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Inocência

Alfredo d'Escragnole Taunay

O sertão e o sertanejo

Todos vós bem sentis a ação secreta

da natureza em seu governo eterno,

e de íntimas camadas subterrâneas.

Da vida o indício a superfície emerge.


Goethe, Fausto, 2.ª parte



Então com passo tranqüilo metia-me eu por algum recanto da floresta, algum lugar deserto, onde nada me indicasse a mão do homem, me denunciasse a servidão e o domínio; asilo em que pudesse crer ter primeiro entrado, onde nenhum importuno viesse interpor-se entre mim e a natureza.

J. J. Rousseau, O Encanto da Solidão



Corta extensa e quase despovoada zona da parte sul-oriental da vastíssima Província de Mato Grosso a estrada que da Vila de Sant'Ana do Paranaíba vai ter ao sítio abandonado de Camapuã. Desde aquela povoação, assente próximo ao vértice do ângulo em que confinam os territórios de São Paulo, Minas Gerais, Goiás e Mato Grosso até ao Rio Sucuriú, afluente do majestoso Paraná, isto é, no desenvolvimento de muitas dezenas de léguas, anda-se comodamente, de habitação em habitação, mais ou menos chegadas umas às outras, rareiam, porém, depois as casas, mais e mais, caminham-se largas horas, dias inteiros sem se ver morada nem gente até ao retiro de João Pereira, guarda avançada daquelas solidões, homem chão e hospitaleiro, que acolhe com carinho o viajante desses alongados páramos, oferece-lhe momentâneo agasalho e o provê da matalotagem precisa para alcançar os campos de Miranda e Pequiri, ou da Vacaria e Nioac, no Baixo Paraguai.

Ali começa o sertão chamado bruto.

Pousos sucedem a pousos, e nenhum teto habitado ou em ruínas, nenhuma palhoça ou tapera dá abrigo ao caminhante contra a frialdade das noites, contra o temporal que ameaça, ou a chuva que está caindo. Por toda a parte, a calma da campina não arroteada; por toda a parte, a vegetação virgem, como quando aí surgiu pela vez primeira.

A estrada que atravessa essas regiões incultas desenrola-se à maneira de alvejante faixa, aberta que é na areia, elemento dominante na composição de todo aquele solo, fertilizado aliás por um sem-número de límpidos e borbulhantes regatos, ribeirões e rios, cujos contingentes são outros tantos tributários do claro e fundo Paraná ou, na contravertente, do correntoso Paraguai.

Essa areia solta e um tanto grossa tem cor uniforme que reverbera com intensidade os raios do sol, quando nela batem de chapa. Em alguns pontos é tão fofa e movediça que os animais das tropas viageiras arquejam de cansaço, ao vencerem aquele terreno incerto, que lhes foge de sob os cascos e onde se enterram até meia canela.

Freqüentes são também os desvios, que da estrada partem de um e outro lado e proporcionam, na mata adjacente, trilha mais firme, por ser menos pisada.

Se parece sempre igual o aspecto do caminho, em compensação mui variadas se mostram as paisagens em torno.

Ora e a perspectiva dos cerrados, não desses cerrados de arbustos raquíticos, enfezados e retorcidos de São Paulo e Minas Gerais, mas de garbosas e elevadas árvores que, se bem não tomem, todas, o corpo de que são capazes à beira das águas correntes ou regadas pela linfa dos córregos, contudo ensombram com folhuda rama o terreno que lhes fica em derredor e mostram na casca lisa a força da seiva que as alimenta; ora são campos a perder de vista, cobertos de macega alta e alourada, ou de viridente e mimosa grama, toda salpicada de silvestres flores; ora sucessões de luxuriantes capões, tão regulares e simétricos em sua disposição que surpreendem e embelezam os olhos; ora, enfim, charnecas meio apauladas, meio secas, onde nasce o altivo buriti e o gravata entrança o seu tapume espinhoso.

Nesses campos, tão diversos pelo matiz das cores, o capim crescido e ressecado pelo ardor do sol transforma-se em vicejante tapete de relva, quando lavra o incêndio que algum tropeiro, por acaso ou mero desenfado, ateia com uma faúlha do seu isqueiro.

Minando à surda na touceira, queda a vívida centelha. Corra daí a instantes qualquer aragem, por débil que seja, e levanta-se a língua de fogo esguia e trêmula, como que a contemplar medrosa e vacilante os espaços imensos que se alongam diante dela. Soprem então as auras com mais força, e de mil pontos, a um tempo, rebentam sôfregas labaredas que se enroscam umas nas outras, de súbito se dividem, deslizam, lambem vastas superfícies, despedem ao céu rolos de negrejante fumo e voam, roncando pelos matagais de tabocas e taquaras, até esbarrarem de encontro a alguma margem de rio que não possam transpor, caso não as tanja para além o vento, ajudando com valente fôlego a larga obra de destruição.

Acalmado aquele ímpeto por falta de alimento, fica tudo debaixo de espessa camada de cinzas. O fogo, detido em pontos, aqui, ali, a consumir com mais lentidão algum estorvo, vai aos poucos morrendo até se extinguir de todo, deixando como sinal da avassaladora passagem o alvacento lençol, que lhe foi seguindo os velozes passos.

Através da atmosfera enublada mal pode então coar a luz do sol. A incineração é completa, o calor intenso, e nos ares revoltos volitam palhinhas carboretadas, detritos, argueiros e grânulos de carvão que redemoinham, sobem, descem e se emaranham nos sorvedouros e adelgaçadas trombas, caprichosamente formadas pelas aragens, ao embaterem umas de encontro às outras.

Por toda a parte melancolia; de todos os lados tétricas perspectivas.

É cair, porém, daí a dias copiosa chuva, e parece que uma varinha de fada andou por aqueles sombrios recantos a traçar às pressas jardins encantados e nunca vistos. Entra tudo num trabalho intimo de espantosa atividade. Transborda a vida. Não há ponto em que não brote o capim, em que não desabrochem rebentões com o olhar sôfrego de quem espreita azada ocasião para buscar a liberdade, despedaçando as prisões de penosa clausura.

Aquela instantânea ressurreição nada, nada pode pôr peias.

Basta uma noite, para que formosa alfombra verde, verde-claro, verde-gaio, acetinado, cabra todas as tristezas de há pouco. Aprimoram-se depois os esforços; rompem as flores do campo que desabotoam as carícias da brisa as delicadas corolas e lhe entregam as primícias dos seus cândidos perfumes.

Se falham essas chuvas vivificadoras, então, por muitos e muitos meses, aí ficam aquelas campinas, devastadas pelo fogo, lugubremente iluminadas por avermelhados clarões, sem uma sombra, um sorriso, uma esperança de vida, com todas as suas opulências e verdejantes pimpolhos ocultos, como que raladas de dor e mudo desespero por não poderem ostentar as riquezas e galas encerradas no ubertoso seio.

Nessas aflitas paragens, não mais se ouve o piar da esquiva perdiz, tão freqüente antes do incêndio. Só de vez em quando ecoa o arrastado guincho de algum gavião, que paira lá em cima ou bordeja ao chegar-se à terra, a fim de agarrar um ou outro réptil chamuscado do fogo que lavrou.

Rompe também o silêncio o grasnido do caracará, que aos pulos procura insetos e cobrinhas ou, junto ao solo, segue o vôo dos urubus, cujos negrejantes bandos, guiados pelo fino olfato, buscam a carniça putrefata.

É o caracará comensal do urubu. De parceria se atira, quando urgido pela fome, à rês morta e, intrometido como é, a custo de alguma bicada do pouco amável conviva, belisca do seu lado no imundo repasto.

Se passa o caracará a vista do gavião, precipita-se este sobre ele com vôo firme, dá-lhe com a ponta da asa, atordoa-o, atormenta-o só pelo gosto de lhe mostrar a incontestada superioridade.

Nada, com efeito, o mete em brios.

Pelo contrário, mal levou dois ou três encontrões do miúdo, mas audaz adversário, baixa prudente à terra e põe-se aí desajeitadamente aos saltos, apresentando o adunco bico ao antagonista, que com a extremidade das asas levanta pó e cinza, tão de perto as arrasta ao chão.

Afinal, de cansado, deixa o gavião o folguedo, segurando de um bote a serpesinha, que em custoso rasto, procurava algum buraco onde fosse, mais a salvo, pensar as fundas queimaduras.

* * *

Tais são os campos que as chuvas não vêm regar.

Com que gosto demanda então o sertanejo os capões que lá de bem longe se avistam nas encostas das colinas e baixuras, ao redor de alguma nascente orlada de pindaíbas e buritis?!

Com que alegria não saúda os formosos coqueirais, núncios da linfa que lhe há de estancar a sede e banhar o afogueado rosto?!

Enfileiram-se às vezes as palmeiras com singular regularidade na altura e conformação; mas não raro amontoam-se em compactos maciços, dos quais se segregam algumas mais e mais, a acompanhar com as raízes qualquer tênue fio d'água, que coleia falto de forças e quase a sumir-se na ávida areia.

Desde longe dão na vista esses capões.

É a princípio um ponto negro, depois uma cúpula de verdura, afinal, mais de perto, uma ilha de luxuriante rama, oásis para os membros lassos do viajante exausto de fadiga, para os seus olhos encandeados e sua garganta abrasada.

Então, com sofreguidão natural, acolhe-se ele ao sombreado retiro, onde prestes desarreia a cavalgadura, à qual dá liberdade para ir pastar, entregando-se sem demora ao sono reparador que lhe trará novo alento para prosseguir na cansativa jornada.

Ao homem do sertão afiguram-se tais momentos incomparáveis, acima de tudo quanto possa idear a imaginação no mais vasto circulo de ambições.

Satisfeita a sede que lhe secara as fauces, e comidas umas colheres de farinha de mandioca ou de milho, adoçada com rapadura, estira-se a fio comprido sobre os arreios desdobrados e contempla descuidoso o firmamento azul, as nuvens que se espacejam nos ares, a folhagem lustrosa e os troncos brancos das pindaíbas a copa dos ipês e as palmas dos buritis a ciciar a modo de harpas eólias, músicas sem conta com o perpassar da brisa.

Como são belas aquelas palmeiras!

O estípite liso, pardacento, sem manchas mais que pontuadas estrias, sustenta denso feixe de pecíolos longos e canulados, em que assentam flabelos abertos como um leque, cujas pontas se acurvam flexíveis e tremulantes.

Na base em torno da coma, pendem, amparados por largas espatas, densos cachos de cocos tão duros, que a casca luzidia, revestida de escamas romboidais e de um amarelo alaranjado, desafia por algum tempo o férreo bico das araras.

Também, com que vigor trabalham as barulhentas aves antes de conseguir a apetecida e saborosa amêndoa! Em grupos juntam-se elas, umas vermelhas como chispas soltas de intensa labareda, outras versicolores, outras, pelo contrário, de todo azuis, de maior viso e que, por parecerem negras em distancia, têm o nome de araraúnas. Ali ficam alcandoradas, balouçando-se gravemente e atirando, de espaço a espaço, às imensidades das dilatadas campinas notas estridentes, quando não seja um clamor sem fim, ao quererem multas disputar o mesmo cacho. Quase sempre, porém, estão a namorar-se aos pares, pousadas uma bem encostadinha à outra.

Vê tudo aquilo o sertanejo com olhar carregado de sono. Caem-lhe pesadas as pálpebras; bem se lembra de que por ali podem rastejar venenosas alimárias, mas é fatalista; confia no destino e, sem mais preocupação, adormece com serenidade.

Correm as horas vem o sol descambando; refresca a brisa, e sopra rijo o vento. Não ciciam mais os buritis; gemem, e convulsamente agitam as flabeladas palmas.

É a tarde que chega.

Desperta então o viajante; esfrega os olhos; distende preguiçosamente os braços; boceja; bebe um pouco d'água; fica uns instantes sentado, a olhar de um lado para outro, e corre afinal a buscar o animal, que de pronto encilha e cavalga.

Uma vez montado, lá vai ele a passo ou a trote, bem disposto de corpo e de espírito, por aqueles caminhos além, em demanda de qualquer pouso onde pernoite.

Quanta melancolia baixa à terra com o cair da tarde!

Parece que a solidão alarga os seus limites para se tornar acabrunhadora. Enegrece o solo; formam os matagais sombrios, maciços, e ao longe se desdobra tênue véu de um roxo uniforme e desmaiado, no qual, como linhas a meio apagadas, ressaltam os troncos de uma ou outra palmeira mais alterosa.

É a hora, em que se aperta de inexplicável receio o coração. Qualquer ruído nos causa sobressalto; ora o grito aflito da zabelê nas matas, ora as plangentes notas do bacurau a cruzar os ares. Freqüente é também amiudarem-se os pios angustiados de alguma perdiz, chamando ao ninho o companheiro extraviado, antes que a escuridão de todo lhe impossibilite a volta.

Quem viaja atento às impressões íntimas, estremece, mau grado seu, ao ouvir nesse momento de saudades o tanger de um sino muito, muito ao longe, ou o silvar distante de uma locomotiva impossível. São insetos ocultos na macega que trazem essa ilusão, por tal modo viva e perfeita que a imaginação, embora desabusada e prevenida, ergue o vôo e lá vai por estes mundos afora a doidejar e a criar mil fantasias.

* * *

Espalham-se, por fim, as sombras da noite.

O sertanejo que de nada cuidou, que não ouviu as harmonias da tarde, nem reparou nos esplendores do céu, que não viu a tristeza a pairar sobre a terra, que de nada se arreceia, consubstanciado como está com a solidão, pára, relanceia os olhos ao derredor de si e, se no lagar pressente alguma aguada, por má que seja, apeia-se, desencilha o cavalo e reunindo logo uns gravetos bem secos, tira fogo do isqueiro, mais por distração do que por necessidade.

Sente-se deveras feliz. Nada lhe perturba a paz do espírito ou o bem-estar do corpo. Nem sequer monologa, como qualquer homem acostumado a conversar.

Raros são os seus pensamentos: ou rememora as léguas que andou, ou computa as que tem que vencer para chegar ao término da viagem.

No dia seguinte, quando aos clarões da aurora acorda toda aquela esplêndida natureza, recomeça ele a caminhar, como na véspera, como sempre.

Nada lhe parece mudado no firmamento: as nuvens de si para si são as mesmas. Dá-lhe o sol, quando muito, os pontos cardeais, e a terra só lhe prende a atenção, quando algum sinal mais particular pode servir-lhe de marco miliário na estrada que vai trilhando.

-Bom! exclama em voz alta e alegre ao avistar algum madeiro agigantado ou uma disposição especial de terras, lá está a peúva grande... Cheguei ao Barranco Alto. Até ao pouso de Jacaré há quatro léguas bem puxadas.

E, olhando para o Sol, conclui:

-Daqui a três horas estou batendo fogo.

Ocasiões há em que o sertanejo dá para assobiar. Cantar, é raro; ainda assim, à surdina; mais uma voz intima, um rumorejar consigo, do que notas saídas do robusto peito. Responder ao pio das perdizes ou ao chamado agoniado da esquiva jaó, é o seu divertimento em dias de bom humor.

É-lhe indiferente o urro da onça. Só por demais repara nas muitas pegadas, que em todos os sentidos ficam marcadas na areia da estrada.

-Que bichão! murmura ele contemplando um rasto mais fortemente impresso no solo; com um bom onceiro não se me dava de acuar este diabo e meter-lhe uma chumbada no focinho.

O legítimo sertanejo, explorador dos desertos, não tem, em geral, família. Enquanto moço, seu fim único é devassar terras, pisar campos onde ninguém antes pusera pé, vadear rios desconhecidos, despontar cabeceiras e furar matas, que descobridor algum até então haja varado.

Cresce-lhe o orgulho na razão da extensão e importância das viagens empreendidas; e seu maior gosto cifra-se em enumerar as correntes caudais que transpôs, os ribeirões que batizou, as serras que transmontou e os pantanais que afoitamente cortou, quando não levou dias e dias a rodeá-los com rara paciência.

Cada ano que finda traz-lhe mais um valioso conhecimento e acrescenta uma pedra ao monumento da sua inocente vaidade.

-Ninguém pode comigo, exclama ele enfaticamente. Nos campos da Vacaria, no sertão do Mimoso e nos pântanos do Pequiri, sou rei.

E esta presunção de realeza infunde-lhe certo modo de falar e de gesticular majestático em sua singela manifestação.

A certeza que tem de que nunca poderá perder-se na vastidão, como que o liberta da obsessão do desconhecido, o exalta e lhe dá foros de infalibilidade.

Se estende o braço, aponta com segurança no espaço e declara peremptoriamente:

-Neste rumo daqui a 20 léguas, fica o espigão mestre de uma serra braba, depois um rio grosso; dali a cinco léguas outro mato sujo que vai findar num brejal. Se vassuncê frechar direitinho assim umas duas horas, topa com o pouso do Tatu, no caminho que vai a Cuiabá.

O que faz numa direção, com a mesma imperturbável serenidade e firmeza indica em qualquer outra.

A única interrupção que aos outros consente, quando conta os inúmeros descobrimentos, é a da admiração. À mínima suspeita de dúvida ou pouco caso, incendem-se-lhe de cólera as faces e no gesto denuncia indignação.

-Vassuncê não credita! protesta então com calor. Pois encilhe o seu bicho e caminhe como eu lhe disser. Mas assunte bem, que no terceiro dia de viagem ficará decidido quem é cavouqueiro e embromador. Uma coisa é mapiar à toa, outra andar com tento por estes mundos de Cristo.

Quando o sertanejo vai ficando velho, quando sente os membros cansados e entorpecidos, os olhos já enevoados pela idade, os braços frouxos para manejar a machadinha que lhe da o substancial palmito ou o saboroso mel de abelhas, procura então quem o queira para esposo, alguma viúva ou parenta chegada, forma casa e escola, e prepara os filhos e enteados para a vida aventureira e livre que tantos gozos lhe dera outrora.

Esses discípulos, aguçada a curiosidade com as repetidas e animadas descrições das grandes cenas da natureza, num belo dia desertam da casa paterna, espalham-se por aí além, e uns nos confins do Paraná, outros nas brenhas de São Paulo, nas planuras de Goiás ou nas bocainas de Mato Grosso, por toda a parte enfim, onde haja deserto, vão pôr em ativa prática tudo quanto souberam tão bem ouvir, relembrando as façanhas do seu respeitado progenitor e mestre.

O viajante

Próprio de espírito sorumbático, é andar sempre calado: tagarelar é o encanto e a alma da vida.

La Chaussée



Comigo, respondeu Sancho, meu primeiro movimento é logo tal comichão de falar que não posso deixar de desembuchar o que me vem à boca.

Cervantes, Dom Quixote



O dia 15 de julho de 1860 era dia claro, sereno e fresco, como costumam ser os chamados de inverno no interior do Brasil.

Ia o Sol alto em seu percurso, iluminando com seus raios, não muito ardentes para regiões intertropicais, a estrada, cujo aspecto há pouco tentamos descrever e que da Vila de Sant'Ana do Paranaíba vai ter aos campos de Camapuã.

A essa hora, um viajante, montado numa boa besta tordilho-queimada, gorda e marchadeira, seguia aquela estrada. A sua fisionomia e maneiras de trajar denunciavam de pronto que não era homem de lida fadigosa e comum ou algum fazendeiro daquelas cercanias que voltasse para casa. Trazia na cabeça um chapéu-do-chile de abas amplas e cingido de larga fita preta, sobre os ombros um poncho-pala de variegadas cores e calçava botas de couro da Rússia bem feitas e em bom estado de conservação.

Tinha quando muito vinte e cinco anos, presença agradável, olhos negros e bem rasgados, barba e cabelos cortados quase à escovinha e ar tão inteligente quanto decidido.

Na mão empunhava uma comprida vara que havia pouco cortara, e com que ia distraidamente fustigando o ar ou batendo nos ramos de árvores que se dobravam ao alcance do braço.

Vinha só e, no momento em que damos começo a esta singela história, achava-se no bonito trecho de caminho que medeia entre a casa de Albino Lata e a do Leal, a sete boas léguas da sezonática e decadente Vila de Sant'Ana do Paranaíba.

Nesta porção de estrada, ensombrada pelas árvores de vistoso cerrado, o leito, ainda que já bastante arenoso, é firme e parece mais aléia de bem tratado jardim, do que caminho de tropas e carreadores.

Ainda aumenta os encantos daquele lance a inúmera quantidade de rolas caboclas a brincar na areia e de pombas de cascavel, cujo bater das asas produz um arruído tão característico e singular.

O nosso viajante, se caminhava distraído e meio pensativo, não parecia, contudo, de gênio sombrio ou pouco divertido.

Muito ao contrário, sacudia às vezes o torpor em que vinha e entrava a cantarolar, ou assobiar, esporeando a valente cavalgadura, que na marcha que tomava ia abanando alternadamente as orelhas com o movimento cadencial da cabeça.

Numa dessas reações contra alguma preocupação, disse em voz alta, puxando por um relógio de prata, seguro em corrente do mesmo metal:

-Às duas horas, pretendo sestear no paiol do Leal. Falta pouco para o meio-dia, e tenho tempo diante de mim a botar fora.

Moderou, pois, a andadura que levava o animal e mais ativamente recomeçou a zurzir os galhos das árvores, bocejando de tédio.

Também pouco tempo caminhou só, por isto que em breve ao seu lado emparelhou outro viajante, escanchado num cavalinho feio e zambro, mas muito forte, o qual, coberto como estava de suor, mostrava ter vindo quase a galope.

Homem já de alguma idade, o recém-chegado era gordo, de compleição sangüínea, rosto expressivo e franco. Trajava à mineira e parecia como realmente era, morador daquela localidade.

-Olá, patrício, exclamou ele conchegando a cavalgadura à da pessoa a quem interpelava, então se vai botando para Camapuã?

Olhou o nosso cavaleiro com desconfiança e sobranceria para quem o interrogava tão sem-cerimônia e meio enviesado respondeu:

-Talvez sim... talvez não... Mas a que vem a pergunta?

-Ah! desculpe-me, replicou o outro rindo-se, nem sequer o saudei... Sou mesmo um estabanado... Deus esteja convosco. Isto sempre me acontece... A minha língua fica às vezes tão doida que se põe logo a bater-me nos dentes... que é um Deus nos acuda e... não há que avisar: água vai! Olhe, por vezes já me tem vindo dano, mas que quer? É sestro antigo... Não que eu sela malcriado, Deus de tal me defenda, abrenúncio; mas pega-me tal comichão de falar que vou logo, sem tirte, nem guarte, dando à taramela...

A volubilidade com que foram ditas estas palavras causou certo espanto ao mancebo e o levou a novamente encarar o inopinado companheiro, desta feita com mais demora e ar menos altivo.

Notou então a fisionomia alegre e bonachã do tagarela e, com ar de simpatia, correspondeu ao comunicativo sorriso daquele que, à força, queria travar conversação.

-Pelo que vejo, disse ele, o Sr. gosta de prosear.

-Ora se! retrucou o mineiro. Nestes sertões só sinto a falta de uma coisa: é de um cristão com quem de vez em quando dê uns dedos de paroula. Isto sim, por aqui é vasqueiro. Tudo anda tão calado!... uma verdadeira caipiragem!... Eu, não. Sou das Gerais, geralista como por cá se diz; nasci no Paraibana, conheci no meu tempo pessoas de muita educação, gente mesma de truz e fui criado na Mata do Rio como homem e não como bicho do monte.

-Ah! o senhor é de Minas?

-Gerais, se me faz favor. Batizei-me em Vassouras, mas sou mineiro da gema. Andei seca-e-meca antes de vir deitar poita neste país. Isto já faz muito tempo, pois também vou ficando velho. Há mais de quarenta anos pelo menos que sai da casa dos meus pais.

E interrompendo o que dizia, perguntou:

-O senhor também é de Minas?

-Nhor-não, respondeu o outro. Sou caipira de São Paulo: nasci na Vila de Casa Branca, mas fui criado em Ouro Preto.

-Ah! Na cidade Imperial?...

-Lá mesmo.

-Então é quase de casa, replicou o mineiro rindo-se ruidosamente. Ora, quem diria! Por isto me batia a passarinha, quando vi o seu rasto fresco na areia. Ai vai, disse eu por vezes com os meus botões, um sujeitinho que não tem pressa de pousar. Também tocando o meu canivete, tratei de agarrá-lo para não fazer a viagem a olhar para o céu e a banzar. Acha que obrei mal?

-Não, senhor, protestou o moço com afabilidade. Muito lhe agradeço a intenção. Assim alcançarei sem cansaço o Leal, onde pretendo dar hoje com os ossos.

-Oh! exclamou o outro todo expansivo, a caminhada é a mesma. Pois, meu rico senhor, eu moro a meia légua do Leal, torcendo a esquerda e se vosmecê não tem compromissos lá com o homem, far-me-á muito favor agasalhando-se em teto de quem é pobre, mas amigo de servir. Minha tapera é pouco retirada do caminho, e quem vem montado como o senhor, não tem que andar contando bocadinhos de léguas.

Convite tão espontâneo e amável não podia deixar de ser bem aceito, sobretudo naquelas alturas, e trouxe logo entre os dois caminhantes a familiaridade que tão depressa se estabelece em viagem.

-Com toda a satisfação irei parar em sua casa, retrucou o jovem. Nunca vi o Leal, pois agora é a primeira vez que cruzo este sertão, e ando de pouso em pouso, pedindo um cantinho de paiol ou de rancho para passar a noite com os camaradas meus.

Traz então tropa?

-Tropa, não; apenas dois bagageiros que vêm com as minhas cargas e uma besta à destra.

-Olá! o amigo viaja à fidalga, observou o mineiro com gesto folgazão.

-Qual!... Bastantes privações tenho já curtido.

-Decerto não as sentirá em nossa casa todo o tempo que lá quiser ficar. Não encontrará luxarias nem coisas da capital, unicamente o que pode ter nestes mundos: quatro paredes de pau-a-pique mal rebocadas, uma cama de vento, bom feijão a fartar, ervas a mineira, arroz de papa, farinha de milho torradinha, café com rapadura e talvez até um lombo fresco de porco.

-Olá! exclamou o moço rindo-se com expansão, vou passar vida de capitão-mor. Não queria tanto, bastava-me...

-O que sobretudo desejo é que tenha comigo o coração na boca. Se não gostar do passadio, vá logo desembuchando. Na minha rancharia pousa pouca gente, porque fica para dentro da estrada... assim, talvez lhe falte alguma coisa; em todo o caso farei pelo melhor...

Depois de breve pausa, continuou:

-Mas porém, creio que já é ocasião, agora que nos conhecemos como dois amigos do tempo do Rojão, saber com quem lidamos. Eu, quanto a mim, me chamo Martinho dos Santos Pereira e a minha história conto-lha em duas palhetadas... Sua graça, ainda que mal pergunte?

-Cirino Ferreira de Campos, respondeu o outro viajante, um criado para o servir.

-Obrigado, agradeceu Pereira inclinando-se cortesmente e levando a mão ao chapéu. Como lhe disse há pouco, minha historia é história de entrar por uma porta e sair por outra. Minha gente não é de má raça, pelo contrário; meu pai, que Deus lhe dê a glória, possuía alguma coisa de seu e deixou aos seus muitos filhos um nome limpo e respeitado. Cada qual de nós -éramos sete- tomou o seu rumo. Quanto a mim, casei muito mocinho e fui morar na Diamantina, onde abri casa de negócio. Depois de alguns anos, uns bons, outros caiporas, morreu minha dona e mudei-me, a principio, para Piumi e mais tarde para Uberaba. A vida começou a desandar-me de todo, e fiz logo este cálculo: estar tão longe, antes afundar-me no mato de uma boa feita. Vendi minha lojinha de ferragens e internei-me até cá com três escravos, lá doze anos que moro nestes socavões e, palavra de honra, até ao presente não me tenho arrependido. Na minha situação há fartura, e louvado seja! nunca passei necessidade... Não posso por isto queixar-me sem ingratidão. Deus Nosso Senhor Jesus Cristo tem olhado para mim, e me julgo bem amparado, sobretudo quando me lembro do despotismo de misérias, que vai por estas terras fora... Cruzes! nem falar nisto é bom... Diga-me, porém, uma coisa: vosmecê para onde se atira?

-Homem, Sr. Pereira, não tenho destino certo.

-Deveras? Então está caminhando à toa?

-Eu ponho-lhe já tudo em pratos limpos. Ando por estes fundões curando maleitas e feridas brabas.

-Ah! exclamou Pereira com manifesto contentamento, vosmecê é doutor, não é? Físico, como chamavam os nossos do tempo de dantes.

-É fato, confirmou Cirino com alguma satisfação.

-Ora, pois, muito bem, cai-me a sopa no mel; sim, senhor, vem mesmo ao pintar... a talhe de foice.

-Por quê?

-Daqui a pouco saberá... Mas, diga-me ainda... Onde é que vosmecê leu nos livros, aprendeu suas histórias e bruxarias? Na corte do Império?

-Não, respondeu Cirino, primeiro no Colégio do Caraça; depois fui para Ouro Preto, onde tirei carta de farmácia.

E acrescentou com enfatuação:

-Desde então tenho batido todo o poente de Minas e feito curas que é um milagre.

-Ah! a sabença é coisa boa... eu também tinha jeito para saber mais do que ler e escrever, isto mesmo malmente; mas quem nasceu para carreiro, vira, mexe, larga e pega, sempre acaba junto ao carro. Com o que, entonces, vosmecê entende de curar?...

-Entendo, afirmou Cirino sem o menor constrangimento.

-Pois caiu-me muito ao jeito na mão; sim, senhor. Estou com uma menina doente de maleitas, minha filha, e por essa causa tinha ido a Sant'Ana buscar quina do comércio; mas lá não havia da maldita e voltava bem agoniado. Ora...

-Trago, interrompeu o outro, muito remédio nas minhas malas. Para sezões, tenho uma composição infalível...

-Já se sabe; entra composição de quina. Deveras é santa mezinha. A pequena tomou a do campo; mas essa pouco talento tem, de maneira que a sezão não lhe deixou o corpo.

-Há quantos dias apareceu o tremor de frio? perguntou o intitulado doutor.

-Faz hoje, salvo engano, dez dias. Até agora era uma rapariga forçuda, sadia e rosada como um jambo; nem sei até como lhe entrou a maleita no corpo. Ninguém pode fiar-se na tal Vila de Sant'Ana; é uma peste de febres. Eu bem a não queria levar até lá: mas ela pediu tanto que consenti! Demais como era para ver a madrinha, uma boa senhora, de muita circunstância, a mulher do Major Toques... Não conhece?

-Pois não.

-E dá-se com o major? perguntou Pereira para abrir novo campo à garrulice.

-Quando pousei na vila, estive com ele.

-E não gostou? Aquilo sim é homem às direitas. Também é pau para toda a obra na Senhora Sant'ana, é o tatu de lá. Em querendo taramelar um pouco mais a meu gosto, busco o compadre. Isto arma logo uma conversa que me dá um fartão... E depois pessoa de muitas letras... Escreve ao governo; é juiz de paz, major reformado, serve de juiz municipal, já fez a campanha dos Farrapos lá no Rio Grande do Sul para as bandas dos Castelhanos e merece muita estimação. Mora numa casa de andar e tem loja muito sortida, por sinal que bem baratinha para a distancia. E as histórias que conta? É um nunca acabar. O homem parece que sabe o Império de cor e salteado! Nem o vigário! Olhe, Sr. Cirino, vou dizer-lhe uma coisa, que talvez lhe pareça embromação: às vezes dou um pulo até a vila só para bater língua com o major, porque com esta gente daqui não se tira partido: escorraçada e arisca que é um Deus nos acuda! Então, como lhe ia contando, galopeio até lá, e pego numa mapiagem que me enche as medidas. Não há...

-Gabo-lhe a pachorra, atalhou Cirino. Mas, diga-me, Sr. Pereira; farei por aqui algum negócio?

-Homem, conforme. Gente doente é mato; mas também mofina como ela só. Meio arredado da minha casa, fica o Coelho que está morre não morre há muitos anos, e é homem de boas patacas. Este, se vosmecê o curar, talvez caia com os cobres. Tudo o mais é uma récula1 de gente mais ou menos.

-Vosmecê traz bastante quina do comércio? perguntou em seguida.

-Trago, respondeu Cirino, mas é cara.

-Que é cara, bem sei. Pois é quanto basta, porque no fundo aqui tudo são sezões.

Começou então o bom do sr. Pereira a desenrolar as diversas moléstias que o haviam salteado no correr da vida, raras na verdade, mas todas perigosas; e com este tema às ordens achou meios e modos de falar até quase perder o fôlego.

Recolheu-se o outro ao silencio e ouviu talvez preocupado, ou em todo caso, muito distraidamente, o que lhe contava o seu novo amigo, saindo, de vez em quando, da apática atenção para instigar com a voz e o calcanhar a cavalgadura, quando esta parecia querer por si tomar descanso ou buscava comer os rebentões mais apetitosos do capim a grelar.

Afinal notou Pereira o tal ou qual abatimento do companheiro.

-Vosmecê a modo que está triste? disse ele. Deixou alguma coisa de seu lá por trás?

-Homem, para ser franco, respondeu Cirino dando um suspiro, deixei; e essa coisa é uma dívida... de jogo.

-Isto é mau, retrucou o mineiro, fechando um tanto a cara. Por causa desse vicio e das mulheres, é que as cruzes nascem à beira das estradas. Mas é coco grosso?

-Trezentos mil-réis.

-Já é gimbo graúdo. E com quem jogou?

-Com o Totó Siqueira, de Sant'Ana. Por isto pretendeu atrasar-me a viagem; mas prometi mandar-lhe tudo do Sucuriú por um camarada e passei-lhe um papel. No que estou pensando, e se acharei até lá meios de cumprir a palavra.

-Se lhe pagarem como devem, com certeza. Em todo o caso aperte um pouco com os doentes.

-Não imagina, replicou Cirino com verdadeiro sentimento, quanto me tem amofinado essa maldita dívida. Não pelo dinheiro, que dele faço pouco caso; mas por ter pegado em cartas, coisa que nunca tinha feito na minha vida; isto sim...

-Pois meu rico senhor, prosseguiu Pereira, sirva-lhe esta de lição e tome tento com a gente do sertão, não com esses que moram -nas suas casas, sossegados e amigos de servir, mas com viajantes, homens de tropas e carreiros. Isso sim, é uma súcia de jogadores, que andam armados de baralhos e vísporas e, por dá cá aquela palha, empurram uma faca na barriga de um cristão ou descarregam uma garrucha na cabeça de um companheiro, como se fosse em melancia podre. Depois, o demônio do jogo, quando entra no corpo de um desgraçado, faz logo ninho e de lá pincha fora a vergonha. Da má vida com raparigas airadas, fadistas e mulheres à toa, ainda a gente endireita; mas com cartas e sortes, só na caldeira de Pedro Botelho é que se cuida em mudar de rumo. Quem lhe fala, teve um tio morador nas Trairás, para cá de Camapuã cinco léguas, que trabalhava todo o ano na terra para vir jogar até perder o último cobre nas rancharias do Sucuriú.

Pereira, de posse de tão largo assunto, contou mil historias, umas lúgubres, outras jocosas, verídicas, inventadas na ocasião ou reproduzidas.

Haviam, no entretanto, os dois caminhado bastante. Inclinara-se no horizonte o sol, e a brisa da tarde já vinha soprando do lado do poente, viva, perfumosa.

-Nós, observou o mineiro, com a nossa conversa deixamos os nossos animais vir cochilando. Também já está aqui a minha estradinha. Meta-se nela, Sr. Cirino; em frente ia parar no Leal: minha fazendola começa este ponto à beira do caminho e vai por aí afora ate bem longe, um mundo de alqueires de terra que nem tem conta.

Ao dizer estas palavras, tomou ele a dianteira e dando a direita à estrada geral, enveredou por uma aberta larga e muito sombreado que levava com voltas e tortuosidades à margem rasa de copioso e límpido ribeirão, de álveo areento, todo ele. Que sítio risonho, encantador, esse, ensombrado por majestosa e elegante ingazeira, toda pontuada das mimosas e balsâmicas florezinhas!

Os animais, ao perceberem o bater da água, apertaram o passo e, entrando na fresca corrente quase até aos peitos, estiraram o pescoço e puseram-se a beber ruidosamente, avançando aos poucos de encontro ao fio caudal, para buscarem o que houvesse mais puro em linfa.

-Não deixe a sua besta se empanzinar observou Pereira. Upa! continuou ele puxando pela rédea do cavalo e batendo-lhe amigavelmente na pá do pescoço, upa, Canivete! Vamos matar a fome no milho!

Transposto o ribeirão, alargava-se a vereda e, depois de cortar copada mata, abria-se numa verdadeira estrada, que os dois cavaleiros tomaram a meio galope.

Transmontava afinal o sol, quando, além de ralo matagal, surgiu a ponta de um mastro de São João, que o mineiro saudou com mostras de grande alegria, como sinal precursor da querida vivenda.

Antes, porém, de nela penetrarmos, digamos quem era aquele mancebo que viajava ornado do pomposo título de doutor, e, que mais é, aplicando remédios e preconizando curas milagrosas.

O doutor

Semeai promessas: a ninguém causam desfalque, e o mundo é rico de palavras. A esperança quando outros nela crêem faz ganhar muito tempo.

Ovídio, A Arte de Amar



Ao morreres, dota a algum colégio ou a teu gato.

Pope



SGANARELO.-De todo a parte vem gente procurar-me, e se as coisas continuarem assim, sou de parecer que de uma vez devo dedicar-me à medicina. Acho que de todos os ofícios é este o preferível, porque, ou se faça bem ou mal, sempre no fim há dinheiro.

Molière, O Médico à Força



Nascera Cirino de Campos, como dissera a Pereira, na província de São Paulo, na sossegada e bonita Vila de Casa Branca, a qual demora umas 50 léguas do litoral. Filho de um vendedor de drogas, que se intitulava boticário e a esse oficio acumulava o importante cargo de administrador do correio, crescera debaixo das vistas paternas até a idade de doze anos completos, quando fora enviado, em tempos de festas e a título de recordações saudosas, a um velho tio e padrinho, morador na cidade de Ouro Preto.

Esse parente, solteirão, de gênio rabugento, misantropo, e dado às práticas da mais extrema carolice, recebeu o pequeno com mau modo e manifesto descontentamento, tanto mais quanto à presença de um estranho vinha interromper os hábitos de completa solidão a que se acostumara desde longos anos.

Era homem que trajava ainda à moda antiga, usando de sapatos de fivela, calções de braguilha, e cabeleira empoada com o competente rabicho.

A sua reputação de pessoa abastada era, em toda a cidade de Ouro Preto, tão bem firmada quanto a de refinado sovina, chegando a voz público a afirmar que o seu dinheiro, e não pouco, estava todo enterrado em numerosos buracos no chão da alcova de dormir.

-Meu amigalhote, disse o tal padrinho a Cirino, poucos dias depois da chegada, fique sabendo que por qualquer coisinha lhe sacudo a poeira do corpo. Dê-se por avisado e ande direitinho que nem um fuso.

O menino, transido de medo, passou a tarde a chorar num canto sombrio da casa, onde relembrou, até lhe vir o sono, a alegre vida de outrora, os folguedos que fazia com os camaradas na viçosa relva do Cruzeiro, à entrada da Vila de Casa Branca e sobretudo os carinhos da saudoso mamãe.

Em seguida àquela admoestação preventiva fora o tio à casa de uns padres que tinham influência na direção do Colégio do Caraça e com eles arranjara a admissão do afilhado naquele estabelecimento de instrução.

Como finório que era, conseguiu este resultado sem multa dificuldade, pagando-o, a juros compostos, com tentadoras promessas.

-Por ora, resmoneou ele, nada poderei fazer pela educação do rapaz; mas... enfim... um dia... estou já velho, e tratarei de mostrar que não me esqueci dos bons padres que tanto me ajudam hoje.

Lançada, assim, a eventualidade de uma verba testamentária, ficou decidida a entrada de Cirino na casa colegial.

O pressentimento da falta de proteção natural torna as crianças dóceis e resignadas. Também não tugiu nem mugiu o caipirazinho ao penetrar no internato em que devia passar tristonhamente os melhores anos da sua adolescência.

Ótimo negócio fizera incontestavelmente o velho tio. Ia tão-somente desembolsando boas palavras e, por estar agarrado à vida, chegou até a levar ao cemitério dois dos padres que se haviam prendido às esperanças de valiosa recordação.

Afinal como tinha por seu turno que pagar o tributo universal, um belo dia morreu quando menos se esperava, deixando muito recomendado um seu testamento, que foi, com efeito, aberto com sofreguidão digna de melhor êxito.

Testamento havia, força é confessar; não já testamento, mas extenso arrazoado todo da letra do velho; barras de ouro, porém, ou maços de notas, nem sombra.

Esfuracou-se a casa de alto a baixo, levantaram-se os soalhos, escutaram-se todas as paredes, quebraram-se os móveis; nada apareceu, nada denunciou esconderijo de riquezas, nem coisa que com isso se avizinhasse.

Descobriu-se então que aquele carola fora um pensador desabusado, antigo admirador de Xavier, o Tiradentes, que nunca tivera vintém e vivera como filósofo, grazinando lá consigo mesmo, de tudo e de todos.

Era o seu testamento uma gargalhada meio de gosto, meio de ironia, atirada de além-túmulo e corroborada pelo legado sarcástico que em pomposo codicilo fazia aos padres do Caraça da sua biblioteca a fim, dizia ele, de ajudar a educação dos mancebos e auxiliar as boas intenções dos seus honrados e virtuosos diretores.

Procuraram-se os tais livros, e topou-se com um baú cheio de obras, em parte devoradas pelo cupim, que foram, incontinenti, entregues às chamas de um grande auto-de-fé. Eram as Ruínas de Volney, O Homem da Natureza, as poesias eróticas de Bocage, o Dicionário filosófico de Voltaire, o Citador de Pigault-Lebrun, a Guerra dos Deuses de Parny, os romances do marquês de Sade e outras produções de igual alcance e quilate, algumas até em francês, mas anotadas por leitor assíduo e mais ou menos convencido.

A conseqüência desse pesado gracejo póstumo, que destruía de raiz o conceito de uma vida inteira, foi a imediata exclusão de Cirino do Colégio do Caraça.

Tinha então dezoito anos, e, como era vivo, conseguiu, apesar da natural pecha que lhe atirava o parentesco com o estrambótico e defunto protetor, ir servir de caixeiro numa botica velha e manhosa, onde entre drogas e receituários lhe foram voltando os hábitos da casa paterno.

Leve era o trabalho, e o aviamento de prescrições tão lento, que os ingredientes farmacêuticos ficavam meses inteiros nos embaçados e esborcinados frascos à espera de que alguém se lembrasse de tirá-los daquele bolorento esquecimento.

Em localidade pequena, de simples boticário a médico não há mais que um passo. Cirino, pois, foi aos poucos, e com o tempo, criando tal ou qual pratica de receitar e, agarrando-se a um Chernoviz, já seboso de tanto uso, entrou a percorrer, com alguns medicamentos no bolso e na mala da garupa, as vizinhanças da cidade à procura de quem se utilizasse dos seus serviços.

Nessas curtas digressões principiou a receber o tratamento de doutor. Então para melhor o firmar, depois de se ter despedido da botica em que servia, matriculou-se na escola de farmácia de Ouro Preto com a intenção de tirar a carta de boticário, que o Presidente de Minas Gerais tem o privilégio de conferir, dispensando documentos de qualquer faculdade reconhecida.

Antes, porém, de conseguir a posse daquele lisonjeiro documento, fez-se Cirino, num dia de capricho, de partida decidida e começou então a viajar pelos sertões povoados a medicar, sangrar e retalhar, unindo a alguns conhecimentos de valor positivo outros que a experiência lhe ia indicando ou que a voz do povo e a superstição lhe ministravam.

Toda a sua ciência assentava alicerces no tal Chernoviz. Também era o inseparável vademecum; seu livro de ouro; Homero à cabeceira de Alexandre. Noite e dia o manuseava; noite e dia o consultava à sombra das árvores ou junto ao leito dos enfermos.

Contém Chernoviz, dizem os entendidos, muitos erros, muita lacuna, muita coisa inútil e até disparatada; entretanto no interior do Brasil é obra que incontestavelmente presta bons serviços, e cujas indicações têm força de evangelho.

Conhecia Cirino o seu exemplar de cor e salteado; abria-o com segurança nos trechos que desejava consultar e graças a ele formara um fundo de instrução real e até certo ponto exata, a que unirá o estudo natural das utilíssimas e ainda pouco aproveitadas ervinhas do campo.

A fim de aumentar os seus recursos em matéria médica vegetal, foi a pouco e pouco dilatando as excursões fora das cidades, para as quais voltava, quando se via falto de medicamentos ou quando, digamo-lo sem rebuço, queria gastar nos prazeres e folias o dinheiro que ajuntara com a clínica do sertão.

Afinal, afeito a hábitos de completa liberdade, resolvera empreender viagem para Camapuã e sul de Mato Grosso, não só com o intuito de estender o raio das operações, como levado do desejo de ver terras novas e longínquas.

Curandeiro, simples curandeiro, ia por toda a parte granjeando o tratamento de doutor, que gradualmente lhe foi parecendo, a si próprio, titulo inerente a sua pessoa e a que tinha incontestável direito.

Bem formado era o coração daquele moço, sua alma elevada e incapaz de pensamentos menos dignos; entretanto no intimo do seu caráter se haviam insensivelmente enraizado certos hábitos de orgulho, repassado de tal ou qual charlatanismo, oriundo não só da flagrante insuficiência cientifica, como da roda em que sempre vivera.

Afastava-se em todo caso, ainda assim com os seus defeitos, do comum dos médicos ambulantes do sertão, tipos que se encontram freqüentemente naquelas paragens, eivados de todos os atributos da mais crassa ignorância, mas rodeados de regalias completamente excepcionais.

Por toda a parte entra, com efeito, o doutor; penetra no interior das famílias, verdadeiros gineceus; tem o melhor lugar a mesa dos hóspedes, a mais macia cama; é, enfim, um personagem caído do céu e junto ao qual acodem logo, de muitas léguas em torno, não já enfermos, mas fanatizados crentes, que durante largos anos se haviam medicado ou por conselhos de vizinhos ou por suas próprias inspirações e que na chegada desse Messias depositam todas as ardentes esperanças do almejado restabelecimento.

A casa do mineiro

Está a cela na mesa. Torne o bom acolhimento desculpável o mau passadio.

Walter Scott, Ivanhoé



Quando assomaram os dois viajantes à entrada do terreiro que rodeava a vivenda de Pereira, correram-lhes ao encontro quatro ou cinco cães altos e magros, que aos pulos saudaram o dono da casa com uma cainçada de alegria.

Puseram-se algumas galinhas a girar atarantadas, ao passo que vários galos, já empoleirados na cumeeira da morada, bradavam novidade e uns porcos e bacorinhos aqui e acolá se erguiam dentre palhas de milho e, estremunhados, olhavam para os recém-chegados com olhos pequenos e cheios de sono.

Do interior da habitação, não tardou a sair uma preta idosa mal vestida, trazendo atado à cabeça um pano branco de algodão, cujas pontes pendiam ate ao meio das costas.

-Olá, Maria Conga, perguntou Pereira, que há de novo por cá?

-A benção, meu senhor, pediu a escrava chegando-se com alguma lentidão.

-Deus te faça santa, respondeu o mineiro. Como vai a menina? Nocência?

-Nhã está com sezão.

-Isto sei eu, rapariga de Cristo; mas como passou ela de trasantontem para cá?

-Todo o dia, vindo a hora, nhã bate o queixo, nhorsim.

-Está bem... É que o mal ainda não abrandou... Daqui a pouco, veremos. E a janta?... Está pronta? Venho varado de fome. Que diz, Sr. Cirino? indagou, voltando-se para o companheiro.

-Não se me dava também de comer alguma coisa. Temos razão para...

-Pois então, interrompeu Pereira, ponha pé no chão e pise forte que o terreno é nosso. Minha casa, já lho disse, é pobre, mas bastante farta e a ninguém fica fechada.

Deu logo o exemplo, e descavalgou do cavalinho zambro, o qual foi por si correndo em direção a uma dependência da casa com formas de tosca estrebaria.

Apeou-se igualmente Cirino, mas, ao penetrar numa espécie de alpendre de palha que ensombrada a frente toda, mostrou repentina e viva contrariedade no gesto e na fisionomia.

-Ora, Sr. Pereira, exclamou ele batendo com o tacão da bota num sabugo de milho, só agora é que me lembro que as minhas cargas vão todas tomar caminho do Leal e aqui me deixam sem roupa, nem medicamentos. Que maçada! Devíamos ter esperado na boca da sua picada.

Respondeu-lhe o mineiro todo desfeito em expansivo riso:

-Olé, pois o doutor é tão novato assim em viagens? Então pensa que lá não deixei aviso seguro à sua gente? Não se lembra de um ramo verde que pus bem no meio da estrada real?

-É verdade, confirmou Cirino.

-E então? Daqui a pouco a sua camaradagem está batendo o nosso rasto. Entremos, que a fome já vai apertando.

Consistia a morada de Pereira num casarão vasto e baixo, coberto de sapé, com uma porta larga entre duas janelas muito estreitas e mal abertas. Na parede da frente que, talvez com o peso da coberta, bojava sensivelmente fora da vertical, grandes rachas longitudinais mostravam a urgência de serias reparações em toda aquela obra feita de terra amassada e grandes paus-a-pique.

Ao oitão da direita existia encostado um grande paiol construído de troncos de palmeiras, por entre os quais iam rolando as espigas de milho, com o contínuo fossar dos porquinhos, que dali não arredavam pé.

Corrido na frente de toda a vivenda, via-se um alpendre de palha de buriti, sustentado por grossas taquaras, ligeiro apêndice acrescentado por ocasião de alguma passada festa, em que o número de convidados ultrapassara os limites de abrigo da hospitaleira habitação.

Internamente era ela dividida em dois lanços: um, todo fechado, com exceção da porta por onde se entrava, e que constituía o cômodo destinado aos hóspedes, outro, à retaguarda, pertencia à família, ficando, portanto, completamente vedado às vistas dos estranhos e sem comunicação interna com o compartimento da frente.

Era de barro compacto e socado o chão desta sala, vendo-se nele sinais de que as vezes ali se acendia fogo: pelo que estavam o sapé do forro e o ripamento revestidos de luzidia e tênue camada de picumã que lhes dava brilho singular como se tudo fora jacarandá envernizado.

-Isto aqui, disse Pereira penetrando na sala e sentando-se numa tripeça de pau, não é meu, e de quem me procura. Poucos vêm cá decerto parar, mas enfim é sempre bom contar com eles... Minha gente mora na dependência dos fundos.

E apontou para a parede fronteira à porta de entrada, fazendo um gesto para mostrar que a casa se estendia além.

-Sr. Pereira, disse Cirino recostando-se a uma sólida marquesa, não se incomode comigo de maneira alguma... Faça de conta que aqui não há ninguém.

-Pois então, retorquiu o mineiro, deite-se um pouco, enquanto vou lá dentro ver as novidades. A hora é mais de comer, que de cochilar; mas espere deitadinho e a gosto, o que é sempre mais cômodo do que ficar de pé ou sentado.

Não desprezou o hóspede o convite. Tirou o pala, puxou as botas e, cruzando-as, fez dos canos travesseiros, em que descansou a cabeça.

Quem se coloca em posição horizontal, depois de vencidas umas estiradas léguas, adormece com certeza. Depressa veio, pois, o sono cerrar as pálpebras do recém-chegado e intumescer-lhe o peito com sossegada respiração.

Dormiu talvez hora e meia, e mais houvera dormido, se não fosse acordado pelo tropel de animais que paravam, e por grita de gente a pôr cargas em terra.

Assomou Pereira à porta com ar jovial.

-Então, que lhe disse eu?

-De fato; estou agora sossegado.

-E o Sr. tomou uma boa data de sono.

-Quem sabe uma hora?

-Boa dúvida, se não mais. Fiquei todo esse tempo ao lado de Nocência, que de frio batia o queixo, como se estivesse agora em Ouro Preto, quando cai geada na rua.

-Então não vai melhor?

-Qual!... Depois que o sr. tiver comido, há de ir vê-la. Está, pobrezinha, tão desfeita que parece doente de uns três meses atrás.

-Felizmente, observou Cirino com alguma enfatuação, aqui estou eu para pô-la de pé em pouco tempo.

-Deus o ouça, disse Pereira com verdadeira unção.

-Patrícios! Ó gente! gritou ele em seguida para os dois camaradas chegados de pouco: vão mecês sentar naquele rancho, ali. Perto há boa água, e lenha é o que não falta: basta estender o braço. Olhem, dêem ração de fartar aos animais. Aproveitem o milho, enquanto há: é a sustância desses bichos. Aqui, vendo-o baratinho. Um atilho por um cobre e não são espigas chuchas, nem grão soboró. Eh! lá! Maria Conga, vamos com isso!... janta na mesa!...

Foram o chamado e as indicações de Pereira cumpridas sem demora.

Apareceu a velha escrava, que estendeu em larga e mal aplainada mesa uma toalha de algodão, grosseira, mas muito alva, sobre a qual derramou duas boas cuias de farinha de milho: depois, emborcou um prato fundo de louça azul, e ao lado colocou uma colher e um garfo de metal.

-Sente-se, doutor, disse Pereira para Cirino, agora não manduco com mecê, porque já petisquei lá dentro. Desculpe se não achar a comida do seu agrado.

Vinha nesse momento entrando Maria Conga com dois pratos bem cheios e fumegantes, um de feijão-cavalo, outro de arroz.

-E as ervas? perguntou Pereira. Não há?

-Nhor-sim. Eu trago já, respondeu a preta, que com efeito voltou daí a pouco.

Tornou o mineiro a desculpar-se da insuficiência e mau preparo da comida.

-Não lhe dou hoje lombo de porco: mas o prometido não cai em esquecimento, isto lhe posso assegurar.

-Estou muito contente com o que há, protestou com sinceridade Cirino.

E, de fato, pelo modo por que começou a comer, repetindo animadas vezes dos pratos, deu evidentes mostras de que falava inteira verdade.

-Maria, disse Pereira para a escrava, que se fora colocar a alguma distancia da mesa com os braços cruzados, traz agora mel e café com doce.

-Ah! exclamou Cirino com patente satisfação estirando os braços, fiquei que nem um ovo. O feijão estava de patente. Louvado seja Nosso Senhor Jesus Cristo, que me deu este bom agasalho.

-Amém! respondeu Pereira.

-Agora, amigo meu, disse o moço depois de pequena pausa, estou às suas ordens; podemos ver a sua doentinha e aproveitar a parada da febre para mim atalhá-la de pronto. Em tais casos, não gosto de adiantamentos.

Cobriu-se o rosto do mineiro de ligeira sombra: franziram-se os sobrolhos, e vaga inquietação lhe pairou na fronte.

-Mais tarde, disse ele com precipitação.

-Nada, meu senhor, retrucou Cirino, quanto mais cedo, melhor. É o que lhe digo.

-Mas, que pressa tem mecê? perguntou Pereira com certa desconfiança.

-Eu? respondeu o outro sem perceber a intenção, nenhuma. É mesmo para bem da moça.

Acenderam-se os olhos de Pereira de repentino brilho.

-E como sabe que minha filha é moça? exclamou com vivacidade,

-Pois não foi o sr. mesmo quem mo disse na prosa do caminho?

-Ah!... é verdade. Ela ainda não é moça... Quatorze, quinze anos, quando muito... Quinze anos e meio... Uma criança, coitadinha!...

-Enfim, replicou o outro, seja como for. Quando o sr. quiser, venha procurar. Enquanto espero, remexerei nas minhas malas e tirarei alguns remédios para tê-los mais a mão.

-Muito que bem, aprovou Pereira, bote os seus trens naquele canto e fique descansado: ninguém bulirá neles... Quanto à minha filha... eu já venho... dou um pulo lá dentro, e... depois conversaremos.

Aviso prévio

Onde há mulheres, aí se congregam todos os males a um tempo.

Menandro



Nunca é bom que um Homem sensato eduque seus filhos de modo a desenvolver-lhes demais o espírito.

Eurípedes, Medéia



Filhos, sois para os homens o encanto da alma.

Menandro



Estava Cirino fazendo o inventário da sua roupa e já começava a anoitecer, quando Pereira novamente a ele se chegou.

-Doutor, disse o mineiro, pode agora mecê entrar para ver a pequena. Está com o pulso que nem um fio, mas não tem febre de qualidade nenhuma.

-Assim é bem melhor, respondeu Cirino.

E, arranjando precipitadamente o que havia tirado da canastra, fechou-a e pôs-se de pé.

Antes de sair da sala, deteve Pereira o hóspede com ar de quem precisava tocar em assunto de gravidade e ao mesmo tempo de difícil explicação.

Afinal começou meio hesitante:

-Sr. Cirino, eu cá sou homem muito bom de gênio, multo amigo de todos, muito acomodado e que tenho o coração perto da boca, como vosmecê deve ter visto...

-Por certo, concordou o outro.

-Pois bem, mas... tenho um grande defeito; sou muito desconfiado. Vai o doutor entrar no interior da minha casa e... deve portar-se como...

-Oh, Sr. Pereira! atalhou Cirino com animação, mas sem grande estranheza, pois conhecia o zelo com que os homens do sertão guardam da vista dos profanos os seus aposentos domésticos, posso gabar-me de ter sido recebido no seio de muita família honesta e sei proceder como devo.

Expandiu-se um tanto o rosto do mineiro.

-Vejo, disse ele com algum acanhamento, que o doutor não e nenhum pé-rapado, mas nunca é bom facilitar... E já que não há outro remédio, vou dizer-lhe todos os meus segredos... Não metem vergonha a ninguém, com o favor de Deus; mas em negócios da minha casa não gosto de bater língua... Minha filha Nocência fez 18 anos pelo Natal, e é rapariga que pela feição parece moça de cidade, muito ariscazinha de modos mas bonita e boa deveras... Coitada, foi criada sem mãe, e aqui nestes fundões. Tenho outro filho, este um latagão, barbudo e grosso que está trabalhando agora em porcadas para as bandas do Rio.

-Ora muito que bem, continuou Pereira caindo aos poucos na habitual garrulice, quando vi a menina tomar corpo, tratei logo de casá-la.

-Ah! é casada? perguntou Cirino.

-Isto é, é e não é. A coisa está apalavrada. Por aqui costuma labutar no costeio do gado para São Paulo um homem de mão-cheia, que talvez o sr. conheça... o Manecão Doca...

-Não, respondeu Cirino abanando a cabeça.

-Pois isso é um homem às direitas, desempenado e trabucador como ele só... fura estes sertões todos e vem tangendo pontes de gado que metem pasmo. Também dizem que tem bichado muito e ajuntado cobre grosso, o que é possível, porque não é gastador nem dado a mulheres. Uma feita que estava aqui de pousada... olhe, mesmo neste lugar onde estava mecê inda agorinha, falei-lhe em casamento... isto é, dei-lhe uns toques... porque os pais devem tomar isso a si para bem de suas famílias; não acha?

-Boa dúvida, aprovou Cirino, dou-lhe toda a razão; era do seu dever.

-Pois bem, o Manecão ficou ansim meio em dúvida; mas quando lhe mostrei a pequena, foi outra cantiga... Ah! também é uma menina!...

E Pereira, esquecido das primeiras prevenções, deu um muxoxo expressivo, apoiando a palma da mão aberta de encontro aos grossos lábios.

-Agora, está ela um tanto desfeita: mas, quando tem saúde é coradinha que nem mangaba do areal. Tem cabelos compridos e finos como seda de paina, um nariz mimoso e uns olhos matadores... Nem parece filha de quem é...

A gabes imprudentes era levado Pereira pelo amor paterno.

Foi o que repentinamente pensou lá consigo, de modo que, reprimindo-se, disse com hesitação manifesta:

-Esta obrigação de casar as mulheres é o diabo!... Se não tomam estado, ficam jururus e fanadinhas...; se casam podem cair nas mãos de algum marido malvado... E depois, as histórias! Ih meu Deus, mulheres numa casa, é coisa de meter medo... São redomas de vidro que tudo pode quebrar... Enfim, minha filha, enquanto solteira, honrou o nome de meus pais... O Manecão que se agüente, quando a tiver por sua... Com gente de saia não há que fiar... Cruz! botam famílias inteiras a perder, enquanto o demo esfrega um olho.

Esta opinião injuriosa sobre as mulheres é em geral corrente nos nossos sertões e traz como conseqüência imediata e prática, além da rigorosa clausura em que são mantidas, não só o casamento convencionado entre parentes muito chegados para filhos de menor idade, mas sobretudo os numerosos crimes cometidos, mal se suspeita possibilidade de qualquer intriga amorosa entre pessoa da família e algum estranho.

Desenvolveu Pereira todas aquelas idéias e aplaudiu a prudência de tão preventivas medidas.

-Eu repito, disse ele com calor, isto de mulheres, não há que fiar. Bem faziam os nossos do tempo antigo. As raparigas andavam direitinhas que nem um fuso... Uma piscadela de olho mais duvidosa, era logo pau... Contaram-me que hoje lá nas cidades... arrenego!... não há menina, por pobrezinha que seja, que não saiba ler livros de letra de forma e garatujar no papel... que deixe de ir a fonçonatas com vestidos abertos na frente como raparigas fadistas e que saracoteiam em danças e falam alto e mostram os dentes por dá cá aquela palha com qualquer tafulão malcriado... pois pelintras e beldroegas não faltam... Cruz!... Assim, também é demais, não acha? Cá no meu modo de pensar, entendo que não se maltratem as coitadinhas, mas também é preciso não dar asas às formigas... Quando elas ficam taludas, atamanca-se uma festança para casá-las com um rapaz decente ou algum primo, e acabou-se a historia...

-Depois, acrescentou ele abrindo expressivamente com o polegar a pálpebra inferior dos olhos, cautela e faca afiada para algum meliante que se faca de tolo e venha engraçar-se fora da vila e termo... Minha filha...

Pereira mudou completamente de tom:

-Pobrezinha... Por esta não há de vir o mal ao mundo... É uma pombinha do céu... Tão boa, tão carinhosa!... E feiticeira!!! Não posso com ela... só o pensar em que tenho de entregá-la nas mãos de um homem, bole comigo todo... E preciso, porém. Há anos... devia já ter cuidado nesse arranjo, mas... não sei... cada vez que pensava nisso... caia-me a alma aos pés. Também é menina que não foi criada como as mais... Ah! sr. Cirino, isto de filhos, são pedaços do coração que a gente arranca do corpo e bota a andar por esse mundo de Cristo.

Umedeceram-se ligeiramente os cílios do bom pai.

-O meu mais velho pára, Deus sabe onde... Se eu morresse neste instante, ficava a pequena ao desamparo... Também, era preciso acabar com esta incerteza... Além disso, o Manecão prometeu-me deixá-la aqui em casa, e deste modo fica tudo arranjado... isto é, remediado, filha casada é traste que não pertence mais ao pai.

Houve uns instantes de silêncio.

-Agora, prosseguiu Pereira com certo vexame, que eu tudo lhe disse, peço-lhe uma coisa: veja só a doente e não olhe para Nocência... falei assim a mecê, porque era de minha obrigação... Homem nenhum, sem ser muito chegado a este seu criado, pisou nunca no quarto de minha filha... Eu lhe juro... Só em casos destes, de extrema percisão...

-Sr. Pereira, replicou Cirino com calma, lá lhe disse e torno-lhe a dizer que, como médico, estou há muito tempo acostumado a lidar com famílias e a respeitá-las. É este meu dever, e ate hoje, graças a Deus, a minha fama é boa... Quanto às mulheres, não tenho as suas opiniões, nem as acho razoáveis nem de justiça. Entretanto, é inútil discutirmos porque sei que isso são prevenções vindas de longe, e quem torto nasce, tarde ou nunca se endireita... O sr. falou-me com toda a franqueza, e também com franqueza lhe quero responder. No meu parecer, as mulheres são tão boas como nós, se não melhores: não há, pois, motivo para tanto desconfiar delas e ter os homens em tão boa conta... Enfim, essas suas idéias podem quadrar-lhe à vontade, e é costume meu antigo a ninguém contrariar, para viver bem com todos e deles merecer o tratamento que julgo ter direito a receber. Cuide cada qual de si, olhe Deus para todos nós, e ninguém queira arvorar-se em palmatória do mundo.

Tal profissão de fé, expedida em tom dogmático e superior, pareceu impressionar agradavelmente a Pereira, que fora aplaudindo com expressivo movimento de cabeça a sensatez dos conceitos e a fluência da frase.

Inocência

Nesta donzela é que se acham juntas a minha vida e a minha morte.

Henoch, O Livro da Amizade



Jamais vira coisa tão perfeita como o seu rosto pálido. Os olhos franjados de sedosos cílios multo espessos e o seu ar meigo e doentio.

George Sand, Os Mestres Galteiros



Tudo, em Fenela, realçava a idéia de uma miniatura. Além do mais havia em sua fisionomia e, sobretudo, no olhar extraordinária prontidão, fogo e atilamento.

Walter Scott, Peveril do Pico



Depois das explicações dadas ao seu hóspede, sentiu-se o mineiro mais despreocupado.

-Então, disse ele, se quiser, vamos já ver a nossa doentinha.

-Com muito gosto, concordou Cirino.

E saindo da sala, acompanhou Pereira, que o fez passar por duas cercas e rodear a casa toda, antes de tomar a porta do fundo, fronteira a magnífico laranjal, naquela ocasião todo pontuado das brancas e olorosas flores.

-Neste lugar, disse o mineiro apontando para o pomar, todos os dias se juntam tamanhos bandos de graúnas, que é um barulho dos meus pecados. Nocência gosta muito disso e vem sempre coser debaixo do arvoredo. ˜ É uma menina esquisita...

Parando no limiar da porta, continuou com expansão:

-Nem o sr. imagina... Às vezes, aquela criança tem lembranças e perguntas que me fazem embatucar... Aqui, havia um livro de horas da minha defunta avó.

...Pois não é que um belo dia ela me pediu que lhe ensinasse a ler?... Que idéia!...

Ainda há pouco tempo me disse que quisera ter nascido princesa... Eu lhe retruquei: E sabe você o que é ser princesa? Sei, me secundou ela com toda a clareza, é uma moca muito boa, muito bonita, que tem uma coroa de diamantes na cabeça, muitos lavrados no pescoço e que manda nos homens... Fiquei meio tonto E se o sr. visse os modos que tem com os bichinhos?!... Parece que está falando com eles e que os entende... Uma bicharia, em chegando ao pé de Nocência, fica mansa que nem ovelhinha parida de fresco... Se fosse agora a contar-lhe histórias dessa rapariga, seria um não acabar nunca... Entremos, que é melhor...

Quando Cirino penetrou no quarto da filha do mineiro, era quase noite, de maneira que, no primeiro olhar que atirou ao redor de si, só pode lobrigar, além de diversos trastes de formas antiquadas, uma dessas camas, muito em uso no interior; altas e largas, feitas de tiras de couro engradadas. Estava encostada a um canto, e nela havia uma pessoa deitada.

Mandara Pereira acender uma vela de sebo. Vinda a luz, aproximaram-se ambos do leito da enferma que, achegando ao corpo e puxando para debaixo do queixo uma coberta de algodão de Minas, se encolheu toda, e voltou-se para os que entravam.

-Está aqui o doutor, disse-lhe Pereira, que vem curar-te de vez.

-Boas-noites, dona, saudou Cirino.

Tímida voz murmurou uma resposta, ao passo que o jovem, no seu papel de médico, se sentava num escabelo junto à cama e tomava o pulso à doente.

Caía então luz de chapa sobre ela, iluminando-lhe o rosto, parte do colo e da cabeça, coberta por um lenço vermelho atado por trás da nuca.

Apesar de bastante descorada e um tanto magra, era Inocência de beleza deslumbrante.

Do seu rosto irradiava singela expressão de encantadora ingenuidade, realçada pela meiguice do olhar sereno que, a custo, parecia coar por entre os cílios sedosos a franjar-lhe as pálpebras, e compridos a ponto de projetarem sombras nas mimosas faces.

Era o nariz fino, um bocadinho arqueado; a boca pequena, e o queixo admiravelmente torneado.

Ao erguer a cabeça para tirar o braço de sob o lençol, descera um nada a camisinha de crivo que vestia, deixando nu um colo de fascinadora alvura, em que ressaltava um ou outro sinal de nascença.

Razões de sobra tinha, pois, o pretenso facultativo para sentir a mão fria e um tanto incerta, e não poder atinar com o pulso de tão gentil cliente.

-Então? perguntou o pai.

-Febre nenhuma, respondeu Cirino, cujos olhos fitavam com mal disfarçada surpresa as feições de Inocência.

-E que temos que fazer?

-Dar-lhe hoje mesmo um suador de folhas de laranjeira da terra a ver se transpira bastante e, quando for meia-noite, acordar-me para vir administrar uma boa dose de sulfato.

Levantara a doente os olhos e os cravara em Cirino, para seguir com atenção as prescrições que lhe deviam restituir a saúde.

-Não tem fome nenhuma, observou o pai; há quase três dias que só vive de beberagens. É uma ardência contínua; isto até nem parecem maleitas...

-Tanto melhor, replicou o moço; amanhã verá que a febre lhe sai do corpo, e daqui a uma semana sua filha está de pé com certeza. Sou eu que lhe afianço.

-Fale o doutor pela boca de um anjo, disse Pereira com alegria.

-Hão de as cores voltar logo, continuou Cirino.

Ligeiramente enrubesceu Inocência e descansou a cabeça no travesseiro.

-Por que amarrou esse lenço? perguntou em seguida o moço.

-Por nada, respondeu ela com acanhamento.

-Sente dor de cabeça?

-Nhor-não.

-Tire-o, pois: convém não chamar o sangue; solte pelo contrário, os cabelos.

Inocência obedeceu e descobriu uma espessa cabeleira, negra como o âmago da cabiúna e que em liberdade devia cair abaixo da cintura. Estava enrolado em bastas tranças, que davam duas voltas inteiras ao redor do cocoruto

-É preciso, continuou Cirino, ter de dia o quarto arejado e pôr a cama na linha do nascente ao poente.

-Amanhã de manhãzinha hei de virá-la, disse o mineiro.

-Bom, por hoje então, ou melhor, agora mesmo, o suador. Fechem tudo, e que a dona sue bem. A meia-noite, mais ou menos, virei aqui dar-lhe a mezinha. Sossegue o seu espirito e reze duas Ave-Marias para que a quina faça logo efeito.

-Nhor-sim, balbuciou a enferma.

-Não lhe dói a luz nos olhos? perguntou Cirino, achegando-lhe um momento a vela ao rosto.

-Pouco... -um nadinha.

-Isso é bom sinal. Creio que não há de ser nada.

E levantando-se, despediu-se:

-Ate logo, sinhá-moça.

Depois do que, convidou Pereira a sair.

Este acenou para alguém que estava num canto do quarto e na sombra.

-Ó Tico, disse ele, venha cá...

Levantou-se, a este chamado, um anão muito entanguido, embora perfeitamente proporcionado em todos os seus membros. Tinha o rosto sulcado de rugas, como se já fora entrado em anos; mas os olhinhos vivos e a negrejante guedelha mostravam idade pouco adiantada. Suas perninhas um tanto arqueadas terminavam em pés largos e chatos que, sem grave desarranjo na conformação, poderiam pertencer a qualquer palmípede.

Trajava comprida blusa parda sobre calças que, por haverem pertencido a quem quer que fosse muito mais alto, formavam embaixo volumosa rodilha, apesar de estarem dobradas. À cabeça, trazia um chapéu de palha de carandá sem copa, de maneira que a melena lhe aparecia toda arrepiada e erguida em torcidas e emaranhadas grenhas.

-Oh! exclamou Cirino ao ver entrar no círculo de luz tão estranha figura, isto deveras é um tico de gente.

-Não anarquize o meu Tonico, protestou sorrindo-se Pereira. Ele é pequeno... mas bom. Não é, meu nanico?

O homúnculo riu-se, ou melhor, fez uma careta mostrando dentinhos alvos e agudos, ao passo que deitava para Cirino olhar inquisidor e altivo.

-O sr. vê, doutor, continuou Pereira, esta criaturinha de Cristo ouve perfeitamente tudo quanto se lhe diz e logo compreende. Não pode falar... isto é, sempre pode dizer uma palavra ou outra, mas muito a custo e quase a estourar de raiva e de canseira. Quando se mete a querer explicar qualquer coisa, é um barulho dos seiscentos, uma gritaria dos meus pecados, onde aparece uma voz aqui, outra acolá, mais cristãzinhas no meio da barafunda.

-É que não lhe cortaram a língua, observou Cirino.

-Não tinha nada que cortar, replicou Pereira. De nascença é o defeito e não pode ser remediado. Mas isto é um diabrete, que cruza este sertão de cabo a rabo, a todas horas do dia e da noite. Não é verdade, Tico?

O anão abanou a cabeça, olhando com orgulho para Cirino.

-Mas é filho aqui da casa? perguntou este.

-Nhor-não; tem mãe à beira do Rio Sucuriú, daqui a quarenta léguas, e envereda de lá para cá num instante, vindo a pousar pelas casas, que todos o recebem com gosto, porque é bichinho que não faz mal a ninguém. Aqui fica duas, três e mais semanas e depois dispara como um mateiro para a casa da mãe. E uma espécie de cachorro de Nocência. Não é, Tico?

Fez o mudo sinal que sim e apontou com ar risonho para o lado da moça.

Pereira, depois de todas aquelas explicações que o anão parecia ouvir com satisfação, disse, voltando-se para este, ou melhor abaixando-se em cima de sua cabeça:

-Agora, meu filho, vai ao curral grande e apanha para mim uma mãozada de folhas de laranjeira da terra... daquele pé grande que encosta na tronqueira.

Mostrou o homúnculo com expressivo gesto que entendera e saiu correndo.

Ia Cirino deixar o quarto, não sem ter olhado com demora para o lugar onde estava deitada a enferma, quando Pereira o chamou:

-Ó doutor, Nocência quer beber um pouco de água... Fará mal?

-Aqui não há limões-doces? indagou o moço.

-É um nunca acabar... e dos melhores.

-Pois então faça sua filha chupar uns gomos.

Pereira, depois de ter paternalmente arranjado e dispostos os cobertores ao redor do corpo da menina, acompanhou Cirino que, parado à porta de saída, estava mirando as primeiras estrelas da noite.

-Vosmecê achou, doutor, perguntou o mineiro com voz um tanto trêmula, algum perigo no que tem aquele anjinho?

-Não, absolutamente não, respondeu Cirino. Verá o sr. que, daqui a três dias, sua filha não tem mais nada.

-Malditas febres!... Quando não derrubam um cristão, o amofinam anos inteiros... Eu não quisera que minha filha ficasse esbranquiçada, nem feia... As moças quando não são bonitas, é que estão doentes... Ah! mas ia me esquecendo dos limões-doces... Que cabeça!...

Adiantou-se Pereira no terreiro e, pondo as mãos junto à boca chamou com voz forte:

-Ó Tico!

Prolongado grito respondeu-lhe a certa distância

O mineiro pôs-se a assobiar com modulações à maneira dos índios.

Houve uns momentos de silencio; depois veio correndo o anão e, chegando-se para perto, mostrou por sinais que não ouvira bem o recado.

-Uns limões-doces, já!... Nocência está com sede...

Disparou o pequeno como uma seta, sumindo-se logo na densa escuridão que já se espessara entre as árvores do pomar.

O naturalista

A minha filosofia toda resume-se em opor a paciência às mil e uma contrariedades de que a vida está inçada.

Hoffmann, O Reflexo Perdido



Serena e quase luminosa corria a noite. No puro campo do céu cintilava, com iriante brilho, um sem-número de estrelas, projetando na larga fita da estrada do sertão, misteriosa e dúbia claridade.

Pelo caminhar dos astros havia de ser quase meia-noite; e, entretanto, a essa hora morta, em que só vagueiam à busca de pasto os animais bravios do deserto, vinham a passo lento, pelo caminho real, dois homens, um a pó, outro montado numa besta magra e já meio estafada.

Mostrava o pedestre ser, como de feito era, um simples camarada, e vinha com grossa e comprida vara na mão tangendo diante de si lerdo e orelhudo burro, sobre cujo lombo se erguia elevada carga de canastras e malinhas, cobertas por um grande ligal.

Quem estava montado e cavalgava todo encurvado sobre o selim, com as pernas muito estiradas e abertas, parecia entregue a profunda cogitação. Devia ser homem bastante alto e esguio e, como o observamos, apesar da hora adiantada da noite, com olhos de romancista, diremos desde já que tinha rosto redondo, juvenil, olhos gázeos, esbugalhados, nariz pequeno e arrebitado, barbas compridas, escorrido bigode e cabelos muito louros. O seu traje era o comum em viagem: grandes botas, paletó de alpaca em extremo folgado, e chapéu-do-chile desabado. Trazia, entretanto, a tiracolo, umas quatro ou cinco caixinhas de lunetas ou quaisquer outros instrumentos especiais, e na mão segurava um pau fino e roliço, preso a uma sacola de fina gaze cor-de-rosa.

Homem de meia-idade, de fisionomia vulgar e balorda, era o camarada, e, pelos modos e impaciência com que fustigava o animal de carga, indicava não estar afeito ao gênero de vida que exercia.

Em silencio e na ordem indicada, caminhava a tropinha: o burro carregado na frente, logo atrás o inábil recoveiro; em seguida fechando a marcha, o viajante encarrapitado na magra cavalgadura.

Houve momento em que, depois de algumas pauladas de incitamento, pareceu querer o cargueiro protestar contra o tratamento que tão fora de hora recebia e, fincando os pés na areia, resolutamente parou.

Provocou a relutância, porém, uma chuva de verdadeiras cacetadas que ecoaram longe e se confundiam com os brados e pragas do camarada.

-Burro do diabo! berrava ele. Mil raios te partam, bicho danado! Arrebenta de uma vez!... para os infernos! Entrega a carcaça aos urubus!

Durante uns bons minutos, o cavaleiro, que fizera parar o seu animal, esperou pacientemente qualquer resultado: ou que a renitente azêmola se desse afinal por convencida e avançasse, ou então estourasse.

-Juque, disse ele de repente com acento fortemente gutural e que denunciava a origem teutônica, se porretada chove assim no seu lombo, você gosta?

O homem a quem haviam dado o nome de Juca, voltou-se com arrebatamento:

-Ora, Mochu, isto é um perverso sem-vergonha, que deve morrer debaixo do pau. Esta vida não me serve!...

-Mas, Juque, replicou o alemão com inalterável calma, quem sabe se a cangalha não esta ferindo a pobre criatura?

-Qual! bradou o camarada, isto é manha só. Conheço este safado, este infame, este...

E, levantando o varapau, descarregou tal paulada no traseiro do animal que lhe fez soltar surdo gemido de dor.

-Juque, observou o patrão em tom pausado, quem sabe se na frente há pau caído ou pedra, que não deixe ele ir para diante?

-Pedra, Mochu, e pau na cabeça até rachá-la, é que precisa este ladrão...

-Vê, Juque, insistiu o alemão.

-Ora, Mochu...

-Vê, sempre...

Saiu resmungando o camarada de detrás do borrego e deu a volta.

Na frente avistou logo o ramo quebrado que Pereira deixara cair no meio da estrada para desviar os acompanhadores de Cirino.

-Uê! Uê! exclamou com muita surpresa, aqui esteve alguém e pôs este sinal para que neo se passasse...

-Eu não disse a você, replicou o cavaleiro com voz até certo ponto triunfante. Asno tem razão: para diante há alguma coisa.

-Mas na vila, contestou José, nos disseram que o caminho vai sempre direitinho, sem atrapalhação nenhuma...

-Na vila disseram isso, confirmou o outro.

-E então?

E então? repetiu o alemão.

Houve uns segundos de silêncio.

Depois o cavaleiro acrescentou com a mesma imperturbável serenidade, e como que achando explicação muitíssimo natural:

-Na vila muita gente não sabe caminho. É.

-Mil milhões de diabos, interrompeu o camarada todo frenético, levem o gosto desandar por esses matos do inferno a horas tão perdidas! Eu bem disse a Mochu, ninguém viaja assim. Isto é uma calamidade...

-Juque, atalhou por seu turno o patrão, o que é que adianta estar a berrar como um danado?... Olhe, antes, se por ai voce não vê algum caminho do lado.

Obedeceu o outro e sem dificuldade achou a entrada da picada que levava a morada de Pereira.

-Está aqui, Mochu, está aqui! anunciou ele com alegria. É um trilho que corta a estrada e vai dar nalguma casa pertinho...

Mudando repentinamente de tom, observou com voz tristonha:

-Contanto que até lá não haja alguma légua de beiço...

-Ah! eu não lhe disse, respondeu o alemão. Agora toque barro devagarinho; ele anda que nem vento.

Pareceu o animal compreender, o alcance moral da vitória que acabara de colher e prestes enveredou pela trilha com alento novo e até desusada celeridade.

A razão é que também daí a pouco sorvia ele, teimoso e marralheiro bicho, como soem ser os da sua espécie, a bela água do ribeirão, em que se haviam refrescado as cavalgaduras de Cirino e de Pereira.

Os hóspedes da meia-noite

Sei, sim, sei que é noite!


Xavier de Maistre, Viagem ao Redor do Meu Quarto



Não tardou muito que os dois noturnos viajantes começassem a ouvir os latidos furiosos dos cães que, no terreiro de Pereira, denunciavam aproximação de gente suspeita junto à casa entregue a sua vigilante guarda.

-Por aqui perto fica algum rancho, Mochu, avisou o camarada; havemos enfim de descansar hoje... Mas, que gritaria faz a cachorrada!... São capazes de nos engolir antes que venha alguém saber se somos cristãos ou não... Safa! Que canzoada!... Ó Mochu, o sr. deve ir na frente... rompendo a marcha...

-Você, respondeu o alemão, bate neles com cacete...

-Nada, retrucou José com energia, isso não é do ajuste... Quem está montado, caminhe adiante... Ainda por cima agora essa!

Depois de resmonear algum tempo, exclamou:

-Ah! espere, já me lembrei de uma coisa... O filho do velho é mitrado...

E, dizendo esta palavra, de um só pulo montou na anca do cargueiro, que, ao sentir aquele inesperado acréscimo de peso, parou por instantes e com surdo ronco procurou lavrar um protesto.

-Juque, observou o alemão sem a menor alteração na voz, assim burro quebra cadeira. Depois morre... e vóce tem de levar as cargas dele às costas...

Quis o camarada encetar nova discussão, mas a esse tempo chegavam ao terreiro, onde o ataque furioso dos cães justificou a medida preventiva de José, o qual entrou, todo encolhido atrás das cargas, a gritar como um possesso:

-Ó de casa! Eh! lá, gentes! Ó amigos!

Aumentou a algazarra da cachorrada por tal modo, que os tropeiros de Cirino, pousados no rancho próximo, acordaram e bradaram juntos:

-Que diabo é isto? Temos matinada de lobisomens?

Abriu-se nesse momento a porta da casa e apareceu Cirino à frente de Pereira, trazendo este uma vela que com a mão aberta amparava da brisa noturna.

-Quem vem lá? clamaram os dois a um tempo.

-Camarada e viajante, respondeu com voz forte e simpática o alemão, achegando-se à luz e tratando de descer da cavalgadura. Quem é o dono desta casa?

-Está aqui ele, respondeu Pereira levantando a vela acima da cabeça para dar mais claridade em torno de si. -Muito bem, replicou o recém-chegado. Desejo agasalho para mim e para o meu criado e peço muitas desculpas por chegar tão tarde.

Aproximara-se também o José, cuidando logo, no meio de muxoxos e pragas, de pôr em terra a carga do burrinho, o qual amarrara pelo cabresto a uma vara fincada no chão.

-Mas, observou Cirino, que faz o sr. por estas horas mortas a viajar?...

-Deixe o homem entrar, atalhou Pereira, e acomodar-se com o que achar... Pois, meu senhor, desapeie. Bem-vindo seja quem procura teto que é meu.

-Obrigado, obrigado, exclamou com efusão o estrangeiro.

E, apresentando a larga mão, apertou com tal forca as de Cirino e Pereira que lhes fez estalar os dedos.

Em seguida, penetrou na sala e tratou logo de arranjar os objetos que trazia a tiracolo, colocando-os cuidadosa e metodicamente em cima da mesa, no meio dos olhares de espanto trocados por quantos o estavam rodeando.

Na verdade, digna de reparo era aquela figura à luz da bruxuleante vela de sebo; compridas pernas, corpo pequeno, braços muito longos e cabelos quase brancos, de tão louros que eram.

-Será algum bruxo? perguntou a meia voz Cirino a Pereira.

-Qual! respondeu o mineiro com sinceridade, um homem tão bonito, tão bem limpo!

Entrara José com uma canastra ao ombro e, descarregando-a no canto menos escuro do quarto, julgou dever, sem mais demora, declinar a qualidade e importância da pessoa que lhe servia de amo.

-O sr. aqui é doutor, disse ele apontando para o alemão e dirigindo-se para Cirino...

-Doutor?! exclamou este com despeito.

-Sim, mas doutor que não cura doenças. É alamão lá da estranja, e vem desde a cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro caçando anicetos e picando borboletas...

-Borboletas? interrompeu com admiração Pereira.

-Acui cui! Por todo o caminho vem apanhando bichinhos. Olhem... aquele saco que ele traz...

-O meu camarada, avisou com toda a tranqüilidade e pausa o naturalista, é muito falador. Os senhores tenham paciência... Ande, Juque, deixe de tagarelar!...

-Não, protestou Pereira levado de curiosidade, é bom saber com quem se lida... Então o Sr. vem matando anicetos? mas para que, Virgem Santíssima!...

-Para quê? retrucou o camarada descansando as mãos na cintura. O patrão e eu já temos mandado mais de dez caixões todos cheinhos lá para as terras dele...

-Depois o pais fica sem borboletas, respondeu Cirino, num assomo de despeitado patriotismo.

-Mas, como é que o sr. se chama? perguntou Pereira, voltando-se para o alemão que estava virado para a parede a contemplar um desses grandes e sombrios lepidópteros, da espécie dos esfinges.

-Juque, disse ele sem lhe importar a interpelação e acenando para o camarada, depressa... um alfinete, dos grandes... dos maiores...

-Temos história, avisou José, fazendo expressivo sinal a Cirino, o sr. vai ver...

O naturalista, de posse de um comprido acúleo, fincou-o com segura e adestrada mão bem no meio do inseto, o qual começou a bater convulsamente as asas e girar em torno do centro a que estava preso.

-A pita! A pita! exclamou o patrão. Vamos, Juque.

Satisfez José o pedido, depois de abrir uma malinha, onde ia estavam enfileirados e espetados vinte ou trinta bonitos bichinhos.

-É uma satúrnia... e não comum, murmurou o alemão fisgando num pedaço de pita o novo espécime, sobre o qual derramou algumas gotas de clorofórmio, de um vidrinho que sacou dum dos muitos bolsos da sobrecasaca.

-O sr. é viajante zoologista, não é? perguntou Cirino, depois que viu terminada a operação.

O interrogado levantou a cabeça com surpresa e respondeu todo risonho:

-Sim, senhor; sim, senhor! Como é que o sr. o soube? Viajante naturalista, sim senhor! Eu vejo que o sr. e muito instruído... Muito bem, muito bem! Muita instrução!

E, abrindo uma carteira de notas, escreveu logo umas linhas tortuosas.

-Ah! este também é doutor, disse Pereira com certo orgulho por hospedar em sua casa sabichão de tal quilate.

-Oh, doutor? doutor!? Muito bem, muito bem. Doutor que curra?

-Sim, senhor, respondeu com gravidade o próprio Cirino.

-Ah!... Ah! muito bem.

Pereira, porém, voltara à carga.

-Mas, como é que o sr. se chama?

-Meyer, respondeu o alemão, para o servir.

-Mala? perguntou o mineiro.

-Não, senhor, Meyer; sou da Saxônia, da Alemanha.

-Isto deve ser o mesmo que Maia na terra dele, observou Pereira, abaixando um pouco a voz.

O camarada José, no entretanto, trouxera para dentro todas as malas e canastras e sem-cerimônia alguma intrometeu-se na conversação.

-Este Mochu, disse, vem de muito longe só por causa destas historias de borboletas, e com o negócio ganha coco grosso... Quanto a mim

-Juque, atalhou Meyer com fleuma, vai bota os animais no pasto.

-Não, disse Pereira, solte-os no terreiro até raiar o dia, roerão o que acharem; há por aí muito resto de milho nos sabugos...

-Pois é o que fiz, declarou o camarada; mas como lhes dizia, sou carioca do Rio de Janeiro, chamo-me José Pinho e venho de bem longe acompanhando este alamão, que é um homem muito de bem.

-É verdade? indagou Pereira, olhando para Meyer.

Este esbugalhou mais os olhos e confirmou tudo com um sinal gutural que ecoou em toda a sala.

-Ele o que tem, continuou José é que é muito teimoso. Eu lhe digo, sempre: Mochu, isto de viajar de noite é uma tolice e uma canseira à-toa... Qual! pensa lá no seu bestunto que assim é melhor. Também a gente anda por estas estradas afora como se fosse alma do outro mundo a penar... algum currupira... ou boitatá... Cruzes!

-Pois, Sr. Maia, disse Pereira, tome posse desta sala, e faça de conta que é sua... Se quiser uma rede...

-Muito obrigado, muito obrigado!, minha cama é canastra. Não se incomode...

-Amanhã então conversaremos, concluiu Pereira, esfregando as mãos de contente.

Prometia-lhe na verdade a companhia boas ocasiões de dar largas à volubilidade, sobretudo com o tal José Pinho, filho da Corte do Rio de Janeiro e, pelo que parecia, tagarela de grande força.

-Assim, pois, disse Pereira, durmam bem o restante da noite.

E abriu a porta para se retirar.

-Ui! exclamou ele olhando para o céu. Doutor, já passa muito da meia-noite... Com a breca, o Cruzeiro está virando de uma vez...

Cirino, que tornara a deitar-se, com presteza calçou as botas e tomou uns papeizinhos que de antemão preparara e pusera a um canto da mesa.

-Não faz mal, disse, já estou com tudo pronto e em tempo havemos de dar o remédio. Vá o Sr. deitar um pouco de café num pires e acorde sua filha, caso esteja dormindo, como é muito natural depois do suador.

Saiu então Pereira, levando a vela e, acompanhado de Cirino, deu volta à casa para buscar a entrada dos aposentos interiores.

Ficaram, pois, o alemão e seu criado em completa escuridão; ambos, porém, já estirados a fio comprido, um em cima das canastras tendo por travesseiro roliça maleta, outro sobre o ligal aberto e estendido no meio do aposento.

-O Mochu, perguntou José, que mastigava qualquer coisa, está já ferrado?

-Ferrado? replicou Meyer levantando a cabeça. Que é isto agora?

-Pergunto se já pegou no sono?

-Pois, Juque, se eu falo, como é que posso estar dormindo?

-Então não quer petiscar?

-Comer, não é?

-Esta visto.

-Oh! Se tivesse!... Pensava agora nisso...

-Pois eu estou manducando... Quer um bocadinho?

-Que é que voce me dá?

-Rapadura com farinha de milho... Está deveras de patente!... Gostoso como tudo...

-Então, Juque, passe-me um pouco.

Levantou-se o ofertante com toda a boa vontade e às apalpadelas começou a procurar a cama do patrão, o que só conseguiu depois de ter esbarrado na mesa e numas cangalhas velhas atiradas a um canto da sala.

Afinal agarrou num dos pés do naturalista, a quem entregou uma nesga de rapadura e uns restos de farinha embrulhados em papel, pitança mais que sóbria, que foi devorada com satisfação pelo bom do saxônio.

O medicament

Não tendes que labutar com doente muito grave, e eis o serviço que de vós espero...

Hoffmann, A Porta Entaipada



Quem me poderá dizer por que me parece tão duro o leito?... Por que passei esta noite que se me figurou tão longa, sem gozar um momento de sossego?... Surge a verdade: em meu seio penetraram as agudas setas do amor.

Ovídio, «Elegia II»



Quando Cirino entrou no quarto de Inocência, já estava ela acordada. Sentara-se o pai à cabeceira da cama, a cujos pés se acocorara Tico, o anão, sobre uma grande pele de onça.

-Então, perguntou o médico tomando o pulso à mimosa doente, como se sente?

-Melhor, respondeu ela.

-Suou bastante?

-Ensopei três camisas.

-Muito bem... Agora a senhora esta com a pele fresquinha que mete gosto. Isto de sezões, não é nada, se a gente acode a tempo e o sangue não tem maus humores. Mas quando tomam conta do corpo, nem o demo com ela pode. Que é do café? pediu ele em seguida a Pereira.

-Já vem já... Homem, vou eu mesmo buscá-lo, lá à cozinha. A Maria Conga está ficando uma verdadeira lesma. Venha para aqui e espere-me um nadinha.

Levantando-se então da cadeira, indicou-a a Cirino, a quem fez sentar antes de sair.

Ficou este, pois, ao lado da menina e, como sobre o lindo rosto batesse de chapa a luz colocada numa prateleira da parede, pôs-se a contemplá-la com enleio e vagar, ao passo que da sua parte o anão lhe deitava olhares inquietos e algo sombrios.

Pousara Inocência a cabeça no travesseiro e, para ocultar a perturbação de se ver tão de perto observada, fingia dormir. Pelo menos tinha as grandes pálpebras cerradas e o rosto sereno; mas arfava-lhe apressado o peito e, de vez em quando, fugaz rubor lhe tingia as faces descoradas.

Pereira tardava; e Cirino com os olhos fixos, a fisionomia meditativa e um pouco de palidez, que denunciava a íntima comoção, não se fartava de admirar a beleza da gentil doente.

Uma vez, entreabriu os olhos e a medo atirou um olhar que se cruzou com o do mancebo, olhar rápido, instantâneo, mas que lhe repercutiu direito ao coração e lhe fez estremecer o corpo todo.

Sem saber por que, batia-lhe o queixo e um arrepio de frio lhe circulava nas velas.

-Sente mais febre? perguntou Cirino muito baixinho.

-Não sei, foi a resposta, e resposta demorada.

-Deixe-me ver o seu pulso.

E tomando-lhe a mão, apertou-a com ardor entre as suas, retendo-a, apesar dos ligeiros esforços que para retrair, empregou ela por vezes.

Nisto, entrou Pereira. Inocência fechou com presteza os olhos e Cirino voltou-se rapidamente, levando um dedo aos lábios para recomendar silêncio.

-Está dormindo, avisou com voz sumida.

-Ora, disse Pereira no mesmo tom, a tal Maria Conga deixou entornar a cafeteira, de maneiras que precisei fazer outra porção. Demorei muito?

-Não, respondeu Cirino com toda a sinceridade.

-Mas agora, observou Pereira, é mister acordar a pequerrucha.

-Não há outro remédio.

Chegou-se o pai à cama e, com todo o carinho, chamou: Nocência! Nocência! E como não a visse despertar logo, sacudiu-a com brandura até que ela abrisse uns olhos espantados.

-Apre! Que sono! disse o bondoso velho. Num instante que fui lá dentro?!... Vamos, são horas de tomar a mezinha.

Deitara Cirino sulfato de quinina no café e diluía-o vagarosamente.

-Olhe, dona, aconselhou ele, beba de um só trago e chupe, logo depois, uns gomos de limão-doce.

-Então é muito mau? choramingou a doente.

-É amargo; mas num gole mecê toma isto.

-Papai, recalcitrou a moça, não quero... eu não quero.

-Ora, filhinha do meu coração, não se canhe; é preciso... Amanhã há de você sentir-se boa; não é doutor?

-Com certeza, se tomar esta poção, assegurou Cirino.

-Depois, quando eu ir lá à vila, hei de trazer para você uma coisa bonita... uns lavrados. Ouviu?

-Nhor-sim.

-Ande, Tico, acrescentou o mineiro voltando-se para o anão, vai depressa buscar limão-doce; na cozinha há um meio cascado.

-Tome, dona, implorou por seu turno Cirino, aproximando o pires da boca da formosa medicanda.

Levantou uns olhos súplices e, agarrando resolutamerte o remédio, bebeu-o todo de um jacto.

Depois deu um suspiro de enjôo e ficou com os lábios entreabertos, à espera que o adocicado sumo do limão lhe tirasse o amargor do medicamento.

-Então, exclamou Pereira, era maior o medo que a coisa em si! Você tomou a dose numa relancina.

-Amanhã de manhã, ou melhor, hoje de madrugada, temos que engolir outra dose, declarou Cirino. Depois, a dona, poderá levantar-se.

-Ainda outra? protestou Inocência com gesto de amuo.

-Nhã-sim; é de toda a percisão, replicou o amoroso médico, modificando pela suavidade da voz a dureza das prescrições.

-Decerto, corroborou também Pereira.

-Depois deve mecê deixar de comer carne fresca, ervas, ovos ou farinha de milho por um mês inteiro, e de provar leite por muito tempo. Há de sustentar-se só de carne-de-sol bem seca, com arroz quase sem sal e por cima tomará café com muito pouco doce.

-Fica ao meu cuidado, asseverou Pereira, olhar para o rejume.

-Agora, durma bem e não se assuste de lhe aparecer zoeira nos ouvidos e até de se sentir mouca. Isto é da mezinha; pelo contrário, é muito bom sinal.

-Estes doutores sabem tudo, murmurou Pereira, dando ligeiro estalo com a língua.

Não se descuidou Cirino, antes de se retirar, de novamente tomar o pulso e, à conta de procurar a artéria, assentou toda a mão no punho da donzela, envolvendo-lhe o braço e apertando-o docemente.

Saiu-se mal de tudo isso; porque, se tratava da cura de alguém, para si arranjava enfermidade e bem grave.

Com efeito, de volta à sala dos hóspedes, não pode mais conciliar o sono e, sem que houvesse conseguido fruir um só momento de descanso, viu ralar a aurora. Parecia-lhe que o peito ardia todo em chamas a subirem-lhe às faces, abrasando-lhe o pensamento.

Aquele venusto rosto que contemplara a sós; aqueles formosos olhos, cujo brilho a furto percebera, aquele colo alabastrino que a medo se descobrira, aquelas indecisas curvas de um corpo adorável, todo aquele conjunto harmonioso e encantador que vira à luz de frouxa vela, fatalmente o lançavam nesse pélago semeado de tormentos que se chama paixão!

Efeitos de tão temível mal já ia o mísero sentindo. Inquieto se revolvia (fato virgem!) no duro leito, ao passo que a respiração isocrônica e ruidosa do companheiro de hospedagem, o alemão Meyer, respondia ao sonoro ressonar do gárrulo José Pinho.

A carta de recomendação

Aquele bom velho, cuja benévola hospitalidade não tinha limites, julgara do seu dever tratar do melhor modo possível a Waverley, fosse ele o último camponês saxônio... Mas o título de amigo de Fergus fê-lo considerar como precioso depósito, merecedor de toda a sua solicitude e da mais atenta obsequiosidade.

Walter Scott, Waverley



Quando Meyer abriu os olhos, já achou Cirino de pé, arranjando uma canastrinha.

-Oh! exclamou ele em tom de louvor, o Sr. madruga muito.

-É verdade, replicou o outro, um tanto melancólico.

-E Juque ainda dorme!... Este Juque parece mais um tatu do que um homem... Todo o dia o estou acordando...

E juntando o feito ao dito, foi o pachorrento amo sacudir o criado. Depois de se espreguiçar à vontade, sentou-se este no couro em que dormira, e pôs-se a esfregar com todo o vagar os olhos papudos ainda cheios de sono.

-Deus esteja com vossuncês, disse ele entre dois bocejos. Ora, Mochu, o Sr. acordou-me no melhor do sono. Estava sonhando que voltara para o Rio de Janeiro e ia acompanhando uma música pelo Largo do Rocio afora. Conhece o Largo do Rocio? perguntou a Cirino.

-Não, respondeu-lhe este.

-Xi! Que largo! Hem, Mochu?

E novo bocejo cortou-lhes a descrição da louvada praça.

-Juque, exclamou Meyer coçando a barba com ar alegre, o dia hoje está claro e bonito. Havemos de apanhar pelo menos umas doze borboletas novas.

-E quanto me dá Mochu, se eu agarro vinte e cinco?

-Vinte e cinco? repetiu o alemão com alguma dúvida.

-Sim, vinte e cinco... e até mais, vinte e seis. Diga, quanto me dá?

-Oh! eu dou a voce dois mil-réis.

-Está dito, fecho o negócio. Eu cá sou assim, pão pão, queijo queijo; tão certo como chamar-me José Pinho, seu criado, carioca de nascimento e batizado na Freguesia da Lagoa, lá para as bandas do Brocó, e...

-Agora, interrompeu Meyer, vá buscar água para lavar a cara, e tire sabão e pente na canastra.

-Olhe, sr. doutor, continuou o camarada sentado sempre e voltando-se para o lado de Cirino, esta minha vida é levada de seiscentos mil diabos. Nós saímos do Rio já há mais de dois anos; não é, Mochu?

-Vinte e três meses, retificou Meyer.

-Pois bem; desde esse tempo estamos a viajar como se fosse penitencia de confissão. E não é só isso, não, senhor. Todos os dias ando pelo menos nove léguas correndo aqui e acolá, dando voltas, caindo, atrás dos bichos voadores...

-Juque! tentou atalhar Meyer, olhe...

-Pois é o que lhe digo, prosseguiu José Pinho. Tenho hoje uma raiva daquelas porcarias todas... Nem sei por que, Nosso Senhor Jesus Cristo foi criar esta súcia de criaturas sem préstimo... Enfim, Ele é quem sabe... Quanto a mim, se pudesse, atacava fogo em todas as lagartas, porque da lagarta é que nascem esses anicetos, que estão enchendo mundos... Mas, veja, Sr. doutor, lá na terra deste homem, -(coitado, é bem bonzinho e me estima muito)!- valem esses bichos mais do que ouro em pó... Também, se o Mochu não gostasse de mim, haverá de ser muito ingrato... Outro como eu não encontra mais, não, senhor... Tenha a santa paciência... não, senhor, isto é o que lhe posso afiançar.

No meio desse fluxo de palavras, Meyer fora em pessoa procurar na canastra o pente e o sabão.

Mostrando os objetos ao falador, ordenou com energia:

-Cale a boca, Juque, cale a boca, tagarela! Vá buscar água já; senão... não levo voce ao mato hoje.

Levantou-se de pronto José Pinho e meio a resmungar saiu, tomando uma das canastras.

-Esse camarada, disse Meyer depois de algum silêncio e para explicar o seu procedimento, é uma pessoa muito boa... fiel e inteligente. Mas... fala demais. É-me precioso, porque apanha borboletas com muito talento e jeito.

Entrando José Pinho e ouvindo o final do elogio, depôs, com ar de grave importância, a bacia no chão.

Diante dela, e depois de tirar do nariz os óculos, colocou-se logo Meyer, ou antes acocorou-se e, em relação ao tronco, tão compridas eram as suas pernas, que, inclinado por sobre a água, lhe ficava a cabeça à altura dos joelhos.

Levou a ablução uns largos minutos e foi com os cabelos grudados ao casco e escorrendo água que ele se levantou, justamente quando entrava Pereira.

Nesse momento, assumira o tipo daquele homem proporções do mais pasmoso grotesco; entretanto, tão vária é a apreciação de cada um, tão caprichoso o julgamento individual, que o mineiro, acercando-se de Cirino, disse baixinho:

-Vosmecê já reparou, amigo, como este estranja é figura bonita? Tão arvo! e que olhos que tem!... As mulheres hão de perder a cachola por causa deste bicharrão... Então, Sr. Maia, continuou interpelando em voz alta o seu espécime de beleza masculina, que tal, passou aqui a noite?

-Oh! Sr. Pereira!... Desculpe, se o não vi... Estava sem óculos. Já lhe respondo... espere um bocadinho.

E ainda todo molhado, correu a tomar os óculos, que assentou em cima dos salientes lúzios.

-Agora, muito bem... Dormi, meu bom amigo, como quem não tem pecados...

-Então, observou Cirino, quase mau grado seu, tenho-os eu; porque, da meia-noite para cá, não pude mais pregar olho...

-Isto e volta de algum namoro, replicou Pereira, batendo-lhe com força no ombro e rindo-se.

Cirino descorou ligeiramente.

-Sim, vosmecê é moço... deixou lá por Minas algum rabicho, e de vez em quando o coração lhe comicha... Está na idade...

-Pode muito bem ser, apoiou Meyer com gravidade.

-Não é? insistiu Pereira. Ora, confesse... não lhe fica mal... Isso é volta de enguiço...

-Juro-lhes, balbuciou Cirino.

-Oh! se é, confirmou José Pinho, que julgou dever meter o bedelho na conversa, eu no Rio de Janeiro... Negócio de salas, é de por um homem tonto. Não lhes conto nada, mas uma vez...

Voltou-se o alemão para ele com calma, e, interrompendo-o:

-Juque, vá ver onde estão burrinhos e não bote sua colher, quando gente branca está falando com o seu patrão.

E, como o camarada quisesse retorquir:

-Ande, ande, verberou sempre sereno, discussão nunca serviu para nada.

Deu José meia dúzia de muxoxos abafados e foi embora, praguejando entre dentes.

Novamente supôs Meyer dever desculpá-lo.

-Bom homem, disse, bom homem... porém fala terrivelmente!

-Mas agora me conte, perguntou Pereira com ar de quem queria certificar-se de coisa posta muito em dúvida, deveras o senhor anda palmeando estes sertões para fisgar anicetos?

-Pois não, respondeu Meyer com algum entusiasmo; na minha terra valem muito dinheiro para estudos, museus e coleções. Estou viajando por conta de meu governo, e já mandei bastantes caixas todas cheias... E muito precioso!

-Ora, vejam só, exclamou Pereira. Quem havéra de dizer que até com isso se pode bichar! Cruz! Um homem destes, um doutor, andar correndo atrás de vagalumes e voadores do mato, como menino às voltas com cigarras! Muito se aprende neste mundo! E quer o senhor saber uma coisa? Se eu não tivesse família, era capaz de ir com vosmecê por esses fundões afora, porque sempre gostei de lidar com pessoas de qualidade e instrução... Eu sou assim... Quem me conhece, bem sabe. Homem de repentes... Vem-me cá uma idéia muito estrambótica às vezes, mas embirro e acabou-se; porque, se há alguém esturrado e teimoso, é este seu criado... Quando empaco, empaco de uma boa vez... Fosse no tempo de solteiro, e eu me botava com o senhor a catar toda essa bicharada dos sertões. Era capaz de ir dar com os ossos lá na sua terra... Não me olhe pasmado, não... Isso lá eu era... Nem que tivesse de passar canseiras como ninguém... O caso era meter-se-me a tenção nos cascos... Dito e feito; acabou-se... Fossem buscar o remédio onde quisessem... mas duvido que o achassem.

-Como vai a doente? perguntou distraidamente Cirino, cortando aquela catadupa de palavras.

-Ora estou muito contente. Já tomou nova dose, e parece quase boa. Está com outra feição. O sr. fez um milagre...

-Abaixo de Deus e da Virgem puríssima, concordou Cirino com toda a modéstia.

-O sr. não cura? perguntou Pereira a Meyer.

-No senhor. Sou doutor em filosofia pela universidade de Iena, onde...

-Isso é nome de bicho? atalhou o mineiro.

-No senhor. É uma cidade.

-Ninguém diria... Pois, Sr. Maia, continuou Pereira apontando para Cirino, ali está um com quem moléstias não brincam.

-Ah! rouquejou o alemão abrindo ainda mais os olhos. Estimo muito conhecê-lo como notabilidade... Nestes lugares aqui é muito raro...

-Se é! exclamou Pereira. Felizmente passou por cá nem de propósito, para pôr de pé a menina... uma filha minha... Caiu-me a talho de foice e...

Não pôde Cirino furtar-se a um movimento de vanglória. Com ar grave interrompeu:

-Não fale nisso, Sr. Pereira; o caso era simples. Febre das enchentes... não vale quase nada. Vi logo o que era de urgência; um simples suador, duas ou três doses de sulfato de quinina... e ficou tudo sanado... É simplicíssimo... O estômago não estava sujo... não havia necessidade de vomitório...

Ouvira Meyer estas indicações terapêuticas com os olhos muito fitos em quem as dava: depois, voltando-se para Pereira, disse com um aprobatório aceno de cabeça:

-Pom médico! pom médico!

Desse momento em diante, votou Cirino ao alemão a mais decidida da simpatia; e Pereira, presenciando o congraçamento daqueles dois homens, de si pára si ilustres e incontestáveis sabichões, sentiu-se feliz por abrigá-los a um tempo em sua humilde vivenda.

-Então, disse o mineiro voltando à questão das borboletas, com o que seu governo paga-lhe bem, não Sr. Maia?

-Suficientemente... demais, todas as autoridades deste belo pais muito me ajudam. Tenho muitos ofícios... cartas de recomendação. Olhe, quer ver? Juque, Juque! chamou Meyer, sem reparar que o criado há muito se fora do quarto, dê-me... É verdade, foi levar os burrinhos à água... Não faz mal... Mostro-lhe já tudo...

-E, procurando entre as cargas uma malinha coberta de pano impermeável, abriu-a e tirou um maço de cartas cuidadosamente numeradas, com fitas de diversas cores.

-Isto é para Miranda, em Mato Grosso. Isto para Coxim, Cuiabá... para Poconé, Diamantina... isto são cartas cujos donos não encontrei, e que hão de voltar para as pessoas que as escreveram.

-E são muitas? perguntou Pereira.

-Três ou quatro. Vejamos... uma é para o Sr. João Manuel Quaresma, no Pitangui; esta, para o Sr. Martinho dos Santos Perreira, em Piumi...

-Que é? perguntou o mineiro levantando-se de um pulo e mostrando muita admiração. Leia outra vez... leia por favor...

Meyer obedeceu.

-Mas este nome é o meu! exclamou Pereira. Esta carta então é para mim...

-Hu, hu! gaguejou o alemão boquiaberto. É muito currioso isto!

-Sou eu, sou eu mesmo! continuou o mineiro abrindo os diques à volubilidade. Está claro, claríssimo!... Quando me escreveram, pensavam que eu ainda morava lá em Piumi. Pois, se nunca contei a ninguém em que buraqueira me vim meter... Abra a carta sem susto... Oh! Senhora Sant'Ana, que dia hoje! Quem diria? Uma carta! Uma carta nestas alturas! Pode ler, Sr. Maia... Estou doido por saber quem se deu ao trabalho de me escrever... Martinho dos Santos Pereira, de Piumi... sou eu! Que dúvida: não há dois. Veja só o nome... pelo amor de Deus, o nome de quem me direge a carta.

Rompeu o alemão com alguma dúvida e escrúpulo o selo; correndo com os olhos a lauda escrita, procurou a assinatura e pausadamente leu "Francisco dos Santos Pereira".

-Gentes! bradou o mineiro no auge da alegria, meu irmão... o Chiquinho!... E eu que o fazia morto e enterrado!... Nosso Senhor o conserve por muitos anos!... O Chiquinho!... Já se viu coisa ansim?... Como se anda neste mundo, hem, Sr. Cirino? Quem havéra de dizer que este homem, que aqui chegou ontem por acaso e alta noite, havia de trazer na canastra uma carta de um irmão que não vejo há mais de quarenta anos?!... Ora esta!... São voltas deste mundo... As pedras se encontram... Foi em 1819... não, em 20... Mas depressa... leia a carta... Vamos ver o que me diz o Chiquinho... Da família passava por ser o de mais juízo; também era o mais velho de todos nós... O Roberto, o caçula... Seja o senhor muito bem-vindo nesta casa... Depois de tantos anos, trazer-me notícias da minha gente!

Cortou Meyer aquele movimento de efusão que prometia ir longe, começando a ler com todo o vagar ou, melhor, a soletrar a carta, cujos garranchos, que não letras, por vezes se viu obrigado a encostar aos olhos para poder decifrar.

«Martinho, dizia a despretensiosa epístola, dirijo-te estas mal traçadas linhas só para saber da tua saúde e dizer que o portador desta é um senhor de muita leitura e vai para os sertões brutos, viajando e estudando países e povos. Veio-me do Rio de Janeiro muito recomendado. Peço que o agasalhes, não como a um transuente qualquer, mas como se fosse eu em pessoa, teu irmão mais velho e chefe da nossa família...»

-Pobre mano! exclamou Pereira meio choroso.

«É homem, continuou Meyer, de bastante criação. Adeus, Martinho. Eu estou estabelecido na Mata do Rio, numa fazendola. Tenho cinco filhos, três machos e duas famílias, estas casadas, e que me deram netos; já faz bastante tempo. Não estou muito quebrado de forças. Há mais de oito anos que não tenho notícias tuas. Soube que o Roberto tinha morrido no Paranan...»

-Roberto?... Coitado do Roberto! atalhou Pereira com voz angustiosa.

E repentinamente, representando-lhe a memória os tempos da infância, arrasaram-se-lhe os olhos de lágrimas.

«Sem mais aquela concluiu Meyer, adeus. Felicidade e saúde. Teu irmão, Francisco dos Santos Pereira».

-Deveras, disse o mineiro depois de breve silêncio, adiantando-se para o alemão e apresentando-lhe a destra aberta, o Sr. me deu um fartão de alegria. Toque nesta mão e, quando ela se levantar para bulir num só cabelo de sua cabeça ou de alguém da sua família qualquer que seja o agravo que me possam fazer, seja ela logo cortada por Deus, que nos está ouvindo.

-Obrigado, Sr. Pereira, respondeu com animação o outro, retribuindo o aperto de mão e corroborando-o com um concerto de garganta.

-Sim, senhor, continuou o mineiro. Esta carta vale, para mim, mais que uma letra do Imperador que governa o Brasil. É o que lhe digo, Sr. Maia...

-Meyer, corrigiu o alemão apoiando com força na última sílaba, Meyer.

-Ah! é verdade. É preciso traduzir Meyer, Meyer. Agora já atinei com a coisa. Mas como ia lhe dizendo, esta casa é sua. Meu irmão, o meu irmão mais velho deu-me ordem para que eu o recebesse como se fosse ele mesmo em pessoa, o Chico;... acabou-se. O sr. é como se fosse dos meus. Não há que ver, é o que ele quer. Entendi logo; o mais é ser multo bronco e, com o favor de Deus, não me tenho nesta conta. O sr. ponha e disponha de mim, da minha tulha, das minhas terras, meus escravos, gado... tudo o que aqui achar. Parta e reparta... Quem está falando aqui, não é mais dono de coisa nenhuma;... é o sr... Meu irmão me escreveu, é escusado pensar que não sei respeitar a vontade de meus superiores e parentes. É como se recebesse uma ordem do punho do Sr. D. Pedro II, filho de D. Pedro I, que pinchou os emboabas para fora desta terra do Brasil e levantou o Império nos campos do Ipiranga, lá para os lados de São Paulo de Piratininga, onde houve em seu tempo colégio de padres e fradaria grosso, e donde os mamalucos saiam para ir por esses mundos afora bater índios brabos e caçar onças, botando bandeiras até na costa do Paraguai e no Salto do Paraná, tanto assim que deram nas reduções e trouxeram de lá uma imundície de gente amarrada, por sinal que muitos amolaram a canela em caminho, e só chegaram uns cento e tantos, tão magros que...

Enfiava Pereira todas estas frases com surpreendedora rapidez, ao passo que Meyer o contemplava extático, à espera que a torrente de palavras lhe desse tempo e ocasião de exprimir algum vocábulo de agradecimento.

Só, porém, minutos depois, e a custo, é que ele pronunciou um áspero e retumbante:

-Obrigado!

E acrescentou em seguida:

-Mas o senhor fala que nem cachoeira. E não cansa?

-Qual! replicou o mineiro com ufania. A gente da minha terra é de seu natural calada; eu, não; mesmo porque fui criado em povoados de muita civilidade...

Tomando esse novo tema, começou novamente a discorrer, mostrando visível contentamento por achar na estimável pessoa do Sr. Guilherme Tembel Meyer um ouvinte de força, incapaz de pestanejar e cuja fixidez de olhos era prova evidente de que tomava interesse por todos os assuntos possíveis de conversação.

O almoço

Comam e bebam: nada de cerimônias comigo. Minhas casa e franca; eu também. Façam provisão de alegria e de mim disponham sem constrangimento.

Plauto, Miles Gloriosus



Levantou-se de repente Cirino da marquesa em que se sentara.

-Tenho vontade de amanhã seguir viagem...

-Quê, doutor? protestou Pereira. Partir já? isso nunca... Vosmecê ainda não curou de todo minha filha. Pago-lhe todos os prejuízos da sua estada aqui... se for preciso.

-Oh! Sr. Pereira, reclamou por seu turno o jovem, isso quase me ofende...

-Desculpe-me, e muito; mas, antes de duas semanas, não o deixo sair daqui.

-Porém...

-Doentes não lhe hão de faltar. A minha rancharia vai ser visitada como se fosse casa de presepe, e o Sr. não poderá dar vazão aos que o vierem procurar. Olhe, hoje mesmo mandei avisar o Coelho, e daqui a pouco está ele cá, rente como pão quente. Atrás do primeiro, virá uma chusma dos meus pecados... Então quer deixar Nocência como ainda está?...

-Verdade é, balbuciou Cirino.

-Pois então? Nem pensar nisso é bom. Deixe tudo por minha conta; vosmecê há de aqui arranjar os seus negócios.

-Já que o senhor o diz... Eu tinha receio de vexá-lo. Uma vez que até cá venham doentes...

-Hão de vir, esteja sossegado...

-Ficarei, decidiu Cirino, quanto tempo for do seu agrado.

-Ora, muito que bem, exclamou Pereira esfregando as mãos com sincera satisfação, estou como quero. Quanto ao Sr. Maia... Meyer, quero dizer, este há de criar raízes nesta casa...

-Isso também não: tenho tempo marcado pelo meu governo...

-Bem, bem; mas em todo caso, fará uma boa temporada conosco. É pena que o Manecão não chegue, porque apressávamos o casório, e arranjávamos uma festança como nunca se viu nestes matarrões... Mas estou aqui a dar com a língua nos dentes, sem pensar que os nossos estômagos ainda esperam sua matula. O almoço não pode tardar; é um pulo só... Se consentem vou verlá dentro.

Ao dizer estas palavras, saiu da sala, voltando pouco depois acompanhado de Maria, a velha escrava que trazia a toalha da mesa e a competente cuia de farinha.

-Á mesa! gritou Pereira. Almoço hoje com vosmecês. Sr. Meyer, o senhor comerá dora em diante comigo e com a menina, lá no interior da casa; ouviu?

E, voltou-se para Cirino.

-Bem sabe, explicou logo, como se fosse o Chiquinho.

Depois de pronta a mesa, sentaram-se os três alegremente.

-Olhe, Sr. Meyer, disse o mineiro servindo o alemão, isto é feijão-cavalo e do melhor. Misture-o com arroz e ervas; deite-lhe uns salpicos de farinha...

Começou o naturalista a mastigar com a lentidão de um animal ruminante, interrompendo de vez em quando o moroso exercício para exclamar:

-Delicioso, com efeito! Muito delicioso.

Comia Cirino pouco e em silêncio.

-Na Alemanha, observou Meyer contemplando um grão de feijão, a maior fava não chega a este tamanho. Aqui a fava de lá teria polegada e meia pelo menos. Um almoço, assim, havia de custar na Saxônia dois táleres, ou pelo câmbio que deixei no Rio de Janeiro, dois mil e quinhentos réis...

Interrompeu-o Pereira com gesto cômico.

-Dois mil e quinhentos? Ora, que terra essa! Como é que se chama?

-Sac-sônia, respondeu o alemão com gravidade.

-Saco-sonha! exclamou Pereira. Não conheço... Mas, então lá muita gente há de andar a morrer de fome...

-Pelos últimos cálculos, replicou Meyer com várias pausas durante as quais introduzia enormes colheradas da mistura que lhe aconselhara o anfitrião, é sabido que em Londres morrem no inverno oito pessoas à míngua, em Berlim cinco, em Viena quatro, em Pequim doze, em Iedo sete, em...

-Salta! atalhou Pereira exultando de prazer, então viva cá o nosso Brasil! Nele ninguém se lembra até de ter fome. Quando nada se tenha que comer, vai-se no mato, e fura-se mel de jataí e manduri, ou chupa-se miolo de macaubeira. Isto é cá por estas bandas; porque nas cidades, basta estender a mão, logo chovem esmolas... Assim é que entendo uma terra... o mais é desgraça e consumição...

-Decerto! corroborou o alemão, o Brasil é um país muito fértil e muito rico. Dá café para meio mundo beber e ainda há de dar para todo o globo, quando tiver mais gente... mais população...

-Bem eu sempre digo, acudiu Pereira tocando no ombro de Cirino e deitando-lhe uns olhos de triunfo. Lá fora é que nos conhecem, nos fazem justiça... Não acha, patrício? Homem, agora reparo... vosmecê está tão calado!... meio casmurro, que é isso? sempre aquele negócio?

De fato, Cirino, depois que ouvirá o convite a Meyer para conviver no interior da casa de Pereira, tornara-se sombrio, inquieto, meditabundo. O corpo ali estava, mas a sua imaginação vigiava zelosa o quartinho onde repousava aquela menina febricitante, tão bela na sua fraqueza e palidez enferma.

-Se são mulheres, ponderou Pereira, deixe-se disso; não há maior asneira... É fazenda que não falta.

No meio dos exercícios mandibulares, julgou Meyer que o seu hospedeiro considerava o sexo feminino do ponto de vista meramente estatístico e acreditou conveniente assentar melhor a idéia, um tanto vagamente aventada.

-Na raça eslava, disse dogmaticamente, a proporção é de duas mulheres para um homem; na germânica, há aproximadamente número equivalente, na latina de dois homens para uma mulher. Na França, a proporção para o lado masculino é de...

-Mas o senhor contou? interrompeu Pereira. Deixe-lhe dizer uma coisa: eu cá não engulo araras...

-Ni eu, afirmou Meyer com alguma surpresa e energia, nem sei como o senhor me vem falar nessas aves agora... Se as considera como caça, deve saber que os trepadores têm a carne dura, preta e...

Riu-se Pereira do equívoco e, explicando-o, continuou a discutir com o seu interlocutor, que não discrepava uma linha dos seus princípios de método e escrupulosa polidez.

-Pode o senhor falar um ano inteiro, disse o mineiro para concluir; mas quanto a mim, não entendo patavina das suas contas e jigajogas. Quem me tira da tabuada, bota-me no mato... E agora, vamos agradecer a Deus Nosso Senhor Jesus Cristo o ter-nos dado esta comida, ainda que insuficiente e mal temperada.

E, unindo o exemplo à palavra, levantou-se e, de mãos postas ao peito, orou em voz baixa com unção, no que foi imitado pelos dois hóspedes.

-Esteja convosco o Senhor, disse ao terminar, em voz alta, persignando-se.

-Amém, responderam Cirino e Meyer.

-Agora, anunciou o mineiro saindo da mesa, vou dar um giro pela minha roga, onde estão na capina três negros cangueiros, um dos quais é o meu fazendeiro; depois, hei de visitar uns conhecidos meus, avisando-os da sua chegada, doutor. Ah! acrescentou todo desfeito em amável sorriso, falta-lhe mostrar minha filha, Sr. Meyer.

-Sua filha! exclamou o alemão. Então tem filhos?

-Sim, senhor. Não se lembra que o seu vulto é o do mano Chiquinho? Pois então? Que maior prova lhe posso dar de confiança e amizade?... Não é verdade, Sr. Cirino?

-Sem dúvida, balbuciou a custo o mancebo.

-Minha filha chama-se Nocência e só hoje é que se levantou da cama... Esteve doentinha... Assim mesmo, não sei se as maleitas a deixaram... O corpo é às vezes caroável dessas malditas e...

-Isto está ao meu cuidado, atalhou Cirino com alguma pressa. Ainda ao meio-dia há de tomar quina...

-Vosmecê faça o que for melhor... Quer vir, Sr. Meyer?

-Pois não! pois não! respondeu amavelmente o alemão.

-É a única pessoa da família que tenho aqui, além de um marmanjão que está agora na carreira por essas estradas, agenciando a vida... Então, vamos! Venha também, continuou ele voltando-se para Cirino, um cirurgião é quase de casa.

Saíram, pois, os três. Pereira na frente, seguiu o oitão da direita, e, abrindo uma tranqueira do cercado dos fundos, entrou pela cozinha, onde a velha preta Conga estava lavando pratos e arrumando louça numa prateleira.

A apresentação

Quem, porém, mostrava mais surpresa o admiração era Sancho Pança. Nunca, em dias de sua vida, vira perfeição Igual.

Cervantes, Dom Quixote, CXXIX



Ao bálsamo, fazem as moscas, que nele morrem, perder a suavidade do perfume. Uma parvoíce, ainda que pequena e de pouca dura, da motivo a não se ter em conta nem sabedoria nem glória.

Eclesiastes, X



Depois de atravessarem um quarto bastante escuro, chegaram os visitantes a sala de jantar, vasto aposento ladrilhado, mas sem forro, a um canto do qual estava a filha do mineiro, mais deitada do que sentada numa espécie de canapé de taquara.

Tinha os pés sobre uma bonita pele de tamanduá-bandeira, onde se acocorara, conforme o hábito, o anão a quem Pereira chamara Tico.

Ao ver chegar tanta gente, abriu a formosa menina uns grandes olhos de espanto; quis toda enleada erguer-se, mas não pôde e, corando ligeiramente, teve como que um delíquio de fraqueza.

Aproximara-se logo Cirino com vivacidade.

-A dona, disse ele para Pereira, está tão fraca que mete dó.

Chegou-se o pai juntamente com Meyer e, tomando as mãos da filha, perguntou-lhe com voz meiga e inquieta:

-Sente-se pior, meu benzinho?

-Nhor-não, respondeu ela.

-Pois então!... é preciso não entregar o corpo à moleza... Abra os olhos... Olhe... esta aqui este homem (e apontou para Meyer) que é alamão e trouxe uma carta do tio de mecê, o Chico, lá da Mata do Rio. Quero mostrar que, para mim, vale tanto como se fosse esse próprio parente a nós chegado. Por isso é que venho apresentá-lo...

Ela nada articulou.

-Vamos, diga... Tenho muito gosto em lhe conhecer... diga.

Com vagar e acanhamento, repetiu Inocência estas palavras, ao passo que Meyer lhe estendia a mão direita, larga como uma barbatana de cetáceo, e franca como o seu coração.

-Gosto, muito gosto tenho eu, disse ele com três ou quatro sonoros arrancos de garganta. Só o que sinto é vê-la doente... Mas o doutor não nos deixará ficar mal; não é, Sr. Cirino?...

E apoiou esta pergunta com um hem? que ecoou por toda a sala.

-A senhora, respondeu o interpelado, precisaria tomar por alguns dias um pouco de bom vinho do Porto, em que se pusesse casca de quina do campo... Mas, onde achar agora vinho? Só na Vila de Sant'Ana...

-Vinho? perguntou Meyer.

-Sim.

-Vinho do Porto?

-Melhor ainda.

-Pois tudo se arranja, na minha canastra tenho uma garrafa do mais superfino e com a maior satisfação a ofereço à filha do meu pom amigo o Sr. Pereira.

-Oh! Sr. Meyer, agradeceu este com efusão, não sabe quanto lhe fico...

-Qual! não tem obrigação, não, senhor. Além do mais, sua filha é muito bonita, muito bonita, e parece boa deveras... Há de ter umas cores tão lindas, que eu daria tudo para vê-la com saúde... Que moça!... Muito bela!

Estas palavras que o inocente saxônio pronunciara ex abundantia cordis produziram extraordinário abalo nas pessoas que as ouviram.

Tornou-se Pereira pálido, franzindo os sobrolhos e olhando de esguelha para quem tão imprudentemente elogiava assim, cara a cara, a beleza de sua filha; Inocência enrubesceu que nem uma romã; Cirino sentiu um movimento impetuoso, misturado de estranheza e desespero, e, lá da sua pele de tamanduá-bandeira, ergueu-se meio apavorado o anão.

Nem reparou Meyer e com a habitual ingenuidade prosseguiu:

-Aqui, no sertão do Brasil, há o mau costume de esconder as mulheres. Viajante não sabe de todo se são bonitas, se feias, e nada pode contar nos livros para o conhecimento dos que lêem. Mas, palavra de honra, Sr. Pereira, se todas se parecem com esta sua filha, é coisa muito e muito digna de ser vista e escrita! Eu...

-O Sr. não quer retirar-se? interrompeu Pereira com modo áspero.

-Pois não! replicou o alemão.

E como despedida acrescentou, dirigindo-se para Inocência:

-Chamo-me Guilherme Tembel Meyer, seu humilde criado, e estimo muito conhecê-la por ser a senhora filha de um amigo meu e prender a gente com o seu lindo rosto...

Estendeu então a mão, fez um movimento de cabeça, e acompanhou ao mineiro que já ia saindo, branco de cólera concentrada.

-E que me diz o sr. deste homem? perguntou a Cirino a meia voz e puxando-o de parte.

-Reparei muito nos seus modos, respondeu-lhe o outro no mesmo tom.

-Nem sei como me contenha... Estou cego de raiva... Que presente me mandou o Chico!... É uma peste, este diabo melado... Vê uma rapariguinha e enche logo as bochechas para lhe dizer meia dúzia de pachouchadas e graçolas... Não está má esta!... É um perdido. Nada... Isto não me cheira bem: vou ficar de olho nele...

-Faz muito bem, apoiou Cirino.

-Vejam só, continuou Pereira retendo o seu interlocutor para deixar Meyer distanciar-se, em boas me fui eu meter!... Se não fosse a tal carta do mano, o cujo dançava ao som do cacete... Malcriadaço! Uma mulher que daqui a dois dias esta para receber marido... Deus nos livre que o Manecão o ouvisse... Desancava-o logo, se não o cosesse a facadas... Vejam só, hem?... Sempre é gente de outras terras... Cruz! Também vi logo... um latagão bonito... todo faceiro... havéra por força de ser rufião.

Ouvia-o Cirino em silêncio.

-E mulher, prosseguiu o mineiro com raivosa volubilidade, é gente tão levada da breca, que se lambe toda de gosto com ditinhos e requebros desta súcia de embromadores. Com elas, digo eu sempre, não há que fiar... Má hora me trouxe este alamão... Mil raios o rachem!... E logo o Chico... Tenho agora que ficar de alcatéia... meter-me em tocaia e fazer fojos para que o bracaiá não me entre no galinheiro. Ora que tal!

-Também, breve se vai ele embora, lembrou Cirino a modo de consolo.

-Que o demo o leve quanto antes, replicou Pereira. Já estou todo enfernizado com o tal homem...

Neste momento, como que de propósito, voltava-se Meyer para os dois:

-Sr. Pereira, disse ele, ficarei em sua casa talvez umas duas semanas. Os burrinhos vão engordar no seu pasto e eu hei de fazer compridas viagens nesta sua fazenda, apanhando tudo o que nela encontrar... Ouviu?

Reprimiu o interpelado um gesto de viva contrariedade e, levado pelo instinto e dever de hospitalidade, de pronto respondeu, embora secamente:

-Fique duas semanas, ou dois meses ou dois anos. Já lho disse: a casa é sua, e palavra de mineiro não volta atrás. Quem esta aqui, não é o Sr., é meu irmão mais velho.

Agarrando então com força na mão de Cirino, acrescentou em voz surda e angustiada: -Olhe, doutor; veja só isto! Que lhe dizia eu?... Ah! meu Meyer, quer se engraçar comigo, não é? Mas cá fico... e, uma vez avisado, nem dois, nem três me botam poeira nos olhos... Não é com essa! Nocência nasceu filha de pobre, mas, graças a Maria Santíssima, tem ainda pai com braço forte e muito sangue nas veias para defendê-la dos garimpeiros e cruzadores de estrada... Ele que não brinque com o Manecão; é homem de cabelinho na venta e se lhe bota a mão em cima, esfarela-lhe os ossos, como se fora veadinho do campo enroscado por sucuri...

Ia, contudo, Meyer, de todo ponto alheio ao temporal provocado por suas inconsideradas palavras e, sem dúvida, estimulada em suas reminiscências pela vista da menina que acabava de admirar, cantarolava entredentes uma velha valsa alemã, dançada talvez com alguma loura patrícia em épocas remotas e de menos rigorismo científico.

Desconfianças

Muitas vezes, somos iludidos pela confiança: mas a desconfiança faz que sejamos por nós mesmos enganados.

Príncipe de Ligne



Quando o nosso saxônio entrou na sala em que estavam as suas cargas, vinha tão contente do agasalho recebido, da firmeza do tempo, das futuras caçadas de borboletas, que despertou a atenção do seu camarada José.

Estava este encostado a uma canastra, a esgaravatar, de faca comprida em punho, a planta dos pés, verificando se alguma pedrinha da estrada não se havia incrustado na grossa e já insensível sola.

-Homem, disse ele com familiaridade, Mochu está hoje muito alegre... Viu passarinho verde?

-Passarinho verde? perguntou Meyer. Que é isso? Não vi passarinho nenhum... Vi uma moça muito bonita...

-Olé... melhor ainda... Conte-me isso... e quem é ela.

-E a filha cá do Sr. Pereira.

-Parabéns! parabéns! exclamou José com toda a indiscrição. Moça bonita é fruta rara por estas matarias e brenhas do inferno... Quanto a mim, ainda não botei o olho senão em velhas corcorócas e serpentões... Outra coisa é no Rio... Não se lembra Mochu, da procissão de São Jorge?... Aí é que sai à rua uma tafularia de deixar a gente tonta de uma vez, de queixo caído. Umas tão alvas!... Outras cor de café com leite... crioulas chibantes.

-Juque, repreendeu o alemão revestindo-se de ar severo, não tome confiança com gente que não é da sua classe...

-Mas eu não disse nada de mau, Mochu, desculpou-se o criado recolhendo-se meio enfiado ao silencio e voltando ao exame dos pés.

Quem estava em cima de um braseiro, era Pereira. Decididamente, aquele hóspede o punha a perder, proclamando assim com a trombeta da fama que vira Inocência e com ela conversara, que a achava do seu gosto... uma rapariga já noiva! Quantas incongruências, que perigos, ó Santos do Paraíso!

Tornava-se caso de muita prudência. Qualquer passo menos pensado acarretaria conseqüências irremediáveis.

Necessário é penetrar-se a força dos sentimentos que sobressaltavam o mineiro, para bem aquilatar os transes por que passava e achar natural que seguisse uma linha de proceder toda de duvida e vacilações.

Se, de um lado, criava involuntária admiração por Meyer e, rodeando-o, em sua imaginação, do prestigio de uma beleza irresistível, via aumentar o seu receio em abrigar tão perigoso sedutor; do outro, sentia as mãos presas pelas obrigações imperiosas da hospitalidade, a qual, com a recomendação expressa de seu irmão mais velho, assumia caráter quase sagrado. Juntem-se a isto os preconceitos sobre o recato doméstico, a responsabilidade de vedar o santuário da família aos olhos de todos, o amor extremoso à filha, em quem não depositava, contudo, como mulher que era, confiança alguma, as suposições logo ideadas acerca da impressão que naturalmente aquele estrangeiro produzira no coração da sua Inocência, já quase pertencendo ela a outrem, e as colisões que previu para manter inabalável a sua palavra de honra, palavra dada em dois sentidos agora antagônicos -um mundo enfim de cogitações e de terrores. E tudo isto revolvendo-se na cabeça de Pereira, refletia-se com sombrios traços de inquietação em seu rosto habitualmente tão jovial.

-Por que razão é, perguntou ele a José Pinho para desviar aquela conversa que tanto o magoava, que vosmecê chama Mochu ao Sr. Meyer?

Sorriu-se o carioca com ar de superioridade e respondeu desembaraçadamente:

-Ah! E um modo de falar...

-Como assim?

-Já lhe ponho tudo em pratos limpos... Vosmecê não lhe chama sr.?

-Chamo.

-Pois, então?... Eu também lhe chamo assim... mas falo em francês, Mochu quer dizer senhor, nessa língua.

-Ah! replicou Pereira dando-se por convencido, então e isso? Pensei que fosse outra coisa...

-Juque; avisou Meyer que estava a remexer nas canastras, prepare tudo; nós vamos ao mato agora mesmo...

-Venha comigo, propôs o mineiro com voz insinuante. Eu lhe apontarei lugares onde há dessa bicharia miúda, coisa nunca vista.

-Com muito gosto, concordou o alemão.

E voltando-se para o camarada:

-Ande, Juque, ordenou ele, bote a pita para fora, caixas de folha-de-flandres, clorofórmio, rede pronta... Depressa homem, depressa!

José Pinho, instigado por estas palavras, entrou a voltear de um lado para o outro, como que atarantado com o excesso de serviço.

-Minhas lentes, pediu o naturalista, o saco para os bichos de casca grossa... Depressa... Vou ajudá-lo.

E, por seu turno, começou a tirar das canastras os objetos de que necessitava, enfiando a tiracolo dois ou três talabartes finos que sustentavam umas caixinhas encouradas. Numa delas, havia um copo de prata com a competente corrente noutra, um faqueiro de peças dobradiças e de metal do príncipe. Também assentou ao flanco uma frasqueira defendida de choques externos por fino trançado de vime e que continha aguardente, comprada de fresco na Vila de Sant'Ana do Paranaíba.

Não contente com o peso de todos esses apêndices à sua pessoa, cingiu largo talim com uma espécie de patrona de folha-de-flandres e que sustentava um grande facão inglês, um revólver e uma espada de caça.

Depois de ter vagarosamente arranjado sobre si cada uma destas peças com grande espanto de Pereira e até de Cirino, substituiu Meyer os óculos habituais por outros, de vidros afumados, multo grandes e convexos, destinados a proteger-lhe amplamente os olhos dos ardores do sol. Muniu-se, além disso, de outro singular meio de preservação: uma rodela ampla de pano branco forrado de verde que aumentava as abas do chapéu-do-chile, descansando em parte sobre elas.

Com esse trajo ficou decerto a mais estapafúrdia figura que algum cristão encontrar poderia naquelas trezentas léguas em derredor; entretanto, Pereira, ofendido com aqueles cuidados de prevenção meramente científica, que lá no seu bestunto qualificava de faceirice feminil:

-Veja só, disse ele para Cirino, como este maricas gosta de se enfeitar!... Você não me engana, não, Sr. alamão das dúzias...

Mirava-se nesse momento o naturalista, para verificar se lhe faltava alguma coisa.

-Estou pronto, exclamou afinal, e muito desejoso de entrar no mato.

-Ponham-te a tinir os carrapatos, resmoneou Pereira.

-Ah! disse Meyer, e as minhas luvas?... Juque, procure na canastra n.º 2, à esquerda, no segundo canto.

Sacou o camarada umas grandes lavas de lã, brancas, muito largas, já usadas e sujas, nas quais o alemão enfiou de um jacto as mãos espalmadas.

-Agora, sim! anunciou ele com satisfação.

E, dando um sonoro e prolongado hum! empunhou a rede de apanhar borboletas.

Depois, levando um dedo à testa:

-Ah! exclamou, e o vinho! Não me ia esquecendo?... O vinho para sua filha, Sr. Pereira, sua linda filha.

Encolheu o mineiro com furor os ombros e disse em parte a Cirino:

-Fez-se de esquecido só para falar na menina... Veja bem. Este calunga não me bota areia nos olhos.

E acrescentou alto, recebendo a garrafa que o camarada José Pinho tirara de uma das canastras:

-Agradeço o seu presente, Sr. Meyer, mas se... lhe faz a menor falta... a menina há de curar-se sem isto...

-Não, não, não, não, respondeu o saxônio com uma série de negativas que pareciam não dever ter fim.

-Neste mundo, rosnou Pereira mais para si do que para ser ouvido, ninguém mete prego sem estopa; mas com sertanejos... não se brinca.

Cirino tomara a garrafa.

-Isto, afirmou ele, acaba com certeza a cura.

E, esquivando-se de pronunciar o nome e a qualidade da pessoa de quem estava tratando:

-Ela há de ter hoje algum apetite e poderá levantar-se um pouco, pois já tomou o seu caldinho.

-Então, ao meio-dia, recomendou Pereira muito baixinho a Cirino, vosmecê mande chamar a nossa doente e dê-lhe a mezinha. Ouviu? Já avisei lá dentro...

Cirino abanou a cabeça, tomando ar misterioso.

-Eu por mim estarei de olho vivo no bichão... Parece-me suçuarana à espreita de veadinhas campeiras... Não terá este vinho algum feitiço?

Contestou o outro com energia tal possibilidade.

-Eu sei lá, insistiu Pereira. Estes namoradores são capazes de muita coisa... Nunca ouviu contar histórias de pirlas e beberagens... hem? diga-me, nunca?

-Sossegue, Sr. Pereira, acudiu Cirino, hei de examinar o liquido... tenho certeza de que não haverá novidade.

-Muito que bem... Então, ao meio-dia em ponto... chame a Maria Conga ou o Tico. Nocência há de arrastar-se até cá... e o doutor lhe dará a dose...

-Ela sair já? objetou Cirino com admiração. Não, senhor; em tal não consinto... Irei dar-lhe o remédio... Não me custa nada...

Pereira ficara meio perplexo.

-Não sei...

E com súbita resolução:

-Pois bem, virei da roga até cá... Se eu não aparecer, então o Sr. dê um pulo e faça-lhe tomar a poção... Quanto a este alamão melado, levo-o para longe e não o trago senão bem tarde e tão moído do passeio que só há de pensar em dormir.

Com Pereira se dava um fato natural e comezinho nas singularidades do mundo moral.

À medida que as suspeitas sobre as intenções do inocente Meyer iam tomando vulto exagerado, nascia ilimitada confiança naquele outro homem que lhe era também desconhecido e que a princípio lhe causara tanta prevenção quanto o segundo.

É que as dificuldades e colisões da vida, quando se agravam, tão fundo nos incutem a necessidade do apoio, das simpatias e dos conselhos de outrem, que qualquer aliado nos serve, embora de muito mais proveito fora bem pensada reserva e menos confiança em auxiliares de ocasião.

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