidos foram dando alcance por uma parte, e por outra mais de uma légua até outra grande cerca, que estava despejada, na qual quis o nosso gentio descansar dois dias, e assim era necessário para o grande trabalho do caminho, que tinham passado, e por acharem ali rio de água, ainda que logo sobre ela começou de haver briga por acudirem os inimigos a defendê-la, ajudados dos sítios, porque esta Copaíba aonde estavam é toda feita em altibaixos de montes e abismos, e contudo, contra a regra geral do Brasil, é tudo massapés, e fertilíssima; pela qual causa havia nela cinqüenta aldeias de Potiguares, todas pegadas umas nas outras: ao outro dia pela manhã começou de recrescer a briga sobre a água, ainda que os nossos tinham ordem não fossem senão juntos, e a uma hora certa a buscá-la, e a dar de beber aos cavalos, acompanhados sempre com 10 ou 12 arcabuzeiros de guarda, todavia cresceram muitos inimigos, e tinham já feito uma caiçara sobre dia, que o ouvidor-geral lhes mandou desmanchar por Duarte Gomes com alguma gente: e porque começaram a flechar, e se recolheram, assentou com o Braço que à tarde lhes lançasse uma cilada por cima, tornando-se primeiro a travar a briga, em que bem cevados lhes dessem nas costas, e saindo a isso o Braço à tarde se alvoroçou o arraial dizendo estavam muitos inimigos sobre a água, saindo fora o ouvidor-geral, e vendo que da outra parte do rio, na ladeira, andavam dez ou doze nossos muito apertados, que não ousavam virar as costas, e carregavam sobre eles muitas flechas, e pelouros, mandou que fossem sete ou oito de cavalo socorrê-los com Francisco Pereira, que só passou, e Simão Tamares, e deitaram fora os inimigos, e recolheram os nossos com um já morto, e outro quase, e todos feridos de flechas e espingardas, e Francisco Pereira pior, que o fez aqui como bom cavaleiro, e João Tavares foi recolher o Braço de Peixe, que neste tempo mandou recado lhe acudissem, porque indo para fazer cilada aos inimigos, caíra primeiro em uma sua, e o tinham posto em aperto; com isto começou a entrar um medo espantoso em todos, e à noite foi avisado o ouvidor-geral em segredo por João Tavares estavam mais de 20 dos mais honrados ajuramentados para fugirem, ao que acudiu o ouvidor-geral fazendo-lhe uma fala de mil esforços, e outras diligências, com que lhes desfez a roda, e se assentou se desse pela manhã com boa ordem nos inimigos, para o que mandou aquela noite das tábuas de algumas caixas, que se acharam, fazer 10 paveses, detrás das quais os medrosos pudessem ir seguros, com o que animados todos / deixando primeiro queimado tudo, como sempre fizeram a todas as cercas, e aldeias que tomaram /, foram pela manhã buscar os inimigos, os quais estavam à vista em três tranqueiras, que eles armaram nos piores passos, umas diante das outras; e por na primeira tranqueira ou caiçara do rio haver detença pela moita resistência que acharam, passou lá o ouvidor-geral, e dando-lhes muita pressa, como quem entendia que nisto estava a importância, com sua chegada se levou sem nos ferirem pessoa, e com a mesma fúria remeteram a segunda, que era entulhada de terra em um vale, e lançando-se uma boa manga por um outeiro acima, ficando as outras duas no baixo; vendo os inimigos três mangas, e os braços que a meneavam, se assombraram de todo, que nem na terceira cerca pararam, ainda que não subiam os nossos a ela senão de pés e mãos, e sempre lhes custava muito, a se não terem lançado as mangas, que foi gentil ordem do ouvidor-geral, que nesta ocasião trabalhou muito, e nesta manhã cansou três cavalos, porque queria ver, e estar presente em toda a parte; e assim os ajudou Deus, e foram seguindo os inimigos mais de meia légua, até chegarem a uma aldeia, onde fizeram grande resistência, todo por salvarem as mulheres, e filhos que ali tinham, com que o negócio esteve em peso, porque três ou quatro vezes se viu a nossa vanguarda quase vencida, até que chegou o corpo da nossa gente com o ouvidor-geral, e carregando rijo os levaram vencidos, com mais três ou quatro aldeias, que no mesmo dia lhe foram destruindo, até se irem aposentar em um alto, donde viam trinta e tantas em menos de uma légua, que os inimigos com medo tinham despejado, e iam ardendo, sendo infinitos em número, e os nossos só 140, e 500 índios flecheiros.

Capítulo XV

De como destruída a Copaíba foram ao Tujucupapo

Daqui se partiram em busca do Tujucupapo, que o ano atrás lhe havia fugido, e caminhando dois dias, virando abaixo ao mar ao terceiro dia pela manhã deu a vanguarda em uma mui poderosa cerca, onde pela bandeira e tambor conheceram haver franceses com os Potiguares, do que logo avisaram ao ouvidor-geral, o qual quando chegou achou a bandeira do capitão João Tavares, que o fez aqui tão animosamente como sempre, porque à sua ilharga tinham morto três homens com piedosas feridas de pelouros de cadeia, que os tinham escalados, e contudo sempre sustentou a sua bandeira pegado à cerca em uma fronteira, na qual ele, e o sargento Diogo Arias, espantoso soldado que nesta jornada tinha recebido 14 flechadas, ganharam cada um sua seteira ou bombardeira aos inimigos, por onde umas vezes com as espadas, outras com os arcabuzes, os faziam despejar dali.

O ouvidor, não obstando os grandes chuveiros, e nuvens de flechas, e pelouros, que dos inimigos nunca cessavam, tomando alguns consigo, que o quiseram seguir, e agachando-se como podiam, chegou à cerca pela banda de baixo, que por aquele confiados os inimigos na espessura do mato era mui fraca, e entulhada de terra e palma, e a começaram a desfazer, ainda que os inimigos logo ali acudiram de dentro com uma espingarda, e muita flecha, com que feriram o meirinho da alçada, a Heitor Fernandes, e outros; contudo Martim Leitão foi o primeiro que rompeu a cerca, cortando com a espada os cipós ou vimes com que estava liada, e fazendo buraco por onde se meteu, e posto que de boa entrada com um pau feitiço lhe feriram uma mão, de que lhe rebentou o sangue pelas unhas; à vista dele, como elefante indignado, se lançou dentro com Manuel da Costa, natural de Ponte de Lima, que o acompanhava, o que vendo os inimigos, derrubaram de duas ruins flechadas a Manuel da Costa, e com outras duas deitaram a carapuça de armas fora da cabeça ao ouvidor-geral, que só lhe ficou pendurada pelo rebuço de diante, e com muitas flechadas pregadas na adarga, pôs o joelho no chão para se desembaraçar das flechas, e cobrir a cabeça, ao que acudiu golpe de gentio para o tomarem às mãos, porque o não quiseram matar pelo conhecerem, e desejarem levá-lo vivo para testemunha de sua vitória, e triunfo, mas só o feriram a mão tente em uma coxa; ele vendo neste último transe da vida se levantou manquejando, mas furiosamente, e chegando-se a Manuel da Costa, seu amigo, para o defender, os fez afastar, por verem também a este tempo entrar já outros, dos quais o primeiro foi o alcaide de Pernambuco Bartolomeu Álvares, feitora do mesmo Martim Leitão, que bem lho pagou ali, e ajudou como mui valente, e esforçado soldado que era africano.

O mesmo fizeram os mais, que entraram após ele com tanto valor e esforço que foram os inimigos despejando a cerca, sendo os franceses os primeiros: com o que gritando os nossos de dentro vitória, entraram os de fora, uns por uma parte, outros por outra, sem tratarem mais senão de se abraçarem uns aos outros com lágrimas de contentamento da mercê que lhe Deus fez, e não seguiram muito os inimigos, porque passada a fúria todos tinham que curar, e fazer consigo assaz, por ficarem quarenta e sete feridos, e três mortos do nosso arraial: do contrário também ficou morto algum gentio, que levavam às costas, como costumam, e o alferes francês, que na cerca ficou estirado com a sua bandeira e tambor, que se levaram para a Paraíba: porém apenas se começavam a curar os feridos, quando foi necessário deixá-los, por se ouvir uma grande grita, e alarido de Potiguares, que vieram de socorro a estoutros, e a virem mais cedo um pouco espaço não houvera remédio contra eles, os quais deram ainda em alguns da nossa retaguarda, mas vendo que eram fugidos os seus da cerca, e os nossos que dela vinham acudindo, também fugiram.

Eram tantas, e tais as feridas, mormente de pelouros, que os franceses, que com os negros estavam na cerca, tiravam, que todo o restante do dia se gastou na cura dos feridos: na qual o ouvidor andou provendo com muita vigilância, e caridade, porque para tudo ia apercebido de botica, e por respeito deles, falta de pólvora, e outros inconvenientes que havia, se assentou queimassem o pau que ali se achou, voltassem por outro caminho o seguinte dia pela manhã, como fizeram com boa ordenança, buscando a Paraíba com assaz trabalho, guiados pelo sol, porque ninguém sabia aonde estava, e assim se agasalharam ao longo de um ribeiro pequeno aquela primeira noite da jornada como cada um pôde.

No segundo dia de caminho marchando, em amanhecendo os salteou o gentio por duas partes a provar como iam, mas rebatendo-os fugiram com seu dano, e os nossos sem algum por suas jornadas chegaram à Paraíba, onde todos foram recebidos como mereciam.

Capítulo XVI

De como despedida a gente o ouvidor-geral fez o forte de S. Sebastião

Logo naquela semana se aviou o ouvidor-geral para por mar ir à baía da Traição dar nas naus francesas, que lá estavam, e para isto tinha mandado vir caravelões com que de noite, a remos, os determinava saltear, por já irem faltando as munições para naus grandes irem de Pernambuco à Paraíba; porém sendo certificado que os franceses, por lhe haverem queimado a carga de pau-brasil, haviam já ido com as naus vazias, despediu a gente toda, ficando ele somente com os seus oficiais, e Pedro de Albuquerque, e Francisco Pereira, que ainda estava mal das feridas, e no fim do mês de janeiro de mil quinhentos e oitenta e sete se foi ao rio Tibiri, duas léguas acima da cidade, ao longo da várzea da Paraíba, fazer um forte para o engenho de açúcar de el-rei, que já estava começado, e para defender a aldeia do Assento de Pássaro, e mais fronteiras, com o que se segurava tudo, e se povoaria a várzea, e assim o ordenou, e fez muito em breve de cem palmos de vão, de muito grossas vigas muito juntas, e forradas de entulho de cinco palmos de largo, e de altura de nove, donde podia pelejar a gente amparada com o muro de fora, que era mais de vinte e dois em alto, de taipa dobrada de mão muito forte, e do alto vinha o teto cobrindo o andaime, e casas que se fizeram a roda para agasalho da gente, com duas grandes guaritas em revés sobradadas, e uma torre no meio com grandes portas para o rio Tibiri.

Feito este forte, que por o haver começado dia de S. Sebastião o chamou do seu nome, e assentada nele a artilharia, abertos os caminhos, e tudo acabado, como se houvera de viver ali toda a sua vida, ou o fizera para si, e seus filhos, se partiu na segunda semana do mês de fevereiro para Pernambuco, já achacado de algumas febres, que com seu fervor, e incansável espírito havia passado em pé, e chegando à casa se não levantou mais de uma cama os três meses seguintes, e não foi muito com tantas calmas, chuvas, guerras, e trabalhos como havia padecido.

Capítulo XVII

De uma grande traição, que o gentio de Sergipe fez aos homens da Bahia, e a guerra que o governador fez aos Aimorés

Grande contentamento recebeu o governador geral Manuel Teles Barreto com as boas novas do sucesso destas guerras, e conquista, por ver a boa eleição que fizera em mandar a elas o ouvidor-geral Martim Leitão: mas como todos os contentamentos do mundo são aguados, o foi também este com uma grande traição, e engano, que lhe fez o gentio de Sergipe, dizendo que se queriam vir para esta Bahia à doutrina dos padres da Companhia de Jesus, e tomando-os por isto por intercessores, e terceiros com o governador, para que lhes desse soldados, que os acompanhassem, e defendessem no caminho de seus inimigos, se lho quisessem impedir; fez o governador sobre isto uma junta de oficiais da Câmera, e outras pessoas discretas, onde o primeiro que votou foi Cristóvão de Barros, provedor-mor da Fazenda, dizendo, como experimentado nas traições dos gentios, que se lhes respondesse que se queriam vir viessem embora, e seriam bem recebidos, e favorecidos em tudo, mas que lhes não davam soldados, porque lhes não fizessem alguns agravos, como costumam, e o mesmo votaram os mais experimentados; porém pôde tanto a importunação, e autoridade dos terceiros, alegando a importância da salvação daquelas almas, que se queriam vir ao grêmio da Santa Madre Igreja, que o bom governador lhes veio a conceder o que pediam, e lhes deu cento e trinta soldados brancos, e mamalucos, que os acompanhassem, com os quais, e com alguns índios das aldeias, e doutrinas dos padres se partiram mui contentes os embaixadores, mandando diante aviso aos seus que os viessem esperar ao rio Real, como vieram, e os passaram em jangadas a outra parte, onde estavam com tijupares feitos ou cabanas, em que os agasalharam, vindo as velhas à pranteá-los, que é o seu sinal de paz e amizade, e o pranto acabado lhes administraram os nossos seus guisados de legumes, caças, e pescados, não se negando também elas aos que as queriam, nem lho proibindo seus pais, e maridos, sendo aliás muito ciosos, que foi mui ruim sinal, e assim o significaram alguns escravos dos brancos a seus senhores, mas nem isto bastou para que se lhes não entregassem de modo como se foram suas legítimas mulheres, e nesta forma caminharam por suas jornadas mui breves, e descansados até Sergipe, e se posentaram nas suas aldeias repartidos por suas casas e ranchos com tanta confiança, como se estiveram nesta cidade em suas próprias casas, deixando as armas às concubinas, e indo-se a passear de umas aldeias para as outras com um bordão na mão, as quais lhe entupiram os arcabuzes de pedras e betume, e tomando-lhes a pólvora dos frascos lhos encheram de pó de carvão, e feito isto vieram uma madrugada gritando aos nossos que se armassem, que vinha outro gentio seu contrário, sendo que eles mesmos eram os contrários, e como os nossos estivessem tão descuidados, e se não pudessem valer das armas, ali foram todos mortos como ovelhas ou cordeiros, sem ficarem vivos mais que alguns índios dos padres, que trouxeram a nova, a qual o governador sentiu tanto, que quisera ir logo pessoalmente tomar vingança, e para, este efeito escreveu a Pernambuco ao capitão-mor, que então era d. Filipe de Moura, e a Pero Lopes Lobo, capitão-mor de Itamaracá, que se fizessem prestes com toda a gente, que pudessem trazer, para por uma parte, e por outra os combaterem, posto que depois, impedido da sua muita idade, e indisposição, lhes rescreveu que não viessem, antes fossem socorrer a Paraíba.

Também neste tempo se levantou outro gentio chamado os Aimorés na capitania dos Ilhéus, que a pôs em muito aperto, do que sendo avisado o governador, ordenou que fossem Diogo Corrêa de Sande e Fernão Cabral de Ataíde, que possuíam muitos escravos, e tinham aldeias de índios forros, a ver se lhes podiam dar com eles alguns assaltos, dando-lhes mais os soldados das suas guardas com seus cabos Diogo de Miranda, e Lourenço de Miranda, ambos irmãos, e castelhanos, os quais foram todos de Juguaripe por terra ao Camamuré Tinharé, e lhes armaram muitas ciladas, mas como nunca saíam a campo a pelejar senão à traição, escondidos pelos matos, mui poucos lhes mataram, e eles flecharam também alguns dos nossos índios.

Capítulo XVIII

Da morte do governador Manuel Teles Barreto, e como ficaram em seu lugar governando o bispo d. Antônio Barreiros, o provedor-mor Cristóvão de Barros, e o ouvidor-geral

Como o governador Manuel Teles Barreto era tão velho ainda antes de ver bem o fim destas guerras, enfermou e passou desta vida, que também é uma contínua guerra, como diz o Santo Job, quereria Deus que fosse para a triunfante, donde tudo é uma suma paz, gloria, e bem-aventurança; foi este governador mui amigo, e favorável aos moradores, e o que mais esperas lhe concedeu, para que os mercadores os não executassem nas fábricas de suas fazendas, e quando se lhes iam queixar disso os despedia asperamente, dizendo que eles vinham a destruir a terra, levando dela em três ou quatro anos, que cá estavam, quanto podiam, e os moradores eram os que a conservavam, e acrescentavam com seu trabalho, e haviam conquistado à custa do seu sangue.

Morto pois Manuel Teles, cuja morte foi no ano de mil quinhentos oitenta e sete, se abriu logo a via de el-rei, que ele próprio havia trazido, na qual se continha que governassem por sua morte o bispo d. Antônio Barreiros, o Provedor-mor Cristóvão de Barros, e o ouvidor-geral; e porque este último então estava ausente, começaram de governar os dois, tomando por secretário o contador-mor da fazenda Antônio de Faria, e foi próspero o tempo do seu governo, assim pelas vitórias, que se alcançaram contra os inimigos, de que faremos menção nos capítulos seguintes, como por este tempo se abrir o comércio do rio da Prata, mandando o bispo de Tucuman o tesoureiro-mor da sua Sé a esta Bahia a buscar estudantes para ordenar, e coisas pertencentes a igreja, o que tudo levou, e daí por diante não houve ano em que não fossem alguns navios de permissão real, ou de arribada com fazendas, que lá muito estimam, e cá o preço universal que por elas trazem.

Também neste tempo e era do Senhor de mil quinhentos oitenta e sete vieram ao Brasil fundar conventos os religiosos da nossa província capucha de Santo Antônio, com o irmão frei Melchior de Santa Catarina, religioso de muita autoridade, e bom púlpito, por comissário por um breve do senhor Papa Xisto Quinto, e patente do nosso Reverendíssimo padre geral frei Francisco Gonzaga, que faz do breve relação no fim do livro que fez da nossa seráfica ordem, e por virem a instância de Jorge de Albuquerque, senhor de Pernambuco, fizeram lá o primeiro convento, pela qual causa, e por termos naquela capitania quatro conventos, se fazem nela os nossos capítulos, e congregações custudiais.

Capítulo XIX

De três naus inglesas, que neste tempo vieram à Bahia

Pouco tempo depois de começarem a governar o bispo, e Cristóvão de Barros, entraram subitamente nesta Bahia duas naus, e uma zabra de ingleses com um patacho tomado, que havia dela saído para o rio da Prata, em que ia um mercador espanhol chamado Lopo Vaz; tanto que chegaram, tomaram também os navios que estavam no porto, entre os quais estava uma urca de Duarte Osquer, mercador flamengo, que aqui residia, com marinheiros flamengos, que voluntariamente lha entregaram, e se passaram aos ingleses, e logo todos começaram as bombardadas à cidade tão fortemente que desanimados, e cheios de medo, os moradores fugiram dela para os matos; e posto que o bispo pôs guardas, e capitães nas saídas, que eram muitas, porque não estava murada, para que detivessem os homens, e deixassem sair as mulheres, muitos saíram entre elas de noite, e algum com manto mulheril, e esses poucos que ficaram pediram ao bispo fizesse o mesmo; ao que acudiu um venerável, e rico cidadão chamado Francisco de Araújo, requerendo-lhe da parte de Deus, e de el-rei não deixasse a terra, pois não só era bispo, mas governador dela, e que se a gente era fugida, ele com a sua se atrevia a defendê-la.

Também veio uma mulher a cavalo, com lança e adarga, da Itapoã, repreendendo aos que encontrava, porque fugiam de suas casas, e exortando-os para que se tornassem para elas, do que eles zombavam.

Neste tempo não estava Cristóvão de Barros na cidade, que andava pelos engenhos do recôncavo, tirando uma esmola para a casa da Misericórdia, de que era provedor aquele ano, mas logo acudiu ao som das bombardadas, trazendo consigo todos os que achava, com os quais, e com os que na cidade achou, a fortificou, repartindo-os por suas estâncias, castigando alguns dos fugitivos porque não tornassem a fugir, e para exemplo dos outros pôs um à vergonha no pelourinho metido no cesto com uma roca na cinta; e porque os ingleses se não atreveram a entrar na cidade, mas contentaram-se de balraventear pela Bahia, que é larguíssima, e de muito fundo, e onde não era tanto que pudessem chegar os navios grandes, mandaram a zabra, e as lanchas à pilhagem, ordenou Cristóvão de Barros uma armada de cinco barcas, das que levam cana e lenha aos engenhos, as quais ainda que sem coberta são mui fortes e veleiras, mandando-as empavesar, e meter em cada uma dois berços, e soldados arcabuzeiros com seus capitães, que eram André Fernandes Margalho, Pantaleão Barbosa, Gaspar de Freitas, Antônio Álvares Portilho, e Pedro de Carvalhaes, e por capitania uma galé, em que ia por capitão-mor Sebastião de Faria, para que onde quer que desembarcassem os ingleses dessem sobre eles; e assim sabendo que eram idos a Jaguará a tomar carnes ao curral de André Fernandes Morgalho, e por os acharem já embarcados à zabra a combateram, donde houve mortos, e feridos de parte a parte, e entre os mais foi um Duarte de Goes de Mendonça, que ia na galé, a quem passaram o capacete, que tinha na cabeça, com um pelouro, e lhe fez nela tão grande ferida, que esteve a perigo de morte.

Também saíram outra vez na ilha de Itaparica. Donde Antônio Álvares Capara, e outros portugueses com muito gentio os fizeram embarcar com morte de alguns, e no mar lhe tomou também uma das nossas barcas um batel com quatro ingleses, que o remavam, e mataram três, pelo que visto o pouco ganho que tinham, e que Lopo Vaz, de quem esperavam resgate, lhes havia fugido a nado para a cidade, levantaram as âncoras e se foram ao Chamamu, para fazer aguada, onde também o Capara lha não deixou fazer, e lhes matou oito, de que trouxe as cabeças aos governadores e assim se tornaram os ingleses para a sua terra, depois de haverem aqui estado dois meses.

Capítulo XX

Da guerra, que Cristóvão de Barros foi dar ao gentio de Sergipe

Muito estimou Cristóvão de Barros entrar nu governo do Brasil para poder ir vingar assim a traição, que o gentio de Sergipe fez aos homens da Bahia, de que tratamos no capítulo dezoito deste livro, como a morte de seu pai Antônio Cardoso de Barros, que ali mataram, e comeram, indo para o reino com o primeiro bispo desta Bahia, como tenho contado no capítulo terceiro do terceiro livro, e assim apelidou por isso muitos homens desta terra, e alguns de Pernambuco, e uns e outros o acompanharam com muita vontade, porque sendo guerra tão justa, dada com licença de el-rei, esperaram trazer muitos escravos.

Fez capitão da vanguarda a Antônio Fernandes, e da retaguarda a Sebastião de Faria, e determinando ir ao longo do mar, mandou primeiro pelo sertão Rodrigo Martins, e Álvaro Rodrigues, seu irmão, com 150 homens brancos, e mamalucos, e mil índios, para que levassem todos os tapuias que de caminho pudessem em sua ajuda, como de feito levaram perto de três mil flecheiros e assim vendo-se com tanta gente, sem esperar por Cristóvão de Barros cometeram as aldeias dos inimigos, que tinham por aquela parte do sertão, os quais foram fugindo até se ajuntarem todos, e fazerem um corpo com que lhe resistiram, e puseram em cerco mui estreito, donde mandaram quatro índios dar conta a Cristóvão de Barros do perigo em que estavam, com que mandou apertar mais o passo, e chegando a um alto viram um fumo, a que mandou Amador de Aguiar com alguns homens, e trouxeram quatro espias, que tomaram aos inimigos, dos quais guiados os nossos chegaram aos cercados véspera da véspera do Natal, às duas horas depois do meio-dia, os quais vistos pelos contrários fugiram logo, e levantaram o cerco, mas não tanto a seu salvo, que lhes não matassem 600, e eles a nós seis.

Dali desceram a cerca de Baepeba, que era o rei, e príncipe de todo este gentio, e tinha juntas da sua mais duas cercas, nas quais todas haveria 20 mil almas; os nossos fizeram suas trincheiras, e lhes tomaram a água, que bebiam, sobre que houve mortos, e feridos de parte a parte, mas da sua mais.

Também lhes abalroaram o lanço de uma cerca, que eles logo refizeram, e por onde estava Sebastião de Faria abalroaram outra, da qual saíram, e nos mataram um homem, e feriram muitos, mas os nossos os fizeram retirar, matando-lhes 300.

Finalmente determinou o Baepeba concluir o negócio, e para este efeito mandou avisar os das outras cercas, que saíssem contra os nossos para ele também sair, e colhendo-os em meio os matarem, o qual aviso levaram três índios aventureiros por meio do nosso arraial, porque não tinham outro caminho, às quatro horas da tarde, sem que lho pudessem impedir, mais que um deles que mataram.

Ouvido pois o mandamento se saíram das cercas, e o nosso general lhes saiu só com os de cavalo, que eram 60 homens, e o pôs em fugida, não consentindo que os nossos os seguissem, como queriam, porque os da cerca principal do Baepeba não lhes dessem nas costas, donde à noite do Ano Bom de mil quinhentos e noventa, vendo-se sem os das outras cercas, e sem a água, começaram também a fugir, indo os mais valentes diante despedindo nuvens de flechas, com que forçaram os nossos por aquela parte estavam não só a dar-lhes caminho, mas ainda em lhes irem fugindo; porém o general atravessando-se-lhes diante, a brados, e com o conto da lança os fez parar, e voltar aos inimigos até os fazer tornar à cerca, onde entrando os nossos após eles, lhes mataram 1.600, e cativaram quatro mil.

Alcançada a vitória, e curados os feridos, armou Cristóvão de Barros alguns caravelões, como fazem na África, por provisão de el-rei, que para isso tinha, e fez repartição dos cativos, e das terras, ficando-lhe de uma coisa, e outra muito boa porção, com que fez ali uma grande fazenda de currais de gado, e outros a seu exemplo fizeram o mesmo, com que veio a crescer tanto pela bondade dos pastos, que dali se provêm de bois os engenhos da Bahia e Pernambuco, e os açougues de carne.

Está Sergipe na altura de 11 graus e dois terços, por cuja barra com os batéis diante costumam entrar os franceses com naus de mais de cem toneladas, e vinham acabar de carregar da barra para fora, por ela não ter mais de três braças de baixa-mar; e assim ficou Cristóvão de Barros não só castigando os homicidas de seu pai, mas tirando esta colheita aos franceses, que ali iam carregar suas naus de pau-brasil, algodão, e pimenta da terra, e sobretudo franqueando o caminho de Pernambuco, e mais capitanias do norte, para esta Bahia, e daqui para elas, que dantes ninguém caminhava por terra, que o não matassem, e comessem os gentios, e o mesmo faziam aos navegantes, porque ali começa a enseada de Vasa-barris, onde se perdem muitos navios, por causa dos recifes que lança muito ao mar, e os que escapavam do naufrágio não escapavam, de suas mãos, e dentes, donde hoje se caminha por terra com muita facilidade, e segurança, e vem, e vão cada dia com suas apelações, e o mais que lhes importa, sem esperarem seis meses para monção, como dantes faziam, que muitas vezes se tinha primeiro resposta de Portugal que daqui ou de Pernambuco, e com ser tão boa obra esta, e digna de galardão, o que achou Cristóvão de Barros, quando tornou para a cidade, foi achar o seu lugar ocupado não só da provedoria-mor da Fazenda Real, de que ele havia pedido a el-rei o tirasse para poder assistir na sua, que tinha quatro engenhos de açúcar, mas também do governo, porque estando na dita guerra chegou Baltazar Rodrigues Sora com provisão para servir o cargo de provedor-mor, em que logo o bispo o admitiu; porém querendo logo entrar no governo, não lho consentiu, dizendo que a sua provisão não falava nisto, e a outra por onde Cristóvão de Barros governava não dizia só que governasse o provedor, como dizia a do ouvidor-geral, senão que o nomeasse por seu nome, e era graça pessoal; contudo insistiu o provedor Baltazar Rodrigues Sora, pedindo ao bispo pusesse o caso em disputa, como o pôs, ajuntando-se com outros letrados, teólogos, e juristas no Colégio da Companhia, donde sem valerem as razões do bispo saiu Baltazar Rodrigues com a sua pela maior parte dos pareceres, e entrou na mesa do governo. Porém tudo desfez Cristóvão de Barros com sua chegada, por ser contraparte não ouvida, que estava atualmente em serviço de el-rei, para o qual agravou Baltazar Rodrigues, e se foi com o seu agravo para o reino, donde nunca mais tornou.

Capítulo XXI

De uma entrada, que se fez ao sertão em busca dos gentios, que fugiram das guerras de Sergipe e outras

Alcançada a vitória, que temos dito no capítulo precedente, partiu-se o governador Cristóvão de Barros para a Bahia, e deixou Rodrigues Martins em Sergipe, para acabar de recolher o gentio, que da guerra havia fugido, dos quais se haviam passado muitos para a outra parte do rio de S. Francisco, que é da capitania de Pernambuco, donde também vieram logo muitos à caça deles: o primeiro foi Francisco Barbosa da Silva, do qual dissemos no capítulo vigésimo sexto do livro precedente, que veio desbaratado de outra entrada do sertão, e desta lhe sucedeu pior, porque lhe custou a vida, e a quantos com ele vinham, que não sofrendo os aflitos uma aflição sobre outra, e neles se vingaram. Outro foi Cristóvão da Rocha, que veio com quarenta homens em um caravelão, o qual com consentimento de Tomé da Rocha, capitão de Sergipe, se concertou com Rodrigo Martins para entrarem pelo sertão em busca deste gentio, e do mais que achasse.

Havendo andado alguns dias, e passado o sumidouro do rio de S. Francisco, se alojaram em casa de um selvagem chamado Tuman, onde começaram a ter dúvidas, dizendo Cristóvão da Rocha que ele vinha com licença dos Albuquerque de Pernambuco, sem a qual os moradores da Bahia não podiam conquistar nem fazer resgates naquele sertão, e assim haviam de melhorar nos quinhões por razão da licença os pernambucanos, posto que eram menos em número, no que Rodrigo Martins não quis consentir, e se tornou do caminho; mas aceitou o partido um Antônio Rodrigues de Andrade, que levava cem negros, e alguns outros brancos da Bahia, com os quais se partiu dali o capitão Cristóvão da Rocha, e por ter ouvido que a gente do Porquinho matara quatro ou cinco homens, que lá foram com dois padres da companhia, se foi direito às suas aldeias, onde chegando a primeira, entrou um mamaluco chamado Domingos Fernandes Nobre, pregando que iam tomar vingança da morte dos brancos, e isto bastou para os alborotar, e pôr a todos em fugida, o que também fizeram por verem no nosso exército cavalos, porque os temem muito.

Visto isto pelo capitão, mandou recado a outro gentio contrário, para que o viessem ajudar contra estoutro, como o fizeram; e não hei de deixar de contar aqui o que me contou um soldado desta companhia, que fez um principal destes que vieram, o qual diz-se foi à estrebaria onde estava um cavalo dos nossos, e assentando-se pôs-se a falar com ele, e dizer-lhe que o tomava por compadre, porque tinha ouvido dizer que os cavalos eram mui valentes na guerra, e um era tê-los homem por amigos, para que nela o conheçam, e lhe não façam mal. Estava ali um mamaluco, que tinha cuidado do cavalo, e quando o viu tão triste, porque lhe não respondia, se lhe ofereceu para intérprete, e fingindo que lhe falava à orelha, lhe tornou por resposta que folgava muito com sua amizade, e que ele o conheceria quando fosse tempo; com esta resposta se afeiçoou mais o rústico, e perguntou que comia seu compadre, ou o que desejava, porque de tudo o proveria.

Respondeu o mamaluco que o seu mantimento ordinário era erva e milho, mas que também comia carne, e peixe, e mel, e de tudo o mandou prover abundantemente, andando os seus uns a segar erva, outros a caçar, e pescar, e tirar mel dos paus, com que o intérprete se sustentava, e o cavalo engordou tanto, que abafou, e morreu de gordo, cuja morte o rústico muito sentiu, e o mandou prantear por sua mulher, e parentes, como costumam fazer aos defuntos que amam.

Este era um dos principais, que o capitão Cristóvão da Rocha convocou para dar caça aos do Porquinho, que pela pregação do outro mamaluco andavam fugidos com medo pelos matos.

Porém um veio falar secretamente a Diogo de Castro, soldado nosso, por ser seu amigo, e conhecido, e lhe disse que se espantava muito que vindo ele ali lhe quisessem fazer guerra, pois sabia quão amigos eram dos brancos, e se haviam mortos os que vieram com os padres da companhia, fora por eles dizerem mal dos mesmos padres, que não ouvissem sua pregação, porque os vinham enganar, nem esses foram todos, senão alguns, e não era bem que todos pagassem.

Respondeu-lhe Diogo de Castro que bem inteirado estava da sua amizade, e paz antiga, nem eles vinham a quebrá-la, como o mamaluco mal dissera, mas que só vinham em seguimento dos que lhes haviam fugido da guerra de Sergipe, e assim lhes aconselhava que tornassem para suas aldeias, que ele os segurava de lhes não fazerem agravo; contudo não se deu o índio por seguro sem que o pusesse com o capitão, e lho prometesse de sua boca. E com isto foi pregar aos seus, e os reduziu em poucos dias.

Vinha entre eles o Porquinho, já muito velho, e enfermo, pediu o Sacramento do Batismo, e Diogo de Castro o catequizou, e batizou, pondo-lhe por nome Manuel. Nem eu sei outro bem que se tirasse desta jornada, posto que, morto ele, se contrataram os contrários de vender os mais aos brancos, e eles lhos compraram a troco dos resgates, que levavam, e os trouxeram amarrados até certa paragem do rio de S. Francisco, onde fizeram deles partilha, levando o capitão Cristóvão da Rocha com os pernambucanos uma parte, e Antônio Rodrigues de Andrade com os da Bahia outra.

Estes fizeram seu caminho pela serra do Salitre, e trouxeram algum em cabaços para mostra, dizendo que era muito em quantidade, mas havia naquele tempo ali muito gentio, e tinham mortos atraiçoadamente a Manuel de Padilha com 40 homens, que iam desta Bahia para a serra, e por outra vez a Braz Pires Meira com 70, que foram por mandado do governador Manuel Teles Barreto, e o mesmo quiseram fazer a estes, que vinham, se lhes não valera a grande vigilância com que passaram.

N. B.- Este capítulo vigésimo primeiro foi copiado dos aditamentos, e emendas a esta História do Brasil, que existem neste Real Arquivo da Torre do Tombo.

Capítulo XXII

De como se continuaram as guerras da Paraíba com os Potiguares, e franceses, que os ajudavam

Ficando a capitania da Paraíba, na forma que dissemos no capítulo décimo sexto deste livro, entregue ao capitão João Tavares, começou logo a fazer um engenho não longe do de el-rei, com que corria um Diogo Correa Nunes, e pelo conseguinte os moradores mui contentes começaram logo a plantar as canas, que nele se haviam de moer, e a fazer suas roças / que assim chamam cá as granjas ou quintas dos mantimentos, frutas, e mais coisas, que a terra dá.

Chegou neste tempo d. Pedro de la Cueva, espanhol, que havia ido ao reino por mandado de Frutuoso Barbosa, requerer que lhe entregassem a povoação da Paraíba, pois lhe fora dada por Sua Majestade, o qual trouxe uma provisão, para que lha entregassem, e ele ficasse por capitão da infantaria de todos os espanhóis, que cá haviam ficado, assim do alcaide Francisco de Castejon, como do capitão Francisco de Morales, o que tudo logo se cumpriu, ficando o governador Frutuoso Barbosa na povoação, e d. Pedro em um forte, que tinha feito Diogo Nunes Correa nas fronteiras, porém estes dois capitães / como se só o foram para se fazerem guerra um ao outro / começaram logo a ter contendas entre si, deixando os inimigos andar livremente salteando as roças, e fazendas dos brancos, e as aldeias dos índios amigos, em tal modo, que já não ousavam ir a pescar, nem mariscar, porque a qualquer hora que iam achavam inimigos, que os matavam, sem estes capitães porém nisto remédio, mais que escreverem a d. Filipe de Moura, capitão-mor de Pernambuco, e a Pedro Lopes Lobo, da ilha de Itamaracá, que os socorressem, o que de Itamaracá fez levando a gente, e munições, que pôde, e tanto que foi na Paraíba se ordenaram mais duas companhias, uma do capitão d. Pedro de la Cueva, com os seus soldados espanhóis ficando em seu lugar no forte Diogo de Paiva com 15 /, outra de portugueses, de que ia por capitão Diogo Nunes Correa; com os quais, e com a gente do Braço de Peixe, e do Assento de Pássaro, e dois padres nossos, que os doutrinavam, se partiu Pedro Lopes Lobo a correr todas aquelas fronteiras, mandando sempre suas espias, e corredores diante, até darem numa aldeia grande, donde fizeram grande matança, por os acharem descuidados, e cativaram perto de 900 pessoas, as mais delas fêmeas, e moços, o que sabido pelas outras comarcas se vigiavam melhor, não para se defenderem mas para fugirem, e assim quando os nossos chegavam, as achavam despovoadas, e queimaram mais de vinte aldeias, que eram as que faziam mal a gente da Paraíba, e os apertavam na forma que está contado: e vindo por diante discorrendo a uma parte, e a outra, toparam os nossos corredores com uma cerca muito grande, e forte por uma parte, e como a não viram bem que pela outra se encobria com o mato, vieram tão medrosos a dar a nova, que pegaram medo a todos; porém Pedro Lopes, que andava já tão versado nestas guerras, depois de os exortar, e animar com muitas razões toda a noite, o dia seguinte pela manhã os repartiu em três esquadrões iguais, e mandou marchar à vista da cerca, donde vendo o vagar e temor, com que iam, se adiantou, e embraçando a adarga, e a espada na mão se partiu para a cerca, dizendo «Siga-me quem quiser, e quem não quiser fique, que eu só basto», com o que tomaram todos os mais tanto ânimo, que sem mais esperar, cometeram a cerca, e a entraram, matando, e cativando muitos dos inimigos sem da nossa gente perigar pessoa, posto que foram muitos flechados, particularmente uns moços naturais de Itamaracá, que entraram primeiro com alguns negros pela parte do mato, donde a cerca era fraca, e feita de ramos, e esta foi também a causa de se alcançar a vitória com tanta facilidade, porque andando os de dentro travados com estes, e devertidos, não tiveram tanto encontro aos mais, que abalroaram pelas outras partes.

Nesta cerca se detiveram três dias, curando os feridos, na qual acharam muitos mantimentos de farinha, e legumes, e muitas armas, arcos, flechas, e rodelas, e algumas espadas francesas, e arcabuzes, que deixaram 15 franceses, que de dentro fugiram.

Ao quarto dia pela manhã, se partiram para a praia, e caminharam por ela até a baía da Traição, donde tornaram a tomar o caminho por dentro da terra até a Paraíba sem acharem encontro algum de inimigos, que achá-lo, segundo o ânimo, que levavam da vitória passada, nenhum lhe pudera resistir.

Chegados à Paraíba se aposentou o capitão Pero Lopes Lobo na aldeia do Assento com os nossos frades, donde ele, e eles trataram de fazer amigo o governador Frutuoso Barbosa, com d. Pero de la Cueva, e enfim os fizeram abraçar, mas indo-se Pero Lopes à sua capitania de Itamaracá os ódios, e diferenças foram por diante, e pelo conseguinte a guerra dos Potiguares, sem haver quem os reprimisse, até que el-rei mandou ir a d. Pedro para o reino, e Frutuoso Barbosa se foi por sua vontade, e posto que em seu lugar ficou André de Albuquerque, estavam as coisas em tal estado, que não pôde remediá-las esse pouco tempo que serviu o cargo.

Capítulo XXIII

Como Francisco Giraldes vinha por governador do Brasil, e por não chegar, e morrer, veio d. Francisco de Souza, que foi o sétimo governador

Sabendo Sua Majestade da morte do governador Manuel Teles Barreto, mandou em seu lugar Francisco Giraldes, filho de Lucas Giraldes, que no livro segundo capítulo sexto dissemos ser senhor dos Ilhéus, e se chegara ao Brasil alguma coisa importara ao bem daquela capitania, mas por demandar a costa mais cedo do que convinha, e as águas da Paraíba para trás correrem muito para as Antilhas, arribou a elas, e delas tornou para o reino, onde morreu sem entrar neste governo; com ele vinha casa da relação, que era para o Brasil coisa nova naquele tempo, mas também quis Deus que não chegassem senão quatro ou cinco desembargadores, que vinham em outros navios, dos quais um serviu de ouvidor-geral, outro de provedor-mor dos defuntos, e ausentes, e por não vir o chanceler, e mais colegas, se não armou o tribunal, nem el-rei se curou então disso, senão só de mandar governador, que foi d. Francisco de Souza, o qual chegou no ano de mil quinhentos e noventa, em domingo da Santíssima Trindade, e com ele veio por inquisidor ou visitador do santo ofício Heitor Furtado de Mendonça, que chegou mui enfermo com toda a mais gente da nau, exceto o governador, que os veio curando, e provendo do necessário, mas depois que desembarcou, e foi recebido com as cerimônias costumadas adoeceu, e se foi curar ao Colégio dos Padres da Companhia, onde havendo chegado ao último da vida, lhe quis Deus fazer mercê dela, e a primeira saída que fez, ainda mal convalecido, foi para assistir em o primeiro ato da Fé, em que o visitador, que já estava são, publicava na Sé suas patentes, e concedia tempo de graça, e neste chegou uma caravela de Lisboa, que trouxe cartas ao governador da morte de sua mulher, com o que ele se resolveu em não tornar ao reino, mas ficar cá até à morte, e assim o publicava, nem o dizia ociosamente senão que como era prudente, e por isso chamado já de muito tempo d. Francisco das Manhas, entendeu que era boa esta para cariciar as vontades dos cidadãos, e naturais da terra fazer-se cidadão, e natural com eles, e pouco aproveitara dizê-lo de palavra, se não pusera por obra, e assim foi o mais benquisto governador, que houve no Brasil, junto com o ser mais respeitado, e venerado; porque com ser mui benigno, e afável conservara a sua autoridade, e majestade admiravelmente, e sobre tudo o que o fez mais famoso foi sua liberalidade, e magnificência, porque tratando os mais do que hão de levar, e guardar, ele só tratava do que havia de dar, e gastar, e tão inimigo era do infame vício da avareza, que querendo fugir dele passava muitas vezes o meio em que a virtude da liberalidade consiste, e inclinava para o extremo da prodigalidade, dava a bons, e maus, pobres, e ricos, sem lhes custar mais que pedi-lo, donde costumava dizer que era ladrão quem lhe pedia a capa, porque pelo mesmo caso lha levava dos ombros.

Não houve igreja que não pintasse, aceitando todas as confrarias, que lhe ofereciam, murou a cidade de taipa de pilão, que depois caiu com o tempo, e fez três ou quatro fortalezas de pedra e cal, que hoje duram; as principais, que tem presídios de soldados, e capitães pagos da Fazenda Real, são a de Santo Antônio na boca da barra e a de S. Filipe na ponta de Tapuípe, uma légua da cidade, que mais são para terror que para efeito; porque nem a cidade nem o porto defendem, por ser a Bahia tão larga, que tem na boca três léguas, e no recôncavo muitas; e tudo então podia fazer porque tinha provisão de el-rei, para que quando não bastasse o dinheiro dos dízimos, que é só o que cá se gasta a el-rei, o pudesse tomar de empréstimo de qualquer outra parte, e assim houve ocasião em que tomou um cruzado à conta do que se havia de pagar dos direitos de cada caixão de açúcar nas alfândegas de Portugal, e algum dinheiro dos defuntos, que se havia de passar por letra aos herdeiros ausentes; e de uma nau que aqui arribou indo para a Índia, chamada S. Francisco, tomou a Diogo Dias Querido, mercador, 30 mil cruzados, o que tudo el-rei mandou pagar em Portugal de sua Real Fazenda: porém a nenhum outro governador a passou depois tão ampla, antes os apertou tanto, que nem dividas velhas de el-rei podem pagar sem nova provisão, nem fazer alguma despesa extraordinária; o motivo que el-rei teve para alargar tanto a mão a d. Francisco foi as guerras da Paraíba, e pelos muitos corsários que então cursavam esta costa do Brasil, como veremos nos capítulos seguintes.

Capítulo XXIV

Da jornada, que Gabriel Soares de Souza fazia às minas do sertão, que a morte lhe atalhou

Era Gabriel Soares de Souza um homem nobre dos que ficaram casados nesta Bahia, da companhia de Francisco Barreto quando ia à conquista de Menopotapa, de quem tratei no capítulo décimo terceiro do livro terceiro. Este teve um irmão, que andou pelo sertão do Brasil três anos, donde trouxe algumas mostras de ouro, prata, e pedras preciosas, com que não chegou por morrer à tornada, cem léguas desta Bahia, mas enviou-as a seu irmão, que com elas se foi depois de passados alguns anos à Corte, e nela gastou outros muitos em seus requerimentos, até que el-rei o despachou, e se partiu de Lisboa em uma urca flamenga chamada Grifo Dourado a 7 de abril de 1590 com trezentos e sessenta homens, e quatro religiosos carmelitas, um dos quais era frei Jerônimo de Canavazes, que depois foi seu Provincial.

Avistaram esta costa em 15 de junho, e por não conhecerem a paragem, que era a enseada de Vasa-barris, lançaram ferro, mas era tão forte o vento sul, e correm ali tanto as águas, que se quebraram duas amarras, e querendo entrar por conselho de um francês chamado Honorato, que veio à terra com dois índios em uma jangada, e lhes facilitou a entrada, tocou a nau e deu tantas pancadas, que lhe saltou o leme fora, e arrombou, pelo que alguns se lançaram a nadar, e se afogaram nas ondas; os mais saíram em uma setia, que lhes mandou Tomé da Rocha, capitão de Sergipe, e tiraram alguma fazenda sua, e de el-rei, a qual mandou Gabriel Soares de Souza trazer a esta Bahia em a mesma setia com doze soldados, de que veio por cabo Francisco Vieira, e por piloto Pero de Paiva, e Antônio Apeba, vindo ele por terra com os mais em cinco companhias, de que fez capitães a Rui Boto de Souza, Pedro da Cunha de Andrade, Gregório Pinheiro, sobrinho do bispo d. Antônio Pinheiro, Lourenço Varela, e João Peres Galego. Fez também seu mestre de campo a Julião da Costa, e sargento maior a Julião Coelho.

Chegaram a esta cidade, e foram bem recebidos do governador d. Francisco de Souza, que lhe fez dar a execução as provisões, que trazia de Sua Majestade para levar das aldeias dos padres da companhia 200 índios flecheiros, e os brancos que quisessem ir, com os quais se partiu para sua fazenda de Jaguaripe, e aí reformou duas companhias, por Pero da Cunha, e Gregório Pinheiro não querer ir na jornada, e deu uma a João Homem, filho de Gracia da Vila, outra a Francisco Zorrilha. Foram por capelães o cônego Jacome de Queiroz, e Manuel Álvares, que depois foi vigário de Nossa Senhora do Socorro.

Partiram de Jaguaripe, e chegaram a serra de Quareru, que são 50 léguas, onde fizeram uma fortaleza de sessenta palmos de vão com suas guaritas nos cantos, como el-rei mandava que se fizesse a cada 50 léguas.

Aqui fizeram os mineiros fundição de pedra de uma beta, que se achou na serra, e se tirou prata, mas o general a mandou serrar; e deixando ali 12 soldados com um Luiz Pinto Africano por cabo deles, se foi com os mais outras 50 léguas, onde nasce o Rio de Paraguaçu, a fazer outra fortaleza, na qual pelas águas serem ruins, e os mantimentos piores, que eram cobras, e lagartos, adoeceram muitos, e entre eles o mesmo Gabriel Soares, que morreu em poucos dias no mesmo lugar, pouco mais ou menos, onde seu irmão havia falecido.

Foi sepultado na fortaleza, que fazia, com muito sentimento dos seus, e dela se vieram para primeira, que tinha melhores ares, e águas, donde avisou o mestre de campo Julião da Costa ao governador d. Francisco de Souza do que havia sucedido, e ele os mandou recolher a esta cidade.

Vieram pela cachoeira, donde os foi Diogo Lopes Ulhoa buscar, e depois de os ter nos seus engenhos oito dias mui regalados, os mandou nas suas barcas ao governador, que os não recebeu, e proveu com menos liberalidade, gastando com eles de sua fazenda mais de dois mil cruzados.

O intento que Gabriel Soares levava nesta jornada era chegar ao Rio de S. Francisco, e depois por ele até a lagoa Dourada, donde dizem que tem seu nascimento, e para isto levava por guia um índio por nome Guaraci, que quer dizer Sol, o qual também se lhe pôs, e morreu no caminho, ficando de todo as minas obscuras, até que Deus verdadeiro Sol queira manifestá-las.

Os ossos de Gabriel Soares mandou seu sobrinho Bernardo Ribeiro buscar, e estão sepultados em S. Bento com um título na sepultura, que declarou em seu testamento pusesse, e o título é:

Aqui jaz um pecador.


E não sei eu que outra mina ele nos pudera descobrir de mais verdade, se vivera, pois como afirma o Evangelista S. João, se dissermos que não temos pecado, mentimos, e não há em nós verdade.

N. B.- Este capítulo vigésimo quarto foi copiado das adições, e emendas desta História do Brasil de frei Salvador, porém o capítulo vigésimo quarto da dita História, é o que se segue; que nas emendas é o vigésimo quinto.

Capítulo XXIV (bis)

De como veio Feliciano Coelho de Carvalho governar a Paraíba, e foi continuando com as guerras dela

No ano de 1591 no mês de maio chegou a Pernambuco Feliciano Coelho de Carvalho, fidalgo, que se criou de moço na África, bom cavalheiro, e de bom conselho, o qual mandando o seu fato por mar, se partiu por terra ao seu governo da Paraíba, e achou a cidade posta em tanto aperto com os contínuos assaltos, que os Potiguares faziam nas suas roças e arrebaldes, que determinou de correr a terra, e enxotá-los dela, e para isto pediu a Pero Lopes, capitão-mor da ilha de Itamaracá, que o ajudasse com sua pessoa, e gente, como fez como cinqüenta homens brancos de pé e de cavalo, e trezentos negros, e assim se partiram ambos em muita conformidade, levando o governador da Paraíba o gentio Tobajar, e os mais brancos, que pôde, repartidos uns, e outros em companhias, com suas caixas e bandeiras, e logo deram com uma aldeia grande, que levavam espiada, onde posto que acharam os inimigos descuidados, não deixaram de fazer rosto aos da nossa vanguarda, travando-se entre uns e outros uma grande escaramuça, porque os contrários cuidavam que não era a gente mais, porém, depois que viram os de cavalo, e mais de pé, que iam chegando, começaram a virar as costas, posto que tarde, porque o nosso exército estava já todo junto, e mataram tantos, que era piedade ver depois tantos corpos mortos, e aos mais que fugiram foi seguindo a nossa vanguarda, não sem resistência de muitas flechadas, que iam tirando, porque tinham costas em outra aldeia, que distava destoutra um quarto de légua, para a qual se iam retirando, donde saíram muitos a socorrê-los, e fizeram parar os nossos, jogando-se de parte a parte muitas flechadas, e ferindo-se muitos, até que chegou o capitão Martim Lopes Lobo, filho de Pero Lopes, com dois homens mais de cavalo, e 20 arcabuzeiros, e alguns negros, com que os nossos cobrando ânimo remeteram com fúria, e os contrários com medo se espalharam pelos matos, dando-lhes lugar que entrassem na aldeia, e fizessem tal matança nas mulheres, meninos, e velhos, que nela ficaram, que só um foi tomado vivo, por se meter debaixo do cavalo do capitão Martim Lopes, e ele o defender, para se saber da determinação dos franceses, e gentio, e neste tempo...

N. B.- O resto deste capítulo vigésimo quarto não está concluído, pois lhe faltam folhas, como se vê na página seguinte do Msc., a qual parece ser parte do capítulo trigésimo, visto o que se segue ser o capítulo trigésimo primeiro, havendo portanto um salto de seis capítulos.

[Parte do capítulo que parece ser o XXX]

... mandado pedir socorro, trazendo em sua companhia a d. Jerônimo de Almeida, que poucos dias havia chegado de Angola, e outros muitos cavaleiros, que havia na capitania, os quais ficaram todos admirados de ouvir que tão poucos se defendessem de tantos, e os ofendessem de maneira, que está dito, e por não serem já necessários daí a alguns dias se tornaram para Pernambuco, mas não deixou de resultar grande proveito deste socorro; porque vendo uma índia Potiguar de um soldado casado, que andava já doméstica entre os nossos, tanta gente de cavalo, o foi com grande espanto contar à senhora, a qual lhe respondeu: «Isto que tu vês é nada, sabe que ainda há de vir muita mais, para irem matar todos teus parentes, e a quantos franceses andam entre eles, senão olha tu quão poucos soldados no Cabedelo desbarataram a gente de tantos navios, e por aqui verás se estes, que vês, forem à serra, e os mais, que hão de vir, se deixaram lá coisa viva.» Esta Potiguar ouvindo isto fugiu para os seus, ainda antes que Manuel Mascarenhas se partisse da Paraíba, e os achou apercebendo-se para virem dar sobre os nossos com ajuda de Monsieur Rifot, de quem temos contado o mal que fez por esta costa, o qual escreveu uma carta de desafio a Feliciano Coelho, e metida em um cabaço lha mandou pôr em um caminho, donde os nossos espias a trouxeram, e posto que Feliciano Coelho lho mandou pôr outra vez no mesmo posto onde foi achado sem outra resposta mais que pólvora e pelouros dentro, significando que com isto se havia de defender, e mandou outra vez pedir socorro em Pernambuco melhor foi desviá-los a negra que não viessem, dizendo-lhes que seriam todos mortos; porque eram inumeráveis os portugueses de pé, e de cavalo, que vieram de Pernambuco, o que ouvido por Rifot, mandou pôr em esquadrão todos os seus franceses, e Potiguares, que eram infinitos, e lhe perguntou se seriam os portugueses tantos como aqueles, e a negra respondeu que mais eram, e tomando seis ou sete punhados de areia a lançou para o ar, dizendo-lhe que ainda eram mais que aqueles grãos de areia, com que os parentes se começaram a acobardar de modo, que o Rifot lhes disse que para tanta gente era necessário ir buscar mais à França e assim se despediu com os seus para o rio Grande, onde tinha as naus, e se embarcaram nelas para sua terra, e os Potiguares se espalharam pelas suas mui cheios de medo, como tudo constou por dito de três, que os nossos corredores tomaram em uma roça.

Capítulo XXXI

De como Manuel Mascarenhas Homem foi fazer a fortaleza do rio Grande, e do socorro que lhe deu Feliciano Coelho de Carvalho

Informado Sua Majestade das coisas da Paraíba, e que todo o dano lhe vinha do rio Grande, onde os franceses iam comerciar com os Potiguares, e dali saíam também a roubar os navios, que iam, e vinham de Portugal, tomando-lhes não só as fazendas, mas as pessoas, e vendendo-as aos gentios, para que as comessem, querendo atalhar a tão grandes males, escreveu a Manuel Mascarenhas Homem, capitão-mor em Pernambuco, encomendando-lhe muito que logo fosse lá fazer uma fortaleza, e povoação, o que tudo fizesse com conselho e ajuda de Feliciano Coelho, a quem também escreveu, e ao governador geral d. Francisco de Souza, que para isto lhe desse provisões, e poderes necessários para gastar da sua Real Fazenda tudo o que lhe fosse necessário, como em efeito o governador lhe passou, e lhe pôs logo tudo em execução com muita diligência, e cuidado, mandando uma armada de seis navios e cinco caravelões, que o fossem esperar à Paraíba, na qual ia por capitão-mor Francisco de Barros Rego, por almirante Antônio da Costa Valente, e por capitães dos outros navios João Paes Barreto, Francisco Camelo, Pero Lopes Camelo, e Manuel da Costa Calheiros.

Por terra com o capitão-mor Manuel Mascarenhas foram três companhias de gente de pé, de que eram capitães Jerônimo de Albuquerque, Jorge de Albuquerque seu irmão, e Antônio Leitão Mirim, e uma de cavalo, que guiava Manuel Leitão: os quais chegados uns e outros à Paraíba, se ordenou que Manuel Mascarenhas fosse por mar ao rio Grande, na armada que veio de Pernambuco, e levasse consigo o Padre Gaspar de S. João Peres, da companhia, por ser grande arquiteto, e engenheiro, para traçar a fortaleza, com seu companheiro o padre Lemos, e o nosso irmão frei Bernardino das Neves, por ser muito perito na língua brasílica, e mui respeitado dos Potiguares, assim por essa causa, como por respeito de seu pai o capitão João Tavares, que entre eles por seu esforço havia sido mui temido, o qual levou por companheiro outro sacerdote da nossa província chamado frei João de S. Miguel; e que Feliciano Coelho fosse por terra com os quatro capitães, e companhias da gente de Pernambuco, e com outra da Paraíba, de que ia por capitão Miguel Álvares Lobo, que por todos faziam soma de 188 homens de pé e de cavalo, fora o nosso gentio, que eram das aldeias de Pernambuco 90 flecheiros, e das da Paraíba 730, com seus principais, que os guiavam, o Braço de Peixe, o Assento de Pássaro, o Pedra Verde, o Mangue, e o Cardo Grande, e este exército começou a marchar das fronteiras da Paraíba a 17 de dezembro de 1597, indo as espias, e corredores diante queimando algumas aldeias, que os Potiguares despejavam com medo, como confessaram alguns, que foram tomados, mas aos que fugiam os inimigos não fugiu a doença das bexigas, que é a peste do Brasil, antes deu tão fortemente em os nossos índios, e brancos naturais da terra, que cada dia morriam de dez a doze, pelo que foi forçado ao governador Feliciano Coelho fazer volta à Paraíba para se curarem, e os capitães para Pernambuco com a sua gente, que pôde andar, dizendo que cessando a doença tornariam, para seguirem a viagem, exceto o capitão Jerônimo da Albuquerque, que se embarcou em um caravelão, e foi ter ao rio Grande com seu capitão-mor Manuel de Mascarenhas, o qual havia ido na armada, como já dissemos, e na viagem teve vista de sete naus de franceses, que estavam no porto dos Búzios contratando com os Potiguares, os quais como viram a armada picaram as amarras, e se furam, e a nossa não a seguiu por ser tarde, e não perder a viagem.

No dia seguinte pela manhã mandou Manuel Mascarenhas dois caravelões descobrir o rio, o qual descoberto, e seguro entrou a armada à tarde guiada pelos marinheiros dos caravelões, que o tinham sondado, ali desembacaram, e se trincheiraram de varas de mangues para começarem a fazer o forte, e se defenderem dos Potiguares, que não tardaram muitos dias que não viessem uma madrugada infinitos, acompanhados de 50 franceses, que haviam ficado das naus do porto dos Búzios, e outros que aí estavam casados com potiguares, os quais, rodeando a nossa cerca, feriram muitos dos nossos com pelouros e flechas, que tiravam por entre as varas, entre os quais foi um capitão Rui de Aveiro no pescoço com uma flecha, e o seu sargento, e outros, com o que não desmaiaram antes como elefantes à vista de sangue mais se assanharam, e se defenderam, e ofenderam os inimigos tão animosamente que levantaram o cerco, e se foram, depois veio um índio chamado Surupiba pelo rio abaixo em uma jangada de juncos, apregoando paz, o qual prenderam em ferros, e com estar preso mostrava tanta arrogância, que vendo o aparato com que Manuel de Mascarenhas se tratava, e comia, disse que o não haviam de tratar menos, e assim lhe dava um tratamento, e por persuasão dos padres da companhia, posto que contradizendo o nosso irmão frei Bernardino, que conhecia bem suas traições e enganos, enfim o soltou, e mandou, prometendo-lhe o índio de trazer todo o gentio de paz, para o que lhe deu vestidos, e outras coisas que pudesse dar aos seus, não só quando foi, mas ainda depois por duas vezes, que lhas mandou pedir, dizendo que já os tinha apaziguados, e vinham por caminho a entregar-se, porém indo dois batéis nossos com 20 homens, de que ia por cabo Bento da Rocha, a cortar uns mangues, estando metidos em uma enseada, e começando a fazer a madeira, os cercaram por entre os mangues, para os tomarem na baixa-mar, quando os batéis ficassem em seco, onde houveram de ser todos mortos, se um dos batéis, que era maior, se não fora pôr de largo, aonde os descobriu, e deu aviso ao outro para que se embarcasse a nossa gente à pressa, e se alargasse dos inimigos, os quais em continente se saíram da emboscada, e se foram metendo pela água a tomar-lhes uma restinga, que estava no meio do rio, donde se puseram a ralhar, dizendo que já os tinham na rede, entendendo que o batel ficaria em seco, mas quis Deus dar-lhe um canal por onde saíram, e foram dar aviso ao Mascarenhas, que se acabou de desenganar de suas traições, e enganos, e muito mais depois que viu daí a poucos dias os montes cobertos de infinidade deles, que desciam com mão armada a combater outra vez a nossa cerca, na qual os não quis esperar, nem que chegassem a pôr-lhe cerco, antes os foi esperar ao caminho, e lançando uma manga por entre o mato, os entrou com tanto ânimo, que fez fugir os da retaguarda, e seguiu os da vanguarda até o rio, e ainda a nado pela água os foram os nossos índios Tabajaras matando, sem deixar algum com vida, amarando-se tanto nesta pescaria, que foi necessário irem os nossos batéis a buscá-los já fora da barra; mas nem isto bastou, para que não continuassem depois com contínuos assaltos, com que puseram os nossos em tanto aperto, que escassamente podiam ir buscar água para beberem a uns poçosinhos, que tinham perto da cerca, e essa muito ruim, e tantas outras necessidades, que se não chegar a Francisco Dias de Paiva, amo do capitão-mor, que o criou, em uma urca do reino, que el-rei mandou com artilharia, munições, e alguns outros provimentos para o forte, que se fazia, e as esperanças em que se sustentavam de lhes vir cedo socorro da Paraíba, houvera-lhes de ser forçado deixar o edifício, pelo que, tanto que os doentes começaram a convalecer, logo Feliciano Coelho mandou recado aos capitães de Pernambuco, e vendo que não vinham sé aprestou com a sua gente, e tornou a partir da Paraíba a este socorro a 30 de março de 1598, só com uma companhia de 24 homens de cavalo, e duas de pé, de 30 arcabuzeiros cada uma, das quais eram capitães Antônio de Valadares, e Miguel Álvares Lobo, e 350 índios flecheiros com seus principais.

Não acharam em todo o caminho senão aldeias despejadas, e alguns espias, que os nossos também espiaram, e tomaram, pelos quais se soube que uma légua do forte, que se fazia, estava uma aldeia grande, e fortemente cercada, donde saíam a dar os assaltos nos nossos, pelo que mandou o governador apressar o passo, para que os pudesse tomar descuidados, e contudo a achou despejada, e capaz para se alojar o nosso arraial.

Ali veio o dia seguinte Manuel Mascarenhas a visitá-lo, e trataram sobre o modo que havia de haver para se acabar o forte, porque tinha ainda grandes entulhos, e outros serviços para fazer, e disse Feliciano Coelho que ele com a sua companhia de cavalo, e com a gente do Braço, trabalhariam um dia, e Antônio de Valadares com a gente do Assento outro dia seguinte, e Miguel Álvares Lobo com a gente do Pedra Verde outro; e esta ordem guardariam enquanto a obra durasse, dando também a cada companhia do gentio um branco perito na sua língua, que os exortasse ao trabalho, e estes eram Francisco Barbosa, Antônio do Poço, e José Afonso Pamplona, mas não deixaram por isto de reservar alguns, que corressem o campo em companhia de alguns brancos filhos da terra, os quais foram dar em uma aldeia, onde mataram mais de 400 Potiguares, e cativaram 80, pelos quais souberam que estava muita gente junta, assim Potiguares como franceses, em seis cercas muito fortes, para virem dar sobre os nossos, e os matarem, e se já o não tinham feito era porque adoeciam, e morriam muitos do mal de bexigas.

Neste mesmo tempo, que a obra do forte durava, chegou um barco da Paraíba com refrescos de vitelas, galinhas, e outras vitualhas, que mandava a Feliciano Coelho Pero Lopes Lobo, seu loco tenente, e deu novas o arrais, que no porto dos Búzios estava surta uma nau francesa, lançando gente em terra, ao qual acudiu logo Manuel Mascarenhas com toda a gente de cavalo, que havia, e 30 soldados arcabuzeiros e muitos índios, e deu nas choupanas, em que os Potiguares estavam já comerciando com eles, onde mataram 13, e cativaram sete, e três franceses, porque os mais embarcaram, e fugiram no batel, e outros a nado; e vendo o capitão-mor Manuel Mascarenhas que não tinha embarcações para poder cometer a nau, ordenou uma cilada fingindo que tinha ido, e deixando na praia um francês ferido, para que o viessem tomar da nau no batel, como de feito vieram, mas os da cilada tanto que viram desembarcado o primeiro saíram tão desordenadamente que só este tomaram, e os outros tornaram à nau, e largando as velas se foram.

Capítulo XXXII

De como acabado o forte do Rio Grande, e entregue ao capitão Jerônimo de Albuquerque se tornaram os capitães-mor de Pernambuco, e Paraíba, e batalhas, que no caminho tiveram com os Potiguares

Acabado o forte do rio Grande, que se intitula dos reis, o entregou Manuel Mascarenhas a Jerônimo de Albuquerque dia de S. João Batista, era de mil quinhentos noventa e oito, tomando-lhe homenagem, como se costuma, e deixando-lho muito bem fornecido de gente, artilharia, munições, mantimentos, e tudo o mais necessário, se veio no mesmo dia com a sua gente dormir na aldeia do Camarão, onde Feliciano Coelho estava com o seu arraial aposentado, e no seguinte se partiram todos para a Paraíba com muita paz e amizade, que é o melhor petrecho contra os inimigos, e assim o experimentaram os primeiros, que acharam em uma grande e forte cerca seis dias depois da partida, a qual mandaram espiar por um índio mui esforçado da nossa doutrina chamado Tavira, que com só 14 companheiros, que consigo levava, matou mais de 30 espias dos inimigos sem ficar um só, que levasse recado, e assim os nossos subitamente na cerca deram ao meio-dia, e contudo pelejaram mais de duas horas sem a poderem entrar, exceto o Tavira, que temerariamente trepando por dia se lançou dentro com uma espada, e rodela, e nomeando-se começou a matar, e ferir os inimigos, até lhe quebrar a espada, e ficar com só a rodela, tomando nela as flechas, o que visto pelo capitão Rui de Aveiro, e Bento da Rocha, seu soldado, tiraram por uma seteira duas arcabuzadas, com que os inimigos se afastaram, e lhe deram lugar de tornar a subir pela cerca, e sair-se dela com tanta ligeireza como se fora um pássaro; e com este, e outros semelhantes feitos tanto nome havia ganhado este índio entre os inimigos, que só com se nomear, dizendo eu sou Tavira, acobardava e atemorizava a todos; e assim atemorizados com isto os da cerca, e os nossos animados, vendo que se a noite os tomava de fora com o inimigo tão vizinho, e outros, que podiam sobrevir de outras partes, ficavam mui arriscados.

Remeteram outra vez a cerca com tanto ânimo, disparando tantas arcabuzadas e flechadas, que puseram os de dentro em aperto, e se deixou bem conhecer pelos muitos gritos, e choros, que se ouviam das mulheres e crianças; e o capitão Miguel Álvares Lobo com o seu sargento João de Padilha, espanhol, e seus soldados, remeteu a uma porta da cerca, e a levou, por onde logo entraram outros, e o mesmo fez o capitão Rui de Aveiro, e outros capitães por outras partes, com que forçaram os Potiguares a largar a praça, e fugiram por outras portas, que abriram por riba da estacada, e por onde podiam, mas contudo não deixaram de ficar mortos, e cativos mais de 1.500, sem dos nossos morrerem mais de três índios Tabajaras, posto que ficaram outros feridos, e alguns brancos, dos quais foi o sargento João de Padilha.

Dali a 14 dias deram em outra cerca, e aldeia, não tão grande como estoutra, mas mais forte, e de gente escolhida, onde não havia mulheres, nem crianças, que chorassem, senão todos homens de peleja, e entre eles 10 ou 12 bons arcabuzeiros, os quais não atiravam pelouros, que não acertassem nos nossos, o mesmo faziam os flecheiros, com que nos feriam muita gente, e não fora possível sustentar o cerco, se um soldado natural da serra da Estrela, chamado Henrique Duarte, não lançara uma alcanzia de fogo dentro, com que lhes queimou uma casa, e vendo eles o fogo, cuidando que seriam todos abrasados, se foram saindo da cerca, não fugindo ou dando as costas, mas retirando-se, e defendendo-se valorosamente contra os nossos, que os seguiam, e assim ainda que lhes mataram cento e cinqüenta, também eles nos mataram seis brancos, em que entrou Diogo de Sequeira, alferes do capitão Rui de Aveiro Falcão, com um pelouro, que primeiro havia passado a carapuça a Bento da Rocha, que estava junto dele, o qual quando o viu morto, e a bandeira derribada, a levantou, e se pôs a florear com ela no campo entre as flechadas e pelouros, pelo que o seu capitão-mor Manuel Mascarenhas lha deu, e lhe passou depois uma certidão, com que pudera requerer um hábito de cavaleiro com grande tença, mas ele o quis antes do nosso seráfico padre São Francisco, com a tença da pobreza e humildade, em que viveu, e morreu nesta custódia santamente.

Também feriram o capitão Miguel Álvares Lobo de duas flechadas, e a Diogo de Miranda, sargento da Companhia de Manuel da Costa Calheiros, deu um índio agigantado tal golpe com um alfanje, que lhe fendeu a rodela até a embraçadura, e o feriu no braço, e ele lhe correu uma estocada, metendo-lhe a espada pelos peitos até a cruz, a qual não bastou para que o índio se não abraçasse com ele tão rijamente, que sem falta o levara debaixo, se não acudira Jerônimo Fernandes, cabo de esquadra da sua companhia, dando-lhe um golpe pelo pescoço, com que o fez largar, e enterrados os mortos, e curados os feridos, tornou o campo a marchar até chegar às fronteiras da Paraíba, donde se despediu Manuel Mascarenhas de Feliciano Coelho, e se foi com os seus para Pernambuco.

Capítulo XXXIII

De com Jerônimo de Albuquerque fez pazes com os Potiguares, e se começou a povoar o Rio Grande

Jerônimo de Albuquerque, depois que os mais se partiram, se aconselhou com o padre Gaspar de Samperes, da Companhia de Jesus, que tornou ao forte, por ser o engenheiro que o traçou, sobre que traça haveria para se fazerem pazes com os Potiguares, deram em uma facilíssima, que foi soltarem um que eles tinham preso, chamado ilha Grande, principal e feiticeiro, e mandá-lo que as tratasse com os parentes.

Foi o índio bem instruído no que lhes havia de dizer, e chegando á primeira aldeia foi alegremente recebido, mormente depois de saberem ao que ia. Mandaram logo recado às mais aldeias assim da Ribeira do Mar, como da serra, onde estava o Pau Seco, e o Zorobabe, que eram os maiores principais, e todos juntos lhes disse o mensageiro:

«Vós irmãos, filhos, e parentes, mui bem conheceis, e sabeis, quem eu sou, e a conta que sempre de mim fizestes assim ria paz, como guerra; e isto é o que agora me obrigou a vir dentre os brancos a dizer-vos que se quereis ter vida, e quietação, e estar em vossas casas e terras com vossos filhos e mulheres, é necessário sem mais outro conselho ires logo comigo ao forte dos brancos a falar com Jerônimo de Albuquerque, capitão dele, e com os padres, e fazer com eles pazes, as quais serão sempre fixas, como foram as que fizeram com o Braço de Peixe, e com os mais Tabajaras, e o costumam fazer em todo o Brasil, que os que se metem na igreja não os cativam, antes os doutrinam, e defendem, o que os franceses nunca nos fizeram, e menos nos farão agora, que tem o porto impedido com a fortaleza, donde não podem entrar sem que os matem, e lhes metam com a artilharia no fundo os navios.»

Estas, e outras tantas razões lhe soube dizer este índio, e com tanta energia de palavras, que todos aceitaram o conselho, e liso agradeceram, muito principalmente as fêmeas, que enfadadas de andar com o fato continuamente às costas, fugindo pelos matos sem se poderem gozar de suas casas, nem dos legumes, que plantavam, traziam os maridos ameaçados que se haviam de ir para os brancos, porque antes queriam ser suas cativas, que viver em tantos receios de contínuas guerras e rebates.

Com isto se vieram os principais logo ao forte a tratar das pazes; houve pouco que fazer nelas, pelas razões já ditas, donde daí por diante começaram a entrar com seus resgates seguramente, e foi de tudo avisado o governador d. Francisco de Souza pelo capitão-mor de Pernambuco Manuel Mascarenhas, que se foi ver com ele a Bahia, e lhe deu a nova, o qual mandou que as ditas pazes se fizessem com solenidade de direito, como em efeito se fizeram na Paraíba aos 11 dias do mês de junho de 1599, estando presentes o governador da Paraíba, Feliciano Coelho de Carvalho, com os oficiais da Câmera, e o dito Manuel Mascarenhas Homem com Alexandre de Moura, que lhe havia suceder na capitania-mor de Pernambuco, o ouvidor-geral Braz de Almeida, e outras pessoas; e o nosso irmão frei Bernardino das Neves foi o intérprete, por ser mui perito na língua brasílica, e mui respeitado dos índios Potiguares, e Tabajaras, como já dissemos; pelo que o capitão-mor Manuel Mascarenhas se acompanhava com ele, e nunca nestas ocasiões o largava.

Feitas as pazes cons os Potiguares, como fica dito, se começou logo a fazer uma povoação no Rio Grande uma légua do forte, a que chamam a cidade dos reis, a qual governa também o capitão do forte, que el-rei costuma mandar cada três anos. Cria-se na terra muito gado vacum, e de todas as sortes, por serem para isto as terras melhores que para engenhos de açúcar, e assim não se hão feito mais que dois, nem se puderam fazer, porque as canas-de-açúcar requerem terra massapês e de barro, e estas são de areia solta, e assim podemos dizer ser a pior do Brasil, e contudo se os homens tem indústria, e querem trabalhar nela, se fazem ricos.

Logo em seu princípio veio ali ter um homem degradado pelo bispo de Leiria, o qual ou zombando, ou pelo entender assim, pôs na sentença: «Vá degradado por três anos para o Brasil, donde tornara rico e honrado», e assim foi, que o homens se casou com uma mulher, que também veio do reino ali ter, não por dote algum, que lhe dessem com ela, senão por não haver ali outra, e de tal maneira souberam grangear a vida, que nos três anos adquiriram dois ou três mil cruzados, com que foram para sua terra em companhia do capitão-mor do Rio Grande, João Rodrigues Colasso, e de sua mulher d. Beatriz de Menezes, comendo todos a uma mesa, passeando ele ombro com ombro com o capitão, assentando-se a mulher no mesmo estrado que a fidalga, como eu as vi em Pernambuco, onde foram tomar navio para se embarcarem; e toda esta honra lhe faziam, porque, como naquele tempo não havia ainda outra mulher branca no Rio Grande, acertou de parir a mulher do capitão, e a tomaram por comadre, e como tal a tratavam daquele modo, e o marido como o compadre, cumprindo-se em tudo a sentença do bispo, que tornaria do Brasil rico e honrado.

Nem foi este só que no Rio Grande enriqueceu, mas outros muitos, porque ainda que o território é o pior do Brasil, como temos dito, nele se dão muitas criações, e outras granjearias, de que se tira muito proveito, e do mar muitas e boas pescarias.

Nens estão muito longe daí as salinas, onde naturalmente se coalha o sal em tanta quantidade que podem carregar grandes embarcações todos os anos; porque assim como se tira um, se coalha e cresce continuamente outro, nem obsta que não vão ali navios de Portugal / senão é algum de arribada /, pois basta que vão à Paraíba, donde dista somente vinte e cinco léguas, e de Pernambuco cinqüenta, porque destas partes se provejam do que lhe é necessário, como fazem em seus caravelões, e sobre todos estes cômodos foi de muita importância povoar-se, e fortificar-se o Rio Grande para tirar dali aquela ladroeira aos franceses.

Capítulo XXXIV

De como foi o governador geral às minas de São Vicente, e ficou governando a Bahia Álvaro de Carvalho, e dos holandeses que a ela vieram

Muitos anos havia que voava a fama de haver minas de ouro, e de outros metais na terra da capitania de São Vicente, que el-rei d. João o Terceiro doou a Martim Afonso de Souza, e já por algumas partes voava com asas douradas, e havia mostras de ouro; o que visto pelo governador d. Francisco de Souza, avisou a Sua Majestade oferecendo-se para esta empresa, e ele lha encarregou, e mandou para ficar entretanto governando esta cidade da Bahia a Álvaro de Carvalho; o governador se partiu para baixo no mês de outubro de 1598, levando consigo o desembargador Custódio de Figueiredo, que era um dos que vinham com Francisco Giraldes, e servia de provedor-mor de defuntos e ausentes.

O ano seguinte de mil quinhentos noventa e nove, véspera da véspera do Natal, entrou nesta Bahia uma armada de sete naus holandesas, cuja capitania se chamava Jardim de Holanda, por um jardim de ervas e flores, que trazia dentro em si; esta armada se senhoreou do porto, e dos navios, que nele estavam, queimando e desbaratando os que lhe quiseram resistir, como foi um galeão de Bailio de Lessa, que veio fretado por mercadores para levar açúcar; pôs Álvaro de Carvalho a gente por suas estâncias na praia e na cidade para a defenderem se quisessem desembarcar; mas eles não se atrevendo, trataram de concerto, pedindo em reféns uma pessoa equivalente ao seu general, que queria vir pessoalmente a este negócio, e assim foi para a sua capitania em reféns Estevão de Brito Freire, e ele se veio meter no Colégio dos Padres da Companhia, onde o capitão-mor Álvaro de Carvalho o esperava, e se tratou sobre o concerto quatro dias, que ali esteve assaz regalado.

Porém fui-lhe respondido no fim deles que puxasse pela carta, porque não podia haver outro concerto, com o que ele se embarcou colérico, e se desembarcou Estevão de Brito; com esta cólera mandou uma caravela, que tinha tomado no porto, e alguns patachos, e lanchas, que fossem pelo recôncavo roubar e assolar quanto pudessem, o que logo fizeram no engenho de Bernardo Pimentel de Almeida, que dista desta cidade quatro léguas, e não achando resistência lhe queimaram casas, e igreja, da qual tiraram até o sino do campanário, mas soou, e logo foram castigados por André Fernandes Morgalho, que Álvaro de Carvalho havia mandado com 300 homens por terra, e achando ainda ali os inimigos brigaram com eles animosamente até os fazerem embarcar, ficando-lhes muitos mortos na briga em terra, e alguns no mar ao embarcar, entre os quais se matou um capitão, que eles muito sentiram.

Dali se tornaram às suas naus, donde reformados de mais gente, e munições se foram a ilha dos Frades para tomarem aguada, de que estavam faltos, o qual entendido por André Fernandes, que os tinha em espreita, se embarcou com a sua gente em seis lanchas, e entrando por outro boqueirão, que está entre a ilha de Cururupiba, e a terra firme, e se não navega se não de maré cheia, por não serem sentidos, desembarcaram da outra parte da ilha dos Frades, a tempo que também ali chegava Álvaro Rodrigues da Cachoeira com o seu gentio, e assim foram todos juntos, atravessando a ilha pelos matos até perto de uma légua junto a praia, aonde havia saído uma batelada de holandeses a povoar a água, e por acharem salobra se tornaram, e os nossos os deixaram ir, ficando escondidos na cilada, entendendo que iam por mais gente para tornarem a buscar outra fonte, o que eles não fizeram, antes a foram buscar à ilha de Itaparica, e desembarcando em terra puseram fogo em um engenho, que ali estava de Duarte Osquis, sem lhe valer ser também flamengo, posto que casado com portuguesa, e antigo na terra, mas logo chegaram os nossos capitães André Fernandes Margalho, e Álvaro Rodrigues, e os cometeram com tanto ânimo, que mataram cinqüenta, e fizeram embarcar os mais, e recolherem-se à sua armada, que também logo se fez à vela, e despejou o porto, que havia cinqüenta e cinco dias tinha ocupado.

Ao sair pela barra tomaram uma nau de Francisco de Araújo, que vinha do Rio de Janeiro com sete ou oito mil quintais de pau-brasil, e depois de o descarregar nas suas do pau, e da gente que trazia, a queimaram lançando só em terra umas mulheres, que na nau vinham.

Capítulo XXXV

Da guerra dos gentios Aimorés, e como se fizeram as pazes com eles em tempo do capitão-mor Álvaro de Carvalho

Não só por mar foi esta Bahia neste tempo contrastada de inimigo, mas também, e muito mais por terra dos gentios Aimorés, que são uns Tapuias selvagens, de que fizemos menção no capítulo décimo quinto do primeiro livro, os quais como não tenham casas nem lugar certo onde os busquem, nem saiam a pelejar em campo, mas andem como leões e tigres pelos matos, e dali saiam a saltear pelos caminhos, ou ainda sem sair detrás das árvores, empreguem suas flechas, poucos bastam para destruírem muitas terras; e assim havendo já destruído as de Porto Seguro, e dos Ilhéus, entraram nas da Bahia, e haviam feito despejar as do rio de Jaguaripe, e Paraguaçu, posto que não passaram este da parte do norte, que a passá-lo não ficara coisa, que não assolaram até a cidade, porque como até ela haja matos, e todos caminhos se façam entre eles, ninguém pudera entrar nem sair sem ser morto ou salteado por estes selvagens.

Desejosos d. Francisco e Álvaro de Carvalho de remediar este dano o consultaram com Manuel Mascarenhas, que aqui veio a tratar sobre as coisas do Rio Grande com o governador antes que se partisse, e todos acordaram que se não fossem com outro gentio, bicho-do-mato como eles, não se lhe poderia fazer guerra, para o que se ofereceu Manuel Mascarenhas a mandar-lhos do gentio Potiguar da Paraíba, que já estava de paz, e para que também divertidos com isto os Potiguares, e tirados da pátria, não tornassem a rebelar-se, e assim tanto que chegou a Pernambuco deu ordem a vir um grande golpe deles, e por seu principal, e guia um mais revoltoso, e de que havia mais suspeitas, chamado Darobabe, estes mandou Álvaro de Carvalho com o capitão Francisco da Costa aos Ilhéus, para que de lá viessem dando caça aos Aimorés, que assim se pode chamar a sua guerra, mas posto que os amedrontaram e fizeram muito, não ficou de todo o mal remediado, nem deixara de ir muito avante depois de tornados os Potiguares, que em breve tempo voltaram para a Paraíba se Deus não sem outro mais fácil, e eficaz remédio, por meio de uma fêmea Aimoré, que Álvaro Rodrigues da Cachoeira a tomou com o seu gentio em um assalto, à qual ensinou a língua dos nossos Tupinambás, e aprendeu, e fez a alguns nossos aprender a sua, fez-lhe bom tratamento, praticou-lhe os mistérios da nossa santa fé católica, que é necessário crer um cristão, batizou-a, e chamou-lhe Margarida, depois de bem instruída, e afeta a nós vestiu-a de sua camisa, ou saco de pano de algodão, que é o traje das nossas índias, deu-lhe rede em que dormisse, espelhos, pentes, facas, vinho, e o mais, que ela pôde carregar, e mandou-a que fosse desenganar os seus, como fez, mostrando-lhes que aquele era o vinho, que bebíamos, e não o seu sangue, como eles cuidavam, e a carne que comíamos era de vaca, e outros animais, e não humana, que não andávamos nus, nem dormíamos pela terra, como eles, senão naquelas redes, que logo armou em duas árvores, e nenhum ficou, que se não deitasse nela, e se não penteasse, e visse no espelho: com o que certificados que queríamos sua amizade, se atreveram alguns mancebos a vir com ela à casa do dito Álvaro Rodrigues na cachoeira do rio Paraguaçu, donde ele os trouxe a esta cidade ao capitão-mor Álvaro de Carvalho, que logo os mandou vestir de pano vermelho, e mostrar-lhes a cidade, onde não havia casa de venda ou taverna em que não os convidassem, e brindassem; com o que mui certificados foram acabar de desenganar os companheiros, e se fez com os Aimorés em toda esta costa, queira Nosso Senhor conservá-la, e que não demos ocasião a outra vez se rebelarem.

Capítulo XXXVI

Do que fez o governador nas minas

Despedido o governador desta Bahia, em poucos dias chegou à capitania do Espírito Santo, onde por lhe dizerem que havia metais na serra de mestre Álvaro, e em outras partes, as tentou e mandou cavar, e fazer ensaio, de que se tirou alguma prata. Também mandou que fossem as esmeraldas, a que já da Bahia havia mandado por Diogo Martins Cão, e as tinha descobertas; fez um forte pequeno de pedra e cal, em que pôs duas peças de artilharia para defender a entrada da vila, e feito isto se partiu para o Rio de Janeiro, donde foi recebido do capitão-mor, que então era Francisco de Mendonça, e do povo todo com muito aplauso, por ser parte onde nunca vão os governadores gerais; e assim achou tantos pleitos cíveis, e crimes indícios, que para os haver de julgar lhe fora necessário deter-se ali muito tempo: pelo que mandou chamar o ouvidor-geral Gaspar de Figueiredo Homem, que se havia casado em Pernambuco, para o deixar ali.

Chegado o ouvidor, e estando o governador para se partir, lhe tomaram a barra quatro galeões de corsários, o qual entendendo que haviam de sair à terra a tomar água na ribeira de Carioca, lhe mandou pôr gente em ciladas junto dela; e assim aconteceu que indo quatro lanchas, e saindo primeiro a gente só de uma, e tendo já a água tomada para se tornarem a embarcar, lhes saíram os nossos, e os mataram todos, exceto dois, que levaram malferidos ao governador, e os das outras lanchas vendo isto se tornaram às galés, nas quais sabendo de um mamaluco, que haviam tomado em uma canoa, que estava ali o governador d. Francisco de Souza, e determinava mandar-lhes queimar os navios, os fizeram logo a vela, e lhe deixaram a barra livre para seguir a sua viagem, como seguiu, e chegou a São Vicente, onde daí a pouco tempo entrou outro galeão em que ia por capitão um holandês chamado Lourenço Bicar, o qual fez petição ao governador, dizendo que ele era bom cristão, e nunca fizera dano aos cristãos, nem ia a aquele porto com esse intento, senão a vender suas mercadorias, pelo que pedia a Sua Senhoria licença para as poder descarregar, e vender com pagar os direitos a Sua Majestade, e o governador lha despachou, que sendo assim como dizia, e não havendo outra coisa, lhe dava licença, porém tirando depois inquirição, e achando que tinha ido por general de uma grossa armada ao estreito de Magalhães, e por não o poder embocar com tormenta, e se apartar dos mais companheiros, os vinha ali aguardar, mandou em uma canoa seis aventureiros armados, que com dissimulação de quererem ver a nau se senhoreassem da pólvora, e praça de armas, e logo atrás desta outras moitas com soldados e índios flecheiros, que brevemente a abordaram, e tomaram, sem que os de dentro pudessem defendê-la nem pôr-lhe o fogo, como quiseram, por lhe terem os nossos tomado a pólvora e armas.

Importaria a fazenda que esta nau trazia mais de 100 mil cruzados, os quais com a mesma facilidade se gastaram, que se adquiriram, e o governador se foi de São Vicente à vila de São Paulo, que é mais chegada às minas, onde até então os homens e mulheres se vestiam de pano de algodão tinto, e se havia alguma capa de baeta e manto de sarja se emprestava aos noivos e noivas para irem à porta da igreja; porém depois que chegou d. Francisco de Souza, e viram suas galas, e de seus criados e criadas, houve logo tantas librés, tantos periquitos, e mantos de soprilhos, que já parecia outra coisa; com isto se havia pagado d. Francisco da Bahia muito, muito mais se pagou de São Paulo; porque são ali os campos como os de Portugal, férteis de trigo, e uvas, rosas, e açucenas, regados de frescas ribeiras, onde ele umas vezes caçando outras pescando entretinha o tempo, que lhe restava do trabalho das minas, que era mui grande, e muito maior não ser sempre de proveito, porque como é ouro de lavagem, umas vezes se levava pouco, ou nenhuma, mas outras se achavam grãos de peso, e de preço, e de que ele enfiou um rosário, assim como saíam redondos, quadrados ou compridos, que mandou a Sua Majestade com outras mostras de pérolas, que se achavam no esparcel da Canané, e em outras partes, mandando-lhe pedir provisão para fazer descer gentio do sertão, que trabalhassem neste ministério, e outras coisas a ele necessárias, a que lhe não deferiram por morrer neste tempo el-rei Filipe Primeiro, que o havia enviado, e lhe sucedeu seu filho Filipe Segundo, que o mandou ir para o reino, havendo 13 anos que governava este estado, e lhe enviou por sucessor no governo Diogo Botelho.

Capítulo XXXVII

Do oitavo governador do Brasil, e o primeiro que veio por Pernambuco, que foi Diogo Botelho; e como veio aí ter a gente de uma nau da Índia, que se perdeu na ilha de Fernão de Noronha

O oitavo governador do Brasil foi Diogo Botelho, o qual veio em direitura a Pernambuco, no ano de mil seiscentos e três; e foi o primeiro que isto fez, a quem depois sempre foram seguindo seus sucessores. A ocasião, que teve / segundo alguns diziam /, foi induzi-lo Antônio da Rocha, escrivão da fazenda, que ali era casado, e vinha com ele do reino, aonde havia ido com um agravo contra o capitão-mor Manuel de Mascarenhas, o qual lhe diria das larguezas de Pernambuco, e que pedia dele tirar muito interesse, ou o mais certo é que o fez por ver a terra, e as fortalezas, de que havia tomado homenagem, e cuja defensão e governo estava por sua conta, nem eu sei, quando a detença ali não seja muita, que inconveniências há para que os governadores não visitem de caminho aquela praça.

Trouxe o governador consigo dois religiosos graves de Nossa Senhora da Graça, da Ordem de Santo Agostinho, onde tinha um filho, para fundarem casa em Pernambuco, mas o povo o não consentiu, dizendo que não era capaz a terra de sustentar tantos religiosos graves, porque tinham já cá os da Companhia de Jesus, de Nossa Senhora do Carmo, do oatriarca São Bento, e de nosso seráfico padre São Francisco; e assim dando-lhes uma muito boa esmola, que com o favor do governador se tirou pelos engenhos, se tornaram para Lisboa.

Neste tempo lançaram os holandeses na ilha de Fernão de Noronha a gente de uma nau da Índia, em que vinha d. Pedro Manuel, irmão do conde da Atalaia, e por capitão Antônio de Mello, dali no batel da nau, e em uma caravela que lhes mandou o governador Diogo Botelho foram aportar nus, e famintos ao Rio Grande, sem trazerem mais que alguma mui pouca pedraria, e ainda essa não guardada por seus donos, senão por alguns índios escravos, os quais sendo buscados pelos holandeses a engoliam por não lha tomarem.

Não estava o capitão do Rio Grande, que era João Rodrigues Colasso, aí quando chegaram, que era ido a Pernambuco a dar ao governador as boas-vindas; porém não fez falta aos naufragantes, porque d. Beatriz de Menezes, sua mulher, filha de Henrique Moniz Teles, da Bahia, os hospedou, e banqueteou a todos os dias que aí estiveram, e para o caminho, que é despovoado até à Paraíba, mandou seus escravos com canastras cheias de todo o necessário; chegados a Paraíba os agasalhou o capitão-mor Francisco Pereira de Souza como pôde, e deu um vestido do seu de chamalote roxo a d. Pedro Manuel, que lhe aceitou, e agradeceu, pela necessidade que tinha.

Dali vieram caminhando até Guaiena, que é da capitania de Itamaracá, onde um filho de Antônio Cavalcante, que estava no engenho do pai os agasalhou e banqueteou esplendidamente, e os acompanhou até a vila de Iguaraçu, na qual acharam o almoxarife de Pernambuco Francisco Soares, que de mandado do governador os foi aguardar com doces, e água fria, o governador também os foi esperar um quarto de légua fora da vila de Olinda, oferecendo a casa a d. Pedro Manuel, que não a quis aceitar, e se foi agasalhar no Colégio dos Padres da Companhia, donde o foi tirar com forçosos rogos Manuel Mascarenhas, e o levou para a sua, que para isso tinha mui ornada, largando-lha com todo o seu serviço, e passando-se para outra defronte; ao dia seguinte mandou Manuel Mascarenhas trazer muitas peças de seda, e panos de casa dos mercadores à sua custa, e alfaiates que cortassem vestidos para os que os quisessem, e não houve algum que enjeitasse, porque todos tinham necessidade, senão d. Pedro Manuel, que contente com o que lhe havia dado o capitão da Paraíba, disse que por quem havia tanto perdido naquele naufrágio, aquele lhe bastava até o reino, como quem sabia que em pondo lá os pés a pessoa queriam ver, e não os panos, e assim casou logo com uma sobrinha do arcebispo de Braga d. Aleixo de Menezes, que o conhecia bem da Índia, onde foi arcebispo de Goa, e lhe deu grande dote, e Sua Majestade lhe fez muitas mercês.

Capítulo XXXVIII

Da entrada, que fez Pero Coelho de Souza da Paraíba com licença do governador a serra de Boapaba

Querendo Pero Coelho de Souza ver se podia recuperar a perda em parte, que com seu cunhado Frutuoso Barbosa recebera na Paraíba, e entendendo que, pois el-rei lha tomara por eles não poderem conquistá-la, podia correr com a conquista de outros rios, e terras adiante, especialmente da serra de Boapaba, que era mais povoada de gentio, pediu licença ao governador geral Diogo Botelho, e havendo-a alcançado mandou três barcos com mantimentos, pólvora, e munições, que o fossem aguardar ao rio de Jaguaribe, e ele se partiu da Paraíba por terra este mesmo ano de seiscentos e três, em o mês de julho, com sessenta e cinco soldados, dos quais os principais eram: Manuel Miranda, Simão Nunes, Martim Soares Moreno, João Cid, João Vaz Tataperica, Pedro Congatan, língua, e mais outro língua francês chamado Tuim Mirim, e com duzentos índios flecheiros, de que eram principais Mandiopuba, Batatão, Caragatim, Tabajaras, e Garaguinguira, Potiguar, caminhando por suas jornadas, chegaram ao rio Jaguaribe, onde acharam os barcos de mantimentos; dali mandou o capitão Pero Coelho um soldado com 70 índios a descobrir campo, os quais tomaram um que andava a comedia, do qual se soube que os seus estavam em arma, e em nenhum modo queriam pazes com os brancos; contudo o contentou o capitão com foices, machados, e facas, com que o mandou que os fosse apaziguar, como foi, e ao dia seguinte tornou em busca de um nosso língua, com quem se entendessem, o qual lhe soube dizer tais coisas, e era gentio tão fácil, e desapropriado, que deixando suas casas e lavouras se vieram com mulheres, e filhos, dizendo que não queriam senão pazes com os brancos cristãos, e acompanhá-los por onde quer que fossem; o mesmo fizeram depois os da outra aldeia, à imitação destoutros, e foram todos marchando até o Ceará, onde depois de alguns dias de descanso por causa da gente miúda, tornaram a marchar até um outeiro, a que depois chamaram dos Cocos, porque uns sete ou oito, que plantaram, à tornada os viram nascidos com muito viço; e dali foram à enseada grande do âmbar, e à mata do pau de cores, que chamam iburá quatiara, depois ao Camoci, que é a barra da serra da Boapaba, para a qual marcharam o seguinte dia, véspera de S. Sebastião, dezenove de janeiro de mil seiscentos e quatro, antemanhã, e clareando o dia foram logo vistos dos inimigos, sem haver mais lugar que para formar dois esquadrões, e a bagagem no meio, e outro esquadram de parte com vinte soldados à ordem de Manuel de Miranda, para dali lançar mangas por onde fosse necessário, 16 soldados na retaguarda, e nove na vanguarda, em companhia do capitão-mor Pero Coelho de Souza; nesta ordem foram recebidos meia légua ao pé da serra com muita flechada, e com sete mosquetes, que disparavam sete franceses, e faziam muito dano, contudo não deixaram de largar o campo com alguns mortos, porque os nossos o fizeram com muito ânimo e esforço, e com duas horas de sol se sitiou o nosso arraial até ao pé da serra, e se fez um reparo de pedras por falta de madeiras, que pelo fogo se não achava, por ser todo escalvado, e menos havia que cozinhar com o fogo, nem água para beber, pelo que começavam já a morrer algumas crianças, e sobretudo vindo à noite tornaram os inimigos do alto a tirar muitas flechadas, e pedradas de fundas, com que feriam os nossos, ralhando que festejavam a sua vinda, porque senão senhores de cativos brancos, e outras coisas desta sorte; mas quis Nosso Senhor que às três horas da noite veio um grande chuveiro de água, com que cessou o das flechas, e pedras dos inimigos, e os nossos aplacaram a sede, e para ser a mercê maior viram em amanhecendo uma gruta donde procedia um ribeiro de água, que os nossos índios cristãos tiveram por milagre, e se puseram todos de joelhos a dar graças a Deus, e o capitão com esta alegria mandou matar um cavalo, que ainda levava, para confortar os soldados, que aos mais era impossível chegar, porque entre grandes e pequenos eram mais de cinco mil almas.

Das dez horas por diante começaram os da serra a tocar uma trombeta bastarda, à qual respondeu o nosso francês Tuim Mirim com outra, e pedindo licença ao capitão se foi a um outeiro a falar com os franceses, onde logo desceram três, e depois de se abraçarem, e saudarem, disseram que o principal Diabo Grande queria paz se lhe dessem Manuel de Miranda, e Pero Cangatá, e o petitório era de uns mulatos e mamalucos crioulos da Bahia, maiores diabos que o principal com quem andavam.

O Tuim Mirim lhe respondeu que não havia o capitão fazer tal aleivosia, porque lhe seria mal contado de seu rei, com a qual resposta se tornaram, e às duas horas depois do meio-dia desceu todo o gentio da serra, e batalharam até a noite, que se tornaram à sua cerca ao alto, deixando muitos mortos dos seus, e dos nossos dezessete, e alguns feridos.

Pela manhã mandou o capitão marchar o exército pela serra acima, indo ele por uma parte com a mais gente, e Manuel Miranda por outra com 25 homens; quando chegaram à cerca seria meio-dia, e logo se começou a batalha cruelmente, por serem os de dentro ajudados por 16 franceses, que com seus mosquetes pelejavam detrás de um parapeito de pedra, mas vendo que os nossos os combatiam por outras partes, e lhes matavam e feriam muita gente, abriram a cerca e fugiram, morrendo somente dois soldados dos nossos, e os outros se recolheram nas casas da cerca, que acharam muito bem providas de mantimentos, carnes, legumes, de que tinham assaz necessidade, porque nem castanhas tinham já, que era o com que até ali se vieram sustentando; ali estiveram 20 dias, e no fim deles foram fazer guerra a outra cerca muito forte, que o Diabo Grande, com ajuda de outro principal mui poderoso chamado o Mel Redondo, fez um quarto de légua destoutra, onde posto que acharam grande resistência, também a ganharam, e puseram o inimigo em fugida até a cerca do Mel Redondo, a que se acolheram por ser fortíssima, com duas redes de madeiros mui grossos, e fortes, uma por dentro, outra por fora, e três guaritas, onde pelejavam os franceses; o que visto pelo capitão Pero Coelho de Souza, mandou fazer uns paveses, que cada um ocupava 20 negros em levar, e indo detrás deles a bagagem, e alguma gente, se chegaram a ajustar com a cerca, e a combateram dois dias, onde nos mataram três soldados brancos, e feriram 14, fora muitos índios; mas enfim foi tomada, e dez franceses, que estavam dentro, que os mais fugiram com o gentio, e os nossos lhe foram no alcance quatro jornadas até um rio chamado Arabé, onde se alojou o nosso arraial, e daí mandou o capitão dar alguns assaltos, e em poucos dias lhe trouxeram muito gentio, e entre os mais um principal chamado Ubaúna, o qual era naquela serra tão estimado, que sabido pelos outros mandaram cometer pazes, com condição que lho dessem, e o capitão lho prometeu, e deu aos embaixadores fouces e machados, com que ao dia seguinte vieram muitos principais já de paz, e levaram o seu querido Ubaúna.

Ultimamente daí a três dias veio o Mel Redondo, e o Diabo Grande com todo o gentio, e antes que entrasse no arraial largaram suas armas em sinal de paz, da qual mandou o capitão-mor Pero Coelho fazer um ato por um escrivão, prometendo uns e outros de sempre a conservarem dali em diante.

Daqui foram todos juntos ao Punaré, e quis Pero Coelho marchar mais 40 léguas até o Maranhão, o que os soldados não consentiram porque andavam já nus, e sobre isso o quiseram alguns matar; pelo que lhe foi necessário retirar-se ao Ceará, onde deixou Simão Nunes por capitão com 45 soldados, e se veio à Paraíba buscar sua mulher, e família para se tornar a povoar aquelas terras, do que em chegando deu conta ao governador geral Diogo Botelho, e lhe mandou de presente os 10 franceses, e muito gentio, pedindo juntamente ajuda e socorro para prosseguir a conquista, que o governador lhe prometeu mandar, e não mandou por depois ser informado que se cativavam por esta via os índios injustamente, e os traziam a vender, e que seria melhor reduzi-los por via de pregação e doutrina dos padres da companhia, como depois tratou com o seu provincial na Bahia, e nós trataremos outra vez deste sucesso nos capítulos quarenta e dois, e quarenta e três deste livro.

Capítulo XXXIX

Do zelo, que o governador Diogo Botelho teve da conversão dos gentios, e que se fizesse por ministério de religiosos

É tão necessário ao bom governo do Brasil zelarem os governadores a conversão dos gentios naturais, e a assistência dos religiosos com eles, que se isto viesse a faltar seria grande mal, porque como estes índios não tenham bens que perder, por serem pobríssimos, e desapropriados, e inconstantes, que os leva quem quer facilmente, se espalham donde não podem acudir aos rebates dos inimigos, como acodem das doutrinas em que os religiosos os tem juntos, e principalmente contra os negros de Guiné, escravos dos portugueses, que cada dia se lhe rebelam, e andam salteando pelos caminhos, e se o não fazem pior é com medo dos ditos índios, que com um capitão português os buscam, e os trazem presos a seus senhores.

Entendendo isto bem o governador Diogo Botelho apertou muito com o nosso custódio, que então era, que pois doutrinávamos os Tabajaras / do que os Potiguares estavam mui invejosos /, desse também ordem, e ministros, que os doutrinassem, pois essa foi a principal condição com que aceitaram as pazes na Paraíba, e havia cinco anos que os entretínhamos dizendo-lhes que fizessem primeiro igrejas, ornamentos, sinos, e o mais, que era necessário, e vendo que o custódio se escusava por não ter frades peritos na língua brasílica, escreveu a Sua Majestade, e ao nosso ministro provincial grandes; pelo que vindo do reino o irmão custódio frei Antônio da Estrela, veio sobre isto muito encarregado, e ordenou três doutrinas para os Potiguares da Paraíba, além das duas que tínhamos dos Tabajaras, onde já também havia alguns Potiguares casados, pondo quatro religiosos em cada uma, porque como era tanto o gentio, além das aldeias em que residiam os frades tinham outras muitas de visita, era necessário andarem sempre dois por elas, doutrinando-os e batizando os enfermos, que estavam in extremis, que foram mais de sete mil, fora as crianças, e adultos catecúmenos, que foram quarenta e cinco mil, como consta dos livros dos batizados enquanto os tivemos a nosso cargo, confesso que é trabalho labutar com este gentio com a sua inconstância, porque no princípio era gosto ver o fervor e devoção, com que acudiam à igreja, e quando lhes tanjiam o sino à doutrina ou a missa corriam com um ímpeto e estrépito, que pareciam cavalos mas em breve tempo começaram a esfriar de modo que era necessário levá-los à força, e se iam morar nas suas roças, e lavouras, fora da aldeia, por não os obrigarem a isto; só acodem todos com muita vontade nas festas em que há alguma cerimônia porque são mui amigos de novidades, como dia de S. João Batista, por causa das fogueiras, e capelas, dia da comemoração geral dos defuntos, para ofertarem por ele, dia de Cinza, e de Ramos, e principalmente pelas Endoenças, para se disciplinarem, porque o tem por valentia, e tanto é isto assim, que um principal chamado Iniaoba, e depois de cristão Jorge de Albuquerque, estando ausente na Semana Santa, chegando a aldeia nas Oitavas da Páscoa, e dizendo-lhe os outros que se haviam disciplinado grandes e pequenos, se foi ter comigo, que então ali presidia, dizendo «como havia de haver no mundo que se disciplinassem até os meninos, e ele sendo tão grande valente / como de feito era / ficasse com o seu sangue no corpo sem o derramar», respondi-lhe eu que todas as coisas tinham seu tempo, e que nas Endoenças se haviam disciplinados em memória dos açoutes que Cristo Senhor Nosso por nós havia padecido, mas que já agora se festejava sua gloriosa Ressurreição com alegria, e nem com isto se aquietou, antes me pôs tantas instâncias dizendo que ficaria desonrado e tido por fraco, que foi necessário dizer-lhe fizesse o que quisesse, com o que logo se foi açoutar rijamente por toda a aldeia, derramando tanto sangue das suas costas quanto os outros estavam por festa metendo de vinho nas ilhargas.

Capítulo XL

De como o governador veio de Pernambuco para a Bahia, e mandou o Zorobabe, que se tornava com os seus Potiguares para Paraíba, desse de caminho nos negros de Guiné fugidos, que estavam nos palmares do rio Itapucuru, e de como se começaram as pescarias das baleias

Depois de estar o governador Diogo Botelho um ano ou mais em Pernambuco, se veio para esta Bahia, e com a sua chegada se partiu Álvaro de Carvalho para o reino. Estão as casas de el-rei, em que os governadores moram, defronte da praça, no meio da qual estava o pelourinho, donde o governador o mandou logo tirar para o passar a outra parte onde o não visse, porque dizia que se entristecia com a sua vista, lembrando-se que estivera já ao pé de outro para ser degolado por seguir as partes do senhor d. Antônio, culpa que Sua Majestade lhe perdoou por casar com uma irmã de Pedro Álvares Pereira, que era secretário na Corte; e não só ele, que tinha este ódio ao pelourinho, mas nenhum de seus sucessores o levantou mais, nem o há nesta cidade, sendo assim que me lembra haver lido um terremoto, e tormenta de fogo que houve em Baçaim, que não ficou templo nem casa, que não caísse, senão o pelourinho, e no capítulo dos frades a parede em que estavam as varas com que açoutam, para mostrar que primeiro devem faltar os povos e cidades, que o castigo das culpas.

Á sua chegada estavam já de partida o Zorobabe com os seus Potiguares para a Bahia, donde haviam vindo à guerra dos Aimorés, como dissemos no capítulo trinta e três deste livro, e informado o governador de um mocambo ou magote de negros de Guiné fugidos, que estavam nos palmares do rio Itapucuru, quatro léguas do rio Real para cá, mandou-lhes que fossem de caminho dar neles, e os apanhassem às mãos, como fizeram, que não foi pequeno bem tirar dali aquela ladroeira, e colheita, que ia em grande crescimento; mas poucos tornaram a seus donos, porque os gentios mataram muitos, e o Zorobabe levou alguns, que foi vendendo pelo caminho para comprar uma bandeira de campo, tambor, cavalo, e vestidos, com que entrasse triunfante na sua terra, como diremos em outro capítulo, que agora neste será tratarmos de como se começou nesta Bahia a pescaria das baleias.

Era grande a falta que em todo o estado do Brasil havia de graxa ou azeite de peixe, assim para reboque dos barcos e navios, como para se alumiarem os engenhos, que trabalham toda a noite, e se houveram de alumiar-se com azeite doce, conforme o que se gasta, e os negros lhe são muito afeiçoados, não bastara todo o azeite do mundo. Algum vinha do cabo vender, e de Biscaia por via de Viana, mas era tão caro, e tão pouco, que muitas vezes era necessário usarem do azeite doce, misturando-lhe destoutro amargoso, e fedorento, para que os negros não lambessem os candeeiros, e era uma pena como a de Tântalo padecer esta falta, vendo andar as baleias, que são a mesma graxa, por toda esta Bahia, sem haver quem as pescasse, ao que acudiu Deus, que tudo rege, e prova, movendo a vontade a um Pedro de Orecha, Biscainho, que quisesse vir fazer esta pescaria; este veio com o governador Diogo Botelho do reino no ano de mil seiscentos e três, trazendo duas naus a seu cargo de Biscainhos, com os quais começou a pescar, e ensinados os portugueses, se tornou com dias carregadas, sem da pescaria pagar direito algum, mas já hoje se paga, e se arrenda cada ano por parte de Sua Majestade a uma só pessoa, por 600 mil-réis pouco mais ou menos, para lustro de ministros: e porque o modo desta pescaria é para ver mais que as justas todas e torneios, a quero aqui descrever por extenso.

No mês de junho entra nesta Bahia grande multidão de baleias, nela parem, e cada baleia pare um só, tão grande como um cavalo, no fim de agosto se tornam para o mar largo, e no dia de S. João Batista começam a pescaria, dizendo primeiro uma missa na ermida de Nossa Senhora de Montserrate, na ponta de Tapuípe, a qual acabada o padre revestido benze as lanchas, e todos os instrumentos, que nesta pescaria servem, e com isto se vão em busca das baleias, e a primeira coisa que fazem é arpoar o filho, a que chamam baleato, o qual anda sempre em cima da água brincando, dando saltos como golfinhos, e assim com facilidade o arpoam com um arpéu de esgalhos posto em uma haste, como de um dardo, e em o ferindo e prendendo com os galhos puxam por ele com a corda do arpéu, e o amarram, e atracam em uma das lanchas, que são três as que andam neste ministério, e logo da outra arpoam a mãe, que não se aparta do filho, e como a baleia não tem ussos mais que no espinhaço, e o arpéu é pesado, e despedido de bom braço, entra-lhe até o meio da haste, sentindo-se ela ferida corre, e foge uma légua, às vezes mais, por cima da água, e o arpoador lhe larga a corda, e a vai seguindo até que canse, e cheguem as duas lanchas, que chegadas se tornam todas três a pôr em esquadrão, ficando a que traz o baleato no meio, o qual a mãe sentindo se vem para ele, e neste tempo da outra lancha outro arpoador lhe despede com a mesma força o arpéu, e ela dá outra corrida como a primeira, da qual fica já tão cansada, que de todas as três lanchas a lanceiam com lanças de ferros agudos a modo de meias-luas, e a ferem de maneira que dá muitos bramidos com a dor, e quando morre bota pelas ventas tanta quantidade de sangue para o ar, que cobre o sol, e faz uma nuvem vermelha, com que fica o mar vermelho, e este é o sinal que acabou, e morreu, logo com muita presteza se lançam ao mar cinco homens com cordas de linho grossas, e lhe apertam os queixos e boca, porque não lhe entre água, e a atracam, e amarram a uma lancha, e todas três vão vogando em fileira até a ilha de Itaparica, que está três léguas fronteira a esta cidade, onde a metem no porto chamado da Cruz, e a espostejam, e fazem azeite.

Gasta-se de soldadas com a gente que anda neste ministério, os dois meses que dura a pescaria, oito mil cruzados, porque a cada arpoador se dá quinhentos cruzados, e a menor soldada que se paga aos outros é de 30 mil-réis, fora comer, e beber de toda a gente; porém também é muito o proveito, que se tira, porque de ordinário se matam 30 ou 40 baleias, e cada uma dá 20 pipas de azeite pouco mais ou menos, conforme é a sua grandeza, e se vende cada uma das pipas a 18 ou 20 mil-réis, além do proveito que se tira da carne magra da baleia, a qual fazem em cobros, e tassalhos, e a salgam e põem a secar ao sol, e seca a metem em pipas, e vendem cada uma por 12 ou 15 cruzados, e nisto se não ocupa a gente do azeite, que são de ordinário 60 homens entre brancos e negros, os quais lhe são mais afeiçoados que a nenhum outro peixe, e dizem que os purga, e faz sarar de boubas, e de outras enfermidades, e frialdades, e os senhores, quando eles vêm feridos das brigas, que fazem em suas bebedices, com este azeite quente os curam, e saram melhor que com bálsamos.

Mas com se haver morto tanta multidão de baleias, em nenhuma se achou âmbar, que dizem ser o seu mantimento, nem era do mesmo talho, e espécie, outra que saiu murta há poucos anos nesta Bahia, em cujo bucho e tripas se acharam 12 arrobas de âmbar gris finíssimo, fora outro que tinha vomitado na praia.

Capítulo XLI

De como Zorobabe chegou a Paraíba, e por suspeito de rebelião foi preso, e mandado ao reino

Já no capítulo trigésimo nono deste livro disse como Zorobabe indo da guerra dos Aimorés para a Paraíba deu de caminho, por mandado do governador, no mocambo dos negros fugidos, matou alguns, e prendeu outros, de que levou os que quis, e os foi vender aos brancos, com que comprou bandeira de campo, tambor, cavalo, e vestidos para entrar triunfante em a sua terra, da qual o vieram esperar ao caminho alguns Potiguares 40 léguas, outros a vinte, e a dez, abrindo-lho, e limpando-lho a enxada. Só o Braço de Peixe, que era gentio Tabajara, se deixou estar com os seus na sua aldeia, e porque o Zorobobe determinou passar por ela lhe mandou dizer que saísse a esperá-lo à entrada, pois os mais o haviam feito tão longe, ao que respondeu o velho, ainda que já centenário, que fora de guerra nunca fora esperar ao caminho senão damas, e pois ele não era dama, nem vinha dar-lhe guerra, não se levantaria da sua rede, com a qual resposta o Zorobabe passou de largo, e foi jantar ao rio Niobi, meia légua da sua aldeia, por onde caminhava.

Dali mandou também recado aos nossos religiosos, que nela assistiam, que lhe mandassem uma dança de corumins, que eram os meninos da escola, e lhe enramassem a igreja, e abrissem a porta, porque havia de entrar nela.

O presidente dos religiosos respondeu ao embaixador que os meninos com o alvoroço da sua vinda andavam todos espalhados, que a igreja não se enramava senão a festa dos santos, mas que a porta estava aberta: entrou ele à tarde a cavalo, bem vestido, e acompanhado com sua bandeira, e tambor, e um índio valente com espada nua esgrimindo diante, e fazendo afastar a gente, que era inumerável.

Com este triunfo passou pelo terreiro da igreja, e sem entrar nela se foi, meter em casa, mas logo veio um parente seu, que já era cristão, e se chamava Diogo Botelho, e até então havia governado a aldeia, em seu lugar, a desculpá-lo com os religiosos, que não entrara na igreja por vir bêbado, porém que viria o dia seguinte, como fez, mandando primeiro pôr no cruzeiro cinco cadeiras, e a do meio, em que ele se assentou, estava coberta de alto a baixo com um lambel grande de lã listrado, nas outras se assentaram o dito seu parente, e os principais das outras aldeias, que vieram receber, dos quais era um o Mequiguaçu, principal em outra aldeia, que já era cristão, e se chamava d. Filipe, ali lhe foram os religiosos dar as boas-vindas, e o levaram para dentro, à escola onde se ensinam os meninos, em que os assentos eram uns rolos, e pedaços de paus, em que se assentaram, mas logo o Zorobabe se enfadou, e quisera ir-se se o presidente o não detivera, dizendo-lhe que via ali junto todo o gentio da Paraíba, e muitos portugueses, e que não iam a outra coisa, segundo todos diziam, senão a saber sua determinação, pelo que ele queria o dia seguinte, que era domingo, pregar-lhes, e porque na pregação se não podia dizer senão a verdade, a queria saber dele neste particular, por isso que não lha negasse; ao que respondeu que sua determinação era ir dar guerra ao Milho Verde, que era um principal do sertão, que lhe havia morto um sobrinho cristão chamado Francisco, e pelo seu nome antigo Aratibá, que seu irmão o Pau Seco havia mandado a dar-lhe guerra, e pois ele por morte do pai, e filho entrava agora no governo, a queria continuar, e tomar a vingança; o presidente lhe disse que já eram vassalos de el-rei, e não podiam fazer guerra justa sem ordem sua, e do seu governador geral nestes estados; e além disso, que bem sabia a condição dos seus, que tanto que a guerra fosse apregoada haviam de largar a agricultura, e como à guerra não haviam de ir as mulheres, nem os velhos, e meninos, ficariam morrendo de fome, pelo que se lhe parecesse pregaria que roçassem, e plantassem primeiro, e que esta fosse também a sua fala, para que se aquietassem, no que ele consentiu, e assim se tornaram às suas aldeias quietos.

O Zorobabe foi também visitado de muitos brancos da Paraíba, com boas peroleiras de vinho, e outros presentes, ou por seus interesses de índios, por seus serviços, e empreitadas, ou por temor que tinham da sua rebelião, por o verem tão pujante, o qual temor era tão grande que o capitão da Paraíba, excitado dos de Itamaracá, e Pernambuco, não cessava de escrever ao presidente que vigiasse, porque se dizia estar o gentio rebelado com a ida deste principal, o que os religiosos não sentiam em algum modo, porque o achavam mui obediente, só se queixou uma vez que não iam à sua casa, como faziam os mais moradores da Paraíba, ao que responderam os religiosos que não iam lá porque não era cristão, e tinha muitas mulheres, e ele disse que cedo as largaria, e ficando com só uma se batizaria, que já para isto tinha mandado criar muitas galinhas, porque ele não era vilão como os outros, que comiam nas suas bodas, e batismo carne de vaca, e caças do mato, mas que o seu banquete havia de ser de galinhas, e aves de pena: contudo, quando se embebedava era inquieto e revoltoso, e foi crescendo tanto o medo nos portugueses, que o prenderam e mandaram a Alexandre de Moura, capitão-mor de Pernambuco, e daí ao governador, os quais na prisão lhe deram por muitas vezes peçonha na água e vinho, sem lhe fazer algum dano, porque dizem que receoso dela bebia de madrugada a sua própria câmara, e que com esta triaga se preservava e defendia do veneno; finalmente o mandaram para Lisboa, donde por ser porto de mar, do qual cada dia vem navios para o Brasil, em que podia tornar-se, o mandaram aposentar em Évora Cidade, e aí acabou a vida, e com ela as suspeitas da sua rebelião.

Capítulo XLII

Do que aconteceu a uma nau flamenga, que por mercancia ia à capitania do Espírito Santo carregar de pau-brasil

Costumavam ir ao Brasil urcas flamengas despachadas, e fretadas em Lisboa, Porto, e Viana com fazendas da sua terra, e de mercadores portugueses, para levarem açúcar, entre as quais foi uma a capitania do Espírito Santo, e pediu o capitão dela ao superior da casa dos padres da companhia, que ali tem doutrina de índios a seu cargo, que lhe mandassem fazer por eles uma carga de pau-brasil na aldeia de Reritiba, onde há muito, e tem um porto, e o ano seguinte tornaria a buscá-lo, e lhes trariam a paga em ornamentos para a igreja, ou no que quisessem; deu o padre conta disto ao procurador, que ali estava, dos contratadores do pau, e com o seu beneplácito se fez na dita aldeia, porém sendo el-rei informado que por essas urcas serem mais fortes, e artilhadas, todos queriam carregar antes nelas, e cessava a navegação dos navios portugueses, e quando os quisesse para armadas não os teria, nem homens que soubessem a arte de navegar, parecendo-lhe bem esta razão a el-rei, e outras que o moveriam, escreveu ao governador Diogo Botelho, e aos mais capitães, não consentissem mais em suas capitanias entrar navio algum de estrangeiros por via de mercancia, nem por outra alguma, mas os metessem no fundo, e perseguissem como a inimigos.

Depois desta proibição chegou o flamengo a barra do Espírito Santo, e não achou já o padre superior, por ser mudado para o Rio de Janeiro, senão outro, que lhe não falou a propósito, foi-se à aldeia onde o pau estava junto, e porque também os padres, que lá estavam, lho não deixaram carregar, tomou quatro índios, e se foi ao Cabo Frio desembarcar, e dali por terra disfarçado a falar com o padre no Colégio do Rio de Janeiro, o qual lhe disse que não tratasse disso, porque el-rei o tinha proibido, antes se tornasse com toda a cautela, porque se Martim de Sá, governador do Rio, o sabia, lhe custaria a vida; não se tornou com tanto segredo o flamengo, que Martim de Sá o não soubesse, e assim mandou logo cinco canoas grandes com muitos homens brancos, e índios flecheiros, e seu tio Manuel Corrêa por capitão, o qual chegou ao Cabo Frio a tempo que os achou em terra com alguns flamengos, carregando a lancha de pau-brasil, que ali estava feito, e lha tomou, e prendeu a todos, voltando outra vez para o Rio de Janeiro, onde não achou o sobrinho, que era ido por terra ao mesmo Cabo Frio, e quando lá chegou, e não achou as canoas para ir tomar a nau, que estava ao pego, se tornou com muita cólera, e aprestou brevemente quatro navios, que estavam à carga, e saiu em busca da nau dos flamengos, que já andava à vela, mandou-lhes falar pelo seu mesmo capitão, que levava preso, que não atirassem, e se deixassem abalroar, e eles assim o fizeram metidos todos debaixo da xareta, sem aparecer algum; houve portugueses que a quiseram desenxarciar, ou cortar-lhe os mastros; respondeu Martim de Sá que a nau era já sua, e não a queria sem mastros e enxárcia.

Era isto já de noite, e os nossos passavam por cima da xareta como por sua casa, quando os flamengos e índios, que com eles iam, começaram a picá-los debaixo com os piques, e da proa, e popa dispararam duas roqueiras cheias de pedras, pregos, e pelouros, com que fizeram grande espalhafato, mataram alguns, e feriram tantos, que os obrigaram deixar-lhe a nau, e irem-se curar à cidade. Os flamengos, que se viram livres, se foram à ilha de Santa Anna quinze léguas do Cabo Frio para o norte, a tomar água, de que estavam faltos, e há ali boas fontes, e bom surgidouro para naus, e porque não tinham batel fizeram uma prancha em que foram cinco com os barris à terra, e pondo um no pico da ilha a vigiar o mar, os quatro enchiam os barris, e os iam levando poucos e poucos.

Não ficavam na nau mais que outros quatro homens, e dois moços, porque a mais gente lhes haviam levado as canoas, o que considerado pelos índios, que também eram quatro, remeteu cada um a seu com facas e traçados, e como estavam descuidados facilmente foram mortos, os dois moços grumetes reservaram flechando-os na câmera, porque não avisassem aos da água, quando viessem, e porque depois os ajudassem na navegação; e assim em chegando os da água a bordo os mataram, e cortadas as amarras largaram as velas ao vento sul, que então ventava e era em popa, para a sua aldeia, mas como não sabiam navegar aos bordos, e estando já perto dela se virou o vento ao nordeste, tornaram a voltar para o Cabo Frio, passaram-no, e iam perto da barra do Rio de Janeiro, quando outra vez lhe ventou o sul, e como do Cabo Frio ao Rio corre a costa de leste a oeste, e o sul lhe fica travessam, ali deu a nau através, e se fez em pedaços, salvando-se todavia os índios a nado, que levaram a nova a Martim de Sá, o qual posto que já tinha acabado o seu governo, porque naquele mesmo dia entrou seu sucessor Afonso de Albuquerque, ainda com seu beneplácito foi ver se podia salvar algumas fazendas das que saíam pela costa, mas poucas se aproveitaram, por virem todas dos mares danadas e desfeitas.

Capítulo XLIII

Da segunda jornada, que fez Pero Coelho de Souza à serra de Boapaba, e ruim sucesso que teve

O capitão Pero Coelho de Souza, de quem tratamos em o capítulo trinta e sete, se partiu com mulher e filhos em uma caravela, e foi desembarcar em Ceará, onde havia deixado o capitão Simão Nunes com os soldados, que ali estiveram ano e meio, em um forte de taipa, que fizeram aguardando o socorro do governador, o qual como não chegasse, e houvesse já muita falta de roupas, e mantimentos, requereram os soldados que se retirassem ao rio de Jaguaribe, donde, por ser mais perto de povoado, poderiam ir pedir o socorro, o que porventura fizeram, para de lá lhe ficar mais perto, e fácil a fugida, que fizeram, porque logo Simão Nunes pediu licença ao capitão-mor para passar da outra banda do rio a comer fruta, e como lá se viram não se curaram de colher fruta senão de se acolherem, o que visto pelo capitão, e que lhe não ficavam mais que 18 soldados mancos, e por isso não foram com os outros, e dos índios só um chamado Gonçalo, porque também os mais fugiram, determinou tornar-se para sua casa, e com este, e com alguns soldados menos mancos ordenou uma jangada de raízes de mangues, em que poucos e poucos passaram todos o rio, e como o tiveram passado, mandou marchar cinco filhos diante, dos quais o mais velho não passava de 18 anos, logo os soldados, e detrás ele e sua mulher, todos a pé, logo nesta primeira jornada a sentir o trabalho, porque, tanto que a calma começou a cair, não havia quem pudesse pôr o pé na areia de quente, começava já o choro das crianças, os gemidos da mulher, e lástima dos soldados, e o capitão fazendo seu ofício, animando, e dando coragem a todos.

No segundo dia já o capitão carregava dois filhos pequenos às costas por não poderem andar, e começavam as queixas de sede, que se não remediou senão ao terceiro dia por noite em uma cacimba, ou. poço de água doce junto de outras duas salgadas, mas não havendo mais espaço dentre elas que de duas braças; ali se detiveram dois dias, e encheu o índio Gonçalo dois cabaços de água, com que se partiram, e caminharam algum tempo, com muito trabalho, e risco de Tapuias inimigos, que por ali andam, e lhes viam os fumos; mas o pior inimigo era a fome e sede, com que começaram a morrer os soldados; o primeiro foi um carpinteiro, com o qual os que já não podiam andar disseram ao capitão que os deixasse ficar, que com morrer acabariam seus trabalhos, como acabava aquele, mas o capitão os animou, dizendo que fossem por diante, que Deus lhe daria forças para chegar aonde houvesse água, e de comer, com isto se levantaram, e caminharam até morrer outro, ali se pôs d. Tomázia, mulher do capitão, a dizer tantas lástimas, que parece se lhe desfazia o coração, vendo que tinha todos seus filhos ao redor de si, e pegando dela do menor, até o maior, diziam que até ali bastavam caminhar que também queriam morrer com aquele homem, porque já não podiam sofrer tanta sede, e ela derramando de seus dois olhos dois rios de lágrimas, que bem puderam matar-lhe a sede, se não foram salgadas, disse ao marido fosse e salvasse a vida, porque ela não queria já outra senão morrer em companhia de seus filhos, os soldados uns rebentaram a chorar, outros a pedir-lhe que quisesse caminhar; o capitão dissimulando a dor o mais que pôde, disse que dali a pouco espaço estava uma cacimba de água, e com esta esperança tornaram a caminhar para a água amargosa, que assim se chamava aquela cacimba pelo amargor da água, pelo que chegando a ela não houve quem a bebesse, e foram caminhando para outra, que chamam a boa maré, passando meia légua de mangues com lodo até a cinta, onde acharam uns caranguejos chamados oratus, e como até ali se não sustentavam senão em raízes de árvores; e de ervas, pegando dos caranguejos os comiam crus, com tanto gosto como se fora algum guisado muito saboroso, e muito mais depois que chegaram à cacimba de água, onde descansaram alguns dias.

Dali marcharam para as salinas muitos dias, e estando nelas viram passar o barco, em que iam os padres da companhia, que era o socorro que o governador lhes mandava, mas não lhe puderam falar, mas caminhando avante da salina, morreu o filho mais velho do capitão, que era o lume de seus olhos, e de sua mãe; o que cada qual deles fez neste passo deixo à consideração dos que lerem; aqui eram já os soldados do parecer das crianças, dizendo que até ali bastava, e sem dúvida o fizeram, se a mulher do capitão, esforçando-se para os animar, lhe não pedira que quisessem caminhar, pois também as crianças, o que eles começavam a fazer por seus rogos, mas estavam tão fracos que o vento os derribava, e assim se iam deitando pela praia até que o capitão, que se havia adiantado cinco ou seis léguas com dois soldados mais valentes a buscar água, tornou com dois cabaços dela, com que os refrigerou para poderem andar mais um pouco, donde viram pela praia vir uns vultos de pessoas, e era o padre vigário do Rio Grande, o qual pelo que lhe disseram os soldados fugidos os vinha esperar com muitos índios, e redes para os levarem, muita água e mantimentos, e um crucifixo na mão, que em chegando deu a beijar ao capitão, e aos mais, o que fizeram com muita devoção, e alegria, com muitas lágrimas, não derramando menos o vigário, vendo aquele espetáculo, que não pareciam mais que caveiras sobre ossos, como se soube pintar a morte, e com muita caridade os levou, e teve no Rio Grande, até que se foram para a Paraíba, donde Pero Coelho de Souza se foi ao reino requerer seus serviços, e depois de gastar na Corte de Madri alguns anos sem haver despacho, se veio viver em Lisboa, sem tornar mais à sua casa.

Capítulo XLIV

Da missão, e jornada, que por ordem do governador Diogo Botelho fizeram dois padres da companhia a mesma serra de Boapaba, e como deferia aos rogos dos religiosos

Não só zelou o governador a conversão dos gentios, que já estavam de paz na Paraíba, e pediam doutrina, como dissemos, mas também dos que ainda estavam na cegueira de sua infidelidade, e assim logo depois que veio para a Bahia pediu ao padre provincial da companhia Fernão Cardim mandasse dois padres a pregar-lhes à serra da Boapaba, onde o capitão Pero Coelho de Souza andava, porque com isso se escusariam as guerras, que lhes faziam, e o custo delas, e se conseguiria o fim, que se pretendia, que era sua paz, e amizade, para se poderem povoar as terras, o que provincial logo fez, enviando os padres Francisco Pinto, varão verdadeiramente religioso, e de muita oração, e trato familiar com Deus, entendendo nos costumes, e línguas do Brasil, e Luiz Figueira, adornado de letras, e de dons da natureza, e de graça.

Estes se partiram de Pernambuco o ano de mil seiscentos e sete, no mês de janeiro, com alguns gentios das suas doutrinas, ferramenta, e vestidos com que os ajudou o governador para darem aos bárbaros. Começaram seu caminho por mar, e prosseguiram ao longo da costa 120 léguas para o norte até o rio de Jagaribe, onde desembarcaram: daí caminharam por terra, e com muito trabalho outras tantas léguas, até os montes de Ibiapana, que será outras tantas aquém do Maranhão, perto dos bárbaros, que buscavam, mas acharam o passo impedido de outros mais bárbaros e cruéis do gentio Tapuia, aos quais tentearam os padres pelos índios seus companheiros com dádivas, para que quisessem sua amizade, e os deixassem passar adiante, porém não quiseram, mas antes mataram os embaixadores, reservando somente um moço de 18 anos, que os guiasse aonde estavam os padres, como o fez, e seguindo-os muito número deles, saindo o padre Francisco Pereira da sua tenda, onde estava rezando, a ver o que era, por mais que com palavras cheias de amor, e benevolência os quis quietar, e os seus poucos índios com as flechas pretendiam defendê-los, eles com a fúria com que vinham mataram o mais valente, com que os mais não puderam resistir-lhe, nem defender o padre, que lhe não dessem com um pau roliço tais e tantos golpes na cabeça, que lha quebraram, e o deixaram. morto, o mesmo quiseram fazer ao padre Luiz Figueira, que não estava longe do companheiro, mas um moço da sua companhia sentindo o ruído dos bárbaros o avisou, dizendo em língua portuguesa: «Padre, Padre, guarda a vida», e o padre se meteu à pressa nos bosques, onde guardado da Divina Providência o não puderam achar, por mais que o buscaram, e se foram contentes com os despojos, que acharam dos ornamentos, que os padres levavam para dizer missa, e alguns outros vestidos, e ferramentas para darem, com o que teve lugar o padre Luiz Figueira de recolher seus poucos companheiros, espalhados com medo da morte, e de chegar ao lugar daquele ditoso sacrifício, onde acharam o corpo estendido, a cabeça quebrada, e desfigurado o rosto, cheio de sangue e lodo, limpando-o, e lavando-o, e composto o defunto em uma rede, em lugar de ataúde, lhe deram sepultura ao pé de um monte, que não permetia então outro aparato maior o aperto em que estavam: porém nem Deus permitiu que estivesse assim muito tempo, antes me disse Martim Soares, que agora é capitão daquele distrito, que o tinham já posto em uma igreja, onde não só dos portugueses, e cristãos, que ali moram, é venerado, mas ainda dos mesmos gentios.

Capítulo XLV

De como o governador d. Diogo de Menezes veio governar a Bahia, e presidiu no tribunal, que veio, da relação

Só um ano se deteve o governador d. Diogo de Menezes em Pernambuco, porque teve aviso de um galeão, que arribou a esta Bahia, indo para a Índia, e posto que logo mandou o sargento-mor do estado Diogo de Campos Moreno, com ordem de se concertar e prover de mantimentos, e do mais que lhe fosse necessário, como em efeito se fez, gastando-se no apresto dela da fazenda de Sua Majestade nove mil cruzados, que deu o contratador dos dízimos, que então era Francisco Tinoco de vila Nova, e contudo não quis o governador faltar com sua presença, porque nada faltasse ao dito galeão, para seguir sua viagem, como seguiu, mas por ir tarde, e achar ventos contrários deu à costa na terra do Natal, salvando-se só a gente que coube no batel, em que foram à Índia, donde tornaram os marinheiros em outra nau, que o ano seguinte se veio perder nesta Bahia, de que diremos em outro capítulo.

Tratando agora do Tribunal da Relação, que este ano veio do reino, em que o governador presidiu, e depois os mais governadores seus sucessores; veio por chanceler desta casa Gaspar da Costa, que em breve tempo morreu, e lhe sucedeu no cargo Rui Mendes de Abreu, e como era coisa nova esta no Brasil, e até este tempo se administrava a justiça só pelos juízes ordinários da terra, e um ouvidor-geral, que vinha do reino de três em três anos, e quando a gravidade do caso o pedia se lhe ajuntava o governador com o provedor-mor dos defuntos, que era letrado, e os mais que lhe parecia, não deixou de haver pareceres no povo / coisa mui anexa a novidades /, dizendo uns que fossem bem-vindos os desembargadores, outros que eles nunca cá vieram; porém depois que tiveram experiência da sua inteireza no julgar, e expediência nos negócios, que dantes um só não podia ter, não sei eu quem pudesse queixar-se com razão, senão o juízo eclesiástico, porque eram nesta matéria demasiadamente nímios, e a conta de defenderem a jurisdição de el-rei, totalmente extinguiam a da igreja, o que Deus não quer, nem o próprio rei, antes el-rei d. Sebastião, que Deus tenha no céu, mandou que em todo o seu reino se guardasse o Concílio Tridentino, o qual manda aos bispos que na execução de suas sentenças contra clérigos, e leigos, não usem facilmente de excomunhões, senão que primeiro prendam e procedam por outras penas, pelos seus ministros, ou por outros, e quando já sobre isto haja algum doutor que escrevesse o contrário, parece que não é bastante enquanto outro rei, ou outro concílio / que bem necessário era juntar-se sobre isto / o não revogue, porque se hão de julgar agravados os amancebados, alcoviteiros, onzeneiros, e os mais que por eles agravam dos juízes eclesiásticos, e que não obedeçam a suas penas, ainda que sejam censuras? de que efeito é logo a jurisdição eclesiástica? ou porque chamam a estes casos misti fori, se ainda depois de preventa se hão de entremeter a perturbar esta, e defender os culpados, para que se fiquem em suas culpas; não foi por certo esta a razão porque se chamaram misti fori, senão porque andassem à porfia a quem primeiro os pudesse castigar, emendar, e extirpar da terra; não nego que quando os juízes eclesiásticos procedem contra as regras de Direito, deve o secular desagravar o réu, mas fora daí não deve, nem el-rei se serve, nem Deus, que pelo que não importa se estorve a correição dos males, e se perturbe a paz entre os que a devem zelar, como se fez depois que veio a relação ao Brasil, e particularmente na Bahia, onde ela residia, e custava tão pouco aos agravantes com razão, e sem ela, seguirem seus agravos, e o eclesiástico tem o remédio tão longe para seus emprazamentos quanto há daqui ao reino, que são 1.500 léguas ou mais; e assim chegou o bispo deste estado d. Constantino de Barradas a termo de não ter quem quisesse servir de vigário-geral.

Uma coisa vi nesta matéria com a qual concluirei o capítulo / posto que em outro me há de ser forçado tornar a ela /, e foi que tendo o dito bispo declarado por excomungado nominatim a um homem, agravou para a relação, e saiu, que era agravado, e não se obedecesse à excomunhão menor, que se incorre por tratar com os tais, e fugiam por não se encontrar, e falar com ele, mandou-se lançar bando que sob pena de 20 mil cruzados todos lhe falassem, coisa que antes da excomunhão não faziam, senão os que queriam, porque era um homem particular.

Capítulo XLVI

De como d. Francisco de Souza tornou ao Brasil a governar as capitanias do sul, e da sua morte

Muito se receava no Brasil, pelo muito dinheiro que d. Francisco de Souza havia gastado da fazenda de Sua Majestade, que lhe tomassem no reino estreita conta; porém como nada tornou para entesourar, antes do seu próprio gastou, como o outro grão capitão, não tratou el-rei senão de lhe fazer mercês, e porque ele não pediu mais que o marquesado de Minas de São Vicente o tornou a mandar a elas, com o governo do Espírito Santo, Rio de Janeiro, e mais capitanias do sul, ficando nas do norte governando d. Diogo de Menezes, como no tempo do governador Luiz de Brito de Almeida se havia concedido a Antônio Salema.

Trouxe d. Francisco consigo seu filho d. Antônio de Souza, que também já cá havia estado para capitão-mor desta costa, e outro filho menino chamado d. Luiz; e Sebastião Parvi de Brito por ouvidor-geral da sua repartição, com apelação e agravo para relação desta Bahia; partiram em duas caravelas de Lisboa, e chegaram a Pernambuco em vinte e oito dias, onde ainda que não era do seu governo, e jurisdição, lhe fizeram muitas festas.

Dali se foi para o Rio de Janeiro, e começou a entender no seu governo da terra, e o filho no mar, onde dizia Afonso de Albuquerque, que então ali era capitão-mor, que lhe ficava para governar senão o ar, mas presto o deixaram, porque d. Francisco foi para as Minas, e d. Antônio para o reino com as mostras do ouro delas, de que levava feita uma cruz e uma espada a Sua Majestade, o que tudo os corsários no mar lhe tomaram, nem o governador teve lugar de mandar outra com uma enfermidade grande, que teve na vila de São Paulo, da qual morreu estando tão pobre, que me afirmou um padre da companhia, que se achava com ele à sua morte, que nem uma vela tinha para lhe meterem na mão, se a não mandara levar do seu convento; mas quereria Deus alumiá-lo naquele tenebroso transe, por outras muitas que havia levado diante, de muitas esmolas, e obras de piedade, que sempre fez.

Seu filho d. Luiz de Souza ainda que de pouca idade ficou governando por eleição do povo até que se embarcou para o reino, tomou de caminho Pernambuco, e ali ficou casado com uma filha de João Paes; e assim cessou o negócio das minas, posto que não deixam alguns particulares de ir a elas, cada vez que querem, a tirar ouro, de que pagam os quintos a Sua Majestade, e não só se tira de lavagem, mas da própria terra, que botam fora depois de lavada, se tira também com artifício de azougue.

Capítulo XLVII

Da nova invenção de engenhos de açúcar, que neste tempo se fez

Como o trato e negócio principal do Brasil é de açúcar, em nenhuma outra coisa se ocupam os engenhos, e habilidades dos homens tanto como em inventar artifícios com que o façam, e porventura por isso lhe chamam engenhos.

Lembra-me haver lido em um livro antigo das propriedades das coisas que antigamente se não usava de outro artifício mais que picar, ou golpear as canas com uma faca, e o licor que pelos golpes corria, e se coalhava ao sol, este era o açúcar, e tão pouco que só se dava por mesinha; depois se inventaram muitos artifícios, e engenhos para se fazer em maior quantidade, dos quais todos se usou no Brasil, como foram os dos pilões, de mós, e os de eixos, e estes últimos foram os mais usados, que eram dois eixos postos um sobre o outro, movidos com uma roda de água, ou de bois, que andava com uma muito campeira chamada bolandeira, a qual ganhando vento movia, e fazia andar outras quatro, e os eixos em que a cana se moía; e além desta máquina havia outra de duas ou três gangorras de paus compridos, mais grossos do que tonéis, com que aquela cana, depois de moída nos eixos, se espremia, para o que tudo, e para as fornalhas em que o caldo se coze, e incorpora o açúcar, era necessário uma casa de 150 palmos de comprido e 50 de largo, e era muito tempo e dinheiro o que na fábrica dela, e do engenho se gastava.

Ultimamente, governando esta terra d. Diogo de Menezes, veio a ela um clérigo espanhol das partes do Peru, o qual ensinou outro mais fácil e de menos fabrica e custo, que é o que hoje se usa, que é somente três paus postos de por alto muito justos, dos quais o do meio com uma roda de água, ou com uma almanjarra de bois ou cavalos se move, e faz mover os outros; passada a cana por eles duas vezes larga todo o sumo sem ter necessidade de gangorras, nem de outra coisa, mais que cozer-se nas caldeiras, que são cinco em cada engenho, e leva cada uma duas pipas pouco mais ou menos de mel, além de uns tachos grandes, em que se põem em ponto de açúcar, e se deita em formas de barro no tendal, donde as levam à casa de purgar, que é mui grande, e postas em andainas lhes lançam um bolo de barro batido na boca, e depois daquele outro, com o açúcar se purga, e faz alvíssimo, o que se fez por experiência de uma galinha, que acertou de saltar em uma forma com os pés cheios de barro, e ficando todo o mais açúcar pardo, viram só o lugar da pegada ficou branca.

Por serem estes engenhos dos três paus, a que chamam entrosas, de menos fabrica e custo, se desfizeram as outras máquinas, e se fizeram todos desta invenção, e outros muitos de novo; pelo que no Rio de Janeiro, onde até aquele tempo se tratava mais de farinha para Angola que açúcar, agora há já 40 engenhos.

Na Bahia 50, em Pernambuco 100, em Itamaracá 18 ou 20, e na Paraíba outros tantos; mas que aproveita fazer-se tanto açúcar se a cópia lhe tira o valor, e dão tão pouco preço por ele, que nem o custo se tira.

A figura das entrosas, e engenhos de açúcar, que agora se usam assim de água, como de bois, é a seguinte.

Neste mesmo tempo, que governava a Bahia d. Diogo de Menezes, entrou nela por fazer muita água uma nau da Índia, da qual era capitão Antônio Barroso, vindo primeiro em um batel a remos o mestre, que havia ido no galeão o ano passado, chamado Antônio Fernandes, o mau, a pedir socorro, porque vinha a nau por três partes rachada, e já com 14 palmos de água dentro, e o governador mandou logo duas caravelas com pilotos práticos, que a trouxessem ao porto, o que não bastou para que com a corrente da maré, que vazava, não se encostasse em uma baixa, onde por evitar maior dano lhe cortaram os mastros, e descarregaram com muita brevidade, e depois que de todo esteve descarregada, vendo que não tinha conserto, lhe mandou d. Diogo pôr o fogo, chegando quanto puderam à terra para se aproveitar a pregadura, como se aproveitou muita, a fazenda se entregou ao provedor-mor, que então era o desembargador Pero de Cascais, o qual sobre isso foi mandado do reino que fosse preso, como foi, e pelejando no mar com um corsário o feriram em um pé, de que ficou manco, mas no que toca à fazenda, livrou-se bem, a qual mandou el-rei cá buscar em sete naus da armada por Feliciano Coelho de Carvalho, capitão-mor que havia sido da Paraíba, e a levou a salvamento.

Livro quinto

Da História do Brasil do tempo que o governou Gaspar de Souza até a vinda do governador Diogo Luiz de Oliveira

Da vinda do décimo governador do Brasil Gaspar de Souza, e como veio por Pernambuco a dar ordem à conquista do Maranhão

Sabida por Sua Majestade a nova da morte de d. Francisco de Souza, tornou a juntar o governo do Brasil todo em um, e o deu a Gaspar de Souza, e porque os franceses no ano de mil seiscentos e doze tinham (sic) a povoar o Maranhão, dizendo que não tinham os reis de Portugal mais direito nele que eles, pois Adão o não deixara em testamento mais a uns que a outros, com este pretexto trouxeram 12 religiosos da nossa Ordem Capuchinhos para converterem os gentios, meio eficacíssimo para com muita facilidade os pacificarem, e povoarem a terra; mandou Sua Majestade ao governador que viesse por Pernambuco para daí dar ordem a lançar os franceses do Maranhão, e o povoar e fortificar, pois era da sua conquista pela Coroa de Portugal, e que d. Diogo de Menezes, seu antecessor, se fosse para o reino, pois tinha acabado o seu triênio, e ficassem governando a Bahia enquanto ele a ela não vinha o chanceler Rui Mendes de Abreu, e o provedor-mor da fazenda Sebastião Borges, os quais por serem ambos muito velhos e enfermos, ajuntou o governador por sua provisão Baltazar de Aragão, aqui morador, por capitão-mor da guerra por terra, por ter aviso que vinham inimigos à terra, e em Pernambuco, para a do Maranhão a Jerônimo de Albuquerque, que mandou com cem homens por mar cm quatro barcos descobrir os portos, e o que neles havia; o qual discorrendo a costa avante do Ceará foi até o Buraco das Tartarugas, e aí fez uma cerca, e deixou um presídio, donde mandando o capitão Martim Soares Moreno em um barco a descobrir o Maranhão, se tornou a Pernambuco a dar conta ao governador do que tinha feito, e pedir mais gente, e cabedal para a conquista, que o governador dilatou até a vinda de Martim Soares, e sua informação, ocupando-se entretanto no governo político, e administração da justiça, sem nesta fazer exceção de pessoas, pelo que era amado dos pequenos, e temido dos grandes; fez também fazer algumas obras importantes, como foi uma formosa casa para a alfândega sobre o varadouro, onde se desembarcam as fazendas das barcas, e algumas calçadas nas ruas da vila, e uma mui comprida no caminho de Jaboatão, onde com a muita lama atolavam os bois e carros, e não podiam trazer as caixas de açúcar dos engenhos.

Neste interim foi Martim Soares seguindo sua viagem, descobrindo e reconhecendo a baía, rios e portos do Maranhão, e por via de índios levou recado ao reino que estavam ali franceses em comércio, com o qual aviso mandou Sua Majestade ordem ao governador que tornasse a enviar a este descobrimento o dito Jerônimo de Albuquerque.

Capítulo II

De como mandou o governador a Jerônimo de Albuquerque a conquistar o Maranhão

Eleito Jerônimo de Albuquerque por capitão-mor da conquista do Maranhão, como temos dito, se foi logo às aldeias do nosso gentio pacífico, e por lhes saber falar bem a língua, e o modo com que se levam, ajuntou quantos quis: um contarei só do que houve em uma aldeia, para que se veja a facilidade com que se leva este gentio de quem os entende e conhece, e foi que pôs a uma parte bom feixe de arcos, e flechas, a outra outro de rocas, e fusos, e mostrando-lhos lhes disse: «Sobrinhos, eu vou à guerra, estas são as armas dos homens esforçados e valentes, que me hão de seguir; estas das mulheres fracas, e que hão de ficar em casa fiando; agora quero ouvir quem é homem, ou mulher». As palavras não eram ditas, quando se começaram todos a desempunhar, e pegar dos arcos, e flechas, dizendo que eram homens, e que partissem logo para a guerra; ele os quietou, escolhendo os que havia de levar, e que fizessem mais flechas, e fossem esperar a armada ao Rio Grande, onde de passagem os iria tomar.

Não ajuntou com tanta facilidade o governador os soldados brancos que queria mandar, porque exceto alguns, que por sua vontade se ofereceram a ir, os mais nem com prisões podiam ser trazidos, porque como os traziam de longe, e por matos dos engenhos e fazendas de noite, fugiam, e de 10 não chegavam quatro; porém caiu em uma traça mui boa, que foi obrigar aos homens ricos, e afazendados, que tinham mais de um filho, que dessem outro, com o que lhe sobejou gente; porque nenhum homem destes mandou seu filho, sem ao menos mandar com eles um criado branco, e dois negros.

Também pediu dois religiosos da nossa ordem, e o prelado lhe deu o irmão frei Cosme de S. Damião, varão prudente, e observantíssimo da sua regra, e frei Manuel da Piedade, mui perito na língua do Brasil, e respeitado dos índios Potiguares, e Tabajaras, assim por seu pai João Tavares, como por seu irmão frei Bernardino das Neves, dos quais temos tratado no livro precedente e porque a guerra não havia de ser só contra os índios, senão também contra franceses, que estavam com a fortaleza feita, e já prevenidos, deu o governador a Jerônimo de Albuquerque por companheiro o sargento-mor do estado Diogo de Campos Moreno, soldado experimentado nas guerras de França, e Flandres, e que sabia bem formar um campo, e os ardis e tretas da peleja.

Feito isto se embarcaram todos dia de S. Bartolomeu, 24 de agosto da era de 1614 anos, em uma caravela, dois patachos e cinco caravelões; na caravela ia o capitão-mor, e seu filho Antônio de Albuquerque por capitão de uma companhia de 50 arcabuzeiros, de que era alferes Cristóvão Vaz Moniz, e sargento João Gonçalves Baracho; em um dos patachos ia o sargento-mor do estado Diogo de Campos Moreno com 40 homens, no outro o capitão Gregório Fragoso de Albuquerque, que ia por almirante, com 50 soldados também arcabuzeiros, e seu alferes Conrado Lino, e sargento Francisco de Navaes.

Dos caravelões eram capitães Martim Callado com 25 homens, o sargento de Antônio de Albuquerque com 12, Luis Machado com 15, Luis de Andrade com 12, e Manuel Vaz de Oliveira com outros 12, e além desta gente branca, iam mais 200 índios de peleja, que Jerônimo de Albuquerque tinha escolhido nas aldeias da Paraíba, e o estavam esperando no Rio Grande os mais deles com suas mulheres e famílias, onde os foi tomar, e os repartiu pelas embarcações, lhe requereram os religiosos mandasse ficar as índias, que iam sem maridos, e algumas outras, que já de Pernambuco iam amancebadas, e assim se fez.

Dali foram ao Buraco das Tartarugas, onde havia deixado o presídio, no qual se havia já provado a mão com os franceses, que ali foram aportar na nau regente, e desembarcaram duzentos com o seu capitão às duas horas da tarde, onde lhes saíram o capitão Manuel de Souza e Sá com 18 arcabuzeiros, e matando-lhes alguns os fez embarcar, ficando também dos nosso um morto, e seis feridos, e deu por causa o monsieur a quem lhe perguntou porque se retirava, que viram muita gente na trincheira donde os nossos saíram, e temera que vindo de socorro lhes não poderiam escapar, não tendo por possível que tão poucos homens houvessem cometido a tantos, senão com as costas quentes (como diziam), e confiados nos muitos que atrás eles saíram, e os muitos eram vinte soldados, que haviam ficado por não terem pólvora, e munição, e se assomavam por cima da trincheira a ver de palanque a briga, que na praia se fazia, mas melhor causa dera se dissera que o quis assim Deus; e foi esta vitória como um presságio da que havia de conseguir no Maranhão, para onde se embarcou também Manuel de Sousa com os seus soldados, e Jerônimo de Albuquerque o fez capitão da vanguarda de todo o exército.

Capítulo III

Da guerra do Maranhão, e vitória que se alcançou

Do Buraco das Tartarugas se partiu a nossa armada aos 28 de setembro da dita era, e navegando três dias inteiros foi ao quarto surgir a uma barra de um rio chamado a Parca, onde houve opiniões se fariam algum forte, dizendo Diogo de Campos que não fossem logo buscar diretamente o inimigo aonde estava com toda a força, mas que lhe fossem pouco a pouco ganhando terra, contudo Jerônimo de Albuquerque disse que isso era infinito, e mandou ao piloto-mor Sebastião Martins com o capitão Francisco de Palhares, e treze soldados, que fossem sondar o rio, e reconhecer a terra, como foram, e tendo andado vinte léguas pouco mais ou menos deram na baía do Maranhão da banda do sul em um bom porto, que lhes pareceu capaz para estar a armada surta, com a qual informação se fez toda à vela, e navegando cinco dias por onde o batel tornou, e chegou a este porto aos 28 do mês de outubro, dia dos bem-aventurados apóstolos S. Simão e Judas, donde desembarcaram na terra firme, e começaram a fazer um forte a que chamaram de Santa Maria, no qual ainda que de faxina e matéria fraca, materiam suparabat opus, pela boa traça que lhe deu o capitão Francisco de Frias, arquiteto-mor de Sua Majestade nestas partes do Brasil, e este forte se fez ao leste da ilha de S. Luiz, onde estavam os franceses, os quais vendo as nossas embarcações, e sabendo pelos índios, que trazido (sic) por espias a pouca gente, que nelas estava, deram nelas uma noite e as tomaram com alguns marinheiros, que ainda se não haviam desembarcado, e dali a oito dias, que era o de Santa Isabel rainha de Portugal, nelas mesmas, e nas suas, com mais 46 canoas, em que iam três mil índios flecheiros, se passaram da ilha, e foram surgir espaço de dois tiros de mosquete, abaixo do nosso forte, onde logo começaram a desembarcar os das canoas, e das outras embarcações maiores, ficando o seu general Daniel de Lancé (de la Touché), que era monsieur de Reverdière (sic), e Calvinista, nas maiores ao pego, esperando que enchesse a maré para sair com os mais, o que visto pelos nossos, e que se deixavam fortificar em terra, e pôr-nos cerco, não era o nosso forte bastante para lhes resistir, nem havia nele mantimentos bastantes para resistir à fome, determinaram sair logo a eles, como fizeram, indo Jerônimo de Albuquerque com 80 arcabuzeiros e 100 flecheiros pela montanha, e Diogo de Campos pela praia com o resto da gente, que era ainda menos, que ficavam no forte 60 soldados e alguns índios a cargo do capitão Salvador de Mello, para que se fosse necessário socorro o desse, e indo assim marchando o sargento-mor pela praia, chegou um francês trombeta, em uma canoinha, que remavam quatro índios, e lhe deu uma carta do seu general monsieur de Reverdière, de grandes ameaças, se lhe quisessem resistir, e que lavava as mãos do sangue, que se derramasse, porque tinha por si o direito da guerra, e muito maior força, a qual carta o sargento-mor meteu entre o véu do chapéu, e mandou o portador com outro véu nos olhos ao forte, para que o tivessem preso entretanto, porque não havia já tempo para mais outra resposta que esperar o sinal, que Jerônimo de Albuquerque havia de dar para remeterem, o qual dado com um grande urro, que deu o nosso gentio ao sair da brenha, donde o inimigo se não receava, remeteram também os da praia, indo em meio deles os nossos dois frades, frei Manuel, e frei Cosme, cada um com uma cruz na mão, animando-os, e exortando-os a vitória, que Nosso Senhor foi servido dar-lhes, em tal modo, que pouco mais de meia hora mataram 70 franceses, e entre eles o tenente do seu general, tomaram vivos nove, e puseram os mais em fugida, morrendo dos nossos somente quatro, e alguns feridos, entre os quais foi um o capitão Antônio de Albuquerque, filho do capitão, com dois pelouros de arcabuz em uma coxa.

Visto pelo general francês este destroço dos franceses, e dos seus índios, que ficaram muitos mortos, e os mais fugidos, e que esta fora a resposta da sua arrogante carta, se tornou para a ilha com a sua armada, e menos arrogância.

Capítulo IV

Das tréguas, que se fizeram entre os nossos e os franceses no Maranhão

Ao dia seguinte mandou o general dos franceses outra carta a Jerônimo de Albuquerque, em que lhe fazia cargo do mal que havia guardado as leis da guerra em lha dar sem primeiro responder à outra sua carta, antes lhe prender o portador, ameaçando-o que se lho não mandava com os mais que lá tinha, havia de enforcar a sua vista os portugueses que tinha na ilha, que haviam levado com os navios, e não se enganasse pela vitória alcançada, cuidando alcançaria outra, porque lhe haviam ficado ainda muitos e bons soldados, fora outros que esperava de França, e muitos milhares de gentios, com que lhes havia fazer cruel guerra, e tomar vingança das crueldades, que haviam usado com os seus, e assinou-se ao pé da carta «Este seu mortal inimigo de Reverdière». A esta respondeu Jerônimo de Albuquerque que ele senhor de Reverdière fora o que quebrara as leis, e prática da guerra, mandando-lhe tomar os navios, que estavam com quatro pobres marinheiros, desarmados no porto da conquista de Sua Majestade, sem lhe escrever primeiro, senão depois de ter lançado em terra junto ao seu forte trezentos franceses, e três mil índios armados, que se começavam a fortificar donde já não havia outra resposta senão a que dá o direito, que é com uma força desfazer outra, e que se ele lá enforcasse os portugueses cativos, mal seria, que faria aos seus, que cá tinham; estas, e outras razões continha a carta, a que logo o francês respondeu com outra já mais branda e cortês, e assim foram as que dali por diante se escreveram de parte a parte, e por fim sucedeu como a jogadores de cartas, que depois de grandes invites e revides, de restos vieram a partido, e concerto, sobre o qual (havido salvo-conduto dos generais) vieram ao nosso forte de Santa Maria o capitão Malharte, e um cavaleiro da ordem de S. João, e foi aos seus navios, onde o general então estava, Diogo de Campos Moreno, colega do capitão-mor, e o capitão Gregório Fragoso de Albuquerque, seu sobrinho, e depois de declararem uns e outros o que queriam, e assentarem que o general francês, pois cometia as pazes, fizesse os capítulos delas, se vieram os nossos mensageiros, e se foram os seus, e ao dia seguinte tornou o capitão Malharte com os capítulos por escrito, que eram os seguintes:

FORMA DAS TRÉGUAS

Artigos acordados entre os senhores Daniel de Lancé (La Touché), senhor de lá Raverdière, Lugar tenente general do Brasil pelo cristianíssimo rei de França e de Navarra, agente de Micer Nicolas de Harley, senhor de Sansy, do Conselho de Estado do dito senhor rei, e do Conselho Privado, barão de Molé, e Grosbués; e por Micer de Rasilli, entre ambos lugar tenentes generais por el-rei cristianíssimo nas terras do Brasil com cem (sic) léguas de costa com todos os meridianos nelas inclusos; e Jerônimo de Albuquerque, capitão mor pela Majestade de el-rei Filipe Segundo da jornada do Maranhão, e assim o capitão e sargento-mor de todo o estado do Brasil, Diogo de Campos, colega, e colateral do dito capitão-mor, et cetera.

Item - Primeiramente a paz se acordou entre os ditos senhores do dia de hoje até o fim de novembro (sic) do ano de mil seiscentos e quinze, durante o qual tempo cessaram entre eles todos os atos de inimizade, que hão durado de 28 (sic) de outubro até hoje, por falta de saber as tenções de uns e outros, donde se seguia grande perda do sangue cristão de ambas as partes, e grandes desgostos entre os ditos senhores.

Item - Se acorda entre os ditos senhores que enviaram às Suas Majestades Cristianíssima, e Católica, dois fidalgos para saber suas vontades tocantes a quem deve ficar nestas terras do Maranhão.

Item - Durante o tempo que os ditos mensageiros tardarem em tornar da Europa e trazer de Suas Majestades o acordo, e ordem do que se deve seguir, nenhum português passará a ilha, nem francês a terra firme de leste sem passaporte dos senhores generais, exceto eles e seus criados somente, que puderam ir, e vir aos fortes da ilha, e terra firme todas as vezes que lhes parecer.

Item - Que os portugueses não trataram coisa alguma com os índios do Maranhão, a qual não seja tratada pelos línguas do senhor Reverdière, e nem eles consentiram pôr os pés em terra a menos de duas léguas de suas fortalezas, nem de seus portos, sem permissão do dito senhor.

Item - Que tanto que o recado vier de Suas Majestades, a nação que se mandar ir se aprestará dentro de três meses para deixar ao outro a terra.

Item - Se acorda que os prisioneiros, que foram tomados de uma parte, e da outra, assim cristãos como gentios, fiquem livres, e sem alguma lesão; mas se alguns deles por algum tempo quiserem ficar na parte que se acham, lhes será permitido.

Item - Que o senhor de Reverdière deixara o mar livre aos senhores Albuquerque e Campos, para que possam nos seus navios fazer vir todas as sortes de vitualhas, que houverem mister, com toda a seguridade, e se suceder que lhes venha socorro de gente de guerra, nem por isso haverá alteração alguma enquanto durar o tempo da paz, da maneira que está assentado.

Item - Que nenhum acidente em controvérsia do que está assentado por estes senhores terá capacidade de fazer romper este contrato de paz, a causa das grandes alianças, que hoje há entre Suas Majestades, e o prejuízo que pode vir em alterar-se; e se suceder algum caso de agravo entre os cristãos ou gentios de uma e outra parte, a nação agravada fará a sua queixa ao seu general para lhe dar remédio, e quanto a outras coisas de menos importância os ditos senhores não as especificam, porque se confiam em suas palavras, nas quais não faltaram jamais, como gente de honra, e para seguridade, e firmeza de tudo o atrás declarado mandaram fazer estas, em que todos três os ditos senhores se assinaram, e selaram com os selos de suas armas, feita em armada francesa, diante o forte dos portugueses no rio Maranhão, 27 de novembro de 1614 anos.


Depois de apresentados estes capítulos, e vistos pelos nossos capitães, ao dia seguinte vieram monsieur de Reverdière, e monsieur del Prate (du Prat), e frei Angelo, comissário dos Capuchinhos, com três frades companheiros, e outros fidalgos franceses com mostras de muita alegria, a que da nossa parte se respondeu com a mesma, e se assinaram as pazes no nosso forte de Santa Maria, onde estiveram todo o dia, e à tarde se embarcaram com grande salva de artilharia, e se foram para a ilha.

Os que levaram esta embaixada a Espanha foram o sargento-mor Diogo de Campos, e com ele como em reféns o capitão Malharte francês, e da mesma maneira foi como embaixador francês o capitão Gregório Fragoso de Albuquerque, que lá morreu, e também se foram logo os frades franceses, vendo o pouco fruto que faziam na doutrina dos gentios, por lhe não saberem a língua, deixando aos dois da nossa custódia, que a entendiam, e sabiam seus modos, e não foram pouco admirados de ver que nestas partes tão remotas houvesse religiosos tão observantes da regra do nosso seráfico padre S. Francisco, não menos o ficaram os nossos de ver que religiosos de tanta virtude, e autoridade viessem em companhia de hereges, posto que nem todos o eram, que muitos eram católicos romanos, que ouviam missa, confessavam-se, e comungavam-se; também se partiu Manuel de Souza de Sá em um caravelão com a nova ao governador geral Gaspar de Souza, mas arribou às Índias, e de lá a Lisboa, donde com a nova lhe trouxe juntamente cartas de Sua Majestade, e ordem do que havia de fazer.

Do socorro, que o governador Gaspar de Souza mandou por Francisco Caldeira de Castelo Branco ao Maranhão

Entendendo o governador a necessidade que haveria no Maranhão de socorro assim de gente como de munições e mantimentos, logo no ano seguinte de mil seiscentos e quinze, ordenou outra armada, de que mandou por capitão-mor Francisco Caldeira de Castelo Branco, por almirante Jerônimo de Albuquerque de Mello em uma caravela, o capitão Francisco Tavares em outra, e João de Souza em um caravelão grande.

Partiram do Recife, porto de Pernambuco, em 10 dias do mês de junho da dita era, e aos quatorze chegaram à enseada de Mucuripe, que dista da fortaleza do Ceará três léguas, onde ancoraram, e saiu a gente em terra a se lavar e refrescar, porque iam alguns doentes de sarampo, que com isto guareceram, e os sãos pescaram com uma rede, que lhe deu o tenente da fortaleza, e tomaram muito peixe.

Aqui achou o capitão Francisco Caldeira três homens, que Jerônimo de Albuquerque, capitão-mor do Maranhão, mandava por terra pedir socorro ao governador, e estes eram Sebastião Vieira, Sebastião de Amorim, e Francisco de Palhares, dos quais os dois primeiros não deixaram de continuar seu caminho com as cartas, que levavam do Maranhão, e outras que daqui se escreveram, mas o Palhares se embarcou na armada assim pelo socorro, que já nela ia, como por dizer o tenente que havia poucos dias se partira daquele porto um patacho, que também el-rei mandara de Lisboa com munições e pólvora, e mais coisas necessárias, aos dezessete se tornou a nossa armada a fazer à vela, e foi ancorar ao Buraco das Tartarugas aos dezoito, donde mandou o capitão-mor um língua com alguns índios a uma aldeia da gente do Diabo Grande, que era um principal dos Tabajaras assim chamado, ficando entretanto os mais pescando na praia, e comendo abóboras e melancias, que acharam ali muitas, das plantas que havia deixado Manuel de Souza de Sá quando ali esteve, e Jerônimo de Albuquerque quando passou; e depois de tomar língua com os nossos índios, e mais quatro, que se ofereceram do Diabo Grande para a viagem, a tornaram a seguir até a barra do rio Apereá, onde surgiram dia de S. João Batista, e ao entrar tocou o patacho, em que ia o capitão-mor, em um, banco de areia, de que escapou milagrosamente, porque havendo só cinco palmos de água, e demandando o capitão 10, indo com as velas todas enfunadas o cortou, ou saltou como quem salta a fogueira de S. João, e se pôs da outra parte do banco onde era fundo: dali mandou um barco com seis homens do mar, e três soldados, de que ia por capitão Francisco de Palhares, para que fossem dar nova a Jerônimo de Albuquerque de como ali estavam, e lhes mandasse pilotos que os levassem pelo rio adentro, ou ordem do que haviam de fazer, como logo lhes mandou dois pilotos, os quais foram de parecer que não fossem por dentro, por causa de ser o rio de pouco vento, e muitos baixos, por conseguinte a viagem arriscada, e quando menos detençosa, e assim tornaram a desembarcar, e foram por fora em dois dias surgir ao nosso porto da nossa fortaleza de Santa Maria véspera da Visitação da Senhora, que não foi pequeno contentamento do capitão-mor Jerônimo de Albuquerque, e dos mais que ali estavam sofrendo grandes necessidades, vendo que os visitava o senhor naquele dia com tão grande socorro, e assim se festejou com salva de toda a artilharia e arcabuzaria de parte a parte, como pelo contrário se entristeceram os franceses, entendendo que alterariam os nossos as pazes, que com eles tinham feito; e assim sucedeu, que acabado de descarregar os navios da fazenda, mantimentos, pólvora, e munições, que levavam, feita entrega de tudo ao almoxarife, e dos soldados ao capitão-mor, com que reformou as companhias, que tinha, e fez mais duas de novo de sessenta homens cada uma, que entregou a Jerônimo de Albuquerque de Mello, seu sobrinho, e a Francisco Tavares.

Logo mandou chamar o general dos franceses monsieur Raverdière, e depois de lhe fazer uma formosa mostra da sua soldadesca da praia, onde o foi receber com Francisco Caldeira até a fortaleza, se recolheram todos três para dentro, e lhe disse o capitão-mor como Francisco Caldeira de Castelo Branco levava ordem do governador geral Gaspar de Souza para por armas, quando não quisesse por vontade, lhe fazer despejar o Maranhão, e as fortalezas, que tinha na ilha de S. Luiz, porque não havia consentido nas tréguas, nem ainda sabia delas; ao que o Raverdière respondeu que conforme o concerto que tinham feito, se devia esperar resposta de seus reis, a quem tinham escrito, e não inovar nem alterar coisa alguma; mas contudo que iria dar conta aos seus do que se tratava, e brevemente responderia, o que fez daí a quatro dias, pedindo que fossem lá o capitão Caldeira, e o padre frei Manuel da Piedade, propor aos seus o que se havia tratado, e que eles levariam a última resolução, e resposta do negócio, os quais se embarcaram na mesma lancha francesa, que havia levado a carta, e desembarcando na ilha de S. Luiz se foram à fortaleza do nome do mesmo santo, onde os franceses estavam, e se detiveram lá em altercação 13 dias, da qual dilação presumindo mal Jerônimo de Albuquerque começava já aperceber para levar o negócio à força, e lhe fora muito fácil por ter já todo o gentio do Maranhão inclinado ao ajudarem contra os franceses; porém eles se resolveram em largar tudo sem mais contenda, dando-lhes embarcações, em que se fossem para França, pelo que se passaram os nossos para a ilha, a um forte e cerca, que fizeram, a que puseram o nome de S. Joseph, e ali os deixemos por ora, porque importa tratar de outras coisas.

Capítulo VI

De como o capitão Baltazar de Aragão saiu da Bahia com uma armada contra os franceses, e se perdeu

Recebendo Baltazar de Aragão a provisão de capitão-mor da guerra desta Bahia, junto com o aviso da vinda dos inimigo franceses, como dissemos no capítulo primeiro, logo começou a perceber e fortificar assim a cidade como a praia, cercando-as de suas cercas de pau a pique, com tanta diligência que a todo o instante trabalhava com os seus escravos, e criados sem ocupar a outros, senão era a oficiais de carpinteiros, e pedreiros, com que fez de pedra e cal o muro e portal da barda do Carmo, que até então era de terra de pilão, reformou e fortificou as portas, o que tudo pagou da sua bolsa, e até os paus para a cerca da praia mandou vir quase todos nas barcas dos seus engenhos; estando assim prestes aguardando os inimigos, soube que andavam na barra para a parte do morro de São Paulo seis naus francesas, e aprestando das portuguesas, que estavam à carga outras tantas, ele se embarcou em uma sua, que já tinha dentro 300 caixas de açúcar, levando consigo suas charamelas, baixela de prata, e as mais ricas alfaias de sua casa, porque determinava levar logo de lá a presa ao governador, que estava em Pernambuco.

Das outras naus deu a melhor a Vasco de Brito Freire, que fez seu almirante, e as outras a Gonçalo Bezerra, e Bento de Araújo, que eram capitães de el-rei, e comiam seu soldo nesta cidade, e ao alferes Francisco do Amaral, e a outro chamado Queirós; no dia seguinte depois que partiram, e foi o do bem-aventurado Apóstolo S. Mathias, encontraram com os franceses, e pelejaram de parte a parte animosamente, e os nossos com muita vantagem, porque lhes tomaram uma nau, e lhes trataram a almeiranta tão mal, que ao outro dia seguinte se foi ao fundo, só a capitania quis Baltazar de Aragão poupar, não querendo que lhe tirassem senão abalroar com ela, e tomá-la Sá e inteira para a levar por troféu em seu triunfo, mas não sei se com este vento se com outro, que lhe deu nas velas, quando ia já para a ferrar pendeu tanto a sua nau, que tomou água pelas portinholas da artilharia, e calando-se pelas escotilhas, que iam abertas, foi entrando tanta, que em continenti se foi ao fundo com seu dono, o qual quando se fazia, dizem que dizia «Faço o meu ataúde», e com ele se afogaram mais de 200 homens assim dentro na nau, como nadando no mar, donde não houve quem os tomasse, porque a Almeiranta se recolheu, e os mais com ele, podendo seguir a vitória com muita facilidade, e se alguns se salvaram foi nadando até às naus dos inimigos, que os tomaram, como foi Francisco Ferraz, filho do desembargador Baltazar Ferraz, que era sobrinho da mulher do Aragão, o qual depois deitaram os franceses em terra 60 léguas do Rio Grande para o Maranhão com outros dois ou três homens, onde de fome e cansaço do caminho morreu ao passar de um rio a pura míngua, sendo que tinha de patrimônio nesta Bahia mais de 50 mil cruzados, porque também seu pai morreu logo de desgosto; e publicamente se disse ser justo juízo de Deus por um caso exorbitante, que pouco antes havia acontecido, e foi o seguinte.

Tinha Baltazar Ferraz aqui um sobrinho, o qual se enamorou de uma moça casada com um mancebo honrado, e chegou a tirar-lha de casa, e trazê-la de sua mão por onde queria, e finalmente mandá-la para Viana donde era natural; querelou dele o marido, diante do ouvidor-geral Pero de Cascais, que o prendeu valorosamente, e preso na cadeia se livrou até final sentença, trabalhando o tio tanto em desviar testemunhas, recusar a parte, e outras astúcias, que os desembargadores o julgaram por solto, e livre, e se os pregadores o estranhavam no púlpito, diziam que eram uns ignorantes, e que nunca outra mais justa sentença se dera no mundo, e assim não havia mais remédio que apelar para Nosso Senhor Jesus Cristo, o qual como reto juiz permitiu que o réu se embarcasse com o primo e parente, e todos acabassem desastradamente, e o tio que se não embarcou também com eles.

Outro mancebo chamado Agostinho de Paredes foi a nado até a almeiranta dos inimigos, mas como estavam coléricos por lhe terem a nau tão maltratada, não o quiseram recolher, antes indo subindo o feriram com um pique em um ombro, de que depois de escapar do naufrágio, e dos tubarões, que o iam seguindo pelo sangue, nadando mais de uma légua para a terra, esteve a ponto de morte em mãos de cirurgiões, mas sarou, e viveu depois muitos anos.

Capítulo VII

Da vinda do governador Gaspar de Souza de Pernambuco à Bahia, e do que nela fez

Depois que o governador mandou o capitão Francisco Caldeira de Castelo Branco com o socorro ao Maranhão, e soube o sucesso da morte do capitão Baltazar de Aragão na Bahia, pela qual nela sua presença mais necessária, deu uma chegada, e não esperou que o fossem receber com pálio e solenidade, como se soe fazer aos governadores quando vem, mas secretamente, com só um criado se foi meter em casa, dizendo que o fazia por sentimento da morte de Baltazar Aragão.

O dia seguinte foi à Sé. O primeiro dia que foi presidir a relação fez uma prática aos desembargadores à cerca das queixas, que deles tinha ouvido, de que não ficaram mui contentes, e se as de ouvido lhes não ficaram no tinteiro, menos lhe ficou depois alguma, se a viu, que logo a não repreendesse.

É incrível o cuidado com que Gaspar de Souza vigiava sobre todos os ministros, e ofícios de justiça, e fazenda, da milícia e da República, sem lhe escapar o erro ou descuido do almotacé, ou de algum outro, que não emendasse. Esta era a sua ocupação, não jogos e passatempos, com que outros governadores dizem evitam a ociosidade, os quais ele desculpava, dizendo que teriam mais talento, pois com lidar, e trabalhar de dia, e de noite, nas coisas do governo confessava de si, que não acabava de remediá-las, mas foi pouco venturosa a Bahia em não o gozar muito tempo, porque não havia estado nela quatro meses, quando foi chamado a Pernambuco, pelo recado de el-rei, que lhe veio à cerca do Maranhão, e assim fez uma junta, ou vistoria na Sé com os desembargadores, e oficiais da fazenda, da Câmera, e da arquitetura, sobre se a derribariam, e fariam de novo, ou reparariam somente o que estava arruinado que era um arco da nave, uma parede, e o portal principal, e posto que o seu voto era que só se reparassem as ruínas, acrescentasse a capela-mor, e se fizesse um coro alto, que ainda não havia; contudo os mais votos foram que se fizesse de novo, como se começou a fazer, para tarde ou nunca se acabar; com isto se embarcou o governador para Pernambuco, e ficaram governando a Bahia o chanceler Rui Mendes de Abreu, e o provedor-mor da fazenda Sebastião Borges, como dantes.

Capítulo VIII

De como o governador tornou para Pernambuco, e mandou Alexandre de Moura ao Maranhão

O governador se embarcou em uma caravela de castelhanos, que nesta Bahia estava invernando para no verão ir ao rio da Prata, e esta viagem acertei de ir a Pernambuco com ele, e fomos em poucos dias, mas um antes de chegarmos houve tão grande tormenta do Sul, que temendo o governador de se sossobrar a caravela com as grandes marés, mandou soltar dos ferros os presos, que levava condenados à conquista do Maranhão, e me mandou pedir alguma relíquia, para deitar ao mar, e que fizéssemos as nossas deprecações a Deus Nosso Senhor, como fizemos, e meu companheiro lhe mandou o cordão com que estava cingido, o qual penduraram do bordo até o mar, e quis Nosso Senhor que a caravela em continente se quietasse, e moderasse o vento, e os mares, de modo que ao dia seguinte entramos com bonança.

O que visto pelos castelhanos não quiseram tornar o cordão, dizendo que por ele esperavam ir seguros de tempestades ao rio da Prata, nem foi esta só a vez, mas infinitas as que Deus por meio do cordão do nosso seráfico padre São Francisco há livrado a muitos de naufrágios, e feitas outras muitas maravilhas, pelo que lhe sejam dadas infinitas graças, e louvores.

O governador achou a Manuel de Souza de Sá, que o estava aguardando com cartas de el-rei em Pernambuco sobre o negócio do Maranhão, em cujo cumprimento aprestou logo nove navios, quatro grandes e cinco pequenos, com mais de 900 homens entre brancos e índios, com plantas, e gados para povoarem a terra, e armas para a fazerem despejar aos franceses, quando não quisessem de outro modo, porque assim o mandava el-rei, e porque neste tempo era já vindo Vasco de Souza para capitão-mor de Pernambuco, e vagava Alexandre de Moura, que o havia sido, lhe encarregou o governador esta empresa, dando-lhe todos os seus poderes para prover nos ofícios da república e milícia como lhe parecesse.

Foi por almirante desta frota Paio Coelho de Carvalho, que também havia acabado de ser capitão-mor de Itamaracá, e depois de se ir do Maranhão para o reino, se fez religioso da ordem do nosso padre São Francisco na província da Arrabida. Os capitães dos outros navios eram Jerônimo Fragoso de Albuquerque, Manuel de Souza de Sá, Manuel Pires, Bento Maciel, Ambrósio Soares, Miguel Carvalho, André Corrêa; o capitão-mor Alexandre de Moura levou consigo dois Padres da Companhia de Jesus, e com este santíssimo nome se partiram do Recife a 5 de outubro da era de 1615.

O governador nem por andar ocupado nestas coisas deixava de entender nas do governo da terra, como fez em tempo de Alexandre de Moura, de que Vasco de Souza menos sofrido se enfadou muito, e mandou seu irmão religioso da ordem do nosso padre, que consigo trouxe, com requerimento a el-rei que se servisse dele em outra coisa, porque ali estava ocioso, e só o governador fazia tudo, pelo que el-rei, ouvidas suas razões, lhe mandou provisão para que viesse por capitão-mor da Bahia, e a governasse, como o fez.