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ArribaAbajoCapítulo X

Ora, quatro ou cinco dias depois, Luís Garcia que, na previsão de viagem, começara a arranjar alguns papéis esparsos e antigos, dispôs-se a concluir esse trabalho, não obstante haver sido dispensada a comissão. Era dia de ano bom, -uma bela manhã, fresca, límpida, azul. Tinham ido à missa na capela do convento; almoçaram em família, com a presença do Sr. Antunes, que inaugurara uma sobrecasaca, e trazia nessa manhã um aspecto, não somente venerador, mas até venerável.

Iaiá acordara extremamente alegre e buliçosa. O Sr. Antunes levara-lhe um ramalhete de cravos, dizendo que era para que ela recebesse outros ramalhetes durante todo o ano; e a menina, depois de o receber e agradecer com uma mesura, foi pô-lo num vaso, sobre o parapeito da janela da alcova. O Sr. Antunes despediu-se dela, meia hora depois de almoçado.

-Já vai?

-Vou jogar uma partida de bilhar com o Jorge, disse familiarmente o pai de Estela. Viremos cedo.

-Ele vem jantar?

-Quero ver se o trago.

-Mas... papai não está prevenido, objetou Iaiá.

-Está; foi ele próprio que me autorizou a trazê-lo. Verdade é que fui eu que o pedi. Devemos muito àquele moço, e ao defunto pai e à mãe, a Sra. D. Valéria, que Deus tenha. Até logo.

Iaiá ficou só, e um instante pensativa; mas, logo depois ergueu os ombros, pegou de um trabalho de agulha, inventado para matar o tempo, e caminhou para o gabinete do pai, onde o foi achar com Estela.

-Virgem Nossa Senhora! disse a moça parando à porta.

Ao pé da secretária estava uma vasta cesta, transbordando de papéis; sobre a secretária papéis; papéis na mão de Luís Garcia; outros na mão de Estela; alguns esparsos no chão. Era uma liquidação de seis anos. Luís Garcia tinha o costume de guardar tudo, cartas, exemplares de jornais em que havia alguma cousa de interesse, apontamentos, simples cópias. De longe em longe inventariava e liquidava o passado. Havia já alguns anos que não fazia a costumada operação. Começara quando supunha ter de deixar a Corte; agora tratava de concluir. Estela tinha entrado pouco antes da enteada; sentara-se em uma cadeira rasa, e entretinha-se a receber ou apanhar algum pedaço de jornal velho, e a ler algum trecho em que os olhos acertavam de cair.

-Que é? disse Luís Garcia logo que a filha soltara a exclamação.

-Papai vai ficar afogado em papel, disse a moça.

Luís Garcia não respondeu; voltara os olhos para uma carta que tinha na mão, e que, sem dúvida, lhe trazia alguma recordação amarga, porque ele sorria tristemente. Leu-a toda; releu alguns trechos; depois fez um gesto de desdém, rasgou-a e deitou os pedaços à cesta.

Iaiá foi sentar-se do outro lado, a poucos passos do pai.

Na secretária, ao pé deste, havia um maço de cousas que serviam, um maço pequeno; a grande maioria era a dos destroços inúteis. Não é isso mesmo a imagem do passado? De tantos sucessos que nos aturdiram, comoveram, atulharam a vida, de tantas cóleras, alegrias, desânimos, de tudo isso que pareceu duradouro, o resíduo único é um punhado de recordações, ou saborosas ou amargas. Luís Garcia desdobrava às vezes um jornal, avaramente guardado havia anos; duas cruzes ou alguns traços indicavam o trecho que nesse tempo lhe chamara a atenção. Relia-o agora; buscava o motivo da reserva e sorria. A impressão que comunicara algum interesse ao escrito desaparecera de todo; o escrito era um esqueleto. Também as cartas eram assim. Raras escapavam à destruição; as mais delas eram dilaceradas, umas em dous pedaços, -as ínfimas,- outras em trinta, as que podiam ter alguma gravidade. Estela, que o ajudava, pegou casualmente em uma carta, cuja letra do sobrescrito lhe não pareceu estranha.

-Eu conheço esta letra, disse ela.

-Deixa ver.

Estela deu-lhe a carta.

-É do Dr. Jorge, disse o marido.

Abriu-a, e depois de ler algumas linhas, sorriu. Leu-a depois até o fim. Quando acabou, dobrou-a e ficou a olhar para a mulher; tornou a desdobrá-la maquinalmente.

-Vou restituí-la, disse ele depois de curta pausa; talvez se envergonhe de haver escrito estas cousas...

E dirigiu os olhos à carta, com uma insistência de aguçar o mais embotado apetite. Depois, volveu a cabeça um pouco para trás, onde ficava a filha, a distância, de olhos baixos; abafou a voz e disse a Estela:

-Nunca soubeste do verdadeiro motivo que o levou à guerra?

Estela ficou ainda mais pálida do que era; o sangue todo refluiu-lhe ao coração, donde lhe não saiu uma só palavra; foi com um gesto negativo que ela respondeu. E se não podia empalidecer mais, podia corar e corou de vergonha. Luís Garcia não viu nem a primeira, nem a segunda impressão de suas palavras. Enrolava e desenrolava com os dedos um dos cantos da carta. Naturalmente relembrava os sucessos daqueles cinco anos, as confidências da mãe e do filho.

-Quem diria que depois de tamanho sacrifício... O que são rapazes! O que são paixões! Ele gostava de uma moça; não sei quem era, mas suponho... A mãe fez quanto pôde para domá-lo; quando desesperou, lembrou-se de o mandar para o Sul; ele aceitou. Fui confidente de um e de outro. Tempos depois de embarcar... espera... a data há-de estar aqui... 67... Ainda em 67 durava a tal paixão; afinal parece que só esperava o fim da guerra para acabar também. Morreu-lhe a paixão e ele engorda. Nunca suspeitaste nada?

-Não, murmurou Estela.

Luís Garcia deu a carta à mulher, que a recebeu trêmula e fria.

-Lê, que é interessante, disse ele.

Estela olhou para o papel e para o marido, vacilante, sem saber o que faria e o que pensasse.

-Lê; é curioso, disse este, que voltara aos demais papéis, abrindo uns, separando outros, tranqüilo e indiferente.

Estela, sem levantar a cabeça, olhou ainda de esguelha para ele, como a procurar-lhe na fronte a intenção escondida, se porventura havia alguma; e esse gesto era tão travado de receio e hesitação, era sobretudo tão dissimulado, que ela própria o sentiu e arrependeu-se. Cravou depois os olhos no papel, sem ler, sem fitar nenhuma linha, uma palavra única. Não via as letras; via, ao longe, dous pombos que voavam e a candura de seus lábios embaciada por uns lábios de homem; nada mais. A mão tremia; ela firmou-a sobre a borda da secretária; mas o tremor, ainda que pouco perceptível, não cessou.

-Leste? perguntou Luís Garcia dobrando um jornal que acabava de passar pelos olhos.

Estela fez um gesto para que esperasse um instante. Não reparava que havia decorrido tempo suficiente para haver lido a carta duas vezes. Fez um esforço; voltou a página; duas ou três frases lhe feriram os olhos: «Meu amor não sabe o que seja impaciência ou ciúme ou exclusivismo; é uma fé religiosa que pode viver inteira em muitos corações» - «O essencial é saber que amo a mais nobre criatura do mundo» - «A paixão veio comigo, e se não cresceu é porque não podia crescer; mas transformou-se. De criança que era, fez-se homem de juízo.» Chegou ao fim da carta ou pareceu ter chegado; dobrou-a, e não se atreveu a dizer nada; depois tornou a abri-la.

-Que poesia, hem? disse Luís Garcia sorrindo.

E o sorriso era tão natural, tão despreocupado, tão honesto, que Estela ficou tranqüila. Tinha em grande conta a dignidade e a sinceridade do marido; não podia supor-lhe tanta hipocrisia nem tamanha indiferença. Sorriu também, mas um sorriso de aquiescência, sem convicção nem espontaneidade. Luís Garcia inclinou-se para ela; falou-lhe com a mesma voz abafada de pouco antes; referiu-lhe o amor que Valéria tinha ao filho e a estratégia usada para o fim de o arredar do Rio de Janeiro.

-Naquele tempo, disse ele, não sei se cheguei a arrepender-me de a ter apoiado; hoje não. O filho ficou são e salvo de seus amores, com um posto e honras de sobra.

-É verdade, murmurou Estela, que o escutara com uma atenção dispersa e impaciente.

Logo depois ergueu-se e foi à janela. Ali sacudiu a cabeça com um gesto enérgico. Talvez lutavam nela forças contrárias; ou era o seu passado que emergia da sombra do tempo, com todas as cores vivas ou escuras, com as delícias ocultas e nunca reveladas, e ao mesmo tempo com as amarguras e resistências. Era isso; era o coração que mordia impaciente o freio da necessidade e do orgulho, e vinha pedir ainda uma vez o seu quinhão de vida, e pedia-o em nome daquela carta, expressão remota de um amor desenganado e impassível. Estela sufocava esses ímpetos, mas eles vinham. Após alguns minutos, deixou a janela, tornou à cadeira onde estava. Luís Garcia lia então um retalho de jornal. Não chegou a levantar os olhos.

Defronte, Iaiá tinha os olhos cravados na madrasta. Ouvira a princípio o nome de Jorge e não lhe prestara muita atenção; mas uma ou duas palavras soltas do pai haviam-lhe despertado a curiosidade. Iaiá ergueu a cabeça, inclinou-a depois, ouviu a confidência do pai, não obstante ser feita em voz baixa, e enfim não retirou mais os olhos de Estela. Viu-a receber a carta, com a mão trêmula; viu-a a empalidecer ainda mais; viu-lhe a confusão e o enleio. Por que o enleio e a confusão? Um amor extinto de Jorge, uma paixão que o levara à guerra, que tinha ela, que tinham eles três com isso?

Iaiá olhou a princípio com curiosidade, depois com espanto, até que os olhos luziram de sagacidade e penetração. O estilete que eles escondiam desdobrou a ponta aguda e fina, e estendeu-a até ir ao fundo da consciência de Estela. Era um olhar intenso, aquilino, profundo, que palpava o coração da outra, ouvia o sangue correr-lhe nas veias e penetrava no cérebro salteado de pensamentos vagos, turvos, sem ligação. Iaiá adivinhou o passado de Estela; mas adivinhou demais. Galgou a realidade até cair no possível. Supôs um vínculo anterior ao casamento, roto contra a vontade de ambos, talvez persistente, mau grado aos tempos e às cousas. Tudo isso viu uma simples inocência de dezessete anos. Seu pensamento cristalino e virginal, nunca embaciado pela experiência, ignorava até as primeiras cismas de donzela. Não tinha idéia do mal; não conhecia as vicissitudes do coração. Jardim fechado, como a esposa do Cântico, viu subitamente rasgar-se-lhe uma porta, e esses dez minutos foram a sua puberdade moral. A criança acabara: principiava a mulher.

A impressão foi tão profunda, que apesar da força de resistência que havia em sua organização, Iaiá não pôde ter-se ali mais tempo. Saiu e refugiou-se na alcova. Certo, aquele amor intruso, se o havia, era para afligir e prostrar um coração de filha, amassado de ternura, para o qual a forma superior e exclusiva do sentimento era a paixão que a prendia a seu pai, como um vínculo indestrutível. Depois, vinha o afeto que votava à madrasta, sua mãe eletiva, afeto não menos sincero e real, e que já agora podia diminuir, quem sabe até se morrer todo?

Sentada na beira da cama, com os pés juntos, as mãos fechadas entre os joelhos, os olhos cravados no espelho que lhe ficava defronte, Iaiá trabalhava mentalmente na sua descoberta. Confrontava o que acabava de ver com os fatos anteriores, de todos os dias, isto é, a frieza, a indiferença, a estrita polidez dos dous, e mal podia combinar uma e outra cousa; mas ao mesmo tempo advertia que nem sempre estava presente quando Jorge ali ia, ou fugia-lhe muita vez, e podia ser que a indiferença não passasse de uma máscara. Demais a comoção da madrasta era significativa. Estendeu o espírito pelo tempo atrás, até o dia da primeira visita de Jorge, e lembrou-se que ele estremecera ouvindo a voz de Estela, circunstância que lhe pareceu então indiferente. Agora via que não.

Uma hora inteira gastou nesse cogitar solitário, a sós com a suspeita e o remorso. Também remorso, porque de quando em quando aterrada com a vista do caminho andado, a alma recuava e estremecia; tinha horror de si mesma. Mas a figura pálida da madrasta surgia ao pé dela, com a expressão que lhe vira pouco antes, e a consciência fazia as pazes com a malícia.

Vede a conseqüência. Estela não era culpada; um incidente do passado é que projetava tamanha sombra na vida presente; mas bastou o espetáculo da comoção para turbar o espírito da enteada e lançar lá dentro os primeiros germens da ciência do mal. Que seria se fosse culpada? Talvez o mais lastimoso efeito dos desvios domésticos é essa corrupção dos corações ingênuos, impassíveis testemunhas do que ignoram um dia, do que suspeitam, percebem e sabem na seguinte manhã: primeira violação da virgindade.

Iaiá agitava-se na alcova, de um para outro lado, desejosa e receosa ao mesmo tempo de ir ter com Estela. Duas vezes chegou à porta e recuou. Uma das vezes, voltando para dentro, deu com os olhos no retrato do pai que pendia junto à cabeceira, -uma simples fotografia. Tirou-o dali, contemplou longamente a fronte austera e pura. Quê! Haveria na terra quem o amasse uma vez e não sentisse que o amor lhe dominaria a vida inteira? Tão afetuoso! tão bom! vivendo exclusivamente para os seus, sem nada invejar ao resto dos homens. Isto lhe dizia o coração, enquanto ela ia beijando o retrato com respeito, com amor, afinal com delírio. Grossas lágrimas e quentes lhe romperam dos olhos; Iaiá deixou-as cair: sorveu-as com seus próprios beijos. Quando essa primeira explosão acabou, acabou para se não repetir mais. Enxutos os olhos Iaiá pôde friamente refletir, e a reflexão dominou a angústia.

O que se passou naquele cérebro ainda verde, mas já robusto, foi uma resolução sem plano. Deslindar o vínculo espúrio era o essencial e urgente, não cogitou no modo. Sua inocência, assim como lhe dissimulava toda extensão possível do mal, assim também lhe encobria as asperezas e os óbices da execução. Era o coração que lhe designava esse papel de anjo guardador. Natureza simples e intacta, ia direito ao fim sem o temor que dá a experiência e a contemplação da vida. Quem sabe? Não conhecia a hipocrisia, mas acabava de suspeitá-la; começava talvez a aprendê-la.

Tinha-se demorado muito e era preciso sair do quarto; mas, como houvesse chorado, podiam ler-lhe os vestígios da dor. Iaiá foi ao lavatório, deitou água na bacia e começou a banhar os olhos e o rosto. O rumor da água impediu-lhe ouvir que alguém abria a porta. Estela apareceu-lhe repentinamente.

-Que faz você aqui há tanto tempo? disse a madrasta, parando à porta.

Iaiá não se atreveu a olhar de rosto para ela; mastigou uma resposta esquiva e continuou o que estava fazendo.

-Que tens? perguntou Estela pegando-lhe dos braços e fazendo-a voltar para si. Você chorou?... Chorou, sim; tem os olhos vermelhos. Que foi? Iaiá, fala; que é?

-Não é nada, acudiu a outra procurando sorrir.

-Não minta, Iaiá.

A enteada olhou de relance para o espelho; viu que era inútil mentir.

-Foi uma tolice, disse ela.

-Alguma travessura?

-Antes fosse!

Iaiá pegou do retrato que pusera na borda do mármore do lavatório, e olhou alguns instantes para ele. Estela quis conchegá-la a si, mas a enteada fugiu-lhe com o corpo.

-Trata-se... de teu pai? perguntou a madrasta.

Iaiá fitou-a e respondeu:

-Sim, mamãezinha; estava a sacudir a poeira do retrato de papai, e comecei a pensar... foi uma loucura... se ele... morresse?

Estela repreendeu-a com uma interjeição; Iaiá quis continuar, mas a outra interrompeu-a impetuosamente:

-Cala-te, disse; não penses em tolices. Dá cá o retrato.

-Não é verdade que ele é o melhor dos homens? perguntou Iaiá, enquanto Estela pendurava o retrato.

A única resposta da madrasta foi caminhar para ela e dizer-lhe que nunca mais pensasse em semelhante cousa.

-Não sou senhora dos meus pensamentos, respondeu a moça, erguendo os ombros.

Após alguns segundos de silêncio, Estela percebeu que alguma cousa preocupava a enteada, e disse-lho. Iaiá respondeu negativamente. Mas Estela insistiu:

-Não tens o teu ar do costume, e esses olhos andam vagamente de um lado para outro. Talvez... quem sabe...

-Não é isso que a senhora pensa, interrompeu Iaiá secamente.

Depois sentou-se, a olhar para o jardim, e a morder o lábio, que lhe tremia, e a comprimir os seios com a mão. Estela ficou um instante calada; enfim sacudiu benevolamente a cabeça e aproximou-se da menina.

-Tu não tens confiança em mim, Iaiá, disse ela pousando-lhe a mão no ombro. Se tivesses, dizias-me em que é que pensas, porque é decerto em alguma cousa. Não é difícil deixar de pensar no Procópio Dias; acho até que é a cousa mais fácil; mas não será algum pensamento da mesma natureza? Anda; sê franca; sou apenas tua madrasta, e pouco mais velha que tu; posso ouvir tuas confidências e aconselhar-te. Onde acharás melhor amiga do que eu?

Iaiá tinha aplacado a primeira sensação; afivelou de todo a máscara da tranqüilidade, enquanto não a substituía por outra. Ergueu-se e disse com afoiteza:

-Pois bem, vou confiar-lhe uma cousa... não... suponha... é melhor supor... tenho vergonha de dizer a verdade. Suponha que tive um amor de colégio...

-Tu? Aos treze anos!

-Aos doze e meio.

-Bonito! Não foi começar tarde. Esse amor naturalmente expirou nos braços da última boneca.

-Suponha que não, disse Iaiá em tom sério. Ora, se eu tiver de casar com o Procópio Dias...

-Quem te fala em casar com ele?

-Por ora é um gracejo; mas, se ele teimar, é possível que nem a senhora nem papai o desamparem, e ainda mais possível que eu me deixe vencer para contentar a todos. Mas é este o ponto de minha confidência; é uma idéia que me persegue há dias. Devo eu casar com um homem amando a outro? Posso fazê-lo? Devo fazê-lo?

Estela estremeceu levemente, sob o olhar impassível e puro da enteada, e não respondeu logo. Iaiá parecia folgar com esse enleio de um minuto; mas ao mesmo tempo o coração lhe sangrava, porque o enleio era a confirmação de suas recentes suposições. A madrasta não tinha a penetração da enteada; além disso, como supor nela o conhecimento de um fato remoto e não divulgado? Estela nem cogitou nisso. Escoou-se o minuto, e ela respondeu com tranqüilidade:

-Não deves casar, se o amor pode ser satisfeito sem obstáculo. No caso contrário, o casamento é uma simples escolha da razão: sacrifica-te.

Iaiá, que tinha uma das mãos da madrasta entre as suas, largou-a subitamente. Estela riu, e bateu-lhe na testa com a ponta do dedo.

-Esta cabecinha! disse ela. Há aqui dentro muita cousa que é preciso capinar...

No primeiro instante, Iaiá empalideceu. Ao último gesto de Estela, respondeu com um sorriso forçado e sem cor. Logo que esta saiu, deixou-se cair na cadeira e fechou o rosto nas mãos. Quando dali saiu, meia hora depois, não trazia nenhum sinal de lágrimas, ou sequer de tristeza. Não vinha alegre, decerto; serena, sim, daquela serenidade com que o caçador do sertão se dispõe a encarar a onça.

Jorge foi jantar, e sobre a tarde apareceu Procópio Dias. Durante o jantar e a noite, Iaiá fez impressão na família e nos estranhos, pela singular alteração de seus modos. Estava um pouco pálida, mas a viva luz dos olhos parecia comunicar ao rosto uma porção do colorido ausente. Mostrou-se expansiva, e não galhofeira. Suas frases eram longas, deduzidas, iam até o fim do pensamento, sem as interrupções e saltos do costume. De costume, parecia que a moça pensava aos fragmentos, porque era quase impossível ter com ela uma conversa inteiriça e ordenada com a sua variedade própria. Naquele dia era o contrário. Como que a alma despira a roupa de bailarina, para enfiar um roupão caseiro, simples, apertado, subido até o pescoço. Era melhor assim? era pior? Nem uma nem outra cousa; era uma aparência nova.

Mais do que ninguém, Jorge estimou essa alteração, porque em relação a ele a moça também havia mudado alguma cousa. Iaiá sentira nesse dia mais repugnância do que nunca ao ver o filho de Valéria, e chegou a recuar instintivamente a mão. Cedeu porém, e o sorriso com que corrigiu a recusa foi o primeiro que Jorge recebeu diretamente dela. Nesse dia a moça respondeu-lhe sem custo, e talvez lhe dirigiu a palavra alguma vez; o que tudo viu Luís Garcia e atribuiu a efeito de suas admoestações.

Nem Luís Garcia nem Jorge poderiam supor que sobre a cabeça da madrasta e da enteada a carta de 1867 agitava as suas letras de fogo. Era carta importuna, poupada da destruição imediata, era a centelha subitamente lançada no amor adormecido de uma e no ódio nascente de outra; Jorge estava longe de o ler no rosto afável de Iaiá, e no olhar fugidio de Estela.

Pouco depois das dez horas dispersou-se a reunião. O Sr. Antunes aposentou-se por essa noite em casa do genro. Jorge e Procópio Dias saíram juntos.

-Vai para a cidade a esta hora? perguntou Jorge.

-Repare que ainda me não ofereceu cama, disse rindo o outro.

-Mas ofereço-lhe agora.

-Aceito. Precisava justamente falar-lhe: negócio grave.

-Não é decerto algum fornecimento?

-Nem só de pão vive o homem, acudiu Procópio Dias.

-Que negócio é?

-Uma explicação.

-Sobre...

-Há de ser lá em casa; a noite é escura e os quintais são traiçoeiros.




ArribaAbajoCapítulo XI

Entrados em casa, Procópio Dias não se apressou a dar ou pedir a explicação. Ceou primeiro, porque confessou haver adquirido esse costume, e Jorge não se demorou em obsequiá-lo. A ceia improvisada, composta de viandas frias e dous ou três cálices de vinho puro, deixou-o em paz com a natureza. Satisfeita esta, era a hora da explicação.

Não veio ela com facilidade. Indolentemente reclinado numa otomana, ao longo da qual estendera uma das pernas, Procópio Dias fumava com volúpia e falava com precaução, usando a voz pausada e avara de um homem para quem o digerir é meditar. Se alguma idéia lhe avoaçava lá dentro, era difícil percebê-lo através do olhar exausto e mórbido. Entretanto, a curiosidade de Jorge não lhe permitiu mais longa dilação e Procópio Dias foi compelido a satisfazê-la, quando o moço, parando diante dele, francamente lho pediu.

-Parecia-me mais fácil do que é, disse ele, sobretudo porque apesar de nos conhecermos há algum tempo, não estou certo da opinião que o senhor forma de mim. Boa?

-Boa.

-Dê-me sua mão. Promete-me ser franco?

-Prometo.

-Qual das duas o leva à casa de Luís Garcia?

Sobressaltado, Jorge retirou vivamente a mão.

-Bem vê, tornou Procópio Dias; é uma delas.

Passada a primeira impressão, Jorge sentou-se tranqüilamente, menos contudo do que afetava estar.

-Na verdade, a sua pergunta é das mais esquisitas que eu esperava ouvir. Ignora as relações de amizade que me prendem àquela casa, relações que herdei de minha família, e que eu apenas continuo? Qual das duas! Não há ali duas; há uma, uma somente, uma... e...

-Não é essa? Não é Iaiá?

Jorge fez um gesto negativo.

-Acredito que me restitui a tranqüilidade ao coração, disse Procópio Dias sentando-se de todo. Não é meu rival? Não tem nenhuma idéia?... nenhuma idéia vaga?... É isso o que preciso saber... é só isso, e é tudo.

-O senhor gosta de Iaiá?

Procópio Dias fez primeiro um gesto afirmativo; depois balbuciou a confissão plena de seus sentimentos, mas com um ar de envergonhado, meio sincero e meio fingido, e tão a ponto e natural, que era difícil saber onde acabava a sinceridade e onde começava a simulação. Animou-se a pouco e pouco; e não lhe escondeu nada. Confessou que a filha de Luís Garcia lhe transtornara de todo o espírito e que ele estava resoluto aos maiores sacrifícios para obter-lhe a mão.

-Às vezes supunha que o senhor andava nas minhas fronteiras, concluiu ele, idéia que me afligia, porque o senhor tem sobre mim vantagens incontestáveis. A suspeita desvanecia-se e eu tranqüilizava-me. Hoje, porém, confesso-lhe que a suspeita reapareceu e entrou a devorar-me o coração; e ainda assim, tinha intervalos, porque ora me parecia que o seu objetivo era Iaiá, ora que era a outra...

-Perdão, interrompeu Jorge; eu já lhe disse o que devia, e não posso consentir que voltemos ao mesmo ponto. Uma de suas suspeitas é injuriosa para mim.

-Tem razão; eu devia tê-lo pensado, assentiu Procópio Dias. Mas que quer? Nada se deve imputar aos dementes e aos namorados. Perdoa-me? Em todo caso, pode crer que a minha índole não é tão tolerante com o vício que me fizesse desejar haver dado em balda certa. Não sou rigoroso; sei que as paixões governam os homens, e que a força de as reger não é vulgar. Por isso mesmo é que se estima a virtude. No dia em que a natureza se fizer comunista e distribuir igualmente as boas qualidades morais, a virtude deixa de ser uma riqueza; fica sendo cousa nenhuma.

-Deixe-me falar-lhe com franqueza, disse Jorge, rindo; eu desconfio que o senhor é ainda menos rigoroso do que diz. Parece-me que se a sua suspeita, em relação à outra, tivesse fundamento, o senhor não me ouviria com indignação.

-Talvez estimasse.

Jorge não disse nada; olhou somente para o interlocutor, com um ar de estupefação, a que o outro sorriu benevolamente. Fez-se uma curta pausa. Procópio Dias rompeu enfim o silêncio:

-Talvez estimasse, sem deixar de indignar-me depois; isto é, a indignação no momento seria abafada pelo interesse. Atenda-me, doutor; sejamos justos com a natureza humana. Virtudes inteiriças são invenções de poetas. Não me fazia bom cabelo que o senhor gostasse da outra, e menos ainda que ela lhe correspondesse, porque, em suma, ambicionando entrar na família, não desejaria que a família tivesse a menor mácula. Esta é a realidade. Mas, eu amo, doutor; e por mais ridícula que pareça esta confissão, por mais grosseira que seja a minha casca, a verdade é que amo a enteada apaixonadamente: é o meu pensamento de todos os dias. Ora, dado que o senhor amasse a outra, qual era o primeiro movimento do meu coração? Ligá-los ao meu interesse. Desde que entre os dous houvesse um segredo, e que esse segredo fosse descoberto ou suspeitado por mim, o senhor e ela eram os meus melhores aliados, e a resistência daquela menina, e a vontade do pai, tudo cedia em meu favor.

Procópio Dias proferiu estas palavras com simplicidade e convicção. Seus olhos plúmbeos pareciam duas portas abertas sobre a consciência. A expressão do rosto era a de um cinismo cândido. Jorge contemplou-o alguns instantes sem dizer palavra, ao parecer subjugado pelo raciocínio. Ouvia-o pasmado e satisfeito. Tanta franqueza não mostrava que Procópio Dias já não suspeitava nada? Jorge sorriu e replicou:

-O que o senhor acaba de dizer não será animador, mas persuado-me que é a realidade pura. Admira-me somente que tenha tanta penetração e superioridade para ver e confessar os vícios da natureza humana...

-Sou prático, tornou o outro sorrindo. Raras vezes me irrito, conquanto lastime sempre o que é fraqueza ou perversão. Assim, por exemplo, eu não lhe ficaria querendo mal se o senhor me houvesse iludido agora acerca de seus sentimentos, porque o seu interesse e o seu dever é negá-los.

-Perdão; já lhe dei minha palavra...

-Não deu, nem eu lha pedi, nem pediria, porque a palavra de honra não obriga a consciência, quando é dada para salvar uma questão de honra. O senhor poderia dá-la sem sinceridade nem remorso. Já não é a mesma cousa se me jurasse, porque o juramento, invocando o testemunho de um ente superior, esse obriga a consciência que não está pervertida.

-Não exige de mim que jure, espero eu? disse Jorge.

-Há ainda uma raiz de dúvida, em meu coração, replicou Procópio Dias sorrindo.

-Pois juro-lhe...

Procópio Dias levantou-se de súbito.

-Não precisa mais, exclamou ele apertando-lhe as mãos. Agora creio; creio de todo. Não é meu rival, nem corrompe a família a que pretendo unir-me. Se soubesse o prazer que me deu com a sua última palavra! Obrigado! Agora creio. Ria-se de mim, ria-se; eu creio que esta expansão pode ter um lado grotesco, -há-de ter decerto. O que lhe afianço é que se minha felicidade não é completa depende somente da fortuna, não dos homens...

Sentou-se depois destas palavras, proferidas quase sem respirar. Jorge acompanhou-o nessa expansão de felicidade. Pareciam satisfeitos um do outro. Procópio Dias confessou que era a primeira pessoa a quem falava de seus sentimentos, e não se vexava de dizer que, ao cabo de alguns meses, nada podia saber do coração da moça. Às vezes supunha ser aceito; outras, e eram as mais numerosas, tinha a persuasão contrária.

-O senhor naturalmente conhece-a e sabe que obra de contradição é aquela mocinha, disse ele. Há ocasiões em que sua familiaridade comigo chega quase à sedução. Talvez exagero; mas que hei-de pensar de uma moça que me pede instantemente que vá lá, em certo dia, com um modo grave e cheio de promessas? digo-lhe sim; vou, recebe-me com um epigrama, ri-se de mim; abusa da complacência e não sei se do amor, porque, conquanto não lhe haja dito nada, acho natural que ela o tenha descoberto nos meus olhos. Se fico despeitado e resolvido a não voltar lá, ela torna-se mansa, como uma pomba, carinhosa, macia, e o meu despeito evapora-se, e eu continuo a minha viagem interminável.

-Nunca lhe deu a entender nada, ao menos por alusão?

-Nunca; receio que não me deixasse acabar.

-Não creia; eu suponho que ela gosta do senhor.

-Sabe disso?

-Não; mas é o que concluo do que me contou. As mulheres têm às vezes caprichos; e demais há naquela uns restos de criança, que a faz ainda mais caprichosa. Meu raciocínio é este: se ela percebeu, e não o repele absolutamente, é porque o senhor ainda pode ter esperanças...

Procópio Dias não pôde exprimir a alegria que estas palavras de Jorge lhe entornaram na alma; seus olhos brilharam de uma luz estranha, depois fecharam-se, enquanto a cabeça pendeu para trás, de um jeito lânguido. Durante essa pausa de alguns minutos, Jorge pôde analisar as feições de Procópio Dias, pouco próprias a fascinar uns olhos de dezesseis anos, e achou natural que Iaiá não se sentisse tomada de cego entusiasmo. Contudo, não era impossível corresponder-lhe de algum modo, se a razão tomasse as rédeas ao coração. Jorge supunha até que houvesse em Iaiá uma semente de simpatia, que bastava fazer germinar.

Entrando no quarto que lhe fora destinado, Procópio Dias estava longe de ter sono; a excitação trazia-o esperto. Entrou, abriu a janela e olhou ao largo. O aroma vivo das plantas da chácara ainda mais lhe apurou o sistema. Não era homem de contemplar estrelas nem de fazer filosofias acerca da solidão noturna e do sono das cousas; limitou-se a pensar no que acabava de ouvir.

-Gosta da Estela, murmurou ele; antes de jurar podia ser duvidoso; depois do juramento é positivo. Se ela não gosta dele faz mal; é um rapaz de espavento.

Depois, abriu as asas ao pensamento e foi direito a Iaiá, galgando o espaço e derrubando paredes: foi e contemplou o seu sono de virgem que ele supunha ser quieto e puro, mas que a essa mesma hora, era turbado e já complicado das idéias do mal. Procópio Dias deixou-se ir ao sabor da paixão, que era viva e sincera, mas própria da natureza dele, isto é, uma conspiração surda e misteriosa de todas as forças sensuais; paixão que não procedia de nenhuma origem moral e superior, e tinha, não obstante, as aparências de outro amor, e até os seus tormentos, ambições e sacrifícios.

A figura terna e virginal de Iaiá aparecera-lhe um dia, subitamente, como uma visão não sonhada. Se ele a visse em algum salão aristocrático pensaria nela uma noite, talvez uma semana, até esquecê-la ou substituí-la. Mas o que o prendeu a Iaiá Garcia foi justamente a mediocridade do nascimento. Possuí-la era fazer-lhe um favor. Quantas outras lhe não levaram os olhos de sátiro, ao descer de uma carruagem, ou ao resvalar indolentemente o seu talhe na contradança de bom tom? Ele via-as passar ou estar, com os ombros nus ou cingidos da cachemira elegante, risonhas umas, outras sérias, todas altivas e compassadas, e sentia que seus anos, feições e maneiras o distanciavam delas; não era difícil apagá-las da memória.

Iaiá teria antes de agradecer a escolha; era a sua convicção, foi o que mais o ligou à filha de Luís Garcia. Quando a moça refletisse que acharia no marido a satisfação de todas as veleidades do luxo, o gozo das cousas superfinas, elegantes e raras, devia ceder por força e preferi-lo a quem lhe desse apenas coração, trabalho e necessidades. Uma vez brotada a idéia, cresceu e tomou-lhe o cérebro todo. Iaiá era então a figura presente a seus olhos, ora divina e casta, ora ardente e lúbrica, -lúbrica, porque ele em sua imaginação conspurcava-a, antes mesmo de a possuir.

No dia seguinte acordaram tarde e almoçaram juntos, sem tornar no assunto da véspera. No fim do almoço, Procópio Dias referiu-se ele, dizendo que fora excessivo na noite anterior, e pedindo a Jorge que o não levasse a mal; porquanto era tudo filho de um sentimento que não peca por moderado na suspeita, nem eqüitativo na apreciação.

-Não podia atribuir-lhe outro motivo, redargüiu Jorge sorrindo.

-Não ficou mal comigo?

-Mal? A prova é que se dependesse de mim casá-lo, casava-o amanhã mesmo.

Procópio Dias agradeceu-lhe a simpatia e o obséquio, e saiu. Jorge foi dali vestir-se para ir passar alguns minutos no escritório. Enquanto se vestia, pensava na situação do ex-fornecedor do exército. Não eram amigos, mas o caso de Procópio Dias interessava-o; era simpático a seus olhos. Não indagou se essa simpatia brotava do medo; persuadia-se ingenuamente do contrário. Um marido apaixonado e opulento! Duas vantagens que uma moça nas condições de Iaiá devia aceitar com ambas as mãos. Talvez Procópio Dias não fosse mal aceito ao coração da moça; somente, havia nesta uns vestígios de criança, que o tempo devia apagar.

-Naquela idade um pretendente é uma espécie de boneca, dizia Jorge atando a gravata; o que é preciso, a todo trance, é fazer da boneca um esposo.

Chegando ao escritório, ao meio-dia, Jorge encontrou o Sr. Antunes consternado. Tinha dormido até onze horas, chegara tarde à casa em que trabalhava, o patrão convidara-o a fazer as contas. Era uma pequena casa de comércio, onde o Sr. Antunes, que entendia de escrituração mercantil, trabalhava desde algum tempo, graças ao obséquio de Jorge:

-Mas já foi despedido? perguntou este.

-Devo fazer as minhas contas e retirar-me no fim do mês.

Jorge escreveu duas linhas ao patrão do Sr. Antunes. De tarde, foi este a Santa Teresa. Jorge ia sentar-se à mesa do jantar; o Sr. Antunes já tinha jantado, mas acompanhou-o.

-Venha, venha, disse o moço; preciso ralhar-lhe.

Vexado e tímido, o Sr. Antunes sentou-se defronte de Jorge, que não lhe disse nada durante os primeiros minutos. Jorge falou enfim, repreendendo-o amigavelmente; disse-lhe que as exigências do comerciante não eram exageradas, e em todo caso não havia meio de opor-se a elas, salvo se quisesse deixar a casa.

-Isso mesmo, disse o pai de Estela.

-Não faça isso; não se ganha nada em andar de emprego em emprego. Demais, francamente, não vejo que entrar antes das dez horas seja cousa difícil. Seu genro faz isso há muitos anos.

-Meu genro!... Meu genro!... disse o Sr. Antunes sacudindo a cabeça com um gesto de enfado.

Jorge fingiu não atender ao gesto e ao tom do pai de Estela, e tratou de o converter à pontualidade, obra que começava a ser difícil, porque o Sr. Antunes entrava já nas conseqüências lógicas e naturais de uma longa dependência; preferia o favor ao trabalho, e os anos contribuíam para esse amor da inércia e do benefício gratuito. A maior ambição que o animou, se a fortuna a houvera realizado, dar-lhe-ia todos os meios de envelhecer tranqüilo. Agora tinha encanecido; e o corpo, embora lesto, começava a suspirar pela inação, última cobiça de uma vida sem dignidade.

Jorge deixou o assunto para não vexar o antigo protegido de seu pai, e acabou o jantar alegremente. No fim recebeu um bilhetinho de Procópio Dias. «Não imagina, dizia este, que dia tenho passado, depois da nossa conversa de ontem. Teimo em dizer que fui excessivo, e ainda uma vez lhe peço me releve a falta. Poderia o senhor castigar um doido? O amor não tem imputação. Queime este bilhete; e em todo caso não o revele a ninguém, sobretudo à pessoa de que se trata.» Jorge sorriu e releu o bilhete; depois fechou-o na secretária e escreveu esta simples resposta: «Ainda uma vez, não há que perdoar. O senhor foi apenas desconfiado, como todos os ciumentos; mas, como não inventou o ciúme, não lhe faço cargo disso.» Entregue a resposta, Jorge olhou para o Sr. Antunes, que fumava discretamente um charuto do bacharel.

-Ouvi dizer hoje uma cousa, disse Jorge com ar indiferente; ouvi dizer que Iaiá vai casar.

-Casar? repetiu o Sr. Antunes com um sobressalto. E depois de um instante: -É possível; naquela casa o último que sabe das cousas sou eu.

-Talvez não passe de balela. Nem me disseram com quem. Provavelmente há algum namorado ou aparência disso, e então os noveleiros vão logo ao fim. Mas haverá deveras algum pretendente ou namorado?...

-Que eu saiba, nada, asseverou o Sr. Antunes. E até, deixe-me dizer-lhe o que penso, duvido que ela cuide por ora de semelhante cousa. Aquela menina não tem cabeça.

-Oh! exclamou Jorge rindo.

-Não tem, digo-lhe eu. Está ali, está no hospício. Não se pode dizer que seja travessura, porque não está em idade disso; é pancada. Se soubesse as cousas que ela faz às vezes!

-Não me parece; quando a vejo, é sempre com um modo comedido, e muitas vezes sério...

-Lá isso, é porque ela não gosta do senhor.

-Não gosta de mim? perguntou Jorge admirado.

-Não digo que absolutamente não goste, obtemperou o pai de Estela; não lhe tem muita simpatia, é o que é.

-Como sabe você disso?

-Ouvi uma vez o pai repreendê-la, porque de propósito voltara as costas ao senhor; e então ela levantou os ombros, assim com um ar de pouco caso. O pai tornou a dizer que aquilo não era bonito, mas perdeu o tempo; Iaiá pregou os olhos nas unhas, com a testa franzida, e eu saí porque já não podia aturar nem um nem outro.

Jorge ficou alguns instantes pensativo. Era certo que Iaiá o tratara sempre com muito resguardo e frieza; mas, suposto que isso não significasse simpatia, e até lhe sentisse alguma hostilidade, estava longe de supor-lhe declarada aversão. Do gesto a que o Sr. Antunes aludira, não se lembrava absolutamente; mas era possível. Demais, pensou ele, o Sr. Antunes não o inventaria na ocasião; não era caluniador; faltava-lhe essa ferocidade. Mas, por que motivo não gostaria dele a filha de Luís Garcia? Era a segunda vez que Jorge fazia essa pergunta, sem lhe achar resposta plausível. Em seguida, recordou-se da noite anterior, e observou ao pai de Estela que Iaiá o tratara na véspera com alguma cordialidade.

-Milagre de ano bom! explicou o Sr. Antunes. Também lhe digo que não perde nada se ela não gostar do senhor; é uma fortuna. Porque ela, quando gosta de uma pessoa, é de fazer-lhe perder a paciência.

-Mas parece ter bom coração; e creio que gosta muito do pai.

-Também Estela gosta de mim.

Jorge fechou neste ponto a conversação. Seu pensamento voltou à revelação inopinada do Sr. Antunes. Por mais indiferente que Iaiá lhe fosse, Jorge sentia-se molestado com a certeza de que a moça não gostava dele. Por que seria? Simples antipatia ou outra cousa?

A preocupação desvaneceu-se na tarde do dia seguinte, quando Jorge apareceu em casa de Luís Garcia. Foi a própria Iaiá quem veio abrir-lhe a porta do jardim dizendo, alegremente: -Entre, Sr. doutor, que já se fazia esperado. Jorge não pôde esconder o assombro que lhe produzira aquela recepção; nem o assombro nem a alegria. Entrou e estendeu-lhe a mão.

-Não posso, tornou a moça mostrando a sua, fechada; só se adivinhar o que está aqui dentro.

-Não é uma estrela.

-Não, senhor; é um cavalo.

No fundo do jardim estava Luís Garcia, com o tabuleiro do xadrez: acabava de dar uma lição à filha, que lha pedira desde antes do jantar. Iaiá levou até lá o filho de Valéria. Pela primeira vez sentou-se ao pé dos dous para vê-los jogar; fincou os cotovelos na mesa e encostou o queixo nas mãos; queria aprender, dizia ela, em três semanas.

-Três semanas! repetiu o pai a sorrir e a olhar para Jorge.

Das qualidades necessárias ao xadrez, Iaiá possuía as duas essenciais: olho de guia e paciência beneditina; qualidades preciosas na vida, que também é um xadrez, com seus problemas e partidas, uma ganhas, outras perdidas, outras nulas.




ArribaAbajoCapítulo XII

Quinze dias depois, Procópio Dias apareceu em casa de Jorge com o luto no vestuário e no rosto. De Buenos Aires chegara-lhe na véspera, à tarde, a notícia da morte de um irmão, seu último parente, notícia que o obrigava a embarcar no dia seguinte e demorar-se no Rio da Prata cinco a seis semanas. Não se pode dizer que ele estivesse triste; estava sério; e a seriedade dá ao homem que ri habitualmente uma aparência de melancolia. Estava sério e preocupado. A viagem a Buenos Aires não tinha por fim o cadáver do irmão, mas a herança, que posto não fosse grande, valia alguma cousa.

Procópio Dias ofereceu seus serviços ao filho de Valéria, que de sua parte prometeu-lhe algumas cartas de apresentação, se precisasse. Procópio Dias aceitou uma. Jorge levou-lha no dia seguinte. Ele recebeu-a com demonstração de agradecido e quase terno. E depois de um momento de silêncio:

-Já agora entrego-lhe pessoalmente esta carta, que devia ser levada amanhã por um portador.

Jorge quis abrir: -Não, acudiu o outro; prometa-me que só a abrirá amanhã.

-Por que não hoje de noite?

-Podia ser hoje de noite; mas é bom que entre a impressão da despedida e a leitura desse papel decorra o espaço da noite e o sono. Talvez seu juízo seja diferente.

Jorge prometeu. Procópio Dias partiu. No dia seguinte abriu a carta e leu estas poucas palavras: «Seja o meu anjo da guarda durante a minha ausência.»

-Por que não? disse ele consigo.

De tarde, saiu a cavalo, costeando o aqueduto, segundo costumava, e ia pensando seriamente na conveniência de casar os dous. Naquelas duas semanas tivera tempo de apreciar um pouco as qualidades da moça, que lhe pareceram boas, conquanto lhe achasse também alguma cousa original, misteriosa ou romanesca, muito acima da compreensão ou do sentimento de Procópio Dias. Jorge não se iludia acerca da paixão do pretendente; supunha-a sincera, mas não lhe atribuía a virgindade das primeiras ou das segundas comoções: era uma paixão da última hora, um ocaso ardente e abraseado entre o dia que lá ia, e a noite que não tardava a sombrear tudo. Ainda assim a aliança lhe parecia conveniente. Iaiá possuía decerto a força necessária para dominar desde logo o marido; e o titão encadeado teria ao pé de si, em vez de um abutre a picar-lhe o fígado, uma formosa rola destinada a prolongar-lhe as ilusões da juventude.

Se eram boas as impressões que Iaiá lhe deixara nos últimos dias, não eram ainda assim isentas de algum enfado, aliás passageiro. Uma ou duas vezes, Iaiá lhe pareceu singularmente áspera, e sem motivo nem duração. Esses assomos porém, eram logo compensados por uma afabilidade, que parecia mais viva, mais ruidosa, talvez um pouco importuna. Ocasião houve em que Estela disse à enteada, com um sorriso de repreensão: -Não amofines o Sr. doutor Jorge. Não compreendeu Jorge por que motivo essa palavra simples, dita em tom brando, deu ao rosto de Iaiá uma expressão indignada; lembrava-se porém que a expressão foi passageira, e que ela passou do singular amuo à habitual alegria: -Bem vê, replicou Estela, bem vê que é uma criança.

Jorge ia assim a refletir, e já de volta, quando ouviu uma voz que dizia o seu nome. Era Iaiá que descia da casa da velha ama. Jorge parou o cavalo.

-Em que vai pensando? disse ela.

-Na senhora, respondeu o moço afoitamente, depois de verificar que ninguém os podia ouvir.

Iaiá caminhou até à rua, acompanhada de um homem velho, o irmão de Maria das Dores.

-Que anda fazendo aqui? continuou Jorge inclinando o busto sobre o pescoço do cavalo.

-Vim visitar a Maria das Dores. Coitada! Está tão abatida!

-Bem; eu logo lhe direi o que é; vá ver a doente.

-Já a vi; volto agora para casa. O Sr. João vai acompanhar-me.

Jorge apeou-se.

-Deixa-me acompanhá-la também? perguntou.

-Deixo; mas é só por ser curiosa. Quero saber o que ia pensando a meu respeito. Vamos, Sr. João?

Jorge enfiou a rédea no braço e colocou-se ao lado dela; Iaiá tomou-lhe afoitamente o outro braço.

-Vá, conte-me tudo.

-O Procópio Dias embarcou hoje.

Iaiá, que já havia dado os primeiros passos, estacou.

-Para onde? disse.

-Para o Rio da Prata; morreu-lhe um irmão em Buenos Aires.

-Mas sem se despedir de nós!

-Naturalmente, custava-lhe fazê-lo, e quis poupar-se à dor da separação. Esteve porém comigo, e prometeu-me que a demora seria curta. Viu-o muito aflito com a viagem, tão aflito que não sei se lhe diga que era... era, decerto, era maior a dor da viagem do que a da morte do irmão. Talvez lhe faça injúria nisto, mas parecia.

-Por quê? perguntou a moça erguendo os olhos para ele.

-Não sei se lhe deva dizer por que, acudiu Jorge. E daí, não se tratando de nenhuma cousa do outro mundo... É verdade que as moças bonitas, como a senhora, costumam ser cruéis... Não sei... Há situações um pouco...

-Ridículas, concluiu Iaiá.

-Como ridículas?

-Por exemplo, a sua.

Jorge enfiou um pouco; mas a um homem de sociedade, Iaiá não parecia de força a fazer perder o equilíbrio. Sorriu levemente, e retorquiu sem azedume:

-Não é ridículo ser afetuoso; eu cuidava responder à linguagem de seu coração.

-Supunha que a ausência de Procópio Dias me deixava saudades...

-Supunha.

-Que tem o senhor com isso?

A resposta de Jorge foi um simples gesto negativo. Contudo, não pôde zangar-se, porque sentia tremer o braço da moça, e olhando de esguelha para ela via-a pálida e com os olhos no chão. Se a palidez e o tremor eram de cólera não chegou a sabê-lo; mas provavelmente não era outra cousa, porque ao cabo de três a quatro minutos, Iaiá ergueu os olhos e estendeu-lhe a mão, dizendo:

-Façamos as pazes.

-Nunca estivemos em guerra, acho eu.

-Talvez em véspera de guerra.

-Não por culpa minha...

-Nem minha, acudiu a moça. E erguendo o chapelinho de sol para o céu. -Talvez por culpa daquele, disse ela suspirando.

Após o suspiro, veio uma risadinha seca e forçada, mas longa ainda assim como o som de um golpe no cristal. Tinham andado poucos minutos, e esses poucos eram já de sobra para espertar a curiosidade de Jorge, e para lhe dar direito a pedir uma explicação. Jorge pediu-lha em termos afetuosos, perguntando por que razão era o céu culpado em uma guerra que devia romper entre ambos, e sobretudo qual seria o pretexto dessa guerra. Iaiá refletiu um instante, e começou a falar com os olhos baixos.

-O motivo é o senhor mesmo, disse ela.

-Eu?

-O senhor, que é meu inimigo, que me detesta. Não me dirá que mal lhe fiz eu? continuou ela erguendo subitamente os olhos. Escusa fazer esse gesto de espanto; sei que o senhor me detesta, e por mais que pergunte a mim mesma, - não sei, não me recordo... Diga, fale com franqueza.

-Tanto melhor! exclamou Jorge. Vejo que havia entre nós um equívoco; e é chegada a ocasião de o desfazer. Quer que lhe fale com franqueza? O inimigo não sou eu, é a senhora; é a senhora, ou antes, era ou parecia ser. Agora compreendo; retribuía-me a aversão que supunha haver em mim. Tanto melhor! Façamos as pazes de uma vez.

Iaiá apertou a mão que ele lhe ofereceu e chegaram alegremente a casa. Jorge quis retirar-se logo, mas a moça ordenou a Raimundo que conduzisse o cavalo, e Jorge foi compelido a entrar por alguns minutos. Luís Garcia não estava em casa. Estava o Sr. Antunes. Iaiá mal deu tempo aos primeiros cumprimentos. -Ande jogar comigo, disse ela.

-Em boa paz?

-Em boa paz.

Iaiá preparou o xadrez, no gabinete contíguo à sala; Jorge sentou-se pacientemente diante da adversária, retificou a posição de duas peças, excluiu as que lhe dava de partido e adiantou o primeiro peão.

-Vá, disse; é a sua vez.

Iaiá não obedeceu ao convite. Olhava para ele, com ar inquieto.

-Dá-me sua palavra de honra de que me não negará o que lhe vou perguntar? disse ela ao cabo de alguns instantes de silêncio.

Jorge hesitou um pouco.

-Conforme.

-Exijo.

-Que me pedirá ela que lhe não possa afirmar? pensou Jorge. E em voz alta respondeu:

-Dou.

-Foi ele quem lhe encomendou...

-O sermão? interrompeu Jorge sorrindo. Serei franco; foi ele mesmo.

Iaiá baixou os olhos ao tabuleiro, cavalgou a torre com o bispo, como distraída, e em voz ainda mais baixa do que lhe falara, perguntou:

-O senhor é homem de segredo?

-Sou, redargüiu afoitamente Jorge.

-Pois bem, continuou Iaiá, eu gosto dele, gosto muito, mas não desejo que ele saiba.

-Deveras? não está gracejando?

-Não estou.

Jorge estendeu-lhe a mão: -Magnífico, disse ele alegre; não é preciso mais. Uma vez que se amam, virão naturalmente a...

Não pôde acabar, porque a moça, erguendo-se de súbito, afastou-se da mesa, com um arremesso, e dirigiu-se à janela, que dava para o jardim. Jorge ficou espantado. Não entendia o que estava vendo. Inclinou-se sobre o tabuleiro e começou a mover as peças, sozinho, sem plano, maquinalmente. Assim jogando, ouvia o som do tacão de Iaiá que feria o ladrilho do chão, com um movimento precipitado e nervoso. Durou isto cinco minutos. Iaiá voltou-se para dentro, saiu da janela e aproximou-se da mesa. Jorge ergueu então a cabeça para ela e sorriu.

-Não me dirá que lhe fiz eu, para ficar tão zangada comigo? perguntou com benevolência.

-Nada; eu é que fui estouvada e não sei se mais alguma cousa.

Jorge protestou que não. -Foi ríspida somente, disse ele; e se o foi sem querer, não foi sem motivo. Não me dirá que motivo é esse? Parece-me que não a tratei mal...

-Não.

-Nesse caso, o motivo está na senhora mesma; e se eu não tivesse medo de que se zangasse outra vez comigo, atrevia-me a pedir-lhe que me dissesse tudo-, ou pelo menos alguma cousa.

-Para quê? Vamos jogar.

-Está escurecendo.

-Mando vir luzes.

Vieram luzes; começaram a jogar. Entre eles o xadrez não podia oferecer interesse; mas dado que o pudesse, não seria naquela ocasião. Um e outro estavam distraídos e preocupados. A primeira partida foi concluída, em pouco tempo, quase sem cálculo.

-Outra? perguntou Iaiá.

-Vamos.

-Antes de começar, disse ela colocando as peças, e sem olhar para Jorge, quero dizer que tem um meio seguro de nunca brigar comigo.

-Qual é?

-É ser meu confidente.

-Senhor de seus segredos?

-Todos

-O meio é fácil; só eu ganho na troca.

-Nisso dou prova de grande coração.

Já não era a menina ríspida de alguns instantes; dissera as últimas palavras com muita graça e placidez. Ao mesmo tempo, continuava a arranjar metodicamente as peças. Acabou e reclinou-se no dorso da cadeira.

-Não me declarou ainda se aceitava, disse ela.

Jorge hesitou um instante. Era gracejo ou proposta séria? A um gracejo responde-se com outro, a uma proposta responde-se com seriedade. Jorge hesitava em tomar sobre os ombros uma parte de responsabilidade dos sentimentos da moça. Quais seriam eles? que projetos despertariam naquele cérebro provavelmente indomável? Não podiam ser outros senão os de seu casamento com Procópio Dias, visto que ela confessava amá-lo. Essa reflexão fê-lo declarar afoitamente que aceitava a confidência.

-Sabe o que aceita? perguntou Iaiá.

-Farejo.

-Toque! disse ela estendendo-lhe a mão.

Jorge deu-lhe a sua.

-Não se trata em todo caso de nenhum assassinato? perguntou rindo.

-Não.

A segunda partida foi mais animada, mas só por parte de Iaiá. A moça ria às vezes, mas a maior parte do tempo fazia convergir toda a sua atenção para o jogo. Quando falava, era moderada e dócil. Essa alternativa e contraste de maneiras interessava naquele momento o espírito de Jorge. Que espécie de mulher fosse, imperiosa como uma matrona, travessa como uma criança, incoerente e enigmática, era cousa que ele não podia em tão pouco tempo descobrir; mas o enigma aguçava-lhe a atenção. Enquanto ela tinha os olhos no tabuleiro, Jorge buscava ler-lhe a alma na fronte lisa e cândida; mas não via a alma, via só uns fiapos castanhos de cabelo, que lhe caíam sobre a testa e esvoaçavam levemente ao sopro da aragem que entrava pela janela, e lhe davam um ar de puerícia. A boca fina e pensativa corrigia aquela expressão da cabeça; era a primeira vez que ele lhe descobria um forte indício de energia e tenacidade.

Quando era a vez de Jorge, Iaiá afastava o busto, reclinava-se no espaldar da cadeira e ficava a olhar para ele, como ele havia olhado para ela. Mas nesse olhar não cintilava curiosidade; era uma luz velada e baça, como alheia ao mundo exterior. Encontravam-se assim os olhos de um e de outro, e a partida continuava, até chegar ao fim sem novo incidente.

Prestes a acabar, Estela entrou no gabinete, sem os interromper. Sentou-se caladamente a um canto da janela. O jogo cessou no momento em que entrou Luís Garcia. -Perdi duas partidas, papai, disse a moça; mas por um triz não ganhei a segunda. Jorge quis sair logo depois; foi obrigado a demorar-se, porque Iaiá lembrou-se de ir tocar piano. Era a primeira vez que Jorge conseguia ouvi-la. A moça escolheu uma página de Meyerbeer; Jorge confessara uma vez que era esse o mestre de sua predileção. Posto não fosse exímia pianista, Iaiá tinha muito sentimento e gosto, e era o bastante para que a alma do grande mestre viesse sobre ela suas asas robustas e imortais. Pelo menos, Jorge sentiu-lhes a aragem vivificante.

No dia seguinte a impressão deste era um tanto complexa e perplexa. Aquela mistura de franqueza e reticência, de agressão e meiguice, dava à filha de Luís Garcia uma fisionomia própria, fazia dela uma personalidade; mas a fisionomia era ainda confusa e a personalidade vaga. Jorge sentia-se empuxado e retido, ao mesmo tempo, por dous sentimentos contrários; tinha curiosidade e repugnância de penetrar o caráter da moça, e conhecer e distinguir os elementos que o compunham. O que lhe parecia claro e definitivo era que as primeiras palavras de Iaiá, tão duras e tão secas, não passavam de uma expressão de despeito, por supor da parte dele a aversão que não existia; e se as palavras em si o magoavam, a explicação lisonjeava-lhe o amor-próprio. O resto era inexplicável. Jorge resolveu, entretanto, não lhe falar mais de Procópio Dias, apesar da confissão que ela lhe fizera naquela tarde, confissão aliás contrastada ou diminuída pelo gesto que se lhe seguiu.

Iaiá pareceu perder a disposição agressiva; e à força de afabilidade apagou inteiramente os vestígios da antiga rispidez. A alma não se lhe tornou mais transparente, nem o caráter menos complexo; mas a esquisita urbanidade dos modos fazia suportáveis os saltos mortais do espírito, e aumentava o interesse do que havia nela obscuro ou irregular; finalmente, era um corretivo à tenacidade com que a moça confiscava literalmente o filho de Valéria. Jorge estimou, sobre todas, esta circunstância, porque lhe tornou mais fácil a freqüência da casa. Ele pertencia ao pai ou à filha, -muitas vezes aos dous. Iaiá atirou-se ao xadrez com um ardor incompreensível, e dizendo-lhe Jorge que era preciso ler alguns tratados, ela pediu-lhe um, e porque ele só os tivesse em inglês, Iaiá pediu que lhe ensinasse inglês.

-Mas eu sou um mestre muito ríspido, observou ele.

-A discípula é muito pior.

Estela assistia algumas vezes às lições do idioma e do jogo; -duas cousas que lhe pareciam incompatíveis com o espírito da enteada. Verdade é que Iaiá mudara tanto naquelas últimas semanas! Não lhe supusera nunca tão longa paciência, nem tão repousada atenção. Iaiá gastava uma a duas horas por dia a decorar os verbos e os substantivos da nova língua, como um colegial em véspera de exame; e essa paixão recente tinha o condão singular de irritar a madrasta. Jorge, pelo contrário, sentia em si os júbilos do pedagogo. O professor é o pai intelectual do discípulo; Jorge contemplava paternalmente aquela inteligência fina, paciente, e tenaz, servida por dous olhos de pomba e duas mãos de arcanjo.

No meado de fevereiro tornaram a falar de Procópio Dias, a propósito de uma carta que Luís Garcia recebera.

Veja lá, disse a moça; ele escreveu a papai e nem uma palavra especial para mim. «Lembranças a D. Estela e a Iaiá.» Nada mais. Ele escreveu-lhe?

-Até agora não.

-Não há nada como a ausência para fazer esquecer tudo, -isto é, esquecer os que ficam. Talvez já não pense em casar comigo. Foi um capricho que passou, como todos os caprichos; foi como a chuva de ontem, que deu apenas alguns salpicos de nada. E contudo parecia que vinha abaixo o céu. Não é? a paixão dele não é como a trovoada? ameaçou no Rio de Janeiro e foi cair em Buenos Aires. Aposto que vem de lá casado. Verá que não é outra cousa. Que me diz a isso? Vamos; diga alguma cousa.

-Não posso, redargüiu Jorge. A senhora deu-me o cargo de confidente e não de conselheiro; limito-me a ouvi-la. Verdade é que o tal cargo até agora parece simples sinecura.

-Que é sinecura?

Jorge sorriu e definiu-lhe a palavra.

-Não é sinecura, acudiu Iaiá; pelo contrário, é um cargo muito espinhoso.

-Não creio. A confidência única até hoje não me pareceu sincera. A senhora não ama o Procópio Dias.

Iaiá franziu a testa.

-Por que me diz isso?

-Porque, se o amasse, falaria de outro modo, e sobretudo não falaria tanto. O amor, nessa idade, vive de reticências, não de frases e menos ainda de frases tão compostas.

-Cale-se! interrompeu ela batendo-lhe com a gramática na ponta dos dedos. E depois de uma pausa. -Se ele lhe escrever, mostra-me a carta?

Como Jorge lhe dissesse que sim, Iaiá fez um movimento para rasgar o volume em dous pedaços. Jorge perguntou-lhe o que tinha. -Nervoso! respondeu a moça sacudindo os ombros com um calefrio. Depois, como a amparar-se, lançou-lhe a mão a um dos pulsos. Jorge sentiu a pressão de uns dedos de ferro; e parece que outros dedos invisíveis também comprimiam as faces da moça, vermelhas como se vertessem sangue.




ArribaAbajoCapítulo XIII

Jorge achou em casa, nessa mesma noite, uma carta de Buenos Aires. Procópio Dias narrava-lhe a viagem e os primeiros passos, e dizia ter toda a esperança de se demorar pouco tempo. Tudo isso era a terça parte da carta. As duas outras terças partes eram saudades, protestos, expressões de sentimento, e um nome no fim, um nome único, e que era a chave do escrito. Jorge leu atentamente essas confidências, e na mesma noite esboçou uma resposta. Não era fácil combinar a discrição que quisera conservar em suas relações com Procópio Dias e a necessidade de lhe mandar algumas esperanças. Embora com esforço, redigiu a resposta conveniente, contando-lhe as boas impressões que tinha; só as boas, não lhe disse as duvidosas; sobretudo não desceu a nenhuma realidade, a nenhum nome próprio; nada mais que uma extensa série de locuções igualmente animadoras e vagas.

No dia seguinte não foi à casa de Luís Garcia; choveu torrencialmente. Mas no outro dia foi, logo depois do jantar. Achou reunida a família.

-Good evening, my dear mestre! bradou Iaiá logo que o viu entrar na sala.

-Faltava mais uma língua a esta tagarela, disse Luís Garcia rindo; daqui a pouco tempo ninguém a poderá aturar.

Jorge não esperava, decerto, encontrar na moça a mesma expressão que lhe deixara na antevéspera, quando de um gesto nervoso lhe comprimira o pulso. Tinham passado quarenta e oito horas, e para que ela se restabelecesse bastariam apenas quarenta e oito minutos. Contava com a mudança; não obstante procurou ler-lha nos olhos, e achou-os tão alegres como o tom em que ela o saudara. A lição isolou-os, e foi também o pretexto mais favorável para lhe mostrar a carta de Procópio Dias. Iaiá viu-a selada e compreendeu tudo; arrebatou-a às mãos de Jorge.

-Ah! disse este, seu gesto vale um discurso.

-Posso ler?

-Pode.

Iaiá desdobrou a carta e leu-a para si. Enquanto lia, Jorge fitava-a. Não lhe via nenhuma confusão, alvoroço ou alegria; os olhos seguiam lentamente de uma linha a outra, e a mão firme voltava a página. No fim, quando leu o seu nome, teve um movimento de tédio, e inconscientemente amarrotou o papel; mas emendou-se logo, alisou a carta com a mão e restituiu-a silenciosamente. Durante alguns segundos ocupou-se em traçar com um lápis alguns círculos na margem da folha aberta da gramática; ergueu enfim os olhos e perguntou sem rir:

-Acredita no que diz essa carta?

-Acredito; tudo o que está aí escrito, já o ouvi de viva voz, e com a mesma sinceridade e calor. Quem sabe? pode ser que seja o primeiro amor desse homem.

-O primeiro... o primeiro... repetiu ela entre dentes.

-Talvez o primeiro, insistiu Jorge; e para uma moça, acho que deve ter algum encanto ser amada por um homem, considerado superior às paixões. A vida de Procópio Dias teve sempre outra ordem de interesses...

-Conhece-o há muitos anos?

-Há muitos, não; conheço-o desde o Paraguai.

-Acha que eu fazia bem em me casar com ele?

-Bem ou mal, conforme o amor que lhe tiver. Esse é o ponto necessário, e em meu conceito, o ponto duvidoso. Receio que a senhora o não ame deveras; já tive ocasião de o dizer.

-Preciso de alguns esclarecimentos. O senhor amou decerto alguma vez...

-Nunca.

-Nunca? Nunca teve um amor, um só que fosse? Não creio. Um coronel! Nada; não creio; só se me jurasse; era capaz de jurar?

-Juro.

-Em nome de sua mãe? concluiu ela fitando-lhe uns olhos cuja expressão imperativa contrastava com o tom submisso da palavra.

Jorge hesitou um instante. Tinha cepticismo bastante para proferir uma fórmula vaga de juramento; mas recuou diante da fórmula positiva. Hesitou e ladeou a pergunta.

-Esse nome resume justamente o meu único amor, disse ele; amei a minha mãe.

Iaiá sorriu com ar de dúvida; depois olhou para ele comovida. -Eu amo meu pai, redargüiu ela; nossos corações podem entender-se.

A esta palavra não havia que replicar; pareceu-lhe a condenação do pretendente. Apertou a mão que a moça lhe estendeu, e sentiu-a fria. Após uma curta pausa, abanou a cabeça, murmurando:

-Assim pois, nenhuma sombra de esperança...

-Faça o que entender, disse a moça no fim de outra pausa. Em todo o caso desejo ler a resposta que lhe der.

Jorge abriu a carteira, e tirou de lá o rascunho da carta que pretendia mandar a Procópio Dias.

-A resposta, disse ele, já está escrita. Não querendo matá-lo, pus aqui algumas gotas de esperança; não ousaria contudo mandar o remédio, sem ouvi-la.

Iaiá recebeu o papel dobrado, olhou um instante para ele, outro para Jorge. -Leia, disse este. Iaiá não obedeceu: pegou do lápis, e sobre a folha do papel dobrado começou a lançar os traços de um desenho. Posto que a luz batesse em cheio no papel, Jorge não pôde ver desde logo o que era; mas esperava, em frente da moça, que ela rematasse o capricho. Nessa ocasião, Estela foi ter com eles.

-Já acabou a lição? perguntou.

-Agora é uma lição de desenho, ao que parece, disse Jorge.

Estela pôs a mão no ombro da enteada. -É o Procópio Dias! disse ela olhando para o desenho. Era, mas o desenho frisava com a caricatura; a fealdade de Procópio Dias excedia as proporções verdadeiras, o nariz era enormemente triangular, as rugas da testa grossas e infinitas: um monstro cômico. Estela sorriu da travessura, mas repreendeu-a.

-Deixe ver, disse Jorge quando ela acabou.

-Para quê? retorquiu Iaiá com indiferença.

E levando o papel à chama, queimou-o. Jorge interrogou-a com os olhos; ela encarou-o sem se perturbar. Depois folheou a gramática lentamente.

-Continuemos a lição, disse ela. I love. Vá; onde estávamos? Aqui, era aqui.

Estela assistiu à lição toda, com a paciência da curiosidade. Tinha a fronte nublada, mas altiva, como um repto. Não olhava nunca para o mestre, mais dividia a atenção entre a discípula e o livro. A lição foi longa, mais longa do que era necessário, porque o próprio mestre não acompanhava pontualmente o texto e a leitura. Iaiá tinha diante de si dous juízes, cada um dos quais buscava decifrar-lhe na fronte a inscrição que lá lhe teria posto o seu destino. Percebia-o, e não se enfadava. Ia de um tempo a outro, e do indicativo ao imperativo, voltando ao começo logo que chegava ao fim, fitando os dous inquisidores com um olhar em que pareciam dormir todas as ignorâncias da terra.

A tranqüilidade era aparente. Nessa noite, recolhida a seus aposentos, a moça deu largas a dous sentimentos opostos. Entrou ali prostrada. -Que estou eu fazendo? disse ela apertando a cabeça entre os punhos. Abriu a veneziana da janela e interrogou o céu. O céu não lhe respondeu nada; esse imenso taciturno tem olhos para ver, mas não tem ouvidos para ouvir. A noite era clara e serena; os milhões de estrelas que cintilavam pareciam rir dos milhões de angústias da terra. Duas delas despegaram-se e mergulharam na escuridão, como os figos verdes do Apocalipse. Iaiá teve a superstição de crer que também ela mergulharia ali dentro e cedo. Então, fechou os olhos ao grande mundo, e alçou o pensamento ao grande misericordioso, ao céu que se não vê, mas de que há uma parcela ou um raio no coração dos símplices. Esse ouviu-a e confortou-a; ali achou ela apoio e fortaleza. Uma voz parecia dizer-lhe: -Prossegue a tua obra; sacrifica-te; salva a paz doméstica. Restaurada a alma, ergueu-se do primeiro abatimento. Quando abriu de novo os olhos, não foi para interrogar, mas para afirmar, -para dizer à noite que naquele corpo franzino e tenro havia uma alma capaz de encravar a roda do destino.

Tarde conciliou o sono. Já dia claro, sonhou que ia calcando a beira de um abismo, e que uma figura de mulher lhe lançava as mãos à cinta e a levantava ao ar como uma pluma. Pálida, com o olhar desvairado, a boca irônica, essa mulher sorria, de um sorriso triunfante e mau; murmurava algumas frases truncadas que ela não entendia. Iaiá bradou-lhe em alta voz: - ize-me que não amas e eu te amarei como te amava! Mas a mulher sacudindo a cabeça com um gesto trágico, e colando-lhe os lábios nos lábios, soprou ali um beijo convulso e frio como a morte. Iaiá sentiu-se desfalecer e rolou ao abismo. Acordou agitada e deu com a madrasta, a contemplá-la, ao pé da cama. No primeiro instante, fechou os olhos e recuou até a parede; mas logo depois voltou a si.

-Tive um pesadelo horrível, disse ela respirando largamente; rolei no fundo de um abismo, empurrada por duas mãos de ferro. Ainda estou fria. Veja as minhas mãos. Tenho o peito oprimido. Felizmente passou. Está aqui há muito tempo? Eu agitei-me muito?

-Falaste em voz bem alta.

-Que foi?

-«Dize-me que não amas e eu te amarei como te amava.» Não sei que estas palavras se possam dizer no fundo de um abismo. Tu confundes os sonhos...

-Talvez; não me lembra outra cousa. Só me lembro do abismo, que felizmente não passou da minha imaginação. É muito tarde, não é?

-Nove horas.

-Nove horas!

Estela foi à janela, e, abrindo a veneziana, mostrou-lhe o sol. Depois encostou-se ali a olhar para fora. Entrara alguns minutos antes, admirada do prolongado sono da enteada, e ia pousar-lhe a mão no ombro, quando ouviu aquela palavra balbuciada no meio de grande agitação; palavra misteriosa e vaga, mas que se lhe embebeu no coração como um espinho. De sua parte, Iaiá não estava menos inquieta. Receava que houvesse dito alguma cousa mais, -um nome ou uma circunstância precisa;- em todo caso, era bastante o que ouvira a madrasta, para imaginar que o sonho lhe escancarara as portas da consciência. Uma e outra espreitavam-se desconfiadas e medrosas. A madrasta deixou a janela e foi sentar-se na beira da cama. Ambas sorriam com esforço e nenhuma conseguia falar primeiro. Correram assim três longos minutos de acanhamento e observação recíproca. Estela foi a primeira que rompeu o silêncio.

-O teu pesadelo foi um castigo, disse ela; foi o castigo da caricatura que ontem fizeste. Aquilo não é bonito. Todos sabem que o Procópio Dias é bem recebido em nossa casa. Que se há de pensar de nós, quando virem que se tratam assim as pessoas ausentes?

Iaiá refletiu um instante. -Era preciso, disse ela; era uma maneira de desenganar de uma vez as pretensões desse senhor.

-Mas quem te falou nelas?

-O Dr. Jorge, que parece protegê-lo. Não é possível que haja ninguém mais feliz do que aquele homem. Bastou gostar de mim, para que todos se empenhem em aprová-lo e aconselhar-me que não devo tomar outro marido. Parece-lhe que eu...

-A que propósito te falou nisso o Dr. Jorge?

-A propósito de cousa nenhuma; falou porque é amigo dele. Não lhe disse eu uma vez que um dia, se todos teimarem, serei obrigada a casar com o Procópio Dias? Receio muito que assim aconteça.

-Não, disse Estela vivamente; não há de acontecer assim, primeiramente porque eu não o consentirei nunca; depois, porque tu amas a outro...

-Eu?

-O teu amor de colégio, aos doze anos e meio...

-Ah! disse Iaiá. E depois de alguns instantes continuou, com um gesto de grande vergonha: -Fiz mal em lhe dizer aquilo; peço-lhe que não repita a ninguém.

Estela não ouviu estas últimas palavras. Erguera-se outra vez para dissimular a comoção, que parecia crescer. Entretanto, Iaiá enfiou um roupão e enterrou o pé na chinelinha matinal. Quando, cinco minutos depois, encontrou os olhos de Estela, achou-os sombrios, como os da figura do pesadelo, e insensivelmente buscou ver se teria um abismo ao pé de si.

-Iaiá, disse Estela em tom seco, tu amas, tu confessas que amas a alguém; quero que me digas o nome desse homem, ouves? Exijo sabê-lo para avaliar o que te convém. Sabes que tenho autoridade de mãe.

Iaiá sentiu ferver-lhe o sangue nas veias.

-Minha mãe morreu, redargüiu com igual sequidão; estou pronta a obedecer a meu pai.

Estela ouviu essa resposta como um ultraje; mas o rosto apenas denunciou a sensação interior; após alguns instantes de silêncio, saiu.

Longe da enteada, a madrasta deu inteira expansão aos sentimentos que a combaliam. Fechou-se no gabinete do marido; depois evocou o passado, como uma força contra o presente, porque era o presente que ameaçava tragá-la. Um instante abalada pela leitura da carta de 1867, buscou recobrar a antiga quietação, mas a interferência de Iaiá perturbou essa obra de sinceridade. O procedimento da enteada, a súbita conversão às atenções de Jorge, toda aquela intimidade visível e recente, acordara no coração de Estela um sentimento, que nem aos orgulhosos poupa. Estímulo ou ciúme, revolvera a cinza morna e achou lá dentro uma brasa. Suspeitou a rivalidade da outra, e não foi preciso mais para que o grito de rebelião fizesse estremecer aquela alma solitária e virgem. O pensamento perdeu a habitual placidez. O coração, que é o pulso da alma, começou de bater com a celeridade e a violência das grandes febres.

As naturezas débeis inclinam-se ao erro; as voluptuárias acham nele o próprio ar de seus pulmões; as frias não chegam a distingui-lo, não têm ocasião de lutar. Estela não pertencia a nenhuma daquelas classes; tinha porém as energias latentes de um amor comprimido, mas intenso, como uma cratera que acaso fechasse uma abóbada de gelo; pior que tudo, tinha a fatalidade de um longo constrangimento, a luta de duas forças igualmente pujantes, indomáveis e cegas. O orgulho vencera uma vez; agora era o amor, que, durante os anos de jugo e compressão, criara músculos e saía a combater de novo. Seu triunfo seria uma catástrofe, porque Estela não dispunha da arte de combinar a paixão espúria com a tranqüilidade doméstica, não poderia nunca misturar esta água com aquele lodo. Teria as lutas e as primeiras dissimulações, que as acompanham; uma vez subjugada, iria direito ao mal.

Ora, no meio desse duelo, já doloroso, embora ainda curto, ouviu Estela a última palavra da enteada, comentário da que lhe escapara na agitação do pesadelo. Saiu dali aterrada, tateando as sombras, e desviando os olhos quando algum clarão de realidade se lhe acendia ao longe. Não podia crer na rivalidade consciente e declarada de Iaiá; era inverossímil, seria a sua própria vergonha e condenação. Mas as palavras retiniam-lhe ao ouvido, e o gesto frio e duro da enteada parecia clarear o que havia obscuro nelas.

Não podia durar muitas horas a situação em que a fatalidade das circunstâncias havia posto as duas mulheres. Iaiá era a mais dúctil, e, outrossim, a mais interessada. Logo que Estela a deixou só, caiu em si e compreendeu que, além de ferir cruelmente a mulher que lhe servia de mãe, levantara uma ponta do véu em que trazia envolto o pensamento; ao demais, a injúria produzira a reação do amor, -do amor que lhe tinha e não perdera de todo, apesar dos acontecimentos últimos. Na seguinte manhã foi ter com a madrasta.

-Confesso que fui excessiva e desobediente, disse ela; não o devia ser, mas a senhora falou com um modo tão seco! Tão duro. Pareceu-me que duvidava de mim; fosse o que fosse, não era o seu modo do costume. Sempre a respeitei como minha mãe; não nego, não poderia negar nunca os seus direitos, assim como não desconheço a sua amizade; mas a senhora mesma tem um bocadinho de culpa; sempre me tratou antes como irmã do que como filha. Daí veio alguma confiança, alguma liberdade, e foi por isso que ontem cheguei a esquecer quem éramos, para a tratar como não devia. Foi isso somente; foi um excesso, uma leviandade, nada mais. Interrogue o seu próprio coração e ele lhe responderá que não foi mais do que isso. Vá; pergunte-lhe, ele me conhece.

Estela escutou-a silenciosamente, sem vergar a altivez da fronte, mas também sem nenhuma expressão de despeito ou desafio. Luzia-lhe nos olhos alguma cousa que espreitava a alma da outra por baixo das pálpebras descidas. Iaiá falara de um jato, mas não de um só tom; simplicidade, timidez, faceirice, - havia de tudo na maneira por que se exprimiu durante aqueles poucos segundos. A explicação era a um tempo sincera e hábil, mas de tal modo se confundiam os dous caracteres, que a própria habilidade não tinha consciência de si: era antes um instinto do que um cálculo.

-Que me pedes tu? disse Estela no fim de alguns instantes. Que te perdoe? Que esqueça a tua imprudência? Uma cousa é mais fácil do que a outra. Estás absolvida; faze agora com que eu esqueça.

-Por que não? eu consegui fazer com que me amasse, quando a senhora não sabia ainda se eu era má ou boa.

-Era fácil. Tua mãe era tua mãe; mas não te amou mais do que eu. Se alguma vez o reconheceste, não foi ontem; ontem cedeste a um mau preconceito contra as madrastas, e levantaste entre mim e ti um espectro, que se pudesse falar seria para te condenar também. Não me queixo; nunca me queixei de cousa nenhuma: quando estimo alguém, perdôo; quando não estimo, esqueço. Perdoar e esquecer é raro, mas não é impossível; está nas tuas mãos.

Subjugada pelo tom com que a madrasta falara, simples, severo e levemente repassado de tristeza, Iaiá cedeu a um nobre impulso de submissão. Pegou-lhe as mãos e beijou-as. A madrasta sentiu nelas uma lágrima. Não recusou esse testemunho do coração, e tê-la-ia apertado ao seio se lho permitisse a inflexibilidade do espírito. Limitou-se a contemplá-la com os olhos amoráveis de outro tempo.

Quando se separaram daí a alguns minutos, alguma cousa dizia à consciência de ambas que não vinham de fundar a paz, mas simples tréguas. Essa persuasão cresceu nos demais dias, porque uma e outra sentiam-se mutuamente observadas. Como houvesse entre elas um acordo tácito para não turbar a paz doméstica, Luís Garcia não percebeu essa situação nova; Jorge ainda menos do que ele. Iaiá não alterou os hábitos dos últimos dias, conquanto usasse mais alguma cautela; as relações dos dous eram, aliás, tão freqüentes e familiares como dantes. Uma vez, como a ausência de Jorge se houvesse prolongado além do costume, Iaiá mostrou-se-lhe um pouco retraída; e, perguntando-lhe ele o que tinha, respondeu afoitamente, que a ausência a magoara muito.

-Quatro dias apenas, observou ele.

Iaiá abanou a cabeça e redargüiu sorrindo: -O senhor não é um mestre; é um verdugo.

No primeiro domingo de março, Jorge foi ali às onze horas da manhã, e só achou Luís Garcia e Estela. Iaiá tinha ido à casa de Maria das Dores. Quando a moça voltou, Jorge e Estela estavam no jardim, ao pé da porta da sala; entre ambos havia uma cadeira vaga, -a de Luís Garcia, que fora dentro alguns minutos antes. Nenhum dos dous falava nessa ocasião; Estela estalava as unhas, Jorge batia na testa com o castão da bengala. Era constrangimento? Era dissimulação? Iaiá não soube decidir; mas o aspecto dos dous deixou-a sem pinga de sangue.

No dia seguinte voltou à casa de Maria das Dores; sabia do passeio usual de Jorge; queria vê-lo, falar-lhe. A doente não contava com a visita tão próxima da outra. Iaiá esteve com ela apenas alguns minutos, e saiu fora, a pretexto de que fazia calor e queria ver a tarde. A tarde era bela; o céu tinha todos os tons, desde o escarlate até o opala; ao nascente, algumas nuvens, raras e finas, manchavam de branco o eterno azul.

A casa ficava numa pequena elevação; Iaiá sentou-se numa pedra lisa, que servia de banco, e dali circulou um olhar pelo horizonte; depois desceu os olhos à cidade e ao mar, e esse espetáculo, tão saído deles, levou-a aos tempos, não mui remotos, em que entre ela e o pai nenhum coração viera interpor-se. No meio das reflexões, viu parar um homem, ao longe; era Jorge; vinha a pé, em atitude de quem medita. Passaria ele sem a ver? Ergueu-se; viu-o aproximar-se, parar de novo e olhar na direção da casa. Cortejou-o de longe e fez-lhe sinal para que subisse. Jorge obedeceu sem dificuldade.

Maria das Dores, doente de uma paralisia ficou estupefacta quando viu entrar um desconhecido pela mão de Iaiá, um homem cujo traje e aspecto contrastavam com a nudez da casa. Interrogou a moça com os olhos; e Iaiá, depois de um instante de acanhado silêncio, respondeu com desgarre:

-É meu noivo, que vem vê-la. Quero que o conheça e não diga a ninguém, ouviu?

Dizendo isto, aproximou-o mais da paralítica. A boa velha contemplou-o alguns instantes, disse-lhe algumas palavras de conselho, pediu-lhe que fizesse feliz a sua filha de criação, e não obteve dele uma palavra ou um gesto de assentimento. Supô-lo comovido; mas ele estava simplesmente atônito.

Saindo fora de casa, assentaram-se à porta, na mesma pedra, assaz larga e extensa para dous.

-Foi preciso dizer-lhe aquilo, explicou Iaiá, porque eu desejo conversar com o senhor, e os noivos conversam mais à vontade. Demais, ela não é só paralítica; tem a vista fraca; amanhã posso substituí-lo, sem que ela dê pela mudança. Agora falemos de nós e daquela carta... E antes da carta, diga-me, sabia que eu estava aqui?

-Não; mas não vim até estes lados sem esperança de a encontrar. Já que fala na carta, deixe-me dar-lhe uma explicação; se a não dei até hoje, é porque não quisera voltar a um assunto, aborrecido para a senhora e para mim.

-Para o senhor?

-Para mim.

Iaiá apertou-lhe a mão com força. -Vá, disse; também tenho de lhe dizer alguma coisa grave; mas ouçamos primeiro a sua explicação.

-Oh! Custa pouco, acudiu Jorge. Escrevi o esboço da carta por me parecer que podia ser-lhe agradável. Lembra-se que uma vez me havia falado naquele sentido? Duvidei mais tarde, e disse-lho. Contudo, havia tanta incerteza e contradição entre suas palavras e ações, que não era difícil supor alguma cousa; há paixões que começam assim caprichosamente. A carta era um meio de dizer ao pretendente que seus suspiros podiam não ser inúteis. Era isso; só isso. Confesso que adotei o papel mais passivo, desinteressado, e não sei até se... creio que a senhora já o qualificou de ridículo. A forma podia não ser grave, mas a intenção era afetuosa, e se merecia um riso, também merecia um aperto de mão. Esboçada a carta, não a mandaria sem mostrá-la; foi o que fiz; mas sua reprovação foi tão eloqüente, que me fez cair em mim e reconhecer que a carta era de mais.

-Era de menos.

-Queria então que fosse eu próprio a Buenos Aires? perguntou Jorge sorrindo.

-Queria, se ao chegar lhe dissesse: -Pense em outra cousa; Iaiá não o ama.

-Para isso, basta que lhe não diga nada.

-Não o ama, repetiu a moça; não o ama, não o ama.

-Desta vez é sério e definitivo?

-Que admira? replicou a moça com gravidade. Não lhe parece a cousa mais natural do mundo que uma moça não ame o Procópio Dias? Não sei o que são os outros homens; poucos tenho visto; nossa vida é tão retirada! Mas, enfim, não me parece que o Procópio Dias seja homem de se ficar morrendo por ele. E contudo ele morre por mim. Meu coração perdoa-lhe; é o mais que pode fazer. Aceitá-lo seria impossível. Já reparou nos olhos dele? Têm às vezes uma expressão esquisita, que não vejo nos olhos de papai nem nos seus. Não gosto dele; não poderia gostar nunca.

Desta vez foi Jorge que lhe apertou a mão.

-Tem razão, disse ele; se o não ama deveras está tudo acabado. Não lhe digo que ele fosse um noivo perfeito; não podia ser; mas aceitável era. Hoje percebo que entre a senhora e ele há alguns contrastes; mas o que é que não concilia o tempo? Esqueça o que lhe disse a tal respeito; e assentemos não falar mais de semelhante assunto. Provavelmente não escreverei nada; é duro dizer a um homem que todas as suas esperanças são vãs.

-A paz do meu espírito não valerá esse sacrifício?

-Vale mais; posso fazê-lo.

Iaiá refletiu.

-Não, não é preciso; não lhe diga nada; ele há de entender tudo.

Como fizessem uma pausa longa, viram duas ou três pessoas, que passavam embaixo, olharem para cima com certo ar curioso e indiscreto. Jorge ergueu-se.

-Estamos dando na vista, disse ele; hão-de supor que somos dous namorados.

-Sente-se, disse Iaiá em tom intimativo. E continuou: -Que perde o senhor com isso? Dirão que não tem mau gosto em amar uma moça bonita.

-Se dissessem que éramos dous namorados, erravam decerto, porque eu sei... eu suspeito que a senhora ama a outro. Uso dos meus direitos de confidente, exigindo que me diga a verdade.

-Toda, respondeu Iaiá, e era esse o ponto grave de que lhe queria falar. Ainda uma vez, o senhor estima-me? tem-me amizade sincera?

-Pois duvida?

-Eu duvido de tudo e de todos; até de mim. Mas enfim, preciso de alguém que me ouça, a quem eu conte o que penso e o que sinto, e até o que receio, porque também receio, e há horas em que tremo sem saber de quê. É verdade, há ocasiões em que me parece que uma grande infelicidade vai cair sobre mim, e daí a nada penso justamente o contrário; penso que vou receber a maior felicidade do mundo, e fico alegre como um passarinho. Cousas de criança, não é?

-Não, cousas de moça. É certo que ama? a quem?

Iaiá olhou para ele algum tempo, satisfeita da impaciência que parecia ler-lhe na fronte.

-Respondo que sim e que não, disse ela. Se me pergunta a quem amo, digo-lhe que não sei, não amo ninguém; mas sinto alguma cousa misteriosa e esquisita, e não sei... desconfio... não sei que seja. Por que é que as mesmas cousas, que me eram indiferentes, agora me parecem interessantes, e até chego a supor que me falam? Ainda há pouco, antes de o ver, estava a olhar embebida para o céu, quase sem pensar, mas ainda assim curiosa ou ansiosa; olhava para o céu e para o mar; o coração apertou-se-me; depois alargou-se-me como se quisesse devorar tudo. Há dias em que me levanto alegre e viva, como uma criança; papai diz que são os meus dias azuis. Há outros em que tenho vontade de quebrar tudo, e não digo mais de duas palavras em cada hora; são os meus dias negros. Ouço às vezes uma voz que fala; penso que é alguém e reconheço que a voz é a da minha própria imaginação. Tudo será imaginação, creio; mas é tão novo e tão bom! Em todo caso, parece-me extraordinário, e se não é loucura... É verdade, às vezes penso que vou ficar doida, e nessas ocasiões tenho medo. Será isso?

-Não, acudiu Jorge, não é loucura, é sabedoria, é a grande sabedoria da natureza. Isso que sente, não será amor; mas é a necessidade de amar; é o rebate que lhe dá o coração. Alguém virá um dia, e a voz anônima que a senhora costuma ouvir, lhe falará então pela boca do homem que o coração lhe apontar.

Iaiá escutava-o como encantada, mas sem olhar para ele. Quando Jorge acabou, fez-se entre ambos uma longa pausa. A moça tinha os olhos no horizonte onde as cores da tarde desmaiavam rapidamente. Jorge contemplava-a tomado de interesse e até de inveja; compreendia os primeiros sobressaltos desse coração em flor, e dizia a si mesmo que há sensações que o tempo leva para não restituir mais.

Iaiá acordou de suas reflexões.

-Francamente, disse ela; o senhor não se ri de mim?

-Rir? A senhora não me conhece. Não há que rir de sentimentos sinceros; e seria pagar muito mal a confiança de que me dá prova. Não me julgue um espírito vulgar...

-Papai faz-lhe muitos elogios.

-Há de saber, ou fica sabendo que minha natureza simpatiza com o que está acima do comum. A senhora vale muito; posso dizer que há dous meses eu ainda a não conhecia...

-Não tente a minha vaidade, interrompeu Iaiá; prefiro que me dê um bom conselho.

-Dou-lhe um, disse Jorge depois de curta pausa; resista um pouco a essas sensações, cujo excesso pode perturbar-lhe a existência. Não é só o coração que lhe fala, é também a imaginação, e a imaginação, se é boa amiga, tem seus dias de infidelidade. Dê um pouco de poesia à vida, mas não caia no romanesco; o romanesco é pérfido. Eu, que lhe falo, lastimo não ter já essa ordem de sentimentos em flor, e contudo não sei se ganharia com eles.

-Quê! Não seria capaz de amar?

-Meu coração não envelheceu ainda.

-Entendo; amaria hoje de outro modo...

-De outro modo, e tão sinceramente como dantes; um amor de olhos abertos.

-Penso que o amor verdadeiro, ou ao menos o melhor, é o que não vê nada em volta de si, e caminha direito, resoluto e feliz aonde o leva o coração. Para que servem os olhos abertos?

-A senhora quer saber muita coisa, disse Jorge sorrindo. Não basta que o coração lhe diga: ame a este; é preciso que os olhos aprovem a escolha do coração. Admira-se? Ouça-me até o fim; eu desejo preservá-la de alguma escolha má. Eleja um marido digno, um espírito que a entenda, que a admire, um homem que a possa honrar; não se deixe levar dos primeiros olhos que pareçam responder aos seus...

Iaiá abaixou a cabeça.

-Não acharei nenhuns, disse ela; eu creio que este amor morrerá comigo...

Como essa idéia parecesse entristecê-la, Jorge sentiu-se tomado de compaixão, ao ver que persistia naquela aurora pura uma sombra de superstição romanesca. Pegou-lhe na mão, viu-a estremecer, recusar-lha e cruzar os braços.

-Tem medo de mim? disse ele ao cabo de um instante.

-Tenho.

Jorge calou-se. Com a bengala entrou a reproduzir no chão umas reminiscências de geometria. Sentia-se atalhado, curioso; e tanto desejava como lhe custava sair dali. Não chegava a entendê-la claramente; a verdade, quando ia a tocá-la, parecia inverossímil. Entretanto, Iaiá não rompia o silêncio; tinha a fronte pendida e meditava. Talvez meditava na palavra que acabava de proferir, fruto da situação violenta em que ela própria ou os acontecimentos a haviam colocado. Era a rebelião do pudor. De quando em quando, sacudia a fronte como a expelir uma idéia enfadonha ou cruel. Numa dessas vezes, Jorge disse com brandura:

-Para que negá-lo? A senhora padece; não sei se com razão ou sem ela, mas parece padecer muito.

-Oh! Muito!

E dessa vez a palavra era tão angustiosa, tão sincera, tão vinda do coração, que ele cedeu antes a um impulso de generosidade do que à conveniência de não ser repelido segunda vez. Pegou-lhe nas mãos e pediu-lhe que fosse até o fim da confiança, dizendo-lhe a causa de seus males. Talvez ele pudesse removê-los.

Iaiá inclinou o rosto sobre as mãos de Jorge. Este sentiu nelas algumas lágrimas, vertidas sem soluços. Não passava ninguém; mas ele nem teve tempo de refletir na possibilidade de um estranho. Inclinou-se também e perguntou-lhe afetuosamente o que tinha. Iaiá ergueu a cabeça, e enxugou os olhos, mas não respondeu nada.

-A senhora não tem confiança em mim, disse Jorge.

-Há cousas que se não fazem, outras que se não dizem; algumas ficarão entre mim e Deus, retorquiu ela como se fizesse uma reflexão para si. Depois fitou-o e pediu-lhe a promessa de que não diria nada do que acabava de ver e ouvir.

-Essa promessa não se faz; está feita por si. Quanto ao seu segredo, não quero violentá-lo, mas tenho esperança de que a senhora mesma o há de dizer um dia; eu saberei obter-lhe esse resto de confiança que ainda me nega.

-Já! exclamou a moça vendo Jorge levantar-se.

-Repare que a noite vem caindo; não posso ficar nem mais um minuto. Um confidente tem limites. Olhe; não peço muita cousa, mas desejo alguma cousa mais. Confidente é pouco; mestre é ainda menos. Dê-me outro título ou cargo; deixe-me ser seu... seu quê? Seu... seu irmão. Sim?

-Não! disse ela energicamente.

Jorge empalideceu, como se acabasse de ver o fundo da alma da moça. A negativa era alguma cousa mais do que um capricho. Não retorquiu; estendeu-lhe a mão.

-Até quando? disse ela.

-Até amanhã.

Três minutos depois, Jorge estava na rua. A noite descia rapidamente. Ele não olhou para trás; se olhasse veria a figura de Iaiá envolta já na meia sombra do crepúsculo. Veria mais; vê-la-ia refletir um pouco e espalmar a mão no ar, como uma ameaça, na direção em que ele ia.

Iaiá entrou na casa da doente.

-Seu noivo? disse esta.

-Já foi.

-Quando é o casamento?

-O dia não sei. E depois de uma pausa. -Mas que se há de fazer é certo. Ou eu não sou quem sou.




ArribaAbajoCapítulo XIV

Guiando para casa, Jorge ia agitado e inquieto; recapitulava a conversação que acabava de ter com a filha de Luís Garcia. O acaso propusera-lhe um enigma; o tempo dava-lhe a decifração. Seria a decifração? O espírito do moço recuava, não dava crédito à realidade, pelo menos à realidade aparente; mas esta impunha-se-lhe de quando em quando, e Jorge recompunha todas as circunstâncias daquelas últimas semanas e ainda dos meses anteriores. Que era a esquivança, a rispidez, a hostilidade de Iaiá, senão a máscara de um sentimento contrário, a vingança de um coração atordoado pelo suposto desdém de outro? Essa reflexão vinha tão de molde com os fatos dos últimos tempos, que era difícil achar mais ajustada explicação. Logo depois, considerava que seria absurdo atribuir à moça uma ligeireza e um desgarre inconciliáveis com a prudência que reconhecia nela, a despeito dos assomos de travessura intermitente. Travessa, decerto, leviana, jamais.

-Impossível! disse ele sacudindo o ombro.

Mas esse impossível tornava a descer às regiões da probabilidade, até galgar os limites da certeza. A observação lhe mostrava que Iaiá tinha a audácia no sangue, e a razão lhe dizia que um amor sem freio possui todas as imprudências e vertigens; que umas naturezas são estóicas, outras rebeldes; finalmente, que há situações morais incomportáveis, e que a uma candura de dezessete anos é lícito não distinguir entre o sentimento que fala e a conveniência que restringe. Esta era a interpretação benévola; depois vinha a interpretação pessimista. Podia ser que todos aqueles atrevimentos encobrissem um cálculo, -o cálculo da ambição, que intentasse trocar a beleza pelo benefício de uma posição ostensiva e superior. Quando essa suspeita lhe brotou no espírito, Jorge não sentiu diminuir a admiração nem a estima; porquanto, a ambição, se ambição havia, parecia ser de boa raça. Mas era impossível combinar o cálculo com as lágrimas daquela tarde, e ele as sentira quentes, silenciosas, e não podia crer que uma vida quase adolescente possuísse já a arte suprema da suprema hipocrisia.

Não há vida tão física ou tão alheia ao sentimento da personalidade, que tal situação não padecesse, ao menos, trinta minutos de insônia. A insônia de Jorge durou mais algum tempo. De envolta com as conjecturas havia um pouco de satisfação pessoal. A certeza ou a probabilidade de que, sem nenhuma ação própria, iniciara nos mistérios do amor uma alma ainda nova e ingênua, dava ao coração dele alguma cousa da volúpia do egoísmo; sensação que, aliás, diminuiu quando lhe ocorreu que talvez esse amor obscuro lhe houvesse já custado lágrimas e desesperos. Ele tinha razão quando dizia não ser espírito vulgar. Afrouxara-se-lhe o ardor dos primeiros tempos, a imaginação tinha o vôo mais curto; mas a generosidade juvenil ficara inctata, e com ela a faculdade de ressentir as dores alheias.

-Pobre menina! dizia consigo.

No dia seguinte, Jorge examinou detidamente se lhe convinha tornar à casa de Luís Garcia, ao menos com a assiduidade do costume. A situação moral de Iaiá tendia a agravar-se com a presença contínua dele; em tais casos, a ausência era um ato de critério e até de misericórdia. Misericórdia foi o que ele disse consigo, e sorriu logo depois, com um sorriso de modéstia envergonhada. A verdade é que Jorge ansiava por lá voltar; tinha curiosidade de contemplar a sua obra, agora que a descobria ou presumia havê-la descoberto; se não é que a noite lhe trouxera uma sombra de dúvida, e ele queria verificar definitivamente a realidade.

De noite foi. Luís Garcia estava um pouco ansiado e abatido. -Venha, doutor! disse ele quando viu entrar o filho de Valéria; este coração é o meu importuno. A mulher procurava animá-lo; a filha tinha o terror nos olhos. Jorge auxiliou a família no trabalho de o confortar; três quartos de hora depois a moléstia cedia, e tornava ao trabalho surdo da destruição. Luís Garcia era outro, logo que passava uma dessas crises; tornava-se gárrulo e risonho, com o fim de reanimar ele próprio a família, e comunicar-lhe a esperança que lhe começava a faltar. Jorge não se deixou contaminar da ilusão; recordou a sentença do médico e sentiu a próxima extinção daquele homem. Iaiá não conhecia a sentença do médico; mas o espetáculo da aflição do pai tinha-a prostrado muito. Aparentemente não se lembrava da entrevista da véspera; podia até supor-se que, quando em quando, não se lembrava da presença de Jorge.

Jorge achou-a nos subseqüentes dias, tal qual era nos outros, menos travessa, porém, e muito mais senhora. Ao cabo de uma semana trazia todos os elementos de convicção: -Ama-me! pensava ele ao sair dali uma noite. A convicção, por mais que a suspeita a houvesse prevenido, atordoou o espírito de Jorge, que nessa mesma noite resolveu não voltar lá; resolução varonil, que durou quarenta e oito horas.

Alguns dias, três semanas, decorreram assim na mais aprazível familiaridade. Jorge, se não obtivera o título, exercia realmente as funções de irmão mais velho; era um guia, um conselheiro, uma autoridade. Escutava-a com interesse; recebia a confidência dos sentimentos da moça, e as ambições de um coração cuja sede parecia contentar-se da água que pudesse conter a própria mão, no primeiro arroio do caminho. Ao mesmo tempo, buscava temperar-lhe o romanesco com uma forte dose de realidade.

Durante esse tempo, nenhuma frase igual às daquela tarde veio sacudir o espírito de Jorge; nenhuma lágrima lhe caiu nas mãos. Mas, se a palavra não vinha, a voz era insinuante e comovida, às vezes; se os olhos não choravam, luziam ou quebravam-se de um modo pouco comum. Jorge fingia não compreender; mais do que isso, forcejou por se persuadir a si próprio que não compreendia: resultado útil, que lhe dava a vantagem de saborear em silêncio o gozo de se saber amado, sem perder o de contemplar uma natureza original, moralmente exuberante e forte, que, além de tudo, tinha para ele a fascinação do mistério ou do abismo.

No fim daquelas três semanas encontraram-se em casa da paralítica. Não houve acordo, mas nada foi casual. -Vou amanhã à casa de Maria das Dores, disse Iaiá uma noite, prestes a despedir-se dele. E no outro dia de tarde, Jorge, que havia rareado os passeios daqueles últimos tempos, acertou de caminhar para ali, e com tão boa fortuna, que achou a moça sentada no mesmo banco de pedra em que lhe falara da primeira vez.

Outra vez, quando Iaiá ali voltou, já encontrou Jorge, ao pé da enferma. Maria das Dores estava ainda mais contente com a honra da visita do que com a esmola que ele dissimuladamente lhe levara envolvida em um lenço de ramagens. Jorge animava-a, dizia-lhe que ainda iriam à Penha naquele ano. Iaiá parou à porta, espantada e contente.

-Venha, disse a enferma, ande ver como seu noivo está caçoando com a velha.

-Agradeço-lhe, disse Iaiá; creia que ela merece todas as consolações.

Na noite desse dia, quando Jorge entrou em casa, um pouco inebriado da entrevista, achou uma carta de Procópio Dias, que o encheu de contentamento. Procópio Dias tinha necessidade de se demorar ainda uns dous meses. Dous meses! Era a eternidade. Jorge sentiu-se conformado com a notícia de tão longa ausência. Que importava a presença, se ela o não amava? Essa reflexão não a fez Jorge, mas a filha de Luís Garcia, quando ele lhe deu a notícia da carta:

-Que tenho eu que ele esteja ausente ou presente? Ele ou um estranho é a mesma cousa.

A eternidade foi um minuto; os dous meses voaram como um tufão. Um dia, no último desses dous meses, Iaiá disse ao filho de Valéria que achara enfim um marido.

-Um marido? repetiu Jorge empalidecendo.

-Parece que um marido. Não me aprova?

-Se ainda o não conheço!

-Não sei se é um marido, continuou Iaiá depois de um instante; mas achei o homem a quem amo.

-É a mesma cousa.

-Ou quase.

Houve entre ambos uma longa pausa, durante a qual Iaiá tinha os olhos fitos no moço, enquanto este não tinha os seus em parte nenhuma; vagavam de um ponto a outro. Iaiá repetiu que achara um marido.

-É a segunda vez que me diz isso, redargüiu Jorge com a voz trêmula e irritada; se o achou, tanto melhor; casará com ele.

-Não me disse uma vez que não me deixasse ir com os primeiros olhos que parecessem responder aos meus? não me disse que era conveniente escolher um homem...

-O que eu lhe disse foram palavras sem sentido, tornou Jorge; não se dão conselhos ao coração que ama. O casamento vem talhado do céu, segundo diz o povo; outros dirão que vem do acaso; ou é o destino de cada um, ou é uma loteria. A senhora não me pede certamente que lhe diga o número em que há de sair a sorte grande? Compre o bilhete e deixe correr a roda. Alguns dias de paciência e nada mais...

A excitação de Jorge era extraordinária, mas não foi longa. Alguns instantes de silêncio bastaram a aplacá-la ou diminuí-la; pelo menos o gesto não traiu a agitação interior. Pálido, sim, estava pálido; mas a voz, se não era firme, perdera a aspereza do primeiro instante.

-Refleti depois da nossa conversa, disse ele e não desejo tomar nenhuma responsabilidade em um ato de que depende a felicidade de sua vida.

-Então, não me estima, é o que é, disse Iaiá em voz queixosa.

Jorge respondeu com um olhar, e a resposta, que ele quisera fosse um simples protesto, transgrediu esse limite: foi um protesto, uma queixa e acaso uma interrogação. Iaiá abaixou os olhos; uma onda de sangue lhe avermelhou a face; Jorge viu-a ofegante e acanhada durante alguns segundos. Não indagou o motivo; ergueu-se para sair. Iaiá reteve-o pela aba do fraque.

-Nega-me então todo o auxílio? disse ela. Depois de alguns meses de uma vida em que me acostumei a ouvir seus conselhos, o senhor recusa-me este. Que lhe fiz eu?

-Nada.

Jorge saiu. -Que tenho eu que ela ame, que se case ou não se case? Sou eu seu pai? seu tutor? Quando assim falava, sentia dentro de si uma resposta; a consciência desvendava-lhe a realidade. Sim, tu amas, dizia-lhe ela, tu não fazes outra cousa há dous meses; deixaste-te envolver nos fios invisíveis; não sentiste que essa intimidade de todos os dias era a gota d'água que te cavava o coração. Ah! tu querias saciar a curiosidade e sair dali sem deixar alguma cousa, sem receber também alguma cousa? Não se brinca com um inimigo; e ela o era, e continuará a sê-lo, porque tu estás definitivamente atado.

A esta voz importuna e verdadeira, Jorge erguia os ombros. Tentou refugiar-se no sono. O sono rejeitou-o de si. Então fumou, desceu à chácara, fatigou o corpo para melhor adormecer o espírito; mas a lua que batia no repuxo mostrava-lhe, ora um casebre de Santa Teresa, ora uma varanda da Tijuca, como se fossem o verso e o anverso da medalha de seu coração, toda a história da vida que ele vivera até ali. A diferença entre uma e outra dessas duas fases é que presentemente o desengano não o levaria à guerra, nem lhe daria os desesperos do primeiro dia. Não; Jorge levantou-se na manhã seguinte um pouco atordoado, mas não inteiramente abatido. Sentia alguma opressão moral, um desejo de saber quem era o adversário preferido. Merecê-la-ia? Que a merecesse, embora; ele tinha um direito anterior e superior; desde que a amava, excluía todos os outros.

À força de pensar naquilo, chegou a entrever a realidade; perguntou a si mesmo se a declaração da moça não seria antes um estratagema. Podia ser; tinha-a visto corar, inclinar o colo, ficar por algum tempo acanhada e comovida. Essa conjectura desabafou-lhe um pouco o espírito; e, por isso que era a conjectura da esperança, não tardou em transferir-se a evidência. Relembrou todas as ações de Iaiá, suas palavras, as circunstâncias e os termos de reconciliação, as lágrimas sem motivo, a paciência, o interesse, o gosto de o conversar; finalmente, esse quê misterioso que divulga a uma alma a preferência de outra. Quando pouco a pouco lhe penetrou no coração essa idéia, Jorge reconheceu que havia sido precipitado. Queria escrever-lhe e recuou; queria lá voltar, mas resolveu o contrário.

-Se é um estratagema, pensou ele, ela terá nisto o seu castigo; se verdadeiramente ama a outro, que vou lá fazer agora?

Pensou isto; pensou mais; só não pensou em Estela.

Iaiá não se pôde conter. Ao cabo de sete dias de ausência determinou ir ao lugar onde mais de uma vez encontrara o filho de Valéria.

-Vai chover, disse Luís Garcia; guarda a visita para amanhã.

Iaiá teimou na resolução. -É uma nuvem que passa, disse ela; em saindo a Lua verá como o tempo fica limpo.

Estava inquieta, preocupada, tinha estremecimentos nervosos; não atendeu à segunda observação do pai. O pai dizia-lhe que não havia necessidade de desobedecer para realizar um capricho. Como repetisse a expressão, Iaiá ficou pálida e não ousou responder; mas Estela, que assistia calada aos conselhos de um e à resistência de outro, disse sorrindo à enteada:

-Vá; seu pai deixa-a ir.

Iaiá ia agradecer a intervenção; mas, quando os olhos das duas mulheres se encontraram, detiveram-se por um instante longo. Tinham-se entendido; Estela suspeitara a causa da insistência e da palidez; Iaiá aceitava a palavra da madrasta, como uma homenagem de vencida.

Poucos minutos depois chegava a moça à casa de Maria das Dores. Despediu Raimundo; a porta estava aberta; entrou. Da sala, onde se deteve, ouviu noutra sala interior a voz de Jorge.

-Não se esqueça; há-de entregar-lhe isto, quando ela vier; não mande lá à casa; é um livro.

Iaiá entrou.

-Não contava comigo? disse ela.

-Não; por isso deixava-lhe este livro, respondeu Jorge tirando o embrulho à doente e entregando-o à moça; é um romance, creio que lhe falei nele uma vez.

Iaiá tomou-lhe o livro, abriu-o, folheou-o com sofreguidão, como certa de achar uma página marcada. Estava marcada uma página; e a marca era um bilhete. Abriu-o; dizia assim: «A senhora deu-me uma vez um título que eu esperei viesse a ser verdadeiro. Diga se me enganei, se o céu lhe destinou outro noivo, ou se meu coração pode ter ainda uma esperança. Não lhe custará muito; não custa muito uma simples palavra.»

Enquanto ela lia rapidamente estas linhas, e tornava-as a ler, Jorge afastou-se até à sala da frente. A carta era das que não permitem a presença do autor; precisam do prestígio da ausência; são, para assim dizer, expressões truncadas que a imaginação perfaz e amplia. Jorge ia a sair, quando ouviu o rumor dos passos de Iaiá; deteve-se a esperar a resposta. A moça parou diante dele, e entre ambos houve um momento de silêncio e hesitação.

-Cego! disse enfim Iaiá estendendo-lhe as mãos com um ar de simplicidade e confiança.

Jorge recebeu-as nas suas; e a linguagem que a alma não quis confiar do lábio do homem, eles a disseram com os olhos, durante alguns minutos largos. Jorge perguntou finalmente: -É certo? ama-me? -Iaiá cingiu-lhe o pescoço com os braços, e inclinou a cabeça com um gesto de submissão. Jorge inclinou-se também, e nos cabelos, -nos fios de cabelo, que lhe pendiam na testa, pousou o mais puro e fugitivo dos beijos. Ao contacto daquele lábio, Iaiá enrubesceu e estremeceu toda; mas não fugiu, não retirou os braços; deixou-se ficar subjugada e feliz.

Homero conta que Vênus, descendo ao campo da batalha entre gregos e troianos, saiu dali ferida e ensangüentada. Iaiá teve a sorte da diva homérica; interpondo-se entre Jorge e Estela trouxe dali ferido o coração. Naquele espaço de alguns meses, obra de paciência e luta, de violência e simulação, para o qual fizera convergir todas as forças morais, não suspeitou que, vencendo ao outro, podia vencer-se a si mesma. Queria ser uma barreira entre o passado e o presente, sem cogitar na dificuldade do plano, nem nas conseqüências possíveis dele. Sobretudo, não pensou na moralidade da ação. Que podia ela saber disso? Sua suspeita ia até admitir a persistência do amor no coração da madrasta, mas não lhe atribuía mais do que uma aspiração ou saudade silenciosa; não sabia mais. Para combater esse inimigo inerte, é que pôs em campo a porção de astúcia que a natureza lhe dera, as graças do rosto e a rara penetração de espírito.

Iaiá transpôs a soleira e saiu; precisava de ar, de espaço, de luz; a alma cobiçava um imenso banho de azul e ouro, e a tarde esperava-a trajada de suas púrpuras mais belas. Jorge acompanhou-a; a comoção dele era sincera e forte, mas menos intensa, menos desvairada que a de Iaiá, cujos olhos pareciam dizer a tudo o que a rodeava, desde o Sol poente até o último grelo de capim: -olhai, vede as bodas do meu coração; este é o meu amado.

Perto da noite, Raimundo veio buscá-la; Jorge acompanhou-a. Iaiá lembrou-se de traçar com um grampo, no musgo que reveste o aqueduto, o nome de Jorge e a data; instando com ele, Jorge escreveu também o nome dela. Raimundo sorria entre dentes. Em caminho falaram do presente e do futuro; e, num intervalo, tocaram levemente no passado.

-Sabe que eu tinha um desgostozinho? disse Iaiá. Jorge interrogou-a com os olhos. -É verdade, um capricho, continuou ela. Quisera que o senhor nunca tivesse gostado de outra pessoa, e é bem possível que não seja este o primeiro amor de seu coração.

-Não é, respondeu Jorge depois de um instante de reflexão. Amei uma vez, há muito tempo; mas todo esse passado acabou.

-Está certo de que acabou?

-Criança! Que noiva receou nunca de um amor antigo, começado e acabado, antes dela ser amada também? Que o novo amor seja sincero e fiel, eis o que se deve pedir e exigir. Quanto ao passado, é como os defuntos; reza-se por ele, quando se reza.

-Tenho medo de almas do outro mundo, tornou Iaiá sorrindo.

O primeiro jorro da ventura tem uma força, que dificilmente poderá ser contida pelo cálculo da necessidade. Iaiá mostrou-se tão expansiva naquela noite e nos seguintes dias derramou de tal modo a vida que pulhulava nela, que Estela compreendeu tudo o que se passava entre a enteada e Jorge. Há uns amores, aliás verdadeiros, a que precedem a muitas contrafacções; primeiro que a alma os sinta, tem despendido a virgindade em sensações ínfimas. Iaiá ignorava tudo; não soletrara o amor, aprendera-o de um lance. Trazia o coração intacto. Seu acordar foi uma aurora súbita, mas rutilante e límpida. No meio da embriaguez que lhe dava o novo sentimento, não cogitou nas possíveis conseqüências dele; não perguntou a si própria se era verdade que no coração da madrasta havia uma saudade ou uma esperança silenciosa, e se isso podia ser a raiz de largos ódios e dissensões domésticas. Não interrogou o futuro. Fenômeno curioso! A lembrança do pai por um instante esquecida; o egoísmo do amor devorou-a.




ArribaAbajoCapítulo XV

A fronte de Estela não tinha a tristeza dos vencidos. O amor persistia no coração, como um mau hóspede; e o espetáculo daqueles últimos meses não fizera mais do que irritá-lo. Mas a força moral de Estela subjugou-o. A luta fora longa, violenta e cruel; a consciência do dever e o respeito de si própria acabaram triunfando. Talvez não fosse difícil perceber, por baixo da serenidade do rosto, o cansaço que deixam as grandes tempestades morais. A tempestade ninguém lha viu.

Não obstante, no dia em que a paixão dos dous lhe pareceu evidente, Estela sentiu rugir-lhe no coração um vento de cólera; vento forte e instantâneo. Dessa vez, o olhar penetrante de Iaiá não pôde ler no fundo da alma da madrasta; e porventura lhe diminuiu a suspeita, quando a viu contemplar sem irritação nem abatimento a situação nascida de seu esforço único.

Entretanto, a moléstia, que solapava a existência de Luís Garcia, agravou-se por aquele tempo, e o enfermo foi compelido a pedir alguns meses de licença. Chamado a vê-lo, o médico reconheceu que a enfermidade tocava ao desenlace, e com a enfermidade a vida. Não o disse à família, mas não o escondeu de Jorge, quando este diretamente lho perguntou.

-Está condenado à morte, disse ele; a moléstia devorou-o lentamente, mas com segurança. Pode viver dous a três meses.

Jorge ficou aterrado. Os acontecimentos tinham tomado tal feição, que ele já pedia a vida de Luís Garcia. Quem lho dissera alguns anos antes? Não somente padeceria com a morte do enfermo, mas teria de ver padecer Iaiá, de cuja adoração filial era testemunha, e chegava a recear que o golpe lhe fosse fatal. Nada disse; afetou tranqüilidade e indiferença, mas entendeu que os sucessos o designavam a proteger a família e dispunha-se a assumir esse papel, quando fosse ocasião.

Estela não receou menos do que na moléstia anterior; mas dessa vez não interrogou Jorge, conquanto o visse falar ao médico. Nos últimos tempos, o seu silêncio era mais contínuo e habitual. Parecia desinteressada de tudo, menos do marido. Suspeitou da gravidade da moléstia, interrogou o médico, e ouviu deste palavras de esperança:

-Não lhe peço esperanças ilusórias, disse Estela; peço-lhe que me diga toda a verdade.

-A verdade é cruel de dizer.

-Perdido? disse ela com voz surda.

O silêncio do médico foi a confirmação daquela palavra. Estela sentiu fugir-lhe todo o sangue; mas não soltou uma lágrima. Pôde refletir no perigo de ser vista essa denúncia do mal, e dominou-se. Quando se achou só consigo, deu livre campo às angústias; encarou a catástrofe e pensou nas conseqüências da morte e no incerto futuro que a aguardava dentro de poucos dias. O futuro trouxe-a ao presente, o presente levou-a ao passado. A vida só lhe dera alegrias médias e dores máximas. Não foi a paixão que a levou ao casamento, mas somente a conveniência e o raciocínio. No casamento achara os sentimentos de apreço, a mútua consideração, a brandura das relações domésticas; esse fogo, porém, cuja intensidade não dura, mas que é o férvido sol dos primeiros dias, precursor necessário da tarde repousada e da noite tranqüila, esse fogo, essa fusão de duas existências, esse ardor expansivo, condição de sua natureza moral, não os conheceu Estela. Ou o destino ou o orgulho privou-a de achar no casamento a paixão santificada. Pois bem, se alguma cousa podia compensar-lhe a falta, era a longa duração de uma felicidade segura, embora tíbia; era envelhecer sob a monotonia de um horizonte sem sol nem tempestade. O destino negava-lhe a compensação.

Não tinha Estela ao pé de si com quem repartisse as tristezas. O pai seria o último de todos. A viuvez deixá-la-ia sem família. Esta idéia trouxe outra, -a de apressar o casamento da enteada, de modo que nenhum vínculo moral lhe sobrevivesse ao marido. Uma noite, tendo Luís Garcia adormecido, Estela deu a perceber à enteada que o estado do pai era grave. Iaiá empalideceu. Jorge fez um gesto de reprovação.

-A moléstia não é leve decerto, disse este; mas não se segue daí que se deva...

-Tudo se deve prever, tornou Estela. Pela minha parte, entendo que prevenir um caso fatal não é fazer com que ele se dê. Iaiá sabe o amor que lhe tem seu pai; seria para ele uma fortuna poder abençoá-la. Vamos lá, continuou ela, pegando nas mãos de um e de outro, por que é que se não casam?

Momentaneamente acanhados, nenhum deles assentiu nem recusou. Iaiá olhava espantada para a madrasta.

-O silêncio é uma maneira de responder, continuou esta; querem dizer que concordam comigo, não é? Nesse caso, seremos três para fazer a cousa mais simples do mundo, que é casar duas criaturas que se amam... Por que não a pede o senhor amanhã? O casamento pode ser feito dentro de poucos dias, à capucha, cousa simples...

Iaiá tinha enfim saído do primeiro instante de estupefação. -Mas, papai, está mal? disse ela.

-Todos nós estamos mal, apesar de termos saúde, respondeu Estela; num dia cai a casa. A doença dele é grave, é coração...

-Tem razão, interveio Jorge; podemos concluir tudo em poucos dias, duas semanas, quando muito, ou três.

Jorge não ficou pouco impressionado da intervenção de Estela; e conhecendo os sentimentos que a distinguiam, admirava essa impassibilidade moral que esquecia ou fingia esquecer. Depois examinou-se a si próprio; sentiu que o amor que o dominava agora, posto fosse profundo, não era violento, não lhe queimava o coração. Comparou-se ao que tinha sido, e esse cotejo, no primeiro instante, não foi importuno; foi antes lição e filosofia. Mentalmente sorriu. Era ele o mesmo homem? Outrora caminhara resoluto às soluções trágicas; agora, com igual sinceridade, entregava o coração a outra mulher. Na fronte desta mal ousara roçar um ósculo medroso e casto, ele, que novamente arrebatava dos lábios da outra as primícias do pudor. O homem não era o mesmo. Jorge advertiu que um abismo separava as duas estações de sua vida, e concluiu que não era volúvel o coração dele, mas que uma lei regia os sentimentos, como os caracteres, estatuto universal e comum. Embora a isenção presente, Jorge experimentou um pouco da nostalgia do passado; sorria sem amargura, mas com um travo de melancolia.

-Aquele orgulho é ainda maior do que eu pensava, dizia ele.

No dia seguinte, Procópio Dias veio acordá-lo em casa.

-Quando chegou? perguntou Jorge.

-Ontem de tarde, e a primeira visita que faço é esta. Demorei-me mais do que queria; mas enfim cá estou, -cá estou, e mais magro. O senhor é que me parece mais gordo.

Procópio Dias falou compridamente da política argentina e da magistratura de Buenos Aires; falou também um pouco das mulheres platinas. De quando em quando, abria um claro, como para deixar que o outro intercalasse alguma cousa menos estrangeira; Jorge, porém, falava pouco e sem apetite; seu constrangimento foi visível quando Procópio Dias o interrogou, acerca da família de Luís Garcia; respondeu-lhe sem interesse. Procópio Dias fitou-o durante alguns segundos; as rugas da testa engrossaram-se-lhe extraordinariamente.

-E Iaiá? disse ele; parece-lhe então que nenhuma esperança...

Fez uma pausa; Jorge preencheu-a com um sorriso descorado, mas assaz explicativo. Procópio Dias começou a farejar a realidade, mas nenhuma das linhas do rosto denunciou a impressão que esta lhe causara. Após um silêncio largo, entrou a rir de bom humor.

-Quer que lhe diga uma cousa? perguntou ele. Saiba que volto curado. Quando penso na moléstia tenho vergonha; é verdade, tenho vergonha da figura que fiz. Já sou muito maduro para cavalarias altas. A doença ainda me durou algum tempo; sarei com a mudança de clima; o amor, ao menos na minha idade, é uma espécie de beribéri... Há de ter-se rido de mim; é justo, porque eu não faço hoje outra cousa.

Jorge contestou com um simples gesto; mas Procópio Dias falava com tanta naturalidade, ria com tamanha franqueza, que a explicação deu à conversa a vida que ela tendia a perder. Jorge foi mais expansivo, mais alegre; não lhe confiou a nova situação, mas o segredo parecia debruçar-se-lhe das pálpebras e dos cantos da boca. Essa alegria era um respiro da consciência, que se sentia um pouco vexada em presença daquele homem, cuja confiança fora a origem de seu recente amor; era também a satisfação de não ter conseguido ligá-lo à filha de Luís Garcia; consórcio repugnante, híbrido, cujo resultado seria dar à moça, -uma longa amargura sem certeza de resgate.

Quando Procópio Dias saiu dali ia suspeitoso da realidade. -Mas a outra? dizia ele consigo. Sacudiu os ombros, e não ficou mais tranqüilo. Levava já no peito um pouco de impaciência e irritação; tinha a fronte obscurecida por uma nuvem. Mais tarde alumiou-a um clarão súbito, ainda que frouxo, era um reflexo de esperança. Talvez houvesse julgado com precipitação: era possível atribuir a reserva de Jorge, não à competência pessoal, mas a uma maneira de entender as máximas do decoro. Quem sabe? Ele podia ter-se arrependido de haver prometido tanto. Essa reflexão arejou um pouco o espírito, sem lhe tirar de lá o miasma corruptor. Era força conhecer a verdade. Nesse mesmo dia, foi ele a Santa Teresa.

Luís Garcia concedera naquela manhã a mão da filha. Na ocasião em que Procópio Dias ali entrou, tinha-a ele ao pé de si, e contemplava-a com amor e saudade, -duas vezes saudade, porque também a morte os viria desunir. Entre si recordava os tempos em que ele e ela eram, um para o outro, toda a terra e todo o céu; e perguntava à natureza se era justo sobrepor ao primeiro vínculo outro vínculo estranho, e a natureza lhe respondia que não somente era justo, mas até necessário. Então o pai sentia-se feliz com a felicidade da filha, cujo egoísmo lhe ensinava a abnegação. Se ela devia amar a outrem, que faria ele mais do que ceder? Quanto ao noivo eleito, merecia-lhe todas as aprovações; era o único estranho que lhe penetrara um pouco mais na intimidade; amante, benquisto e opulento, podia dar à moça, além da felicidade do coração, todas as vantagens sociais, ainda as mais sólidas, ainda as mais frívolas: -e esse homem obscuro, enfastiado e céptico, saboreava a ventura que a filha iria achar no turbilhão das cousas que ele não cobiçara nunca.

Uma noite bastou a Procópio Dias para conhecer a situação. Não obstante as declarações do pretendente, que aceitou como sinceras, Jorge buscou dissimulá-la; mas um amor de poucos dias é como as crianças de berço: denuncia-se pelo vagido. Se Procópio Dias não tornasse a ver a moça, é possível que o tempo lhe abafasse a paixão. Mas viu-a, e viu-a mais bela do que a deixara. Não era a vaidade do triunfo alheio que o irritava; não se tratava do triunfo, que é o aparato da vitória, tratava-se da vitória mesmo, que ele quisera obter, -obscura, se fosse preciso,- mas efetiva e exclusiva.

-E a outra? dizia ele.

Dessa vez a pergunta não passou vagamente; trouxe uma idéia consigo, diante da qual Procópio Dias chegou a recuar. Essa idéia era envenenar na própria origem a afeição recente; nada menos que denunciar a madrasta à enteada. Se alguma cousa pudesse atenuar a perversidade de semelhante recurso, era a persuasão que ele tinha de que diria a verdade. Cria deveras no amor secreto dos dous; com algum esforço poderia fazer supor que o casamento da filha de Luís Garcia era uma sugestão da madrasta. Ele próprio achava essa combinação verossímil, conveniente, reparadora.

-Maganão! A duas amarras! dizia o pretendente em tom surdo. E os cantos da boca se lhe derreavam, de um jeito que era tudo, invejoso, odiento e torpe.

A ocasião veio. Um pouco irritada com a assiduidade de Procópio Dias e a confiança que parecia renascer nele, Iaiá assentou de lhe dizer francamente que estava prestes a casar. Procópio Dias empalideceu. Supunha apenas provável o que era já definitivo. Olhou longamente para ela; a extinção da esperança não implicava a extinção do desejo; pelo contrário, vinha pungi-lo e açulá-lo. Seus olhos mostraram então duas expressões diversas; a primeira involuntária, a mesma com que os dous velhos de Israel espreitavam a filha de Helcias, um olhar terreno e mau; a segunda voluntária, não de queixa, não de súplica, mas de lástima. A idéia ruim tornava a arder-lhe no cérebro.

-Não sabia, disse ele, depois de curta pausa. Com quem?

-Com o Dr. Jorge.

-Ah!

Procópio Dias riu com a testa, e tornou a deitar-lhe um olhar de lástima. -Pobre moça! murmurou ele entre dentes. Iaiá fitou-o severamente; depois, sorriu e perguntou com alguma ironia:

-Não aprova a escolha?

-A escolha é excelente, disse ele; mas há circunstâncias que fazem do ótimo péssimo. Ouça-me; a senhora sabe que eu a amei; supõe talvez que já não a amo e engana-se; amo-a como no primeiro dia. Tive idéia de casar com a senhora; perdi a idéia, mas guardei o sentimento. Talvez isso lhe diminua a sinceridade das minhas palavras; mas eu cedo à voz da consciência, sem calcular com a sua aprovação...

Fez uma pausa.

-Acabe, disse a moça.

-Há cousas que um coração inexperiente não pode entender; cousas que talvez se lhe não devam referir. Quer um conselho? não aceite o casamento; desfaça-o, não para casar comigo, mas desfaça-o.

Iaiá fez-se pálida. Procópio Dias, pasmado do próprio arrojo, compreendeu que havia ido muito longe naquelas poucas palavras; mas já não havia meio de as explicar de modo verossímil. Como se fizesse um monólogo interior, abanava a cabeça ou levantava a ponta do lábio, enquanto os olhos, perdidos no ar, tinham o aspecto vítreo das fortes concentrações. Iaiá olhou para ele atônita e confusa; não sabia o que pensasse, não podia ou não queria entender. Afinal, coligindo todas as forças, perguntou audazmente por que motivo lhe cumpria desfazer o casamento.

-Qualquer que seja o motivo, disse ele, não lhe aconselho que o aceite logo como decisivo. Reflita antes de resolver; a responsabilidade será sua, do mesmo modo que o benefício há de ser seu. Meu conselho é que o desfaça.

-Por quê?

-Porque muitas vezes o casamento é... é uma máscara, uma... Seu noivo ama a outra pessoa... Que tem?

Iaiá fizera-se lívida. Terror, indignação, abatimento, sua alma passou por todos esses estados, padeceu-os até simultaneamente, sem que a boca achasse uma só palavra de resposta ou de protesto. A delação fulminara-a; nunca Procópio Dias chegou a compreender o motivo de tamanho e tão súbito efeito. O efeito aterrou-o em parte, e em parte o consternou; alguma fibra lhe ficara intacta, no meio da decomposição moral de todo o seu ser, e essa bastou a ressentir o golpe que ele mesmo vibrara.

-Outra... Que outra? balbuciou Iaiá segurando-lhe um dos braços.

Procópio Dias abanou a cabeça solenemente, como a dizer que não podia ir mais longe. A esse gesto seguiu-se um silêncio largo, durante o qual a moça pôde vencer a primeira comoção e refletir sobre o que lhe convinha entender.

-Ama a outra? disse ela. Quem quer que seja essa rival, já agora o noivo é meu; e é natural que me ame mais do que a ela, visto que prefere casar comigo...

Não obstante a firmeza que procurava dar à palavra, a palavra era difícil e a voz parecia morrer-lhe na garganta. Procópio Dias compreendeu que a comoção estava apenas dominada, e que o veneno penetrara abaixo da epiderme. Era a primeira vez que lhe via esse aspecto dolorido; antes de embarcar, conhecia-a menina caprichosa; depois do regresso, achou-a senhora refletida; naquela ocasião, a dor, oculta embora, como que lhe dava um encanto mais. Efetivamente o rosto de Iaiá traía o estado do coração; os olhos não correspondiam ao esforço que ela fazia para os fixar.

-Se lhe parece, esqueça o meu conselho, disse ele, e não me leve a mal se lhe preguei um susto. Talvez o susto haja passado. Não importa; creia que há casamentos impossíveis; casamentos destinados a... não sei a que... pode ser que a cousa nenhuma... ou a cousa muito grave, muito grave.

-Cale-se! rugiu surdamente a moça.

Procópio Dias continuou:

-Uma só palavra, disse ele. Há de atribuir ao despeito o aviso que lhe dei. É verdade; há uma grande porção de despeito em mim. Por que lhe falaria eu, se não tivesse um motivo pessoal? Esse homem traiu-me; eu tinha-lhe confiado o depósito do meu amor; ele abusou da confiança: fez-se amado em meu lugar. Não me queixo da senhora. A senhora não me devia nada; -um pouco de simpatia, talvez;- no futuro, pode ser que me deva também um pouco de gratidão.

Procópio Dias saiu logo depois destas palavras. Estava satisfeito; desde que pôde formular em um ou dous raciocínios o sentimento oculto que o fazia agir, achou nele a legitimidade de tudo o que acabava de dizer. Era um duelo; recebera um golpe na espádua, respondia com outro no coração, mais certeiro e provavelmente mortal; e se não era duelo, era emboscada por emboscada; direito de represália.

Prostrada com o golpe que acabava de receber, Iaiá não teve sequer as lágrimas do desespero nem as da indignação. Há dores secas, como há cóleras mudas. A suspeita, que o tempo devia carcomer de todo, e que o amor de Jorge ia já tornando problemática, essa ruim suspeita renascia tão vivaz e pertinaz como alguns meses antes, quando arrancou aos olhos de Iaiá as primeiras lágrimas de mulher. Não podia crer que o amor de Jorge não fosse sincero; era-o; parecia-o, ao menos. Mas a existência do outro amor, não era já o coração que lhe dizia, era uma voz estranha que a vinha delatar: circunstância nova, que fazia convalescer a dúvida anterior, até o ponto de lhe dar todos os visos da realidade. Iaiá sentia-se arrojada outra vez ao vasto e escuro espaço de suas antigas cogitações; -erma, desamparada de toda proteção humana, não lhe restava mais que duvidar e gemer, até achar na própria ductilidade de seu espírito a força que lhe não podia dar nenhuma origem exterior.

A madrasta foi ter com ela meia hora depois de sair Procópio Dias. Pouco antes, o marido tivera tamanha aflição, que Estela chegou a recear o último golpe; agora ficava prostrado. Estela apareceu à enteada com o olhar ainda assustado e o passo mal seguro; Iaiá não viu essa mudança, nem ouviu as primeiras palavras com que ela lhe falou do pai. Olhava só, enquanto o coração parecia querer despedaçar-lhe a arca do peito.

-Iaiá, ande ter com seu pai; seu pai está hoje muito doente.

Vendo que a moça não se movia, Estela lançou-lhe o braço à roda da cintura. -Vamos, disse. Iaiá estremeceu toda; depois, metendo-lhe as mãos nos ombros, empurrou-a violentamente e caminhou para a porta.

-Iaiá! bradou a madrasta.

A enteada voltou-se, e, estendendo o dedo sobre os lábios, impôs-lhe silêncio. O olhar desvairado e incônscio parecia antes de loucura que de indignação. Estela ficou estupefacta. O abismo entre as duas estava de todo aberto.

Luís Garcia foi o laço que ainda pôde conservar atadas essas duas existências, já agora antipáticas uma à outra. A vida dele era necessária a ambas. Uma punha nela todas as esperanças de um coração crédulo; outra apenas lhe dava aquela porção última, que não desampara os necessitados. Tréguas houve, mas sombrias e violentas. Não se falavam as duas, não trocavam um só olhar na ausência de Luís Garcia; diante dele, mostravam-se como dantes. Esta situação incomportável parecia aliás definitiva.

Jorge percebeu-a; ele próprio sentiu a princípio o efeito de um acontecimento, que não podia adivinhar e necessariamente era grave. Iaiá, porém, venceu-se depressa em relação a ele. A alma, se o vento lha fizera dobrar, para logo retomou a posição dos outros dias; mostrou-se terna com ele, afável, impaciente de concluir o casamento. Seu amor, que não diminuíra, nutria agora uma centelha de ódio. Iaiá sentia alguma cousa da alma trágica de Medéa, mistura de aversão e sacrifício. Um só pensamento influía nela: confiscar aquele homem, arrastá-lo consigo, dominá-lo depois, despedaçar de uma vez o laço que supunha atá-lo ao coração da madrasta.

Marcou-se um sábado para o casamento; mas os primeiros dias da semana foram de tão mau agouro, que a família resolveu deferi-lo para melhor ocasião. O enfermo piorou rapidamente. A moléstia entrou no último período.

Iaiá viu morrer tristemente o sol de sábado, e não viu nascer mais aprazivelmente o de domingo. Não pensava ainda na morte do pai, mas alguma cousa lhe fazia tremer o coração. A presença de Jorge é que lhe dava ânimo e conforto, posto que ele próprio se sentisse apreensivo com o desenlace próximo da enfermidade de Luís Garcia.

Lenta e caprichosa nos primeiros tempos, a enfermidade teve rápido e inflexível o período último. No fim de poucos dias a morte foi declarada iminente. Estela, não obstante achar-se preparada para o golpe, mal pôde resistir ao primeiro abalo. Iaiá ficou como doida. O pai fora a sua primeira e contínua adoração. Durante alguns anos não conheceu outro mundo, outro afeto, outra família, além daquele homem grave e terno, cujos olhos a protegiam e alumiavam. No primeiro instante não pôde crer na triste nova. Mas a realidade avultou a seus olhos, e foi então que a alma tentou romper todos os elos e voar, antes dele, a esperá-lo na imensa vastidão azul, para empreenderem juntos a derradeira viagem. Não chorou nas primeiras horas; a dor trancara-lhe as lágrimas; mas estas vieram logo depois, e ela as verteu em silêncio, sufocando os soluços, estorcendo-se na solidão da alcova.

Luís Garcia reiterou a Jorge o pedido que lhe fizera uma vez, em relação à família; mas agora restringia-o a Estela.

-Peço-lhe que não desampare os meus. Sei que morro, e quero ter a certeza de que só deixo algumas saudades. O senhor vai casar com minha filha; nada me inquieta a este respeito. Mas Estela, que não é mãe de Iaiá, ou é somente mãe de coração, Estela vai ficar só, e eu não quisera morrer com a idéia de que a deixo infeliz. Promete-me que não a desamparará nunca?

Jorge prometeu. Estela, que estava presente, procurou tranqüilizar o enfermo, e pediu-lhe que não falasse tanto. Luís Garcia não atendeu; exaltou as virtudes da mulher, a dedicação, o zelo, a afeição que lhe tinha.

-Digo-lhe que fui feliz, concluiu ele; minha alma era já velha, quando a dela se lhe uniu, e contudo... sim, minha alma rejuvenesceu um pouco...

-Já tem falado muito, interrompeu Estela, descanse, não quero que diga mais nada.

Luís Garcia pediu ainda à mulher e à filha que se amassem como até ali. Tinha falado excessivamente; ficara abatido. Dali em diante, a morte não fez mais do que apoderar-se, trecho a trecho, da sua vítima. Já a noite desse dia foi mais cruel que as anteriores; todo o seguinte dia foi de angústia para as duas mulheres. Na manhã do outro começou a agonia dele, que durou algumas horas, até que com o último sopro devolveu a alma ao criador.

Ao vê-lo morrer, as duas mulheres ficaram longo tempo prostradas. Era a primeira vez que contemplava a morte. Nenhuma delas vira nunca expirar uma só criatura humana; e a primeira que a seus olhos se despedia da vida representava para elas largos anos de afeição terna e profunda, e o mais forte laço moral que as ligava uma a outra. Nesse instante solene, abraçaram-se sem reflexão; a dor impeliu-as com a mão de ferro, e, madrasta e enteada confundiram ali suas nobres, tristes e inúteis lágrimas. Juntas caíram de joelhos ao pé do cadáver, e chamaram em vão pela alma que se fora.

Aos pés da cama, com o gesto dolorido, Jorge via a aflição das duas mulheres, sem lhes poder nem querer valer. Quanto a Raimundo, não pôde ver expirar o senhor; correu ao jardim, onde ficou longo tempo sentado no chão, com a cabeça encanecida entre os joelhos, sacudido pela violência dos soluços.




ArribaAbajoCapítulo XVI

Nem sempre a morte é um desfecho; a de Luís Garcia foi uma complicação mais.

Passados os primeiros dous meses, Jorge pensou em realizar o casamento, sem aparato, como um simples ato de interesse doméstico, aliás necessário pela situação em que se achavam as duas mulheres. O Sr. Antunes fora morar com elas, e era o chefe natural da família; mas Jorge não esquecera que Luís Garcia nenhuma confiança tinha na pessoa do sogro; demais, entregara diretamente a Jorge a chefia da casa. Ora, cumpria legalizar e santificar a designação do moribundo.

Mas, se isto lhe parecia claro e necessário, não se atrevia ainda assim propô-lo à noiva; e por duas razões. A primeira era o natural respeito à dor da filha, que ele podia magoar ainda mais falando-lhe desde logo no casamento. Era a segunda a frieza e o silêncio com que esta o tratava depois da morte do pai. A diferença era positiva e inexplicável; mas a boa fé explica tudo, e Jorge atribuiu essa nova feição da moça ao profundo golpe que o desastre lhe desfechara. Sabia da paixão filial de Iaiá; era testemunha dessa adoração constante, que parecia contar com a eternidade da vida.

A idéia de falar a Estela apenas lhe passou pela mente; rejeitou-a sem esforço. Limitou-se a esperar, e ia ali com a assiduidade que lhe permitia a condição de noivo. Ia às noites, não todas; passava uma ou duas horas, a atar e desatar uma conversação frouxa, muita vez sem interesse. Sobre todos três, mas principalmente sobre as duas, pesava ainda a lembrança do finado. O Sr. Antunes tomava parte nessas conversações íntimas, e era ele quem forcejava por lhes dar a perdida animação; temperava-a com algum dito folgazão, ouvido com indiferença, quando não com tédio. Posto que o casamento de Jorge com a enteada da filha estivesse tratado, ele nutria a esperança de que alguma cousa o viria desfazer, e nessa carta incerta jogava todo o futuro.

Um noite, Jorge propôs diretamente a Iaiá a necessidade de apressar o casamento.

-Não sendo a cerimônia pública, disse ele, não daremos que falar aos outros, se alguma cousa há que falar...

-Quer a minha resposta hoje mesmo? interrompeu Iaiá.

-Podia ser hoje.

Estela, que estava presente, apoiou a reflexão de Jorge. -Convém decidir quanto antes, disse ela; não vale a pena deixar passar mais tempo sem utilidade.

-Sem utilidade, repetiu Iaiá olhando para o teto.

-Decerto...

Iaiá baixou os olhos aos dous; fitou-os a um e outro, longo tempo, com severidade; depois, retorquiu em tom ríspido:

-Deixem-me ao menos o tempo de chorar meu pai!

Jorge proferiu algumas palavras de afeição; Estela não protestou nem retorquiu; ergueu-se silenciosamente e deixou-os. O silêncio foi longo. Jorge não tomara à má parte a súplica da noiva; atribuiu-a ao sentimento de piedade filial, que era nela mais forte que qualquer outro.

-Iaiá, disse ele, ninguém lhe nega o direito de chorar seu pai; se insistimos é em benefício da família. Seu pai recomendou-me que olhasse pelos seus, e eu quisera poder fazê-lo, não como estranho, mas como parente; por isso lembrei a conveniência de realizar o casamento quanto antes, mas se lhe parece que pode ser adiado...

-Pode.

-Até quando?

-Até um dia.

-Que dia?

-Sábado de Aleluia, por exemplo.

-Falemos sério, disse Jorge.

-Sério? Dia de São Nunca.

Jorge franziu a testa.

-Que quer isso dizer? Retira a sua palavra? Em todo o caso, tenho direito de saber o motivo, porque algum motivo há de haver...

Iaiá tinha-se levantado, pegou-lhe na mão e levou-o até à janela. O transtorno das feições era visível; os olhos luziam de impaciência, enquanto a palavra parecia medrosa e recalcitrante. Pasmado do que via, e curioso do que ela lhe iria dizer, Jorge não pensou sequer em a aquietar; se lhe pegou nas mãos foi por um movimento instintivo; mas quando as sentiu geladas e trêmulas, ficou aterrado.

-Que tem, Iaiá? Você padece; vamos, fale, diga-me tudo. Já me não ama?

-Se não o amo! disse vivamente a moça deitando os olhos ao céu, como a tomá-lo por testemunha da sinceridade de seu coração; mas logo depois arrependeu-se e continuou de um modo compassado e frio. -Amei-o; não importa saber se muito ou pouco, mas amei-o. O senhor foi a primeira pessoa que me fez bater o coração de um modo diferente do que ele batia; foi a primeira pessoa que me disse palavras novas, que me fizeram bem...

Jorge lançou-lhe o braço à cintura e conchegou-a ao coração. -Pois sim, disse ele; eu repetirei essas palavras em todo o resto da nossa vida. Seja boa, e sobretudo seja franca. Para que há de negar o que se está vendo? Eu sei que ainda me ama...

-Eu? disse a moça deslaçando-se-lhe dos braços. Eu tenho-lhe horror.

Jorge sorriu. -Horror, por quê? disse ele. Mas o gesto da moça veio apagar-lhe o sorriso começado. Iaiá levara as mãos ao seio, como se quisera conter os ímpetos do coração; os olhos luziam-lhe de extraordinário fulgor. Ofegante, por alguns minutos, não pôde articular uma só palavra; quando chegou a falar disse simplesmente:

-Que razão há agora para que nos casemos? E depois de uma pausa: -Tenho ciúmes do passado, e o senhor amou já uma vez. Assim como eu ia entregar-me ao senhor, com o coração limpo de qualquer outro afeto, assim quisera que o senhor nunca houvesse amado a ninguém. Que é o seu coração para mim? Um sobejo de outra; talvez nem isso; esse mesmo resto não me pertence, não é meu; fiquemos neste ponto, e tome cada um de nós a sua liberdade.

Iaiá recusou outra explicação, aliás desnecessária; a linguagem era transparente. Jorge saiu dali com o espírito transtornado e confuso. O motivo da recusa, para ser sincero, era pueril ou romanesco demais; nenhuma noiva teve ciúmes de um amor anônimo e extinto; logo, a alusão de Iaiá não era vaga e sem objeto, mas ia direito à pessoa de Estela. Seria isso? Jorge não queria crer e mal podia duvidar.

No dia seguinte, acabado o almoço, apareceu-lhe o pai de Estela.

-Iaiá manda-lhe isto, disse ele sacando da algibeira uma carta.

Jorge recebeu-a pressurosamente e abriu-a; leu estas palavras únicas: -«Não posso ser sua mulher; esqueça-me e seja feliz.» Empalideceu; tornou a ler a carta, sem a entender, posto que ela não fosse mais do que a fórmula escrita e seca do que Iaiá lhe dissera na véspera. Mas entre as queixas e efusões de uma hora de desânimo e aquela intimação, havia um abismo; a carta trazia o cunho da resolução definitiva, que ele não achara ou não quisera achar nas declarações verbais da moça.

-Iaiá deu-lhe isto agora mesmo?

-Antes do almoço, respondeu o Sr. Antunes, cujo olhar forcejava por soletrar no rosto de Jorge algumas linhas do drama que supunha haver lá dentro.

-Não lhe parece que Iaiá anda triste? perguntou Jorge no fim de um minuto.

-A morte do pai prostrou-a muito.

Jorge foi dali ao gabinete; o Sr. Antunes acompanhou-o. A preocupação do moço era uma chuva benéfica às esperanças do pai de Estela, que todas pareciam reflorir. Como este falasse da filha com a prolixidade astuta do pretendente, Jorge atentou numa idéia, que a princípio lhe pareceu absurda, mas com a qual se familiarizou a pouco e pouco; mordeu-lhe o coração a suspeita de que o procedimento de Iaiá era uma desforra de Estela, uma como vingança póstuma. O inexplicável da carta podia justificar até certo ponto essa suspeita sem fundamento nem verossimilhança, que afinal acabou por não achar nenhuma repulsa na consciência dele. Que há então perdurável no homem, se a paixão que o leva ao sacrifício e à beira da morte, pode rastejar um dia na calúnia?

Duas horas depois Jorge escrevia estas poucas palavras à viúva de Luís Garcia:

«Iaiá mandou-me há pouco o incluso bilhete. Peço-lhe o favor de uma explicação.»

A carta de Iaiá fora escrita naquela manhã, depois de uma noite de agitação e luta. Nem foi a única. Iaiá escrevera outra, menos lacônica, a Procópio Dias. Morto o pai, esse homem fora ali três vezes, sem trocar com a moça uma só palavra relativa à estranha confidência que lhe fizera antes. Eram visitas de meia hora, não mais; durante esse curto lapso de tempo, Procópio Dias não discrepava um instante da gravidade um pouco triste que adotara. Não era o folgazão primitivo, mas também não era um poeta desesperado e pálido; ficava a igual distância de um e outro modelo. Os acontecimentos pareciam aconselhar-lhe uma discreta ausência; mas, além de não ter melindres nem escrúpulos, floria-lhe no peito a esperança, a esperança tenaz dos cobiçosos. Não a sussurrava ao ouvido da moça, nem a ostentava nos olhos, na compostura, nos meneios, todos eles impregnados da submissão de uma alma desenganada e passiva. Iaiá tratava-o com bondade, já agora mais constante; posto não lhe passasse pela cabeça a idéia de vir a desposá-lo, não lhe destoava o aspecto dessa paixão resignada e muda.

Depois de soltar a palavra decisiva, Iaiá entendeu que lhe devia dar a forma última, desligando-se da solene promessa. Não o fez sem muita lágrima solitária. A pobre criança amava o filho de Valéria com a singeleza de um coração quase adolescente; e só então mediu todo o império que ele adquirira sobre ela. Mas duas circunstâncias a induziam ao desfecho; era a primeira a revelação de Procópio Dias, confirmação de suas suspeitas; a segunda foi o espetáculo que se lhe ofereceu aos olhos, naquela noite, logo depois de se despedir do noivo. Sabendo que a madrasta estava no gabinete do pai, ali foi ter e espreitou pela fechadura; viu-a sentada com a cabeça inclinada no chão, desfeito o penteado, mas desfeito violentamente, como se lhe metera as mãos em um momento de desespero, e caindo-lhe o cabelo em ondas amplas sobre a espádua, com a desordem da pecadora evangélica. Iaiá não a viu sem que os olhos se umedecessem, o ódio complicou-se de piedade.

-Que se casem! Disse a moça resolutamente.

Desligando-se da promessa feita, Iaiá refletiu que ia ficar só, e que precisava forçosamente de um amparo; foi então que lhe lembrou Procópio Dias. Não encarou a idéia sem repugnância; aceitável na palestra, Procópio Dias era-lhe antipático para a convivência conjugal. Não o podia amar, e, uma vez resoluta a aceitá-lo, começou logo de o aborrecer. Que muito? Era um marido; não exigia outro mérito. A carta que lhe escreveu não saiu de um jato, foi trabalhada e repisada; o texto definitivo dizia que fosse ali sem demora para lhe falar de objeto que interessava à felicidade de ambos. Isto, e nada mais que uma lágrima, que lhe resvalou dos cílios no papel como um protesto contra o que ia nele escrito.

Raimundo, chamado para levar essa carta, recebeu-a depois de alguma hesitação. Olhou para o papel e para a sinhá-moça. Depois sacudiu a cabeça com um ar de dúvida. Iaiá simulou não ver nada, mas o gesto do preto impressionou-a. Ia afastar-se, Raimundo reteve-a dizendo:

-Iaiá me desculpe... esta carta... Raimundo não gosta de falar àquele homem.

-Não lhe fales; basta deixar a carta em casa dele.

Raimundo não insistiu; acompanhou com os olhos a filha de seu antigo senhor, abanando a cabeça com o mesmo ar de alguns momentos antes. Depois olhou para a carta, como se quisesse adivinhar o que ia dentro. Não era só pressentimento, mas também dedução do que ele via naquelas últimas semanas. Tinham-lhe dado notícia do casamento; falara-se nisso todos os dias antes da morte de Luís Garcia. Morto este, cessou toda a alusão ao projeto, que parecia dever executar-se dentro de pouco tempo. O coração do preto dizia que aquela carta era alguma cousa mais do que um recado sem conseqüência. Quis levá-la a Estela; mas rejeitou o expediente, por lhe parecer infidelidade. Dez minutos depois saiu em direção à casa de Procópio Dias.

Entretanto, chegavam às mãos de Estela o bilhete de Jorge e o de Iaiá. A viúva não podia crer o que lera. A carta da enteada era um ato de insubordinação, inexplicável na essência e na forma; e se essa carta a fez pasmar, a de Jorge fê-la gemer. O noivo desenganado recorria à intervenção de Estela. A primeira amada desse homem era agora a sua confidente, a quem ele escrevia sem saudade, sem remorso, talvez sem hesitação.

-Sogra! concluiu Estela com amargura; e erguendo os olhos do papel para o espelho, que pendia da parede fronteira, contemplou caladamente as suas graças ainda em flor. Iaiá entrou nessa ocasião. A madrasta chamou-a ao pé de si; e mostrando-lhe o bilhete que escrevera ao noivo, perguntou-lhe o que queria dizer aquilo. A enteada ficou silenciosa durante alguns segundos; mas a resolução deu-lhe força e tranqüilidade.

-Quer dizer o que aí está escrito, respondeu ela; não posso casar com o Dr. Jorge.

-Por quê?

-Não posso.

-Por quê? repetiu Estela com autoridade.

-Amo a outra pessoa.

-Não creio; tem decerto outro motivo.

-Que motivo?

-Nenhum que seja sensato, acudiu a madrasta, mas algum há de haver, que não seja esse. O passo que deu é grave; não é próprio de uma moça obediente; chega a ser contrário à cortesia. Não importa; tudo se pode explicar; explique-me esta carta.

Iaiá não obedeceu à intimação da madrasta; e para tirar à recusa qualquer aparência ofensiva, conservou um ar de modéstia e resignação. Estela não se deu por vencida; demonstrou-lhe que só um motivo grave podia justificar semelhante procedimento, e que era forçoso dizê-lo ao noivo; lembrou-lhe finalmente a estima que sempre houve entre Jorge e o pai. Neste ponto Iaiá estremeceu e fitou na madrasta uns olhos que não eram os de pouco antes. Parecia-lhe sacrilégio evocar o nome do pai. Não se pôde ter; deu um passo e interrompeu-a com sequidão:

-Não posso casar, porque a senhora o ama.

Estela, que já então estava sentada, ergueu-se de golpe ao ouvir esta súbita e inesperada explicação. Sua face pálida, que o traje de viúva ainda mais empalidecia, tingiu-se de uns longes de vermelho. Podia ser confusão ou indignação. Durante uma pausa relativamente longa, Iaiá não tirou os olhos da madrasta. Essas duas lâmpadas buscavam examinar-lhe, no momento supremo, todos os recantos da consciência e todos os atalhos do passado. Não disse nada, para melhor gozar do abalo que acabava de produzir em Estela; era o juro do sacrifício. Mas Estela sentou-se daí a pouco, e foi a primeira que rompeu o silêncio.

-Tu estás louca, disse ela tranqüilamente. Quem te meteu semelhante idéia na cabeça?

-Não examinemos agora quem foi ou o que foi que me fez adivinhar a verdade, respondeu Iaiá; basta saber que decidi romper o casamento, que o mandei dizer ao Dr. Jorge, e que talvez dentro de poucos dias outra pessoa lhe pedirá minha mão.

Estas palavras transtornaram de todo a viúva, que atônita e irritada deu alguns passos na sala, buscando conter a explosão de seus sentimentos. Iaiá foi ter com ela, falou-lhe com brandura e submissão.

-Não se zangue, mamãezinha, se lhe não disse antes o que fiz agora mesmo; estava certa de que aprovaria, ou me perdoaria, quando menos. O homem de que lhe falo ama-me; e a senhora mesma não rejeitou a idéia de me ver casada com ele.

-Não tens culpa da imprudência que cometeste, disse Estela; porque antes disso tinhas perdido a razão. Vem cá; disseste-me aí uma palavra absurda, e é preciso que me digas outra com que expliques a primeira. Por que eu o amo? Continuou depois de alguns instantes. Que quer dizer com isso?

Iaiá curvou a cabeça.

-Fala!

-Não direi nada; essa palavra explica tudo. Se o ama, como eu creio, é a sua felicidade que lhe trago, não digo a troco da minha, porque seria lançar-lhe em rosto o sacrifício, mas a troco de uma ilusão, e nada mais. Não pense que lhe quero mal; não posso querer mal a quem me tem ou teve alguma afeição e substituiu dignamente minha mãe. Se lhe quisesse mal, é provável que não fizesse o que fiz.

Enquanto falava a enteada, Estela tinha a fronte inclinada e pensativa; atitude em que se conservou ainda durante algum tempo.

-Bem vê que o ama, disse Iaiá; seu silêncio confirma a minha suposição.

-Eu! exclamou Estela estremecendo. E lançando-lhe um dos olhares de gelo, que eram o reflexo do seu orgulho: -Tu não entendes nada dos sentimentos, não conheces o coração. Eu amá-lo? eu? Não! não é possível!

-Talvez não, mas o que está feito, está feito.

A madrasta quis retê-la, mas não pôde; Iaiá saiu sem dizer nada. Estela ficou atordoada, confusa e até medrosa; reboavam-lhe aos ouvidos as palavras de Iaiá, não como um som exterior, mas como o brado da própria consciência. Venceu o abatimento, reagiu depressa como lho pediam as circunstâncias e a própria necessidade de sua natureza. Não teve tempo de cogitar no modo por que a enteada chegara a suspeitar um sentimento que ela recalcara no coração. Urgia reparar o mal feito pela imprudência da moça. Estela dispôs-se a responder desde logo à carta de Jorge, e não sabia ainda claramente o que havia de dizer. Tratou primeiro de chamar Raimundo, e vendo que ele não acudia foi ter com Iaiá.

-Raimundo foi levar uma carta minha ao Procópio Dias, respondeu esta.

Estela caiu numa cadeira. Pela primeira vez, alumiou-lhe o espírito uma idéia cruel: a idéia de que a suspeita de Iaiá fosse mais do que uma simples e inocente conjectura, fosse um ultraje. Os olhos que lançou à moça ardiam de indignação. Cobriu-os depressa, não para chorar, mas para fugir aos da outra. O olhar de Estela fez vacilar por um instante a convicção da enteada; a cólera pareceu-lhe sincera e até excessiva; mas o gesto que se lhe seguiu atenuou e desvaneceu a primeira impressão. Iaiá supôs ver na atitude da madrasta uma confissão involuntária, uma expressão de abatimento e desespero, como de pessoa que entrevê a felicidade própria e julga dever sacrificá-la à de outrem. Era generosa. Caminhou para ela, dobrou as curvas, pousou-lhe no regaço os braços, trêmulos de comoção; com as mãos desviou as de Estela e fitou-lhe os olhos, que estavam sombrios.

-Fui estouvada, confesso, disse ela; devia tê-la consultado antes de fazer o que fiz. Mas eu temia a sua oposição; e não queria torná-la desgraçada. Sou mais moça que a senhora; se tivesse de consolar-me, consolava-me depressa. Mas não tenho; não amava; cedi a um capricho, e não sinto a menor dor ao despedir-me dele. Ande, perdoe-me; e esteja certa de que não a amarei menos do que até agora.

Ergueu-se e procurou beijá-la. A madrasta recuou instintivamente a cabeça; era um resto de repugnância, que a fisionomia ingênua e pura de Iaiá para logo dissipou. Em tão verdes anos, sem nenhum trato social, era lícito supor na menina tamanha dissimulação? Estela concluiu que a ação da enteada vinha, não de uma suposição ultrajante, mas de um impulso desinteressado. Qualquer que fosse o fundamento da suspeita, o procedimento da enteada trazia o cunho da candura e da boa fé; assim pensando, Estela sentiu desoprimir-se-lhe a alma. Não era generosa, - ou tinha somente a generosidade fria e altiva, que nasce da soberba. Mas não era insensível; e o desinteresse da menina tocou-lhe profundamente o coração. Inclinou-se para ela, tomou-lhe a cabeça entre as mãos e fitou-a, com um olhar severo e maternal ao mesmo tempo.

-Perdôo-te, disse finalmente, porque não sabes o que fizeste. A intenção é que te salva do meu ódio; digo mal, do meu desprezo. Se queres medir bem a profundidade do abismo que acabas de cavar, fica sabendo que me injuriaste, pensando servir-me, e que o resultado do teu erro pode talvez arrancar-te lágrimas amargas e inúteis. Teu castigo será que só eu as enxugarei; -ouves bem? só eu.

Dizendo isto, soltou a cabeça da enteada com um gesto ríspido, em que havia ainda um pouco de irritação. Iaiá estava pálida. Sentiu na palavra seca e fria da madrasta um alento de indignação sincera; e a alma caiu-lhe prostrada, mais ainda do que o corpo, que não podendo suster-se, procurou amparar-se no móvel que achou mais próximo. A dúvida, que já antes atravessara o espírito da moça, começou a invadi-lo. Iaiá fitou Estela com o mais agudo de seus olhares, acompanhou-a de um lado para outro, porque a madrasta, logo depois das palavras que lhe disse, entrara a andar e refletir. Se a viúva era sincera, Iaiá acabava de fazer gratuitamente a sua própria desgraça; foi o que a moça pensou, e esse pensamento justificou-a como um latejo. No atordoamento moral em que esta hipótese a lançou, Iaiá achou-se entre dous desejos, mal definidos, mas inteiramente opostos um ao outro. Quisera e não quisera ter-se enganado; aspirava a conciliar o coração e a consciência. Seu espírito evocou a hora inicial da suspeita, -aquela funesta manhã, em que a carta de Jorge foi lida por Estela; recordou o gesto da madrasta, o tremor, a lividez, os vivos sintomas da consternação, do medo ou do remorso. Seria engano aquilo? não era evidente que eles se haviam amado, que se amavam ainda naquela ocasião; e, dada a afirmativa, era acaso impossível que Estela, ao menos, o amasse ainda hoje?

Iaiá ateve-se a esta conclusão, embora confirmasse a ruína de suas esperanças; a conclusão, porém, contrastava com a impassibilidade da madrasta. Já então perdera Estela o alvoroço do primeiro momento. Depois de alguns minutos de reflexão, parara em frente da enteada. Era difícil ver na atitude quieta, no aspecto de matrona severa e digna, alguma cousa que se parecesse com as ânsias, o triunfo ou o abatimento de uma rival. Iaiá deixou-se estar diante dela, a fitá-la e a revolvê-la. A porção da alma que transparecia do rosto da viúva era tão fria, tão indiferente, que mal se podia combinar com o sentimento que Iaiá lhe atribuía. Foi o que esta pensou ver com seus olhos finamente sagazes; e no meio desse contraste entre o aspecto presente e a revelação passada, Iaiá acabou por não saber definitivamente onde ficava a verdade, e esteve a ponto de lha pedir de joelhos.

Achavam-se então no gabinete de Luís Garcia, defronte da secretária, onde o finado encontrara, com outros papéis, a carta que dera lugar às conjecturas de Iaiá. Não havia mudança nem no número nem na disposição dos móveis. Só a luz era diferente, porque a daquele dia era viva e clara, coada através de uma atmosfera serena, como a vida anterior dessa família, ao passo que a de hoje vinha turva e meio apagada pelas nuvens de um céu chuvoso e triste. Na longa pausa que houve entre a madrasta e a enteada, os únicos sons que se ouviam eram o rufar da chuva na folhagem do jardim e o tic-tac de um relógio de parede.

-Vou fazer-te o maior mal que é possível receber na tua idade, disse finalmente Estela. Mas assim o quer; e se alguma razão tens para crer que amo esse homem, é necessário mostrar-te a realidade das cousas.

Estela abriu duas ou três gavetinhas da secretária, e depois de alguma busca entre os maços de cartas que aí encontrou, tirou uma, abriu-a e deu-a à enteada. Iaiá recebeu-a com as mãos trêmulas de curiosidade; leu-a toda; devia ser a mesma que o pai mostrara à madrasta.

-Essa moça era a senhora? murmurou ela como se ainda esperasse resposta negativa.

-Era eu.

Iaiá deixou-se cair numa cadeira rasa, a mesma em que Estela estivera sentada, quando ouviu a confidência do marido.

-Vês? disse Estela; foi por mim que ele fez o sacrifício de ir para a guerra, sem esperança de ser retribuído nem de contar um dia com a minha gratidão. Foi para a guerra, lutou, padeceu, fiel ao sentimento que o tinha levado, até o ponto de o crer eterno. Eterno! Sabes quanto durou essa eternidade de alguns anos. É duro de ouvir, minha filha, mas não há nada eterno neste mundo; nada, nada. As mais profundas paixões morrem com o tempo. Um homem sacrifica o repouso, arrisca a vida, afronta a vontade de sua mãe, rebela-se, e pede a morte; e essa paixão violenta e extraordinária acaba às portas de um simples namoro, entre duas xícaras de chá...

-A senhora não o amou nunca? interrompeu Iaiá, ao sentir o tremor e o despeito com que a madrasta proferira as últimas palavras.

-Havia entre nós um fosso largo, muito largo, disse Estela. Eu era humilde e obscura, ele distinto e considerado; diferença que podia desaparecer, se a natureza me houvesse dado outro coração. Medi toda a distância que nos separava e tratei simplesmente de evitá-lo. Foi então que ele embarcou; interiormente aprovei-o. Talvez lhe não neguei um pouco de compaixão silenciosa, mas nada mais. Casamento entre nós, era impossível, ainda que todos trabalhassem para ele; era impossível, sim, porque o consideraria uma espécie de favor, e eu tenho em grande respeito a minha própria condição. Meu pai já me achava, em pequena, uns arremessos de orgulho. Como querias tu que, com tal sentimento, pudesse desposar um homem, socialmente superior a mim? Era preciso dar-me outra índole. Todas as felicidades do casamento achei-as ao pé de teu pai. Não nos casamos por amor; foi escolha da razão, e por isso acertada. Não tínhamos ilusões; pudemos ser felizes sem desencanto. Teu pai não tinha os mesmos sentimentos que eu; era mais tímido que orgulhoso. Qualquer que fosse a razão do seu desapego ao mundo, bastava que o tivesse, para me fazer feliz; vivemos assim alguns anos de inteiro isolamento, sem conhecer o amargor, que é o que fica no fundo da vida, sem necessidade de dissimulação... Minto; tive necessidade de fingir, desde que aquele homem aqui apareceu; era necessário. Um dia teu pai mostrou-me essa carta e referiu-me a paixão encoberta que aí se conta; podes imaginar se ouvi tranqüila. Mas fora desse acontecimento, que outro podia perturbar minha alma? Não vi nenhuma porta abrir-se-me por obséquio, nenhuma mão apertou a minha por simples condescendência. Não conheci a polidez humilhante, nem a afabilidade sem calor. Meu nome não serviu de pasto à natural curiosidade dos amigos de meu marido. Quem é ela? donde veio? Ninguém me perguntou donde vinha, não é verdade? Perguntaste-me quem era eu? Não; amaste-me como tinhas amado tua mãe, e eu amei-te, como se foras minha filha. E para isso bastou-nos estender os braços; não foi preciso descer nem subir.

-Não foi, bradou Iaiá comovida, apertando-lhe as mãos.

-Já vês quem eu era e sou; uma espécie de animal feroz, que prefere a charneca ao jardim. Não me senti lisonjeada com a paixão que inspirei; rejeitei, talvez, um marido digno das ambições de qualquer mulher. Era isto o que querias saber? Pois aí tens a minha história, a história dessa carta, que já agora podemos rasgar...

Estela pegou na carta e rasgou-a lentamente, em pedaços miúdos, enquanto a enteada refletia nas revelações que acabava de ouvir. A madrasta deitou os fragmentos do papel à cesta. Talvez a mão lhe tremia um pouco; o rosto, porém, era de granito.

-Resta concertar a imprudência e casar, disse Estela dando à palavra um tom galhofeiro.

-Não sei! murmurou Iaiá. O que a senhora me disse é grave; não há sentimentos eternos. Parece que depois de tamanha paixão qualquer outro afeto não terá longa vida.

-Por que não? Não hás de querer agora uma paixão que o leve à guerra; seria um desastre. Mas está nas tuas mãos fazer que ele te ame sempre e muito.

Iaiá refletiu um instante.

-Jure-me que o não ama!

Estela franziu o sobrolho; depois mostrou-lhe o bilhete que Jorge lhe escrevera poucos antes, e cuja redação dissiparia à moça qualquer dúvida em relação ao noivo. Era uma evasiva para lhe não confessar nem mentir. A primeira vez que lhe negara o amor, foi antes um grito do coração que queria enganar-se a si próprio; agora preferia calar-se. Iaiá caiu no laço. O coração humano é tão egoísta! A certeza da isenção de Jorge importava muito mais que a de Estela; a alma da moça no primeiro instante, respirou à larga. O respeito que tinha à madrasta, e um pouco de ciúme retrospectivo que a mordia, ao pensar naquela paixão tão violenta e tão desenganada, empeciam à moça qualquer outra manifestação. Quando se achou a sós consigo, levava o espírito arejado da suspeita que o oprimira durante largos meses; mas o vento que o lavou das sombras, lá lhe queimou algumas das flores desabotoadas ao calor do primeiro sol. A felicidade tinha um travo de desgosto e humilhação; o coração tremia de medo.

Quando mais absorta estava nesse contraste de sensações, viu Raimundo transpor a porta do jardim.




ArribaCapítulo XVII

Iaiá foi ter com Raimundo.

-Entregaste?

-Não entreguei, disse o preto.

Iaiá ficou alguns instantes imóvel. Raimundo tirou a carta do bolso, e esteve com ela nas mãos, sem atrever-se a levantar os olhos; levantou-os enfim e disse resolutamente:

-Raimundo não achou bonito que Iaiá escrevesse àquele homem, que não é seu pai nem seu noivo, e voltou para falar a nhãnhã Estela.

-Dê cá, disse a moça secamente; não é preciso.

Raimundo entregou-lhe a carta, e sacudiu a cabeça encanecida, como se quisera repelir os anos que sobre ela pesavam, e retroceder ao tempo em que Iaiá era uma simples criança, travessa e nada mais. Tinha-lhe custado a resolução; três vezes investira a porta de Procópio Dias para obedecer à filha do seu antigo senhor, e três vezes recuara, até que venceu nele o pressentimento, -uma cousa que lhe martelava no coração, dizia ele daí a pouco a Estela, quando lhe referiu tudo.

Estela não se deteve mais. Na carta, que escreveu a Jorge, disse que a enteada era apenas uma menina romanesca, desconfiada e curiosa; queria desfazer o casamento, porque supunha não ser amada com igual ardor ao seu. -«Iaiá adora-o, concluía Estela, e não se sente adorada. Venha prostrar-se ao pé do altar, e terá em mim a mais piedosa sacristã.»

Iaiá teve notícia da carta, e já tarde para opor qualquer objeção. O primeiro impulso foi agradecer a pia fraude da madrasta; mas a alma, picada por um resto de ciúme, depressa conteve o impulso, e a única resposta da moça foi um gesto de acanhamento e um silêncio largo. Ouviu-a depois sem azedume nem impaciência, atenta à menor hesitação que lhe truncasse a palavra, ou à mínima sombra de desgosto que lhe velasse os olhos. A verdade é que a ternura da madrasta e a jovialidade recente de seus modos traziam certa nota desusada e violenta, e esse excesso fazia refletir a enteada.

Entretanto, a carta de Estela chegou às mãos de Jorge, que a leu duas vezes para conseguir entender-lhe o sentido. A explicação tinha o defeito de ser um pouco sutil: mas a alma de Jorge conservava sempre uma porta aberta aos sentimentos extraordinários. Demais, qualquer explicação favorável era um benefício, e aquela tinha a vantagem de afagar o amor-próprio, além de vir ajustada com o espírito inquieto e súbito da noiva. Leu a carta sem cotejar o texto com a assinatura, sem atentar naquela sacristã em cujos ombros quisera outrora atar a veste sacerdotal.

Nessa mesma noite foi à casa da noiva, que o recebeu sem contentamento nem mortificação, um pouco lacônica e meditativa. Nem um nem outro aludiu aos sucessos últimos; fê-lo Estela com muita pertinência e tato. Não obstante, como a explicação da viúva não correspondia exatamente à realidade das cousas, a situação ficou ainda obscura e vaga, e porventura exagerou o acanhamento recíproco. A persuasão de que Iaiá exigia da parte dele maior intensidade de sentimento, não inclinara o espírito de Jorge a nenhuma ostentação teatral, -mas acabou por lhe infundir deveras maior ternura, e aumentou a vitalidade de um sentimento, que é a forma desinteressada do egoísmo, -a felicidade de fazer outrem feliz.

-Marquemos o casamento para esta semana, disse Estela na noite de um domingo.

-Ainda não, respondeu a enteada.

Posto visse dissipada a tempestade que lhe negrejara sobre a cabeça, Iaiá enxergava ainda para o lado do poente um espectro, e para o lado do nascente uma possibilidade. Esses dous pontos negros vinham conspurcar a beleza azul do céu e torná-lo pesado e melancólico. O mistério do futuro unia-se ao mistério do passado; um e outro podiam devorar o presente, e ela receava ser esmagada entre ambos. A convivência da família aterrava-a. Que seria para ela o casamento, se tivesse de penetrar nele com a perpétua ameaça diante dos olhos, uma antiga semente de amor, que a primeira brisa da primavera podia fazer brotar e crescer de novo? Acreditava na isenção presente da madrasta, e na inteira cura do marido, mas o futuro? A beleza de Estela estava ainda longe do declínio, e a moléstia de Iaiá fazia-a persuadir de que, ainda no declínio, seria superior à sua.

Uma noite, entrou o Sr. Antunes e deu uma carta à filha, que a leu silenciosamente.

-Olha, disse ela apresentando a carta à enteada.

Iaiá leu-a; eram duas páginas escritas de alto a baixo, e por letra desconhecida. Uma antiga condiscípula de Estela, residente no norte de São Paulo, aceitava a proposta que esta lhe fizera, de ir dirigir-lhe o estabelecimento de educação que ali fundara desde alguns meses.

-Bem vês que é necessário casar-te quanto antes, disse Estela logo que a enteada acabou a leitura.

Iaiá sentiu os olhos úmidos e atirou-se aos braços da madrasta. A efusão era sincera; havia ali afeto, reconhecimento e admiração. Mas, por isso mesmo que era sincera, deveria molestar a madrasta, se alguma cousa pudesse já molestar a uma alma estóica. Estela sorriu, -um sorriso que queria dizer: -Bem sei que sou demais. A língua, porém, não proferiu uma palavra única.

-Que quer dizer isso? perguntou o pai de Estela, que nada sabia da carta, e conseqüentemente nada entendia daquela expansão da moça.

Estela mostrou-lhe a carta. O pai não pôde acabar de ler: a primeira página fizera-lhe compreender tudo. Seus olhos iam do papel à filha e da filha ao papel, sem que a boca se atrevesse a formular nenhuma queixa ou censura.

-Não digo que me obedeças, murmurou ele; mas parece que podias consultar-me...

-Eu estava certa da sua aprovação, respondeu Estela. Ou parece-lhe que fiz mal?

-Nunca fizeste bem em cousa nenhuma, disse tristemente o pai. E pegando-lhe nas mãos: -Tão moça! tão bonita!

O dia do casamento foi definitivamente marcado naquela noite. Como Estela declarasse que ela própria serviria de madrinha, Iaiá procurou dissuadi-la cautelosamente; também ao noivo repugnou a intervenção espiritual da viúva. Mas Estela não se deu por entendida. O papel de acólita, que a si mesma distribuíra, tinha-o desempenhado com lealdade e dignidade. Quis ir até o fim. Era o melhor modo de se mostrar isenta e superior. Jorge sentia-se vexado e transportado ao mesmo tempo, ao observar a simplicidade e o desvelo que a viúva punha naquele ato. Iaiá sentia só admiração e gratidão. Tinha já certeza de que o passado era pouca cousa, e de que o futuro seria cousa nenhuma. O casamento ia separá-las, reconciliando-as.

Casados os dous, Estela preparou-se para seguir viagem, não obstante a resistência do pai, que foi tenaz e hábil. O pai ficaria. Estava já tão cansado para viagens longas! A diferença do clima, a falta de relações, a necessidade de não abrir mão do emprego, eram motivos de grave peso para não arriscar-se a deixar a Corte.

-Ao menos, prometes vir ver-me de quando em quando? disse o Sr. Antunes sentindo tremer-lhe nos olhos uma lágrima sincera.

Estela respondeu que sim; depois pediu-lhe que aceitasse uma mesada. O pai recusou comovido. -Tu vales muito, exclamou ele. O tom com que proferiu estas palavras deu uma esperança à filha.

-O senhor pode valer ainda mais do que eu, disse ela.

Depois contou-lhe a paixão de Jorge e todo o episódio da Tijuca, causa originária dos acontecimentos narrados neste livro; mostrou-lhe com calor, com eloqüência, que, recusando ceder à paixão de Jorge, sacrificara algumas vantagens ao seu próprio decoro; sacrifício tanto mais digno de respeito, quanto que ela amava naquele tempo o filho de Valéria. Que pedia agora ao pai? Pouca e muita cousa; pedia que a acompanhasse, que cessasse a vida de dependência e servilidade em que vivera até ali; era um modo de a respeitar e respeitar-se. O pai escutava-a atônito.

-Tu chegaste a amá-lo! exclamou ele. Não o aborrecias? Amaram-se? E só agora sei... Bem digo eu; tu és uma fera. Não tens, nunca tiveste pena de minha velhice... Ele é tão bom! tão digno! E se morresse por tua causa? não terias remorsos? não te havia doer o coração quando soubesses que um moço tão bem-nascido, que gostava de ti... Sim, ele gostava muito de ti; e tu também... e só hoje!

Estela fechou os olhos para não ver o pai. Nem esse amparo lhe ficava na solidão. Compreendeu que devia contar só consigo, e encarou serenamente o futuro. Partiu; o pai despediu-se dela com o desespero no coração, -e desta vez a dor era desinteressada e pura. Jorge consolou-o depressa. Não houve interrupção na convivência, e o Sr. Antunes continuou a achar ali a mesma proteção e cordialidade. Se o casamento fora um atentado, ele os absolveu disso, e repartiu com ambos sua infinita solicitude. Outra vez comensal assíduo, tornou a ser o homem de confiança. Fora dali, as horas de lazer que lhe deixava o pouco trabalho, eram empregadas nas sessões do júri, nas galerias da câmara dos deputados ou nos bancos do Carceller. Não tendo já a aspiração de uma aliança vantajosa, adotou a devoção da loteria, outra fórmula de esperança, que igualmente lhe quadrava à índole. Era ele quem dava, secretamente, notícias de Estela a Iaiá.

Esta achou no casamento a felicidade sem contraste. A sociedade não lhe negou carinhos e respeitos. Se antes de casar, Iaiá possuía o abecedário da elegância, depressa aprendeu a prosódia e a sintaxe; afez-se a todos os requintes da urbanidade, com a presteza de um espírito sagaz e penetrante. Nenhuma nuvem do passado veio sombrear a fronte de um ou de outro; ninguém se interpunha entre eles. Iaiá escrevia algumas vezes a Estela, que lhe respondia regularmente, e no mais puro estilo de família. De longe em longe a enteada presenteava a madrasta, que lhe retribuía logo na primeira ocasião. Quanto a encontrarem-se, era difícil; Estela aplicava todos os seus cuidados à nova ocupação.

Procópio Dias viu a morte de todas as esperanças últimas, com uma filosofia que não supunha ter em si. Naturalmente padeceu alguns dias de despeito; mas o despeito acabou com o amor. Verdade é que o ambiciado casamento abriu nele o desejo de não morrer solteiro; e, perdida uma oportunidade, tratou de haver outras à mão. Ultimamente voltou à religião do celibato. Duas ou três vezes encontrou Iaiá e o marido. A última foi num sarau. Jogou o voltarete com Jorge e acompanhou a mulher até à carruagem, não sem lançar um olhar furtivo ao estribo, onde Iaiá pousou o pé, cansado de valsar.

No primeiro aniversário da morte de Luís Garcia, Iaiá foi com o marido ao cemitério, a fim de depositar na sepultura do pai uma coroa de saudades. Outra coroa havia sido ali posta, com uma fita em que se liam estas palavras: -A meu marido. Iaiá beijou com ardor a singela dedicatória, como beijaria a madrasta se ela lhe aparecesse naquele instante. Era sincera a piedade da viúva. Alguma cousa escapa ao naufrágio das ilusões.