Selecciona una palabra y presiona la tecla d para obtener su definición.

Realidade

CORDÉLIA.- Há de o tempo desvendar o que hoje esconde a discreta hipocrisia.

Shakespeare, O Rei Lear, Ato I



Depois que Cirino viu sumir-se Pereira com os dois companheiros além do laranjal da casa, seguindo em direção à roça por uma vereda pedregosa e cheia de seixos rolados, nos quais iam as patas dos animais batendo; depois que teve certeza de que ficara só naquela vivenda, entrou em grande agitação.

Ora, passeava pelo quarto rápida e inquietantemente; ora, media-o com passo lento em muitas direções; ora, enfim, saía para o terreiro e ali, com a cabeça descoberta, ficava a olhar atentamente para diversos lados, abrigando com a mão aberta os olhos, dos vivíssimos raios do sol.

Prometia o dia ser muito cálido. Por toda a parte chiavam as estrídulas cigarras, e ao longe se ouvia o metálico cacarejar das seriemas nos campos.

Às vezes, encarava Cirino o sol; depois tapava os olhos deslumbrados e, tomado de vertigem, voltava para a sala, onde recomeçava os seus passeios.

Por que, porém, não descansava o mancebo?

Entrando familiarmente pela sala adentro, os bacorinhos se haviam abrigado dos ardores do dia e, deitados debaixo de uns jiraus, ressonavam, presa de gostoso sono.

Tudo quanto vivia apetecia a sombra e o repouso. Fora, o sol reverberava violento em seus fulgores, e as sombras das arvores iam cada vez mais diminuindo. Até uma égua com o esguio e peludo poldrinho deixara o distante pasto e viera abrigar-se, à proteção da casa, junto à qual parara já meio a cochilar.

A enervadora ação do calor estival, juntavam sua influência as monótonas modulações de umas chulas e modinhas, cantadas ao som da viola de três cordas pelos camaradas de Cirino, acomodados no rancho junto ao paiol de milho.

A tudo, entretanto, resistia o jovem, e com ascendente desassossego consultava o seu relógio de prata, tirando-o cada instante do bolso.

Passaram-se segundos, minutos e horas. Afinal soltou ele um suspiro de alivio:

-Meio-dia!... Cuidei que nunca havia de chegar!...

Saindo todo animado para o terreiro, chamou com voz forte:

-Maria... Ó Maria Conga!...

Ninguém lhe respondeu. Só do lado da cozinha ladraram uns cães.

Depois de esperar algum tempo, rodeou Cirino toda a casa, como fizera com Pereira e, encostando-se à cerca que impedia a aproximação do lanço dos fundos, tornou a chamar:

-Ó Maria?... Maria!... Está dormindo, minha velha?

Vendo que os gritos ficavam sem resposta, saltou então o cercado e foi caminhando para a porta da cozinha, devagar, porém, e como que a medo.

-Ó Maria?!... Minha tia!... Olá! Ó de casa! chamava ele.

Afinal apareceu não a velha escrava, mas o anão Tiro, que pareceu, com imperioso movimento de cabeça, indagar a causa daquele intempestivo alarma.

-Que é da Maria Conga? perguntou Cirino chegando-se a ele.

Por meio de moderada gesticulação, mas muito expressivamente, deu Tico a entender que a preta fora ao córrego lavar roupa.

-E não há mais ninguém em casa? inquiriu o outro.

Mostrou o anão, com singular expressão de orgulho e despeito, que ali estava, ele e deitou um olhar de cólera para o imprudente curioso.

-Bem, replicou Cirino sorrindo-se, vá você então dizer à sinhá dona, que já chegou a hora de tomar o remédio. Trago o vinho, e é preciso quanto antes preparar café.

Desapareceu Tico, fazendo um aceno ao intitulado médico para que esperasse fora.

-Ora, exclamou este com aborrecimento e tom de chacota, aqui ao sol?... Não está má esta!... E tal o mestre nanica?...

Sem mais cerimônia entrou, pois, na casa, penetrando no quarto que ficava entre a cozinha, teatro da atividade de Maria Conga e a sala de jantar, onde se dera a apresentação de Meyer a Inocência.

Daí a pouco, ouviu passos arrastados e aos seus olhos mostrou-se Inocência embrulhada em uma grande manta de algodão de Minas, de variegadas cores, e com os longos e formosos cabelos caídos e puxados todos para trás. Os grandes e aveludados olhos orlados de fundas olheiras, e o quebrantamento do semblante, muita fraqueza denunciavam ainda; entretanto, as cetinosas faces como que se apressavam a tomar cores, à semelhança de rosas impacientes de desabrochar e expandir-se vivazes e alegres. Ao chegar à porta, não a tranpôs; mas encostando-se à grossa trave que fazia de umbral, ali ficou parada, indecisa, com o olhar turbado e esquivo.

-Ao vê-la, deu Cirino com timidez alguns passos ao seu encontro; depois, por seu turno estacou junto a uma cadeira de comprido espaldar, antigo e sólido traste trazido por Pereira da sua casa de Piumi.

Após longa pausa, em que por vezes se cruzaram incertos os olhares, perguntou com esforço:

-Então... minha senhora... como está?... Sente-se melhor?

-Melhor, obrigada, respondeu Inocência com voz aflautada e muito trêmula.

-Comeu já alguma coisa?

-Nhor-sim... uma asa de frango, mas com... bastante vontade.

-Sente o corpo abatido?

-A canseira está passando... ontem muito mais...

A pouco e pouco, fora Cirino recuperando o sangue frio e se aproximando da moça, que mais se apegou à umbreira, como que a procurar abrigo e proteção.

De um lado da porta ficou ela: do outro Cirino, ambos tão enleados e cheios de sobressalto que davam razão às olhadas de espanto com que os encarava Tico, empertigado bem defronte dos dois em suas encurvadas perninhas.

-Pois chegou a hora de tomar o remédio...

-Já, seu doutor? implorou Inocência.

-Nhã-sim.

-Eu não tenho mais nada...

-É para cortar de uma vez as sezões... Olhe, se elas voltassem... era um grande desgosto para mim...

-Mas é tão mau, objetou ela.

-Não é bom deveras... mas bem melhor é voltar à saúde...

Com um bocadinho de coragem, a gente engole tudo sem muito custo... Já que lhe amarga tanto... beberei também um pouco...

-Oh! não! protestou Inocência.

-É: para lhe mostrar... que quero sentir... o que mecê sente.

Fez-se a menina da cor da pitanga, levantou uns olhos surpresos e voltou logo o rosto para fugir dos olhares ardentes de Cirino.

-A mezinha? pediu ela por fim toda comovida.

-Ah! é verdade! exclamou Cirino. Ande, Tico: vá buscar café a cozinha. Lave bem um pires... percebeu?

O anão fitou o moço com altivez e não se mexeu.

-Você é surdo?

-Não, respondeu Inocência. Tico, às vezes, por manha é que se faz ansim de mouco.

Voltando-se então para o homúnculo, insistiu com voz meiga e carinhosa:

-Vai, Tico; é para mim, ouviu?

Transformou-se repentinamente a fisionomia do anão. Pairou-lhe nos lábios inefável sorriso, meneou a cabeça duas ou três vezes com a força de uma afirmação, mas, colérico, enrugou a testa e moveu olhos inquietos e duvidosos.

Inocência teve que repetir o recado.

-Já lhe disse, Tico: vai buscar o café.

A esta quase ordem não ousou ele resistir mas saiu devagarzinho, voltando-se várias vezes antes de entrar na cozinha, onde muito pouco se demorou.

Neste entrementes tomara Cirino o pulso de Inocência e, sem pensar no que fazia, quebrando a débil resistência da menina, cobrira-lhe de beijos o braço e a mãozinha que havia segurado.

-Meu Deus! balbuciou ela, que é isto?... Olhe, aí vem Tico.

Recuou então o mancebo e, para melhor disfarçar a comoção adiantou-se para o anão que vinha trazendo na mão direita uma vasilha de folha-de-flandres, e na outra um pires com colher.

-Muito bem, disse ele, ponha tudo em cima da mesa.

E preparando rapidamente o medicamento apresentou-o a Inocência. que sem hesitação o sorveu todo.

-Deixe-me um pouco, exorou com ternura Cirino, um pouco só... Se é tão mau... sofra eu também.

-Não, respondeu ela com alguma energia, por que havéra de mecê sofrer?

E, ou por efeito do inexprimível e desconhecido abalo que experimentara no estado de debilidade a que chegara, ou por ser aquela a hora em que costumava a febre salteá-la, o certo é que teve de encostar-se ou melhor, agarrar-se ao umbral para não cair a fio comprido no chão.

-Oh! exclamou com angústia Cirino, a senhora vai desmaiar.

Transpondo então o limiar da porta, tomou nos braços a pálida donzela, sem relutância encostou a desfalecida cabeça ao seu ombro e, com o hálito ofegante, aos poucos lhe foi fazendo voltar às faces o precioso sangue.

-Estou melhor, balbuciou ela procurando afastar a cabeça de Cirino.

-Não faça de forte à toa, acudiu este. Vamos ate aquela cadeira.

E, com toda a lentidão e cuidado, foi levando a convalescente até sentá-la, desembaraçando-a, depois, dos muitos cabelos que, todos revoltos, lhe haviam invadido o colo e se esparziam sobre o rosto.

-Quanto cabelo! exclamou Cirino meio risonho.

Com muita atenção seguira Tico as peripécias de toda aquela cena. Ao ver Inocência perder quase os sentidos, soltou um grito surdo de desespero; depois, foi seguindo-a até a cadeira e, ajoelhado diante dela, contemplou-a com inquietação.

Cirino quis aproveitar a ocasião para um congraçamento.

-Então está com cuidado, Sr. Tico?... Não é nada... sua ama fica boa logo... Não é o que você quer?

Ao ouvir esta interpelação, levantou-se o anão e correspondeu ao simpático anúncio do moço com um olhar de desprezo e pouco caso, como que a dizer:

-Não se meta comigo, que não quero graças com você, médico de arribação!

-Agora, disse Cirino voltando-se para Inocência, vai mecê beber dois goles deste vinho... Vera logo, que sustância há de sentir dentro do corpo.

Desarrolhou então, com a ponta da comprida faca que tirou do cinto, a garrafa de vinho oferecida por Meyer, e num caneco de lousa branca apresentou à moça um pouco do ruborante líquido.

Molhou a doentinha os lábios e gratificou o obsequioso mancebo com um sorriso encantador.

Decididamente lhe agradava aquele medico: curava do seu corpo enfermo e entendia-lhe com a alma. Raros homens que não seu pai e Manecão, além de pretos velhos, tinha até então visto; mas a ela, tão ignorante das coisas e do mundo, parecia-lhe que ente algum nem de longe poderia ser comparado em elegância e beleza a esse que lhe ficava agora em frente. Depois, que cadela misteriosa de simpatia a ia prendendo àquele estranho, simples viajante que via hoje, para, sem duvida, nunca mais tornar a vê-lo?

Quem sabe se a meiguice e bondade que lhe dispensava Cirino não eram a causa única desse sentimento novo, desconhecido, que de chofre nascia em seu peito, como depois da chuva brota a florzinha do campo?

A muito obriga a gratidão.

Rápidos correram esses pensamentos pela mente de Inocência, ao passo que as suas pupilas se iam erguendo até se fixarem em Cirino, límpidas, grandes, abertas, como que dando entrada para ele ler claro o que se lhe passava na alma.

-Sinto-me tão bem, disse ela com metal de voz muito suave, tão leve de corpo, que parece nunca mais hei de ficar mofina.

-Não, não, decerto! exclamou Cirino, nunca mais. Além disso, aqui estou e...

Com a sua chegada, interrompeu Maria Conga, a velha negra, aquele começo de diálogo. Vinha da fonte com volumosa trouxa de roupa que entrou a estender em compridos bambus, assentes horizontalmente sobre forquilhas fincadas no chão.

Despedindo-se, então, Cirino de Inocência:

-Agora, lhe disse ele risonho e, pegando-lhe a mão, sossegue um pouco: depois tome um caldo e... queira-me bem.

-Gentes! Por que lhe não havéra de querer? perguntou ela com ingenuidade. Mecê nunca me fez mal...

-Eu, retrucou Cirino com fogo, fazer-lhe mal? Antes morrer... Sim... dona... da minha alma, eu...

E, sem concluir, disse repentinamente:

-Adeus!

Depois, com passo lento, foi se retirando e passou diante da janela junto à qual ficara Inocência sentada.

-Olhe! recomendou ele recostando-se ao peitoril, cuidado com o sereno...

-Nhor-sim...

-Não beba leite...

-Mecê já disse.

-Coma só carne-de-sol...

-Já sei...

-Então, adeus... adeus, menina bonita!

E, a custo, despegou-se daquele lugar, onde quisera ficar, ate que de velhice lhe fraqueassem as pernas.

Histórias de Meyer

Grande felicidade é ter um filho prudente e instruído; mas, quanto a filhas, é para todo o pai carga bem pesada.

Menandro, Os Primos



Com a tarde voltaram Meyer, José Pinho e Pereira e, pouco depois pois deles, três avelhantados escravos; estes dos trabalhos agrícolas, aqueles de grandes excursões entomológicas.

Vinha o mineiro meio risonho e em altos gritos acordou Cirino, que, deitando-se a dormir, sonhara todo o tempo com a graciosa doente.

-Olá, amigo! olá, doutor! chamou Pereira com voz retumbante, isso e que é vida, hem? Enquanto nós trabalhamos, eu e o Mochu do José, você está nessa cama de veludo!...

-É verdade, concordou o moço, apenas os Srs. se foram, estendi as pernas e até agora enfiei um sono só...

-E o remédio da menina? perguntou Pereira abaixando a voz.

-Ora, Sr., e eu que me esqueci!... Não faz mal... se ela não teve febre... Ah! espere... agora me lembro!... Eu lho dei... estou ainda tonto de sono.

Riu-se Pereira.

-Estes doutores matam a gente, como se tosse cachorro sem dono... Num momento, lhes passa da cachola se deram ou não mezinhas e venenos a cristãos...

Vendo que Meyer saíra da sala, mudou repentinamente de tom prosseguindo em voz baixa e muito rapidamente:

-Então, sabe que o tal alamão levou todo o dia, só querendo puxar conversa sobre a menina?

-Deveras?

-É o que lhe digo... E... eu com as mãos atadas por aquele oferecimento de levá-lo a comer lá dentro!... Nada, nem que desconfie e se arrenegue dos meus modos... não me pisa em quarto de família... Deus te livre!...

Com efeito, à hora da ceia, Meyer manifestou surpresa de comer na mesma sala; não que tivesse motivo para desejar outro qualquer local; mas, metódico como era, gravara na mente a promessa de Pereira e, por delicadeza, supunha dever lembrar-lha.

As desculpas que o mineiro apresentou foram arranjadas de momento e ajudadas vitoriosamente por Cirino, carregando este com a responsabilidade de haver recomendado à enferma muito sossego, quase completa solidão.

De modo muito expansivo se manifestou também o reconhecimento de Pereira.

-Estou conhecendo, disse ele em aparte e apertando a mão de Cirino, que o doutor é homem sério e com quem se pode contar... Deixe estar... o Manecão há de ser amigo seu... Isso há de sê-lo... Pessoas de bem devem conhecer-se e estimar-se... Ora, veja o tal cujo... que temível, hem?... Não faz mal, há de ter o pago.

Se Pereira se mostrava contrariado e inquieto, muito pelo contrário parecia o naturalista nadar em mar de rosas.

-Sr. doutor, declarou ele a Cirino à mesa da ceia, por muitos motivos estou em extremo contente com a minha estada aqui... Hoje achei mais bichinhos curiosos do que em todas as zonas por que tenho andado.

-Vosmecê nem imagina, interrompeu Pereira dirigindo-se para Cirino, o que faz este senhor quando está dentro do mato. Ainda há de quebrar o pescoço nalgum barranco a que se atire, pois caminha com as ventas para o ar... Não sei como não tem ambos os olhos furados... não repara em galhos nem em nada... só o que quer e agarrar anicetos... Já o avisei umas poucas de vezes; agora, sua alma, sua palma...

Judiciosas eram as advertências do mineiro e bem cabidas; tanto assim que numa das tardes seguintes voltou Meyer todo arranhado e com um gilvaz tão grande, que imediatamente deu nas vistas de Cirino.

-Que foi isso, Sr. Meyer? perguntou ele com admiração. O sr. andou por ai afora aos trambolhões com alguma onça?

-Oh! não é nada, respondeu fleumaticamente o alemão.

-E a sua roupa vem suja de barro... toda rota...

Desatou Pereira a rir.

-Isto são histórias deste homem... Bem lhe dizia eu que mais dia menos dia isso havia de acontecer. Meu amigo não sabe do ditado:... Fia-te na Virgem e não corras, veras o tombo que levas!... Também foi um dia em que me ri a mais não poder. Tomei um fartão... Imagine vosmecê que o tal sr. Meyer, como já lhe contei, anda pulando dentro da mata como se fosse veado mateiro... O José Pinho, que é mitrado, vai sempre pela estrada limpa...

-Preguiçoso, atalhou Meyer a modo de observação.

-Juízo tem ele, prosseguiu o mineiro: mas, como ia dizendo cá, o sr. com seus arrancos e saltos parece anta disparada. Em aparecendo bichinho voador, zás-trás que darás lá vai ele logo sem olhar para os paus, podendo pisar em cobras e espinhos, com aquela rede na mão, e tanto faz que engalfinha sempre algum animalejo... Hoje fui para a roça, e o homem furou o mato, enquanto José buscava uma sombrinha e entrou logo a roncar como um perdido...

-Eu, não senhor, protestou José Pinho, que queria ouvir a historia.

-Vóce sim, corroborou Meyer com severidade, preguiçoso!... Ande... dê cá a pita.

-Pois bem, continuou Pereira, daí a duas horas voltou Mochu neste estado pouco mais ou menos; trazia uma caixa cheia de bichos do mato...

-Oh! perguntou Cirino, e são bonitos?

-Não há mais nada, suspirou Meyer com tom dolente, o trabalho ficou perdido!... Eu tinha apanhado cinco espécies novas... Uma queda...

-Deixe-me contar o caso, atalhou Pereira. Oh! eu ri-me... ri-me. E, para confirmar a asserção, pôs-se novamente a dar gargalhadas, que foram acompanhadas por José Pinho e até por Meyer, da parte deste com menos expansão, contudo.

-Apareceu-me o Mochu muito contente com a sua caixa, como se tivesse o rei na barriga. Era uma imundície de besouros, cascudos e cigarras, que o Sr. nem pode imaginar... Havia de tudo; depois, quando voltamos da roça, enxergou ele num pau podre um aniceto vermelho e foi correndo a apanhá-lo. Eu bradei-lhe: -Olhe, que ai tem barranco: a árvore é podre e oca, e vosmecê rola pelo despenhadeiro, que nem a sua alma se salva. -Qual! O homem é teimoso, como um cargueiro empacador... Eu gritava-lhe: -Tome tento, Mochu! -Sem atender a nada, começou a caminhar em cima da cipoada que cobria a boca de um percipício, fundo como tudo neste mundo... Quando ia botar a mão no tal bicho encarnado, encostou-se ao pau e... zás!... afundou-se, dando um grito esganiçado que parecia de cotia. Mal teve tempo de agarrar-se aos cipós e ia ficou entre a vida e a morte, chamando Juque, Juque!... Eu, quando vi isso, mandei a toda pressa buscar à roça uma vara comprida e, se ela não chega logo, o Sr. Meyer e toda a sua bicharada rolavam de uma vez por aqueles fundões.

-Não, retificou o alemão, bicho rolou; caixa abriu e tudo lá se foi no fundão...

-Pois bem, o Mochu segurou-se com unhas e dentes ao pau e nos puxamos devagarinho, devagarinho, com um medo, um medo!... Maria Santíssima!...

Fazendo breve pausa:

-O mais engraçado ainda não chegou, avisou o mineiro: Ah! vosmecê vai tomar uma boa data de riso. Quando o Mochu ganhou pé em terra, pôs-se a pular como um cabrito doido, por aqui, por acolá, pulo e mais pulo, e gritando como se o estivessem esfolando... Estava.. ah! meu Deus!... estava cheio de formigas novatas!

-Sim, exclamou Meyer com desespero, formiga de pau podre!... Mein Gott... Eu rasgo a roupa... eu pulo... eu gemo... fico nu como quando minha mãe me botou no mundo!... Horrível Formiga do diabo!... Faz calombo em todo o meu corpo... Muita dor!

Com reiteradas e estrondosas gargalhadas acolheram Pereira, Cirino e José Pinho essas enérgicas imprecações.

-Poderá isso, observou o mineiro, curá-lo da mania de não ouvir os outros que conhecem as coisas.

E voltando-se para Cirino:

-Verdade é que o corpo dele... Que corpo, Sr. doutor, tão arvo!... ficou todo empolado que foi preciso esfregá-lo com folhas de fumo. Depois, tomou um banho no ribeirão...

-Tudo estava muito bem, observou Meyer, se caixa não abre e atira no buraco meu trabalho...

-Ora, ficará para amanhã, consolou filosoficamente o camarada.

Pereira, acalmado o frouxo de riso, aproximara-se de Cirino e lhe falava a meia voz:

-Ah! doutor, tive uma vontade de deixar este alamão sumir-se no socavão!... Se não fosse meu hóspede, enfim, e recomendado de meu mano, palavra de honra pinchava-o de uma vez no inferno... Não sou nenhum pinóia...

-Mas por quê? indagou Cirino simulando admiração...

-O sr. ainda me pergunta?... Porque o homem não me faz senão falar em Nocência... Outra vez me disse que ela era muito bonita e mil coisas... perguntou se estava casada, se não; que era preciso casar as mulheres para bem delas. Eu lá sei o que mais?... Isto é um bruto perdido... um namorador!...

-Qual, Sr. Pereira!...

-É o que lhe digo!... Por acaso sou cobra de duas cabeças que não veja?... Ah! que peso uma filha! Ah! E então uma menina que já está apalavrada... Isto é uma anarquia! Que diria meu genro, o Manecão?...

-Não poderá dizer nada, retrucou o moço. E que diga, não faltará quem queira sua filha...

-Louvado Deus, não decerto! Eu é que não quero que ela ande de mão em mão... Ou casa com o Doca ou...

-Ou... o quê? perguntou Cirino com inquietação, mas fingindo pouca curiosidade.

-Ou mato a quem lhe vier transtornar a cabeça... Comigo ninguém há de tirar farofa!... E não hei de ter mil cuidados quando vejo este estranja estar com suas macaquices a dar no fraco das mulheres?

-Por ora, nada fez ele...

-Por ora... só leva a falar na pobre menina, que a Sr.ª Sant'Ana guarde de todo o mal!... Pudesse eu adivinhar, e macacos me mordam, se punha os olhos em cima de Nocência. Nem que viesse com cartas e ordens do sr. D. Pedro II.

Chamei o José Pinho, prosseguiu ele em voz baixa, e dei-lhe uns toques. -Então, disse-lhe eu, seu amo é o diabo com mulheres, hem? Ele, que é muito ladino, respondeu-me logo. -Nhor-não. -Assuntei a embromação. -Qual, você, carioca, tem levado areia nos olhos. -Eu?... não é capaz. -Então você não tem visto o que faz seu amo? -Tem sido um santo, retrucou o espertalhão. No Rio, sim. -Na Corte? -Nhor-sim, na Corte. Ia todas as noites a uma casa de bebidas, assim uma espécie de venda de muito luxo e lá estava horas perdidas petiscando e conversando com senhoras muito bonitas, bem limpas... algumas com o pescoço e os braços todos à mostra...

-Contou-lhe isso? atalhou Cirino com alguma dúvida e sobressalto.

-Contou, afirmou Pereira com furor. Vejam só que homem, hem? É um mequetrefe!... Esta noite e dora em diante, venho dormir nesta sala a ver se ele se mexe da cama. Ah! se eu pudesse!... caia-lhe de calaboca em cima, que lhe deixava as costelas em lascas.

Acabavam as imprudentes histórias de José Pinho de pôr a ultima pedra no edifício da desconfiança que tão depressa erigira a imaginação de Pereira em desconceito de Meyer. O que nelas havia de verdade, eram apenas algumas horas de lazer, consagradas, durante a estada no Rio de Janeiro, pelo naturalista ao consumo de grandes copázios de cerveja no café Stadt Coblenz, e nas quais entretivera risonhos, bem que inocentes colóquios, com pessoas do sexo amável, freqüentadoras daquele estabelecimento e de costumes não lá muito rigorosos.

O empalamado

Ao homem não faltam importunações quanto à vossa capacidade, bem a conhecemos.

Molière, O Médico à Força



Conforme o prometido, trouxe Pereira a rede para a sala dos hóspedes e, encetando um modo de vigilância muito especial ainda que perfeitamente inútil em relação à pessoa suspeitada, associou os sonoros roncos do valente peito à ruidosa respiração de Meyer.

Se, contudo, não tivessem seus olhos a venda da confiança ou, melhor, se o sono não os acometesse sempre com tamanha imposição, decerto em breve houvera estranhado a cruel agitação em que vivia Cirino e que este não podia mais encobrir.

Na verdade, o modo por que o infeliz mancebo passava as noites era de fazer nascer suspeitas no espírito mais indiferente e desprevenido. Ou se revolvia na cama, dando mal abafados suspiros, ou então saia para o terreiro, onde se punha a passear e a fumar cigarros de palha uns após outros, até que os galos, alcandorados na cumeeira da casa e nas árvores mais próximas, anunciassem as primeiras barras do dia.

Desabrida paixão enchia o peito daquele malsinado; dessas paixões repentinas, explosivas, irresistíveis, que se apoderam de uma alma, a enleiam por toda a parte, prendem-na de mil modos e a sufocam como as serpentes de Netuno a Laocoonte. Conhecedor como era, dos hábitos do sertão, do jugo absoluto dos preconceitos, do respeito fatal à palavra dada, antevia tantas dificuldades, tamanhos obstáculos diante de si, que, se de um lado desanimava, do outro mais sentia revoltado o nascente e já tão violento afeto.

-Deus me ajudará, pensava consigo mesmo: o que só quero e a amizade de Inocência Há dias que não a vejo... se não puder mais vê-la... Dou cabo da vida...

Sublevava-se o seu coração, girava-lhe o sangue com vertiginosa rapidez nas velas e vinha toldar-lhe a vista, trazendo ondas de rubro calor ao descorado rosto.

-Nossa Senhora da Abadia, implorava ele puxando os cabelos com desespero, valei-me neste apuro em que me acho! Dai-me pelo menos esperanças de que aquela menina poderá um dia querer-me bem... Nada mais desejo... Possa o fogo que me consome abrasar também o seu peito...

Costumava a fervorosa prece dirigida à santa da especial devoção de toda a Província de Goiás acalmar um pouco o mancebo, que alquebrado de forças pegava no sono para, instantes depois, acordar sobressaltado e cada vez mais abatido.

Também estava sempre de pé quando Pereira costumava saltar da rede.

-Oh! observou ele da primeira vez, isto é que se chama madrugar.

-Pois é contra o meu costume, replicou Cirino, todas estas noites tenho passado mal...

-Na verdade vosmecê não está com boa cara...

-Creio que me entraram no corpo as maleitas.

-Essa é que é boa! Então o doutor foi emprestar da doente a moléstia?...

Olhe, é preciso por-se forte, porque hoje mesmo há de lhe chegar uma boa máquina de doentes...

-Melhor...

-Já está tudo espalhado por ai da sua chegada e a romaria não há de tardar.

-Cá a espero...

-Naturalmente virá primeiro o Coelho... É boa ocasião de pagar a sua dívida... Não tenha receio de puxar mais no preço...

-Daqui mesmo pretendo despachar um próprio para me ver livre dessa obrigação...

-Isso mostra que o sr. é pessoa de brio... Não é como certa gente que conheço...

Ao dizer estas palavras, voltara-se Pereira para Meyer a contemplá-lo atentamente.

Estava na verdade o alemão digno de exame, posto ainda de parte outro qualquer motivo que não o de simples curiosidade.

Dormia com as pernas e braços abertos e caldos para fora do estreito leito das canastras: tinha o queixo muito levantado pela posição incômoda da cabeça, deixando a boca meio aberta ver uma fieira de magníficos dentes.

-Está roncando, hem? murmurou o mineiro. Cavouqueiro... a mim você não engana... mas é o mesmo!

Iam as prevenções de Pereira tomando proporções de idéia fixa, e Meyer, na simplicidade da ignorância, como que de propósito ministrava elementos para que elas mais e mais se fossem arraigando.

Assim, ao almoço, lembrou-se de perguntar entre duas enormes colheradas de feijão:

-Sua filha, Sr. Pereira? Como vai? É melhor?

-É melhor o quê, Mochu? exclamou o pai com modo esquivo.

-A saúde dela é melhor?

-Está melhor; está, está, respondeu Pereira muito secamente. Está boa... vai fazer uma viagem...

-Viagem, para onde?... Até a vila?

-Homem; Mochu, observou o mineiro um tanto desabrido, vosmecê está que nem mulher velha, tudo quer saber...

Meyer, nessa repreensão, que lhe causou vexame e alguma admiração, só enxergou censura justa a sua curiosidade, falta que confessou com toda a nobreza, embora agravando a situação.

-É verdade, sr. Pereira, concordou ele. A boa educação não manda o que eu fiz... mereço, porém, desculpa, mereço... Sua filha é tão interessante... que me lembro sempre dela... Tenho comigo uns presentezinhos...

-Guarde-os, rosnou Pereira abafando a reflexão num acesso de tosse.

E para evitar o prosseguimento de semelhante assunto, deu por finda a refeição, levantando-se da mesa.

-Aí vem o Coelho, doutor, exclamou ele olhando para fora. Xi! como esta amarelo!... Há tempos que o não via... já parece alma do outro mundo... É do tal em quem falamos... Aperte-o, porque é mofino como tudo...

E, interpelando a quem chegava gritou:

-Bons olhos o vejam!... Se não fosse, amigo Sr. Coelho, ter médico em casa, nunca havéra de vê-lo por cá; não é verdade?

-Ora, respondeu o outro com um gemido, ando sempre tão doente. Nem faz gosto viver assim... Mas qu'é dele, o homem?

-Está aqui...

-Já me disseram que faz milagres. Deixou nome para lá das Parnaíbas... Sabia?

-Lá que tivesse deixado nome, não: mas que é cirurgião de patente, tenho certeza, porque, num abrir e fechar de olhos, me pôs de pé uma pessoa cá de casa.

-Se ele me curar... não sei mesmo como lhe agradecer.

-É pagar-lhe, concluiu Pereira, tratando logo de advogar os interesses do hóspede.

-Sim, hei de... pagar-lhe, confirmou o outro com alguma hesitação.

-Em todo caso, desça do animal.

Pouco depois, entrava na sala e cumprimentava a Cirino e a Meyer a pessoa a quem o mineiro chamara Coelho. Era homem já de idade, muito mais quebrantado por enfermidades que pelos anos; tinha a testa enrugada, as bochechas meio inchadas e balofas, os lábios quase brancos e os olhos empapuçados.

-Qual dos senhores é o doutor? perguntou ele.

-Sou eu, respondeu Cirino, revestindo-se de convicto ar de importância, enquanto Meyer apontava para ele, cedendo direitos que talvez pudesse contestar.

Interveio Pereira com amabilidade:

-Sente-se, Sr. Coelho, sente-se. Não se ponha logo a falar de moléstias... Isto não vai de afogadilho... Descanse um pouco... Olhe, já almoçou?

-O pouco que como, retrucou o outro, já está comido.

-Pois bem, ponha-se primeiro a gosto: depois então, converse com o doutor... Diga-me: que há de novo pela vila?

-Que eu saiba, nada... Também há mais de ano que de lá nenhuma notícia tenho... já não se me dá do que vai pelo mundo... Quem não goza saúde, perde o gosto de tudo... E mesmo uma calamidade...

Enquanto Coelho, em toada monótona, desfiava outras queixas no mesmo sentido, tirara Cirino da canastra o seu Chernoviz e algumas ervas secas que depôs em cima da mesa.

-O senhor, declarou ele voltando-se para o doente, está empalamado...

-É verdade, Sr. doutor.

-Eu, que não sou físico, observou Pereira, diria logo isso...

-Xi, compadre! atalhou Coelho com impaciência e pedindo silêncio.

-O senhor, continuou Cirino com entono, teve maleitas muitos anos afios depois começou a sentir fastio e o estômago embrulhado; inchou todo e em seguida definhou... Aos poucos, foi perdendo a sustância e o talento.

-Tal qual! murmurou Coelho seguindo com cautelosa atenção a marcha do diagnóstico.

-Agora, o sr. não pode comer que não sinta afrontação, não é?

-Muita, sr. doutor.

-Este homem, disse Pereira para Meyer, leu bastante nos livros...

-Veio-lhe depois uma canseira, e, quando o Sr. anda, dão-lhe uns suores e tremuras por todo o corpo... O baço está ingurgitado e o fígado também... De noite fica o Sr. sem poder tomar respiração, mais sentado que deitado... As vezes tosse muito, uma tosse sem escarrar, como quem tem um pigarro seco...

-Tal qual! repetiu o enfermo com unção e quase entusiasmo.

-Pois bem, terminou Cirino, como já lhe disse, o Sr. está empalamado.

-E não há cura? perguntou Coelho meio duvidoso.

-Há, mas o remédio é forte

-Contanto que faça bem...

-Muita gente, replicou Cirino, tenho já curado em estado pior que o Sr.; mas, repito, o remédio é violento...

-Tomarei tudo, afirmou Coelho: há anos que faço um horror de mezinhas e de nenhuma delas tiro proveito. Vamos ver.

Cirino neste ponto mudou o tom de voz e olhando para Pereira:

-O Sr. sabe, observou ele que o meu modo de vida é este...

O mesmo não pensou Coelho, que tartamudeou:

-Ah!... Estou pronto... Sou pobre, muito pobre...

Piscou Pereira um olho com malícia.

Com um movimento de cabeça aplaudiu o mineiro aquela entrada em matéria.

-Costumo, continuou Cirino, receber o pagamento em duas ametades...

Depois acrescentou, um tanto vexado:

-Se falo nisto agora com esta pressa, é porque também tenho precisão urgente de dinheiro... Não acha, sr. Meyer?

-Pois não, pois não, concordou o alemão: tem todo o direito.

-Meu amigo, corroborou Pereira, o doutor não trabalha para o bispo; tem que ganhar honradamente a vida.

-Então, como lhe dizia, prosseguiu o outro dirigindo-se para Coelho, o senhor pagar-me-á no principio da aplicação e no fim. Assim, não há enganos... Serve-lhe?

-Que remédio! suspirou Coelho. Eu lhe darei... até trinta mil-réis... ou... quarenta...

-Qual! retorquiu Cirino. O meu preço é um só.

-E a quanto monta?

-A cem mil-réis.

-Cem mim réis! exclamou Coelho aterrado.

-Cinqüenta no principio, cinqüenta no fim.

Gemeu o doente lá consigo.

-Ora o que é isto para você, compadre? interveio Pereira. Um atilho de milho para quem tem tulhas cheias a valer!...

-Nem tanto, nem tanto assim, objetou Coelho.

-Deixe-se de histórias, continuou Pereira. Se vosmecê não tivesse bons patacos, eu diria logo ao nosso amigo: -Olhe que este é dos nossos, não tem onde cair morto -e ele havéra de curar de graça... não é?

-Decerto, decerto, declarou Cirino com muita prontidão.

-Mas com vosmecê o caso é defronte! Doutra maneira, por que razão havia um cirurgião de andar por estes socavões? Também quer bichar um pouco...

-É muito justo...

-Cinqüenta... mil... réis, balbuciava Coelho; assim de pancada...

-Se o médico o cura, disse Meyer intrometendo-se, é negócio da China.

Nada dizia Cirino por dignidade própria. Estava folheando o Chernoviz, cujas páginas mostravam continuo manusear, algumas até enriquecidas de notas e observações à margem.

Assim no artigo opilação ou hipoemia intertropical havia ele escrito ao lado: «E o que se chama no sertão moléstia de empalamado». E, no fim abrira grande chave para encerrar esta ousada e peremptória sentença: «Todos estes remédios de nada servem. Sei de um muito violento, mas seguro. Foi-me, há anos, ensinado por Matias Pedroso, curandeiro da Vila do Prata, no sertão da Farinha Podre, velho de muita prática e que conhecia todas as raízes e ervas do campo».

-Pois bem, disse Coelho depois de grande hesitação, está o negócio fechado. Mas, olhe que entrará no pagamento o preço das mezinhas, e as visitas hão de ser feitas em minha casa...

-Não há duvida, concordou Cirino; irei à sua fazenda todos os dias... Não é longe daqui?

-Nhor-não... duas léguas pequenas, pela estrada.

-Bem. O senhor, em voltando a casa, meta-se logo na cama.

Coelho fez sinal que sim.

-Amanhã, continuou o moço, deve tomar estes pós que lhe estou mostrando. Divida isto em duas porções; há de fazer-lhe muito efeito; depois descanse dois ou três dias, se acaso se sentir muito fraco; em seguida:

E parando de repente, encarou Coelho alguns instantes:

-O Sr. quer mesmo curar-se?

-Oh! se quero!

-E tem confiança em mim?

-Abaixo de Deus só mecê pode salvar-me.

-Então, tomará às cegas o que eu lhe receitar?

-Até carvão em brasa.

-Olhe bem o que diz... Não gosto de começar a tratar para depois parar...

-Não tenha esse medo comigo...

Viver como vivo, antes morrer...

-Então, continuou Cirino com pausa, acabados os dias de sossego, há de o senhor engolir uma boa data de leite de jaracatiá.

-Jaracatiá?! exclamaram com assombro o doente e Pereira.

-Jarracatiá?! gaguejou por seu turno Meyer, arregalando os olhos, que é jarracatiá?

-Mas isso vai queimar as tripas do homem, observou o mineiro.

Cirino replicou um tanto ofendido:

-Não sou nenhum criançola, Sr. Pereira. Sei bem o que estou dizendo. Este remédio é segredo meu, muito forte, muito daninho; mas não é nem uma, nem duas vezes, que com ele tenho curado empalamados. A coisa está no modo de dar o leite e na quantidade: por isso, é que não faço mistério, avisando contudo que com uma porçãozinha mais do que o preciso, o doente está na cova...

-Salta! atalhou Pereira, tal mezinha não quero eu... antes ficar empalamado.

-Que é jarracatia? tornou a perguntar Meyer.

Coelho abaixou a cabeça e parecia estar refletindo na resolução que havia de abraçar.

Depois, com voz melancólica:

-O dito, dito, declarou, aceito tudo o que vosmecê me der. Agora, quanto fizer está bem feito... Como é que devo tomar o jaracatiá?

-Em tempo lhe direi, replicou Cirino. Fazem-se três cortes no pé da árvore e deixa-se correr o primeiro leite: eu mesmo hei de recolher o que for bom. Tenha toda a confiança em que o senhor ficará são... Bem sabe, ninguém em negócio de doença, mais do que outro qualquer, pode nunca dizer: isto há de ser assim ou assado... Todos estamos nas mãos de Deus. Só Ele pode saber se a moléstia nos sairá do corpo ou nos há de atirar à sepultura. Todo o bom cristão conhece isto e deve conformar-se com a vontade divina... O que o médico faz é ajudar a natureza e dar a mão ao corpo quando ele pode ainda levantar-se...

-Justo, justo! apoiou Meyer, então todo empenhado em picar um formoso coleóptero.

-Assim também é que eu entendo, disse o mineiro.

-Mas, o que é jarracatiá, Sr. Pereira? insistiu o alemão.

Voltou-se o interpelado com impaciência:

-E uma árvore, Sr. Meyer, árvore grande, de folhas cortadas, que dá umas espécies de mamõezinhos. Deitam leite muito grosso e queimam os beiços quando a gente não tem cuidado. E uma árvore, ouviu? Uma árvore!

-Ah! exclamou o alemão concertando a garganta.

Nesta ocasião sacou Cirino da canastra outros remédios e passou-os a Coelho, dando-lhe minuciosas informações sobre o modo por que havia de usar deles.

-Tem muito enjôo, quando come? perguntou o curandeiro.

-Muito, Sr. doutor.

-Assim é, mas deixe estar; depois do leite de jaracatiá, volta-lhe a apetência. Nos primeiros tempos, o senhor só há de beber claras de ovos bem batidas. Depois, ira a pouco e pouco tomando mais alimento.

-Deus o ouça...

Levantou-se Pereira e, chegando-se à porta, anunciou:

-Aí vem gente... Estou ouvindo passos de animal montado... Sem dúvida e algum pobre engorovinhado de doença. Isto de moléstias, não faltam no mundo. Também há tanta maldade, que não pudera ser por menos.

Depois de ligeira pausa, acrescentou em tom de surpresa e aborrecimento.

-Hi! meu Deus!... Nossa Senhora nos socorra... Sabem quem vem chegando?... É o Garcia; está com o mal! há mais de dois anos e não quer crer na desgraça... Pobre coitado, sem dúvida vem comprar o desengano... Tenho muita pena dessa gente... mas, deveras, não a quero ver em minha casa... Vamos, Sr. doutor, despache o Garcia depressa. Com lázaros não se brinca. A Senhora Sant'Ana de tal nos livre! Nem olhar é bom.

E, Pereira, voltando-se para dentro, pediu apressadamente:

-Não deixe o homem desapear, doutor: ficava-me depois o desgosto de ter que lhe fazer alguma má-criação. Pelo amor de Deus vá lá fora... Veja o que ele quer... e dê-lhe boas tardes da nossa parte... Olhe, esta chamando... Sala, doutor; saia!

Ouvia-se, com efeito, uma voz perguntar se estava em casa o Sr. Pereira.

Este, vendo que Cirino não se apressava à medida dos seus desejos, ou temendo que o recém-chegado lhe entrasse na sala, sem demora apareceu à soleira da porta e, com manifesta sequidão, respondeu ao humilde cumprimento de chapéu e à meiga saudação que lhe era dirigida.

O morfético

O LEPROSO
Interesse? Ah! nunca inspirei senão compaixão...
O MILITAR
Quão feliz fora eu se pudesse dar-vos algum consolo!...

Xavier de Maistre, O Leproso de Aosta



Não devo ter sociedade senão comigo mesmo,
nenhum amigo, senão Deus.
Generoso estrangeiro, adeus, sê feliz.
Adeus para sempre!

Idem



A pessoa que chegara, bem que tivesse descavalgado, não se adiantou ao encontro do dono da casa. Pelo contrário como que recuou, conservando-se depois imóvel, encostado a um burrinho, cujas rédeas segurava.

De seu lugar, perguntou-lhe Pereira com expressão não muito prazenteiro:

-Então, como vai, Sr. Garcia?

-Como hei de ir, respondeu o interpelado. Mal... ou melhor, como sempre.

-Pois esteja na certeza de que muito sinto.

-Está aí o cirurgião? indagou Garcia.

-Não tarda a vir vê-lo aí fora... Olhe, é um instantezinho.

Palavras tão cruéis não pareceram fazer mossa ao desgraçado.

-Esperá-lo-ei com toda a paciência, replicou melancólico.

-Já sei que volta hoje para casa, afirmou Pereira.

-Volto. Se a noite me pegar em caminho, ficarei no pouso das Perdizes.

-É verdade: lá há uma tapera. Mas o Sr. não tem medo de almas do outro mundo? Dizem que o tal rancho velho é mal-assombrado.

-Eu? exclamou o infeliz. Só tenho medo de mim mesmo. Quisesse um defunto vir gracejar um pouco comigo, e de agradecido lhe beijava os dedos roídos dos bichos. Olhe, Sr. Pereira, continuou com voz um tanto alta e agoniada, não levo a mal o senhor não me convidar para entrar em sua casa; não, no seu caso havia de fazer o mesmo.

Oh! Sr. Garcia! quis protestar Pereira.

-Nada;... digo-lhe isto do coração... Na minha família sempre tivemos nojo de lázaros... Sou o primeiro... O sr. nem imagina... Vivi muitos anos meio desconfiado... A ninguém contei o caso... De repente, arrebentou o mal fora. Já não era mais possível enganar nem a um cego... Ah! meu Deus, quanto tenho sofrido!...

-Permita Ele, interrompeu Pereira em tom compassivo, que este doutor tenha algum remédio... Bem vê... às vezes...

-Curar a morféia? replicou Garcia com sorriso pungente de sarcasmo. Não há esse pintado... que em tal pense...

-Então para que quer ver o médico?

-Só para uma coisa... Saber pelos livros que ele tem lido e pelo conhecimento das moléstias, se isto pega... É só o que quero... Porque então fujo de minha casa. Desapareço desta terra... e vou-me arrastando até tombar nalgum canto por aí... Dizem uns que pega... outros que não... que é só do sangue... Eu não sei...

É, abanando tristemente a cabeça, apoiou-se ao tosco selim.

Depois, ergueu os olhos para os céus, e exclamou:

-Cumpra-se tudo quanto Deus Nosso Senhor Jesus Cristo houver determinado!... Se o médico me desenganar, não quero que a minha gente fique toda... marcada... Irei para São Paulo...

Pereira cortou este doloroso diálogo:

-Está bem, patrício Garcia, disse, vou já mandar-lhe o homem... espere um pouco...

E, entrando, reiterou o pedido a Cirino, que se demorara a receitar a Coelho umas beberagens de velame e pés-de-perdiz, plantas muito abundantes naquelas paragens, de grandes virtudes diuréticas e que deveriam ser empregadas um mês depois da aplicação do leite de jaracatiá.

-Ande, doutor, instou Pereira, vá lá fora ver o coitado do outro e despache-o depressa. Estou todo enfernizado por vê-lo no meu terreiro.

Cirino saiu então e, caminhando com lentidão, parou a alguns passos do mal-aventurado Garcia, cujo rosto repentinamente se contraiu enquanto tirava o chapéu com submissão e receio.

Vinha então a tarde descendo, e a luz do crepúsculo irradiava por toda a parte, tão melancólica e suave que, sem saber por que, a alma de Cirino de repente se confrangeu.

Com assombro o encarava o lázaro. Diante dele se erguera quem lhe ia apontar o caminho da eterna proscrição. Dos seus lábios ia cair a sentença última, irremediável, fatal!

Quanta angústia no olhar daquele homem! Que pensamentos sinistros! Quanta dor!

Também ficara ali atônito, boquiaberto, à espera que a palavra de Cirino lhe quebrasse o horroroso enleio. -Então, disse este depois de breve pausa, que me quer o senhor?

-Doutor, balbuciou Garcia... primeiro que tudo quero... pagar-lhe;... trouxe algum... dinheiro... mas, talvez... seja... pouco.

Interrompeu-o Cirino:

-Não recebo dinheiro para tratar... da sua moléstia.

-Quer isto dizer, replicou com acabrunhamento Garcia, que ela não tem cura... Eu bem sabia, mas... é tão duro ouvir sempre isso!... Olhe, o meu mal é de pouco... está em principio. Quem sabe... se o sr. não conhecerá alguma erva?...

-Infelizmente, respondeu Cirino, nem eu, nem ninguém conhece essa planta...

-Enfim!

E Garcia, fechando os olhos como que para concentrar as forças, continuou:

-Ah! doutor, eu sou um pobre homem... velho já cansado... Por que não me velo a morte em lugar desta podridão que me esta comendo as carnes?... Muito tempo a senti dentro de mim... Disfarcei, até ao dia em que minha neta... a filha do meu coração... a Jacinta... ela mesma, mostrou certo receio de me abraçar... Ah! senhor, quanto se sofre nesta vida!

E Garcia parou ofegante, empalidecendo muito.

-Dê-me água, exclamou ele, água... pelo amor de Deus!... Pudesse agora... ser o meu dia... A minha garganta... está que nem fogo!...

E agarrou-se aos arreios para não cair no chão.

Cirino correu a buscar água.

-Onde há de ser? perguntou Pereira.

-Onde queira, respondeu o outro com pressa, veja que aquele cristão está sofrendo...

-Ah! leve a caneca de louça... Depois a quebraremos...

Com sofreguidão tomou o lázaro o vaso, bebeu de um trago e pareceu melhorar.

-Foi um vagado, disse reassumindo aos poucos a calma. Mas, como lhe contava, certeza tinha eu do mal. Agora, só quero saber uma coisa e vou-me de partida. Esse mal... pega, doutor?

-Pega, afirmou Cirino com tristeza.

-E que me resta fazer?

-Pedir à Senhora Sant'Ana paciência e a Nosso Senhor Jesus Cristo...

Garcia abanava a cabeça acabrunhado.

...que o proteja na sua vida de desgraças. -Meu Deus, balbuciou o morfético a meia voz, dai-me forças... coragem para que eu faça o que devo fazer.

E, com súbita resolução:

-Cumpra-se a vontade do Altíssimo! exclamou, enfim. Doutor, obrigado! O pobre lázaro há de pedir ao Todo-Poderoso que neste mundo e no outro lhe pague as suas palavras de homem de letras... Adeus! Eu me vou para as terras de São Paulo... Talvez me junte à gente da minha espécie Adeus...

E, a custo montando a cavalo, voltou-se para as pessoas que tinham de longe vindo assistir à consulta.

-Adeus, disse ele acenando com o chapéu, gente e patrícios. Sr. Pereira, Sr. Coelho, mais senhores, adeus! Eu me boto de uma feita para lá das Parnaíbas... Este sertão não me vê mais nunca!,

Acolheu o silêncio essas palavras de eterna despedida.

Garcia então, esporeando com o calcanhar o ventre da cavalgadura, a passo tomou rumo da estrada geral e sumiu-se numa das voltas do caminho, quando já vinha a noite estendendo o seu lúgubre manto.

Idílio

Mas, que luz e essa que ali aparece naquela janela? A janela é o Oriente e Julieta o sol. Sobe, belo astro, sobe e mata de inveja a pálida lua.

Shakespeare, Romeu e Julieta, Ato II



Entretanto, desde algum tempo, sentia-se Virgínia agitada de mal desconhecido... Em sua fronte, não pousava mais a serenidade, nem o sorriso lhe pairava nos lábios... Pensa ela na noite, na solidão, e fogo devorador a abrasa toda.

Bernadino de Saint-Pierre, Paulo e Virgínia



Decorreram sem novidade dias e dias uns após outros; Cirino diagnosticando e curando ou melhor, receitando; Meyer aumentando cada vez mais a sua bela coleção entomológica, sempre feitorizado por Pereira, que cautelosamente tratava de mantê-lo no suspeito círculo da sua apertada vigilância.

Confidente de todos os infundados e mal empregados receios era Cirino.

-O alamão, dizia o mineiro, não me deixa pôr pé em ramo verde, mas também trago-o vigiado que é um gosto... Se desconfiasse, teria medo até da sua sombra... Estou em brasas... Não sei por que não chega o Manecão Doca... Quero arriar a carga no chão... Agora, mais do que nunca, devo casar Nocência... Estas mulheres botam sal na moleira de um homem. Salta! E ainda isto tudo não é nada.

-Então espera muito breve o Manecão? perguntou o outro com ansiedade.

-Não pode tardar... por estes dois ou três dias quando muito... Vem de Uberaba e sem dúvida por lá arranjou todos os papéis... Dei a certidão do meu casamento... a do batismo da pequena... e adiantei dinheiro para as despesas... bem que ele refugasse meio vexado.

-Então está tudo decidido? perguntou Cirino com vivacidade.

-Boa dúvida!... Já lhe tenho dito mais de uma vez. Hoje é coisa de pedra e cal... Se até trato o Manecão de filho... A honra desta casa é também honra dele.

-Mas sua filha?

-Que tem?

-Gosta dele?

-Ora se!... Um homenzarrão... desempenado. E, quando não gostasse, é vontade minha, e está acabado. Para felicidade dela e, como boa filha que é, não tem que piar... Estou, porém, certíssimo de que o noivo lhe faz bater o coração... tomara ver o cujo chegado!

Já nesse tempo, como dissemos, Inocência de todo se restabelecera, ainda que Cirino tivesse feito quanto possível render a enfermidade. Mas, quando o rubor da saúde voltou à acetinada cútis da sertaneja e o vigor ao esbelto corpo, não houve pretexto a que se apegar, e as entrevistas curtas e graves de médico foram cortadas, até mesmo para não desviar a atenção de Pereira da pessoa de Meyer.

Com o coração, pois, partido de dor, declarou que os e eus cuidados e presença se tornavam completamente desnecessários.

Seguiram-se então semanas inteiras, sem que pudesse por os ansiosos olhos na formosa namorada, e por tal modo se exacerbou a sua paixão que, para encobri-la e disfarçar a excitação nervosa, a falta de apetite e palidez externa, teve que recorrer a desculpas de moléstia; caiu realmente doente.

A incerteza em que se via, sem, pelo menos, saber se o seu afeto era ou não correspondido, dava-lhe acessos de violenta angústia, que a desoras tocava às raias da exasperação.

Uma noite, em que havia luar embaciado por ligeira bruma, tomou a sua aflição tal violência que ele decidiu fugir daquele local de sofrimentos e incertezas, logo na manhã seguinte.

Assente uma vez nesta resolução, ergueu-se do leito em que jazia prostrado pelo mais cruel desalento e, com algum custo, saiu para o terreiro, abrindo cautelosamente a porta da casa, a fim de não acordar os companheiros de quarto. Uma vez fora, sentou-se num tronco de madeiro e ali ao ar fresco e acariciador da madrugada, entrou com mais tranqüilidade a pensar no caso.

Seria uma hora depois de meia-noite.

Estavam os espaços como que iluminados por essa luz serena e fixa que irradia de um globo despolido; luz fosca, branda, sem intermitências no brilho, sem cintilações, e difundida igualmente por toda a atmosfera.

Haviam já os galos cantado uma vez, e, ao longe, muito ao longe, de vez em quando, se ouvia o clamor das anhumapocas.

Levantou-se de repente Cirino.

Depois de alguma vacilação, deu uma volta por toda a habitação, pulando os cercados, e tomou o ramo do frondoso laranjal, a cuja espessa sombra se abrigou por algum tempo.

Achegou-se, em seguida, à cerca dos fundos da casa e parou no meio do pátio, olhando com assombro para uma janela aberta.

Um vulto ali estava!... Era o dela; Inocência... Não havia duvidar.

A principio, nenhum movimento fez; mas, depois, lentamente se foi retirando e aos poucos fechou o postigo.

Cirino deu um só pulo e de leve, muito de leve, bateu apressadas pancadas na tábua da janela.

-Inocência!... Inocência!... chamou com voz sumida, mas ardente e cheia de súplica.

Ninguém lhe respondeu.

-Inocência, implorou o moço, olhe... abra e tenha pena de mim... Eu morro por sua causa...

Depois de breve tempo, que para Cirino pareceu um século, descerrou-se a medo a janela, e apareceu a moça toda assustada, sem saber por que razão ali estava nem explicar tudo aquilo.

Parecia-lhe um sonho.

Quis, entretanto, dar qualquer desculpa à situação e, fingindo-se admirada, perguntou muito baixinho e a balbuciar:

-Que vem... mecê... fazer aqui?... já... estou boa.

Da parte de fora, agarrou-lhe Cirino as mãos.

-Oh! disse ele com fogo, doente estou eu agora... Sou eu que vou morrer... porque você me enfeitiçou, e não acho remédio para o meu mal.

-Eu... não, protestou Inocência.

-Sim... você que é uma mulher como nunca vi... Seus olhos me queimaram... Sinto fogo dentro de mim... Já não vivo... o que só quero é vê-la... é amá-la, não conheço mais o que seja sono e, nesta semana, fiquei mais velho do que em muitos anos havia de ficar... E tudo, por quê, Inocência?

-Eu não sei, não, respondeu a pobrezinha com ingenuidade.

-Porque eu amo... amo-a, e sofro como um louco... como um perdido.

-Ué, exclamou ela, pois amor é sofrimento?

-Amor é sofrimento, quando a gente não sabe se a paixão é aceita, quando se não vê quem se adora; amor é céu, quando se está como eu agora estou.

-E quando a gente está longe, perguntou ela, que se sente?...

-Sente-se uma dor, cá dentro, que parece que se vai morrer... Tudo causa desgosto: só se pensa na pessoa a quem se quer, a todas as horas do dia e da noite, no sono, na reza, quando se pede a Nossa Senhora, sempre ela, ela, ela!... o bem amado... e...

-Oh! interrompeu a sertaneja com singeleza, então eu amo...

-Você? indagou Cirino sofregamente.

-Se é como... mecê diz...

-É é... eu lhe juro!...

-Então... eu amo, confirmou Inocência.

-E a quem?... Diga: a quem? Houve uma pausa, e a custo retrucou ela ladeando a questão:

-A quem me ama.

-Ah! exclamou o jovem, então é a mim... é a mim, com certeza, porque ninguém neste mundo, ninguém, ouviu? é capaz de amá-la como eu... Nem seu pai... nem sua mãe, se viva fosse... Deixe falar seu coração... Se quer ver-me fora deste mundo... diga que não sou eu, diga!...

-E como ia mecê morrer? atalhou ela com receio.

-Não falta pau para me enforcar, nem água para me afogar.

-Deus nos livre! não fale nisso... Mas, por que é que mecê gosta tanto de mim? Mecê não é meu parente, nem primo, longe que seja, nem conhecido sequer... Eu lhe vi apenas pouco tempo... e tanto se agradou de mim?

-E com você... não sucede o mesmo? perguntou Cirino.

-Comigo?

-Sim, com você... Por que é que está acordada a estas horas? Por que é que não pode dormir?... que a cama lhe parece um braseiro, como a mim também parece?... Por que pensa em alguém a todo o instante? Entretanto, esse alguém não é primo seu, longe que seja, nem conhecido sequer?...

-É verdade, confessou Inocência com doce candura.

Depois quis emendar a mão:

-Mas, quem lhe disse que vivo pensando em mecê?

-Inocência, implorou o moço, não queira negar, vejo que sou amado...

-Sempre amar! observou ela, mais para si do que para quem a ouvia. No ano que já passou e por ocasião da Sra. Sant'Ana, aqui vieram umas parentas minhas e caçoaram comigo, porque eu não as entendia: tanto assim que uma delas, a Nhã Tuca, me disse: «Deveras, mecê ainda não gostou de nenhum moço»? E eu respondi: «Não assunto o que mecês estão a prosear». Aquilo era certo, e tão verdade como estar nosso Deus no paraíso... Hoje...

-E hoje?

-Hoje? repetiu a moça. Quem sabe se não era bem melhor não ter nunca gostado de ninguém?

-Isso não está na gente... É ordem lá de cima...

-Enfim, se for destino, que se cumpra.

Conservava-se Inocência ainda um pouco arredada da janela, de modo que Cirino, para lhe falar baixinho, tinha o corpo inclinado do lado de dentro. Segurava as mãos da namorada e puxava-a com doce violência, quando mostrava querer afastar-se.

Era o ardente colóquio dos dois cortado de freqüentes pausas, durante as quais se embebiam recíprocos os olhares carregados de paixão.

-Deixa-me ver bem o teu rosto, dizia Cirino a Inocência Para mim, é muito mais belo que a Lua e tem mais brilho que o Sol.

E, apesar de alguma resistência, fraca embora, mas conscienciosa, que lhe foi oposta, conseguiu que a formosa rapariga se recostasse ao peitoril da janela.

-Amar, observou ela, deve ser coisa bem feia.

-Por quê?

-Porque estou aqui e sinto tanto fogo no rosto!... Cá dentro me diz um palpite que é pecado mortal que faço...

-Você tão pura! contestou Cirino.

-Se alguém viesse agora e nos visse, eu morria de vergonha. Sr. Cirino, deixe-me... vá-se embora!... o Sr. me atirou algum quebranto... aquela sua mezinha tinha alguma erva para mim tomar... e me virar o juízo...

-Não, atalhou o mancebo com força, eu lhe juro! Pela alma de rainha mãe... o remédio não tinha nada!

-Então por que fiquei... ansim, que me não conheço mais?... Se papai aparecesse... não tinha o direito de me matar?...

Foi-se-lhe a voz tornando cada vez mais baixa e sumiu-se num golfão de lágrimas.

Atirou-se Cirino de joelhos diante dela.

-Inocência, exclamou, pela salvação de minha alma lhe dou juramento, nada de mau fiz para prender o seu coração... Se você me quer, e porque Deus assim mandou... Sou um rapaz de bons costumes. Ate hoje nunca tinha amado mulher alguma... mas não sei como deixar de amar uma moça como você... Perdoe-me; se você sofre... eu também padeço muito... perdoe-me...

Alçara o mancebo um pouco a voz.

De repente Inocência estremeceu.

-Não ouviu ruido? perguntou ela com terror.

-Não, respondeu Cirino.

-Alguém acordou lá dentro...

-Pois... então vá ver... o que é... e se não for nada, volte... Aqui a espero, escondido à sombra da parede...

Minutos depois, reapareceu a moça.

-Não vi nada, disse.

-Então foi abusão.

-É melhor que o Sr. se vá embora.

-Não, Inocência tenha pena de mim... Eu não poderei vê-la tão cedo e... preciso conversar... mesmo para arranjo da nossa vida... O Manecão não tarda...

-Ah! exclamou ela com sobressalto, então mecê sabe...

-Sei; e desgraçadamente, breve está ele batendo aqui...

-Eu bem dizia que o sr. me havéra de perder... Antes de o ter visto... casar com aquele homem, me agradava até... Era uma novidade... porque ele me disse que me levava para a vila... Mas agora esta idéia me mete horror! Por que é que mecê mexeu comigo? Sou uma pobre menina, que não tem mãe desde criancinha... Não há tanta moça nas cidades... nos povoados?... Por que veio tirar o sono... a vontade de viver a quem era... tão alegre... que até hoje não pensou em maldade... e nunca fez dano a ninguém?

-E eu? replicou com energia Cirino, pensa então que sou feliz?... Olhe bem uma coisa Inocência: Digo-lhe isto diante de Deus: ou hei de casar com você... ou dou cabo da vida... Quem arranjou tudo assim... foi o meu caiporismo... Se eu tivesse passado aqui antes daquele homem, que odeio, que quisera matar... nada impediria que eu fosse hoje o ente mais feliz do mundo!... Mais feliz aqui neste sertão, do que o Imperador nos seus paços lá na corte do Rio de Janeiro! Eu já lhe disse... culpa não tive...

-Não há nada que nos possa salvar, atalhou a moça.

-Nada?... Talvez...

Soou nesse momento, e repentinamente, do lado do laranjal um assobio prolongado, agudíssimo, e uma pedra, arremessada por mão misteriosa e com muita força, sibilou nos ares e veio bater na parede com surda pancada, passando rente à cabeça de Cirino.

Deu Inocência abafado grito de terror e fechou rapidamente a janela, ao passo que o mancebo, esgueirando-se com celeridade pela sombra, resoluto correu para o ponto donde presumia ter partido a pedra.

Não viu ninguém.

Por toda a parte, o ruído misterioso e peculiar a uma noite calma de verão.

Percorreu em todos os sentidos o pomar, e só ouviu a bulha dos seus passos.

Afinal, de cansado, deixou o sítio e cautelosamente se dirigiu para o terreiro da frente.

Quando lá chegou, parou atônito.

O mesmo assobio, prolongado e finíssimo, desta feita talvez mais estridente, feriu-lhe os ouvidos.

Cálculos e esperanças

Apesar, porém, de jovem, apesar da violência do amor que a prendia a Julião, sabia ela conter os movimentos do coração e desconfiar de si mesma.

Walter Scott, Peveril do Pico



LISA.-Contento que tenhas bastante resolução...

LUCINDA.-Que queres que eu faça contra a autoridade de um pai? Se ele for inexorável aos meus pedidos?...

Molière



Durante os dias de estada nas terras de Pereira, as quais não tinham limites nem vizinhos dali a muitas léguas, aumentou Meyer a sua interessante coleção com extraordinária variedade de bichinhos e sobretudo borboletas.

Tal era a alegria de que se possuíra por esse fausto motivo, que a cada momento a manifestava num tom de franqueza capaz de, por si só convencer o mais descrente dos homens em questão de sinceridade.

-Sr. Pereira, dizia o naturalista, afianço-lhe que em parte alguma do Brasil estive ainda tão bem como em sua casa.

-Eu te entendo, maroto, rosnava o mineiro.

-Deveras!... Só o que sinto é que sua filha não nos aparecesse mais... Sinto muito, na verdade...

Sorriu-se Pereira com riso amarelo e replicou, apertando os punhos de raiva:

-Mochu sabe, isto são costumes cá da terra. As mulheres não são feitas para...

-Para quê? perguntou Meyer com pausa.

-Para prosearem com qualquer um...

-Que é prosearem?

-É conversar, dar de língua, explicou Cirino.

-Obrigado, doutor, retorquiu Meyer, agradecendo mais aquela indicação filológica que foi imediatamente enriquecer o seu caderno de notas. Prosear e conversar. Muito bem!... Pois é pena, Sr. Pereira, porque sua filha é uma bonita senhora!

-Nesta arapuca não caio eu, seu tratante... Hei de toda a vida andar com olho em ti, murmurava o mineiro.

-É pena, confirmava Meyer duas e três vezes... é pena...

Por certo não era esta a linguagem mais própria para desvanecer as prevenções e receios de Pereira; ao invés, mais e mais recrescia a sua vigilância sobre Meyer, o que proporcionava ao verdadeiro culpado a liberdade de que carecia para tornar a ver o mal guardado tesouro.

Não foi todavia sem custo a nova conferência.

Ficara a pobre menina tão impressionada com o final da primeira entrevista, que, por alguns dias, mal saíra do quarto.

Escrever-lhe Cirino, era de todo inútil, por isso que ela nunca aprendera a ler; e, depois, qual o meio de lhe fazer chegar às mãos qualquer papel ou recado?

Sobravam, portanto, razões para que o jovem se ralasse de impaciência e quase desesperasse da sorte. Passava as noites em claro, metido no laranjal e procurando uma solução a tanta dificuldade; atordoavam-no ainda aqueles dois assobios que não podia explicar e sobretudo aquela pedrada tão bem dirigida, que por pouco talvez o houvesse estendido por terra.

Numa dessas noites de ansiedade, viu afinal reabrir-se a janela de Inocência

A pobrezinha, abrasada também de amor, queria respirar o ar da noite e beber na viração do sertão um pouco de tranqüilidade para sua alma não afeita ao tumultuar dos sentimentos que a agitavam e, quem sabe? verificar se por ai não andava rondando aquele que no seio lhe inoculara tamanho desassossego, ímpetos tão desconhecidos e violentos, superiores a todas as suas tentativas de resistência.

Cirino, rápido como uma seta, rápido como aquela pedra arrojada tão vigorosamente, achou-se ao pé da janela e cobriu de beijos as mãos da sua amada.

-O grito? balbuciou ela. Dois gritos... e a pedrada... Que foi?

-Ah! não foi nada, respondeu apressadamente Cirino; foi ver no laranjal... era um macauã. O que pareceu pedrada era um noitibó que frechou para mim e veio dar com a cabeça na parede.

-Deveras? perguntou ela incrédula.

-Deveras. A princípio tomei também um grande susto. Depois, verifiquei que não passava de miragem. De noite, a gente em tudo vê maravilhas... Para mim, a única que vi era você, minha vida, meu anjo do céu...

Com este madrigal encetou Cirino uma conversação como a da primeira noite, como a que balbuciam duas cândidas almas na eterna e sempre nova declaração de amor, desde que Adão e Eva a trocaram. a sombra das maravilhosas árvores do Éden.

Mostrou-se o moço receoso da rivalidade de Meyer. Riu-se ela e gracejou, com espírito e bondade, da figura do estrangeiro. Com toda a confiança, chegou a idear planos de risonho futuro:

-Agora, que sei o que é amar, direi a meu pai que já não quero o Manecão...

-E se ele insistir?

-Hei de chorar... chorar muito...

-Lágrimas, muitas vezes, de nada servem.

-Mas tenho cá comigo outro recurso...

-Qual é? perguntou Cirino.

-Morrer!...

-Não! Há outros... hei de dizer-lhe...

Tomou Inocência ar grave e meio ofendido.

-Escute, Cirino, observou ela, nestes dias tenho aprendido muita coisa. Andava neste mundo e dele não conhecia maldade alguma... A paixão que tenho por mecê foi como uma luz que faiscou cá dentro de mim. Agora começo a enxergar melhor... Ninguém me disse nada; mas parece que a minha alma acordou para me avisar do que é bom e do que é mau... Sei que devo de ter medo de mecê porque pode botar-me a perder... Não formo juízo como, mas á minha honra e a de toda a minha família estão nas suas mãos...

_Inocência quis interromper Cirino.

-Deixe-me falar, deixe contar-lhe o que me enche o peito... Depois ficarei sossegada... Sou filha dos sertões; nunca morei em povoados, nunca li em livros, nem tive quem me ensinasse coisa alguma... Se eu o magoar, desculpe, será sem querer... Lembra-me que, há já um tempão, pararam aqui umas mulheres com uns homens e eu perguntei a papal por que é que ele não as mandava entrar cá para dentro, como é de costume com famílias... O pai me respondeu: -Não, Nocência, são mulheres perdidas, de vida alegre. Fiquei muito assombrada. -Mas, então, melhor, se são alegres hão de divertir-me. -Aquilo é gente airada, sem-vergonha, secundou ele. -Tive tanto dó delas que mecê não imagina. Depois fui espiar... caíam tontas no chão... pitavam e cantavam muito alto com modos tão feios, que me fizeram corar por elas! E são os homens que fazem ficar ansim as coitadas!... Antes morrer... Parece-me que Nossa Senhora há de ter pena dos que amam... mas desampara com certeza os que erram... Se não houver outro remédio, temos que nos lembrar que as almas, quando se acaba tudo neste mundo, vão, pelos céus cheios de estrelas, passeando como num jardim... Se eu me finasse e mecê também, punha-se a minha alma a correr pelos ares, procurando a de mecê, procurando, procurando, e então nós dois, juntinhos íamos viajando ora para aqui, ora para ali, às vezes pelo carreiro de São Tiago, as vezes baixando a este ermo a ver onde é que botaram os nossos corpos... Não era tão bom?

Envolvida em sua pureza como num manto de bronze, entregava-se Inocência com exaltamento e sem reserva a força da paixão. E essa natureza pudica e delicada a tal ponto dominava a Cirino, que invencível acanhamento o prendia ante a débil donzela, alheia a todos os mistérios da existência.

Por isso, ao inflamado mancebo não acudia a idéia de saltar por aquela janela e menos a de praticar qualquer ação desrespeitosa. Consumia o tempo em beijos nas mãos da namorada, em tagarelices de amor, protestos, juras e ilusões de futuro.

-Amanhã, dizia Cirino, hei de, com cuidado, assuntar a seu pai... falando no seu casamento... depois... hei de virar a conversa para mim...

-Papai, observou a menina, é muito bom, muito mesmo. Mas tenho um medo dele! Tem um gênio, meu Deus!...

-Quanto a mim... hei de falar bem claro e explícito... O que quero, é que você me seja constante.

Mas do sentimento de temor, que sobressaltava Inocência, também participava Cirino. Por isso, chegado o dia, não ousava tocar na questão, bem que as contínuas queixas de Pereira contra Meyer lhe dessem ensejo mais ou menos favorável para desembaraçadamente encetá-la. Com gosto adiava o momento decisivo e esperava perplexo qualquer incidente, que melhor servisse a seus planos.

Entretanto, apesar de se acumularem os dias sem que trouxessem modificações naquele estado de coisas, doce esperança pairava no fundo do seu coração, consentindo-lhe planos de venturoso porvir e feliz desenlace às dúvidas e sofrimentos em que vivia.

Novas histórias de Meyer

Disse-lhe Sancho: Cada qual abra bem o olho e fique alerta, porque o diabo entrou na dança e se lhe deram ensejo, ver-se-ão maravilhas. Virai-vos em mel, e as moscas vos comerão.

Cervantes, Dom Quixote, Cap. XLIX



Uma ocasião, de volta do trabalho diário, atingiu a habitual irritação Pereira contra Meyer grande intensidade. Entrara cabisbaixo, sorumbático e fez gesto a Cirino de que precisava falar-lhe a sós. Dali a pouco, saindo ambos, caminharam silenciosos pela estrada até a um regato que ficava a meio quarto de légua da casa.

-Que terá este homem hoje? dizia Cirino consigo mesmo. Talvez vá chegando o momento de tratar do assunto.

Voltou-se de repente Pereira e, com voz alterada, prorrompeu em exclamações:

-Sabe, doutor, que não posso mais aturar esse alamão?... Aquilo é um mandingueiro, uma suçuarana, vinda do inferno para me botar a perder!... Meu irmão... meu irmão, que presente me fez você!...

-Mas, que houve? perguntou Cirino.

-Olhe... se não fosse aquela carta, e a palavra que dei ao maldito... mil raios o partam, surucucu do diabo! potro melado!... já um bom balázio lhe teria varado os miolos.

-Que novidades há então, sr. Pereira? tornou a inquirir Cirino.

-Vim mesmo ate aqui para tirar este peso do coração...

-Mas...

-Sabe o senhor que aquele Mochu é pior que um tigre preto?... Parece homem à-toa, um punga, incapaz de matar uma pulga, não é?... Pois aquilo é uma alma danada... um sedutor...

-Sempre as suas desconfianças! observou Cirino.

-Desconfianças, não: agora, certeza. Pois o que quer dizer o homem todo o dia... estar a lembrar-se da menina... -Procurar trazê-la a conversa? -Como está sua filha? pergunta-me ele sempre. -Esta boa, de uma vez para todas. E ele, toda a vida a insistir... Isto me põe o sangue a ferver, mas vou-lhe respondendo com bom modo... Hoje, saiu-se o cujo de seus cuidados e disse-me como quem toma leite com farinha de milho: -Sua filha vai casar? -Vai, respondi-lhe todo trombudo. -Com quem? Tive vontade de lhe dizer: Não é da tua com seu bisbilhoteiro, seu biltre, e atacar-lhe uma cabeçada, mas, como é meu hóspede, secundei-lhe enfarruscadota, é com um homem do sertão que há de amolar a faca na pele da barriga do mariola que vier mexer com a mulher dele. O alamão não se deu por achado e, com todo o sem-vergonhismo, me retrucou: Pois o senhor faz mal. A sua filha é muito mimosa e deveria casar com alguém da cidade. -Então, perdi a paciência: Mochu, lhe disse, cada um manda em sua casa como entende: eu na minha, não quero ser anarquizado; ele, quando me viu fulo de raiva, pediu-me mil desculpas, contou-me muitas histórias, isto, aquilo, aquilo outro, et coetera e tal, que era para bem de minha filha e não sei mais o que, numa língua que pouco entendi...

-Não fez bem, atalhou Cirino.

-Boa dúvida! Aquilo é uma alma danada... boa para as caldeiras de Pedro Botelho, um judeu... enfim, um caçador de anicetos: está dito tudo!... Mas ainda não lhe contei o mais... Parece que hoje estava mesmo com o diabo no corpo... Meteu-se no mato perto da minha roca, onde eu trabalhava com os meus cativos, e lá fazia um barulhão a quebrar galhos e romper o cipoal como se fosse anta; de repente ouvi uma gritaria muito grande; era o tal Meyer com o camarada José Pinho a berrar como dois minhocões. Corri a ver o que era e os achei muito contentes a olhar para uma borboleta grande já fincada num pau de pita. O alamão pôs-se a pular como um cabrito.

-É novo, me disse ele, é novo! -Novo o que, Mochu? -Este bicho, ninguém o descobriu antes de mim! É coisa minha... Entendeu? E vou botar-lhe o nome de sua filha!...

Quando ouvi aquilo, fiquei tão passado, que não pude engolir o cuspo da boca... Vejam só... o nome de Nocência numa bicharada!. Até parece mangação... Agora, quero saber do doutor o que devo fazer... Venho pelo menos desabafar... Não posso meter uma bala naquele patife como bem merecia... mas também é demais tê-lo em casa... é demais! Peço-lhe um conselho... Felizmente, sempre o trago arredado de casa, e a menina de nada desconfia; do contrário como mulher que é, havéra de me dar que fazer... Também não sei por que é que o Manecão não chega... só ele é quem havia de me livrar destes apuros... Uma vez que o tal alamão visse a rapariga com o noivo, deixava-a sossegada... Não acha? Olhe, palavra de honra, isto ansim não é viver! Fui feito para dizer o que penso, tratar bem a todos... mas estes modos que tenho agora, só Deus sabe quanto me custam... Até o meu serviço vai sofrendo, porque muitas vezes largo a roça e ponho-me a correr atrás dos bichinhos, só para não deixar de olho o tal marreco, em lugar de feitorar o trabalho dos negros... O meu fazendeiro é um diabo ruim e já velho... Ah! meu irmão, que carga você me pôs em cima das costas! Eu então, que não nasci para esconder o que sinto cá dentro!...

E Pereira, de tão atribulado que trazia o espírito deixou-se cair num cômoro de terra.

Cirino, defronte dele, ficara de pé e pensativo.

Afinal, depois de breve dúvida, decidiu tentar fortuna e encetar a grave questão que lhe importava a felicidade.

-Sr. Pereira, disse bastante comovido, acho que o alemão faz mal em andar batendo língua em pessoa da sua família e dou razão às suas inquietações...

-Ah! vosmecê é homem de confiança.

-Mas, continuou o moço a custo e parando em cada palavra, penso que num ponto tem ele alguma razão... É quando... lhe deu... conselho... que o senhor não casasse sua filha... assim... sem perguntar a ela... se... enfim não sei... mas talvez o Manecão lhe não agrade...

Ergueu-se Pereira de um pulo e, aproximando a face, repentinamente incendida de cólera, junto ao rosto de Cirino:

-O quê? exclamou com voz de trovão, eu... consultar minha filha? Pedir-lhe licença... para casá-la?... O senhor está doido?... Ou está mangando comigo... Ai... que também...

E vago lampejo de desconfiança lhe iluminou a chamejante pupila.

Compreendeu logo Cirino a perigosa situação e, sem demora, tratou de desfazer a má impressão que produzira.

-Ah! disse com fingido riso, é verdade... Isto são costumes da cidade... aqui, no sertão, há outros modos de pensar... Desculpe-me, Sr. Pereira, este Meyer é que está a contundir-me todas as idéias. Pois eu julgo... já que pede a minha opinião, que o senhor deve continuar a ter olho no estrangeiro... e eu hei de ajudá-lo, quanto estiver nas minhas forças.

-Também agora, disse o mineiro depois de ligeira pausa, não há de ser por muito tempo... Há mais de um mês que ele aqui pára e já me... contou que breve segue viagem para Camapuã... Desenganou-se afinal... O tal meco não chegará ate lá... mas é o mesmo. Um destes dias, leva por ai algum tiro para lhe botar juízo na cachola, ou alguma facada que lhe ponha as tripas a mostra... Nem sempre há de ter cartas de irmão para sair-se bem da rascada... O diabo o leve para longe!... Voltemos, Sr. Cirino... Já demais temos deixado o bicharoco sozinho.

E encaminhou-se para a vivenda, acompanhado de Cirino. Ia este desalentado; na realidade, bem rentes lhe ficavam cortadas as esperanças que o haviam animado na tentativa de oposição ao projetado casamento da amada com o terrível e fatal Manecão.

Ainda a meio do caminho, voltou-se Pereira e disse-lhe peremptoriamente:

-Deveras, Sr. Cirino, aquelas suas palavras me buliram com o sangue todo... Ainda o sinto galopar nas veias... Que idéias estúrdias!... Que lembrança! Ah... a tal vida das cidades... cruzes!

Papilio Innocentia

Considerai a arte da composição das asas da borboleta: a regularidade da escamas, cobrindo-as como se fosse penas; a variedade das cambiantes cores: a tromba enrolada, com que suga o alimento no seio das flores: as antenas, órgãos delicados do tato, que lhe coroam a cabeça, cercada de uma rede admirável de mais de mil e duzentos olhos...

Bernadino de Saint-Pierre, Harmonias da Natureza



Meyer, que estava sentado na soleira da porta com as compridas pernas encolhidas, ergueu-se precipitadamente ao avistar Cirino e correu ao seu encontro.

Trazia o coração no rosto, um coração cheio de alegria e triunfo.

-Oh! Sr. doutor, exclamou todo risonho, venha, venha ver uma preciosidade... uma descoberta... espécie nova... não há em parte alguma... Ouviu? Coisa assim vale um tesouro... E fui eu que o descobri!... Nem sequer Juque me ajudou... pois estava deitado e dormindo... Não é verdade, Sr. Pereira?

-Veja, murmurava o mineiro, que barulhada faz ele com o tal aniceto... Ao menos, se fosse um animal grande!

-É uma espécie... nova... completamente nova! Mas já tem nome... Batizei-a logo... Vou-lhe mostrar... Espere um instante...

E, entrando na sala, voltou sem demora com uma caixinha quadrada de folha-de-flandres, que trazia com toda a reverência e cujo tampo abriu cuidadosamente.

Da própria garganta saiu um grito de admiração, que Cirino acompanhou, embora com menos entusiasmo.

Pregada em larga tábua de pita, via-se formosa e grande borboleta, com asas meio abertas, como que disposta a tomar vôo.

Eram essas asas de maravilhoso colorido; as superiores, do branco mais puro e luzidio; as de baixo, de um azul metálico de brilho vivíssimo.

Dir-se-ia a combinação aprimorada dos dois mais belos lepidópteros das matas virgens do Rio de Janeiro, Laertes e Adônis, estes, azuis como cerúleo cantinho do céu, aqueles, alvinitentes como pétalas de magnólia recém-desabrochada.

Era sem contestação lindíssimo espécime, verdadeiro capricho da esplêndida natureza daqueles paramos. Também Meyer não tinha mão em si de contente.

-Este inseto, prelecionou ele como se o ouvissem dois profissionais na matéria, pertence à falange das Helicônicas. Denominei-a logo, Papilio Innocentia, em honra à filha do Sr. Pereira, de quem tenho recebido tão bom tratamento. Tributo todo o respeito ao grande sábio Linneu -e Meyer levou a mão ao chápeu-mas mas a sua classificação já está um pouco velha. A classe e, pois, Diurna; a falange, Helicônia; o gênero Papilio e a espécie, Innocentia, espécie minha e cuja glória ninguém mais me pode tirar... Daqui vou, hoje mesmo, oficiar ao secretário perpétuo da Sociedade Entomológica de Magdeburgo, participando-lhe fato tão importante para mim e para a sábia Germânia.

Dizia Meyer tudo isto com legítima ufania e lentidão dogmática.

Depois, com mais volubilidade, e apesar de tropeçar amiudadas vezes em palavras, o que, para comodidade dos leitores, temos quase sempre deixado de indicar, continuou:

-Reparem, meus senhores, neste lepidóptero com os olhos cuidadosos da ciência. Tem quatro pés caminhantes: as antenas de terminação comprida e oval, cavada em forma de colher; os palpares maiores do que a cabeça e escamosos, tromba toda branca e lábio quase nulo. Não perdi nem sequer um pouco do seu pó, porque o pó, um só grão de pó, vale tanto como uma pena de pássaro, e a comparação é perfeita, visto como cada uma destas escamas, à semelhança das penas, é atravessada por uma traquéia, por onde circula o ar. Oh! que achado! prosseguiu ele. Que triunfo para mim! A Sociedade Entomológica de Magdeburgo há de ficar orgulhosa... Sem dúvida alguma farão uma sessão solene, extraordinária. Mein Gott!... Estou que não posso de alegria... Também, daqui a três ou quatro dias, vou-me embora desta casa... ainda que cheio de saudades...

Deveras? atalhou Pereira, vai partir?

-Sim, senhor. O meu itinerário é para Camapuã; depois vou a Miranda e talvez Nioac... Hei de subir até ao Coxim e aí, ou embarco para Cuiabá no Rio Taquari, ou sigo por terra pelo Pequiri.

-E o senhor volta para sua pátria?

-Boa dúvida!... Daqui a ano e meio, pretendo apresentar a minha coleção toda arranjada à Sociedade Entomológica...

-Homem, observou Pereira com intenção que seu hóspede não podia nem de leve perceber, eu quisera já estar nesse dia. Daqui a ano e meio, que voltas terá dado o mundo?...

-Terá percorrido, respondeu Meyer gravemente, dezoito signos do Zodíaco

-Pois bem, eu queria ver isso... Já me tarda esse dia.

-Quando ele chegar, continuou o alemão com sinceridade e um tanto comovido, hei de lembrar-me com gratidão do tratamento que recebi... nos sertões do Império... e hei de dizer... bem alto... que os brasileiros... são felizes porque são morigerados e têm muito boa índole hospitaleiros como ninguém.

-Acrescente, interrompeu Pereira com algum azedume, que zelam com todo o cuidado a honra de suas famílias.

Obedeceu docilmente Meyer e repetiu palavra por palavra.

-E zelam com todo o cuidado a honra de suas famílias.

-Multo bem, replicou o mineiro, diga isso, e o Sr. terá dito uma verdade.

Meyer parte

Adeus, pois, amigos: bela companhia! Aos lares distantes cada qual de nós, por caminhos diversos, deve um dia chegar.

Catulo, «Epigrama XLVI»



Não haviam descontinuado as visitas feitas a Cirino por enfermos de muitas léguas em torno. Tão freqüentes e teimosos eram os casos de sezões ou maleitas que a porção de sulfato de quinina que trouxera em suas canastras estava toda esgotada, pelo que se vira levado a substituir esse medicamento sem tanta confiança, porém, por plantas verdes do campo ou ervas secas, fornecidas por uns bolivianos que encontrara em Minas, vindos de Santa Cruz de ia Sierra em peregrinação pelo interior do Brasil e a tratarem de doentes, sem Chernoviz em punho, nem aqueles resquícios de conhecimentos terapêuticos que ostentava o nosso doutor.

Entre os enfermos que o vinham diariamente procurar, alguns acusavam moléstias cujas qualificações eram complicadas e estrambóticas; assim declaravam-se salteados de engasgue, espinhela caída, mal de encalhe, tosse de cachorro, feridas brabas, almorreimas, erisipelas, até assombração e mau-olhado.

Quem se queixava de engasgues era o capataz de uma fazenda minada do Vau, distante umas boas cinqüenta léguas.

-Sr. doutor, disse o enfermo, a minha vida é um continuo lidar de sofrimentos. Estou com este mal vai fazer cinco anos no São João, por sinal que me veio com uma grande dor na boca do estômago. Vezes há que não posso engolir nada, sem beber muitos galos de água, de maneira que me encharco todo e fico que mal me mexo de um lugar para outro.

-E a dor, perguntou Cirino, ainda a sente?

-Toda a vida, respondeu o capataz... O que me aflege mais é que há comidas então que não me passam a goela... É um fastio dos meus pecados... Boto uns pedacinhos no bucho e parece-me que dentro tenho um bolo que me está a subir e descer pela garganta...

Receitou o médico umas doses de erva-de-marinheiro como emético, e fez mais algumas prescrições que o enfermo ouviu com toda a religiosidade.

No estado de perturbação moral em que se achava o jovem facultativo, natural e que fosse uma coisa por outra; mais importante, porém, era a fé que suas indicações incutiam a fé, essa alavanca poderosa da medicina, esse contingente precioso que o espírito ministra aos ingentes esforços da natureza na sua constante lota contra os princípios mórbidos.

O doente de espinhela caída acusava um peso muito forte e perene no peito e a impossibilidade de levantar as mãos juntas a mesma altura.

Prescreveu-lhe Cirino amargo do campo, genciana e quina, e ordenou-lhe certas cautelas firmadas na voz geral, mas com algum fundo de razão; verbi gratia, engolir sempre a saliva e sobretudo deixar de fumar depois de comer.

O infeliz moço, ao passo que tratava de curar os outros, mais que ninguém precisava de quem nele cuidasse, pelo menos da alma.

Via não só Meyer fazendo os seus preparativos de partida, e em véspera de deixá-lo a sós com Pereira, podendo este descobrir afinal o engano em que havia laborado, como também a clínica quase esgotada, aconselhando-lhe a conveniência de transportar-se para outro ponto e continuar a interrompida jornada.

Tudo isto, e o amor a aumentar, a tirar-lhe todo o sossego, a consumi-lo a fogo lento...

Meyer, na realidade, desde o achado da sua magnífica borboleta, não pensava senão em partir

-Oh! dizia ele, eu quisera estar já em Magdeburgo... Quantas léguas, Mein Gott!... Papilio Innocentia... a minha glória! Que diz, Sr. Cirino?...

-É verdade... mas quem sabe se o senhor não deveria ficar mais tempo aqui?... Talvez achasse outra borboleta nova...

-Não, é impossível... Era felicidade demais... Além disso, o dinheiro não me havia de chegar.

-Oh! posso emprestar-lhe...

-Muito obrigado... mas é de todo impossível a minha estada aqui... Veja o senhor: tenho ainda que ir a Camapuã, a Miranda, a Cuiabá para então voltar... E só me restam poucos meses... A Sociedade Entomológica de Magdeburgo conta comigo na primavera do ano que vem...

Metida uma vez essa idéia na cabeça, Meyer não deixou mais de falar na sua viagem um só instante e, para que a execução correspondesse ao prometido, mandou na tarde seguinte, José Pinho, o camarada, alçar cargas às costas do burro, depois de as ter, ele próprio, arranjado e revistado com toda a cautela.

Julgou o carioca nesse momento dever lavrar um protesto:

-Mochu, disse ele, vai recomeçar com o seu modo de andar por essas estradas à noite... Afinal havemos todos de cair nalguma buraqueira, eu, o senhor, o barro de carga e os bichos; e não chegaremos, nem eu ao Rio de Janeiro, nem eles e o senhor à sua terra. Enfim, já estou cansado de o avisar.

No momento da partida, apresentava o naturalista aquele mesmo aspecto da célebre noite da chegada; eram aquelas mesmas frasqueiras a tiracolo, aquele mesmo ar tranqüilo e bonachão com que viera, fora de horas, pedir pousada à casa de Pereira.

Este, ao ver o hóspede a cavalo e prestes a deixar para sempre a sua morada, sentiu-se possuído de alegria, mesclada, sem saber por que, com surpresa repentina e íntima, de tal ou qual comoção. No fundo, achou de si para si as desconfianças mal empregadas, e deixou-se levar pela simpatia que em todos incutia o caráter naturalmente inofensivo e meigo do saxônio.

-Chegou, declarou Meyer, a hora da minha despedida.

E, sacudindo com força a mão e o braço do mineiro: -Sr. Pereira, meu amigo, adeus!... nunca mais nos havemos de ver... mas hei de lembrar-me do senhor toda a vida... Quando eu estiver na minha pátria, daqui a mihares e milhares de léguas... pelo pensamento recordarei os dias felizes... que aqui passei.

-Oh! Sr. Meyer, balbuciou Pereira.

-Sim, felizes, continuou Meyer com muita lentidão, felizes porque correram... sem eu perceber que o tempo estava caminhando... De todo o Brasil fica em mim a lembrança... mas desta sua casa... essa lembrança é mais viva e mais forte.

Acompanhara o alemão o seu pensamento com acentuado gesto, acenando com o punho fechado para mostrar a lealdade daquelas impressões.

Voltando-se para Cirino, acrescentou:

-Sr. doutor, as suas receitas estão todas marcadas no meu caderno... O senhor pode enganar-se às vezes... mas as suas intenções são sempre boas... e isso basta para desculpá-lo... Eu...

Interrompendo o que ia dizendo, ficou instantes a olhar para Cirino e Pereira, que estavam igualmente silenciosos, e uma lágrima comprida deslizou-se-lhe pela face, sem que a fisionomia mostrasse a menor alteração.

-Adeus! concluiu ele de repente.

-Boa viagem, Sr. Meyer, boa viagem, disse Pereira ajudando-o a montar a cavalo.

-Adeus! adeus... repetiu ele...

E interpelando o camarada:

-Juque, vá na frente!... Toque pouco no burrinho... Nosso pouso é daqui a meia légua...

Deu Meyer então de rédeas e caminhou a passo, logo após de José Pinho, este munido de cabeçudo cacete, evidentemente hostil as costas do cargueiro entregue aos seus cuidados.

-Lá vai o homem, exclamou Pereira ao ver a tropinha pelas costas. É um alívio... Ele, coitado, não era mau... mas não tinha modos... Safa, hei de me lembrar para sempre do tal Sr. Meyer! Foi uma campanha... Ué... Olhe, Sr. Cirino... não está ele de volta?... Teria esquecido alguma bugiganga?

Com efeito reaparecia a trote o alemão em carne e osso, como quem vinha procurar ou dizer coisa de importância.

-Então que tem? perguntou Pereira adiantando-se e alçando a voz. Deixou algum trem? Daqui a pouco é escurão.

Meyer, no entanto, ia chegando e de certa distância entrou a explicar a razão da volta:

-Não deixei coisa alguma, Sr. Pereira. Tão-somente faltei a um dever.

-Qual é? indagou o mineiro.

-Não me despedi de sua filha...

-Ah! replicou Pereira com vivacidade... não era preciso... tanto mais que ela... está dormindo... meio adoentado... Há pouco tinha muito peso na cabeça... Eu lhe hei de dizer... Não se incomode...

-Pois então, observou Meyer com muita gravidade, diga-lhe que tem em mim um criado, em toda a parte onde esteja... O seu nome ficou para sempre na ciência e a estima em que a tenho é grande... E uma moça muito bela... digna de ser vista na Europa...

-Pois não, pois não, interrompeu Pereira, vá sem susto...

-Sim, eu me vou, adeus!

-Vá indo... olhe que o sol dobra de repente aquele mato e a noite cai logo...

-Sim, sim, adeus, disse ele despedindo-se de uma vez.

E na estrada areenta, à luz do astro que descambava, foi-se tornando comprida a mais e mais a sombra do bom Meyer, à medida que ele marchava atrás do seu camarada, do cargueiro e da coleção entomológica.

A última entrevista

Está a máscara da noite sobre meu rosto: a não ser ela, verias as minhas faces tintas do rubor virginal.

Shakespeare, Romeu e Julieta, Ato II



Mais cresce a luz, mais aumentam as trevas das nossas desgraças.

Idem, Ato IV



Grave modificação trouxe a retirada de Meyer no sistema de viver daquela morada, onde se agitava um dos problemas mais comezinhos da natureza moral, mas que ali apresentava cores algum tanto carregadas, senão já sombrias.

Fora Pereira dormir no interior da casa, passando ali a maior parte do tempo. Assim os encontros dos dois apaixonados tornaram-se de todo impossíveis, e, não tendo mais a atenção do mineiro o alvo que sempre colimara durante a estada do alemão, começava como era de prever, a voltar-se para Cirino, a quem confessou ter tratado Meyer com injusta prevenção.

-Hoje, dizia o mineiro, dói-me a consciência do modo por que desconfiei daquele homem... Quem sabe se tudo que eu parafusei não foi abusão cá da cachola? Sr. Cirino, quando a gente entra a dar volta ao miolo... é que vê que todos têm queda para malucos... Sim senhor!... Hoje estou convencido que o tal alamão era bom e sincero... Olhou para a menina... achou-a bonitinha... e disse aquele despotismo de asneiras sem ver a mal... Em pessoa que não guarda o que pensa, é que os outros se podem fiar... Às vezes o perigo vem donde nunca se esperou... Enfim não me arrependo muito de ter feito o que fiz... Receei e tomei tento...

Amiudando-se estes e outros dizeres iguais, deram que refletir a Cirino. De uma hora para outra compreendeu que as vistas inquisitoriais poderiam tornar a sua posição insustentável.

Por enquanto tratou de encontrar-se com Inocência. Grandes eram as dificuldades; o meio único, tentar novamente as entrevistas noturnas; pelo que do laranjal não arredava pé, noites e noites inteiras, ficando ali com os olhos presos à janela da querida do coração.

Certa madrugada, viu afinal a sombra de Inocência.

Achou-se, num ápice, o mancebo junto dela e agarrou-lhe com violência nas mãos.

-Enfim, exclamou ele, eu a vejo.

-Meu pai, murmurou a moça com voz tão fraca que mal se ouvia, pode acordar...

-Não importa, replicou Cirino desabrido, descubra-se tudo... não posso mais viver assim...

-Xi! observou ela, cuidado! Se ele nos acha aqui, mata-nos logo... Olhe, vá-me esperar junto ao corguinho para lá do laranjal... daqui a nada vou ter com mecê... A porta esta só encostada...

O moço fez sinal que obedecia e sumiu-se incontinenti na escuridão do pomar.

Aquela hora dava a lua de minguante alguma claridade à terra; entretanto, como que se pressentia outra luz a preparar-se no céu para irradiar com súbito esplendor e infundir animação e alegria à natureza adormecida. Nos galhos das laranjeiras, ouvia-se o pipilar de pássaros prestes a despertar, um gorjeio intimo e aveludado de ave que cochila; e ao longe um sabia mais madrugador desfiava melodias que o silêncio harmoniosamente repercutia. Riscava-se o oriente de dúbias linhas vermelhas, prenúncio mal percebível da manhã; nos espaços pestanejavam as estrelas com brilho bastante amortecido, ao passo que fina e amarelada névoa empalecia o tênue segmento iluminado do argênteo astro.

Não era mais noite; mas ainda não era sequer a aurora.

Tão comovido se sentia Cirino, que teve de sentar-se, enquanto esperava por Inocência.

Esta não tardou: vinha vestida de uma sala de algodão grosseiro e, à cabeça, trazia uma grande manta da mesma fazenda, cujas dobras as suas mãos prendiam junto ao corpo. Estava descalça, e a firmeza com que pisava o chão coberto de seixinhos e gravetos, mostrava que o hábito lhe havia endurecido a planta dos pés, sem lhes alterar, contudo, a primitiva elegância e pequenez.

Parecia muito assustada, e, mau grado seu, dos olhos lhe rolavam lágrimas a fio.

O mancebo, apenas a avistou, correu-lhe ao encontro.

-Inocência, exclamou ele notando um gesto de dúvida, nada receie de mim... Hei de respeitá-la, como se fora uma santa... Não confia então em mim?...

-Sim! disse ela apressadamente. Por isso é que vim até cá... Entretanto, estou com a cara ardendo... de vergonha...

E levando uma das mãos de Cirino às suas faces:

-Veja, Cirino, como tenho o rosto em brasa...

Por que é que mecê veio bulir comigo? Eu era uma moça sossegada... agora, se mecê não gostasse mais de mim... eu morria...

-Deveras?

-Eu lhe juro...

É mais fácil apagarem-se de repente estas estrelas todas, do que eu deixar de amá-la...

-E Manecão? perguntou ela com terror.

-Oh! esse homem, sempre esse nome maldito!...

-Há de ser meu marido...

-Isso nunca, Inocência... É impossível!... E se fugíssemos?... Olhe, amanhã a estas mesmas horas ou mais cedo, trago para aqui dois bons animais... Você monta num, eu noutro... batemos para Sant'Ana e, a galope sempre, havemos de chegar a Uberaba... onde acharemos um padre que nos case... Vamos, ouviu?

-E mecê havia de me estimar toda a vida?

-Sempre... Diga, sim... diga pelo amor de Deus, e estamos salvos... diga!...

-E meu pai, Cirino? Que havéra de ser?... Atirava-me a maldição... eu ficava perdida... uma mulher de má vida... sem a bênção de meu pai... Não... mecê está me tentanto... Não quero fugir... Antes a desgraça para toda a existência... mas fique eu sendo o que meu nome diz que sou... Já muito peco, fazendo o que faço... Mecê é moço da cidade; não lhe custa enganar uma criatura como eu... Até...

-Pois bem, interrompeu Cirino, você não quer?... não falemos mais nisso... Não hei de querer, senão aquilo que achar bom... E se eu, por fim, me decidir a falar a seu pai?

-Deus nos livre! retorquiu ela aterrada. Pensei a principio que pudera ser, mas depois vi que era pior... Mecê não conhece o que é palavra de mineiro... ferro quebra, ela não... Manecão há de ser genro dele...

-Quem sabe, Inocência? Hei de falar tanto... pedir com tanta humildade.

-Ché, que esperança!... de nada serviria...

-Então, que fazer? bradou o moço. A que Santa agarrar-nos? Por que é que o céu nos quer tanto mal?

E ocultando a cabeça entre as mãos, desatou a chorar ruidosamente. Inocência, por seu lado, encostou a fronte ao ombro do amante, e ambos, unidos, choraram como duas crianças que eram.

Foi ela quem primeiro rompeu o silêncio

-Ah! meu Deus, se o padrinho quisesse!...

-Seu padrinho? perguntou Cirino. Quem é?... quem é ele?

-Um homem que mora para lá das Parnaíbas, já nos terrenos Gerais.

-Onde?... É longe?...

-Meio longe, meio perto... Mecê não conhece o Pauda?

-Conheço... A 16 léguas do Rio Paranaíba...

-Pois é aí que padrinho pára... A esquerda da fazenda do Pauda, numas terras de sesmaria...

-E como se chama ele?

-Antônio Cesário... Papai lhe deve favores de dinheiro e faz tudo quanto ele manda... Se dissesse uma palavra, Manecão havéra de ficar atrapalhado...

-Oh! exclamou Cirino com confiança, estamos salvos então!... Amanhã mesmo, monto a cavalo e toco para lá... Daqui à vila são sete léguas... Até lá, umas dezessete... É um passeio... Chego... conto-lhe tudo... ponho-me de rastos aos seus pés... e...

-Mas, interrompeu Inocência, não lhe fale em mim, ouviu? Não lhe diga que tratou comigo... que comigo mapiou... Estava tudo perdido... Invente umas histórias... faça-se de rico... nem de leve deixe assuntar que foi por meu juízo que mecê bateu à porta dele... Hi! com gente desconfiada, é preciso saber negacear...

-Oh! meu Deus, disse Cirino no auge da alegria, estamos salvos!... Não há dúvida... Vejo agora como há de tudo acontecer... Depois de um dia ou dois de parada na casa, desembucho o negócio. O velho escreve uma carta a seu pai e, pelo menos, se não se arredar logo o Manecão?... ganha-se tempo... Eu já quisera estar montado na minha besta tordilha queimada, a bater a estrada por aí afora... Dois dias para ir, dois para voltar, dois ou três de pousada... Com pouco mais de uma semana, estou de volta, trazendo ou a felicidade ou a caipora de uma vez. Não! Tenho fé em Nossa Senhora da Abadia... Ela nos ajudará... e juntos havemos ainda de cumprir a promessa que já fiz...

-Que permessa foi? perguntou Inocência com curiosidade.

-Irmos nós daqui até a vila a pé, botar duas velas bentas no altar de Nossa Senhora.

-Sim, confirmou a moça com fogo, eu juro... Fosse até ao fim do mundo!...

-Oh! minha santa do Paraíso, exclamou o moço apertando-a de encontro ao peito, quanto você me ama!!

E assim abraçados, quedaram eles inconscientes, enquanto a aurora vinha clareando o firmamento e desferindo para a terra raios indecisos como que a sondarem a profundidade das trevas; enquanto os pássaros chilreavam à surdina, preparando as gargantas para o matutino concerto; enquanto o orvalho subia da terra ao céu molhando o dorso das folhas das grandes árvores e suspendendo, às das rasteiras plantinhas, gotas que cintilavam já como diamantes.

Ao longe, à beira de algum rio, as aracuãs levantavam a sonora grita, e o macauã atirava aos ares os pios prolongados da áspera garganta.

-É dia, observou Inocência desprendendo-se dos braços de Cirino.

-Já! exclamou este amuado.

-Meu Deus, e eu que tenho de ir até a casa... vou-me embora...

-Então, partirei hoje mesmo, disse o moço.

-Sim...

-E na semana que vem, estou de volta...

-Pois bem... Leve com mecê esta certeza; a minha vida ou a minha morte depende do padrinho...

-A minha também, replicou o mancebo beijando com fervor as mãos de Inocência...

-Deixe-me... deixe-me, implorou ela. Adeus, estou com um medo!... Felizmente ninguém me viu...

Nesse momento e, como que para responder à asseveração, de dentro do pomar partiu aquele fino assobio que tanto assombrara os amantes na primeira das suas entrevistas.

Inocência quase caiu por terra.

-Meu Deus! balbuciou ela, que agouro!... Quem sabe se não é gente?

Ao assobio seguiu-se uma espécie de gargalhada, que gelou o sangue nas veias dos dois míseros.

Agarrou-se a menina a Cirino.

-É alma do outro mundo, murmurou ela persignando-se.

Não perdera o mancebo o sangue frio. Invocando a São Miguel, fez o sinal-da-cruz na direção dos quatro pontos cardeais; depois suspendeu a moça em seus braços e, transpondo a toda a pressa o pomar, foi depô-la junto à porta que estava entreaberta, naturalmente pelo vento.

Quase desmaiara Inocência; entretanto, reunindo as forças pôde entrar, e cautelosa correu o ferrolho interior.

Mais sossegado a esse respeito, voltou Cirino ao laranjal e, como da primeira vez, pôs-se a percorrê-lo em todos os sentidos, indagando, à nascente claridade do dia, se era ente humano ou fantasma quem dele parecia fazer joguete.

No momento em que passava por junto de uma laranjeira mais copada, viu de repente certa massa informe cair-lhe quase na cabeça e no meio de folhas e ramos quebrados vir ao chão com surdo grito de angústia.

-Cruz! T'esconjuro! bradou o moço.

E, como uma visão, passou-lhe por perto uma criaturinha, desaparecendo logo entre os troncos das árvores.

Ali esteve Cirino com os cabelos eriçados, os olhos fixos, os braços hirtos de terror, os lábios secos a tartamudear um exorcismo, e as pernas a tremer.

Uma voz, a certa distância, arrancou-o desse espasmo.

Era Pereira; com a mão encostada à boca, interpelava a um dos seus escravos.

-Faz fogo, José!... Se for alma do outro mundo ou lobisomem, a bala não pega... Se for gente, melhor.

E um tiro troou.

Sibilou uma bala aos ouvidos de Cirino, indo cravar-se numa árvore próxima.

Por outra, não esperou ele. Com o favor da escuridão que ainda reinava, deslizou rápido e foi buscar a frente da casa, quando já iam acordando os camaradas.

Mal chegara à sala, apareceu-lhe Pereira à porta.

-Que foi isso? perguntou Cirino compondo a fisionomia.

-Lá sei, respondeu o mineiro. Uma matinada de gritos no laranjal, que parecia um inferno... A pequena ficou toda que parecia querer morrer de medo. Desconfio que a alma do Coletor andou hoje me rondando a casa... Não seja presságio de mal... A Senhora Sant'Ana nos proteja.

-Pois eu cá dormi como um chumbo, disse Cirino; acordei com um tiro...

-Não há de poder enfiar outra soneca; daqui a um nadinha, está o sol batendo no terreiro.

Com efeito, depressa caminhava o alvorecer, e debaixo daquelas vivas impressões acordaram aqueles que haviam conciliado o sono, na morada de Pereira.

A Vila de Sant'Ana

Debaixo do céu há uma coisa que nunca se viu: é uma cidade pequena sem falatórios, mentiras e bisbilhotices.

Lavergne



Nesse mesmo dia, montou Cirino a cavalo e despediu-se de Pereira por uma semana ou pouco mais, dando por motivo de tão inesperada viagem, não só a necessidade de visitar alguns doentes mais afastados, senão também procurar, quer na vila, quer mesmo nos campos da província de Minas Gerais, uns remédios e símplices que lhe iam faltando.

-Daqui a um terno de dias estarei de volta, disse ao partir.

Desde a casa de Pereira até ao Albino Lata é tão ensombrada e agradável a estrada, que essas três léguas lhe foram muito fáceis de vencer.

Ali, porém, começam campos dobrados e soalheiros que, num estirão de quatro léguas, até a Vila de Sant'Ana tornam penosa a viagem, sobretudo quando são percorridos sob os ardentes raios do sol do meio-dia.

Exaltam-se e irritam-se os incômodos do espíritos, no momento em que o físico começa a sofrer.

Quando Cirino passou por aquelas campinas desabrigadas, abrasado de calor, desanimou completamente do êxito da empresa a que se atirara. Tanta esperança o alvoroçara quando ia seguindo a vereda encoberta e amena, quanto desalento sentia agora; e, descoroçoado, deixava que o animal o fosse levando a passo vagaroso e como que identificado com a disposição de ânimo do cavaleiro.

-Que vou eu fazer? pensava quase alto... Como encetar aquela conversa?

Tamanha era a dúvida que o salteava que chegou quase a blasfemar contra a amada do seu coração.

-Maldita a hora em que vi aquela mulher... Seguia eu sossegado o meu rumo... botaram-me a perder os seus olhos!... Depois, exclamou contrito:

-Perdão, Inocência! perdão, meu anjo! Estou a amaldiçoar a hora da minha felicidade... Eu, que sou homem, posso fugir... deixar-te... mas tu, amarrada à casa... Infeliz, fui o culpado!...

E, engolfado em dolorosa cogitação, alcançou a Vila de Sant'Ana do Paranaíba.

De longe é sumamente pitoresco o primeiro aspecto da povoação.

Ponto terminal do sertão de Mato Grosso, assenta no abaulado dorso de um outeirozinho. O que lhe dá, porém, encanto particular para quem a vê de fora, é o extenso laranjal, coroado anualmente de milhares de áureos pomos, em cuja folhagem verde-escura se encravam as casas e ressalta a cruz da modesta igreja matriz.

Transpondo límpido regato e vencida pedregosa ladeira com casinholas de sapé à direita e à esquerda, chega-se à rua principal, que tem por mais grandioso edifício espaçosa casa de sobrado, de construção antiquada. Ornamenta-a uma varanda de ferro e um telhado que se adianta para a rua, como a querer abrigá-la em sua totalidade dos ardores do sol.

É aí que mora o Major Martinho de Melo Taques, baixote, rechonchudo, corado.

Na sua loja de fazendas, ao rés-do-chão, reúne-se a melhor gente da localidade, para ouvi-lo dissertar sobre política, ou narrar a guerra dos farrapos no Rio Grande do Sul e a vida que se leva na corte do Rio de Janeiro, onde estivera pelos anos de 1838 a 1839.

De vez em quando, naquela silenciosa rua em que tão bem se estampa o tipo melancólico de uma povoação acanhada e em decadência, aparece uma ou outra tropa carregada, que levanta nuvens de pó vermelho e atrai às janelas rostos macilentos de mulheres, ou à porta crianças pálidas das febres do Rio Paranaíba e barrigudas de comerem terra.

Também aos domingos, à hora da missa, por ali cruzam mulheres velhas, embrulhadas em mantilhas, acompanhando outras mais mocinhas, que trajam capote comprido até aos pés e usam daqueles pentes andaluzes, de moda em tempos que já vão longe.

Atravessou Cirino a vila, e passando por defronte do Sr. Taques saudou-o com a mão, e sem parar.

Estava o major, como de costume, sentado ao balcão, de chinelos, sem meias, e rodeado das pessoas gradas do lugar, a contar não só as próprias proezas, que muitas tinha aquele estimável cidadão, senão também as façanhas dos antigos sertanejos, histórias que sabia na ponta da língua.

-Lá vai o doutor, disse um dos presentes à palestra da loja.

-Ó Sr. Cirino! interpelou o major correndo para a porta. Então que é isso? Por aqui?

-É verdade, respondeu Cirino, e vou de passagem; também por pouco tempo; talvez nesses oito ou dez dias esteja de volta.

Tudo quanto enchia a salinha havia saído para a rua, de modo que o moço ficou logo cercado. Recostavam-se uns quase à anca do animal; afagavam-lhe outros a pá do pescoço ou brincavam com o freio.

Achava-se a curiosidade aguçada: era preciso dar-lhe pasto.

Compreendeu o major o alcance da situação.

-Cada qual tem os seus negócios particulares, disse logo para começar; mas, se não há segredo que quer dizer esta sua volta?

-Já devia estar bem longe de acá, observou um sujeito. Há quase dois meses que parou aqui na cidade e...

Espere, interrompeu o vigário, não há tal dois meses. O doutor passou por esta rua há um mês e vinte dois dias, às oito horas da manhã.

-Pois bem, continuou o major, tinha tempo de sobra para estar já por bandas de Miranda...

-Isso, se fosse escoteiro, replicou Cirino, reparem que levava cargas... e, demais, viajava curando...

-É verdade! confirmou o coletor (homem esguio, que trazia um chapéu muito alto e afunilado), não pensam nisso. O que querem é falar... falar...

-Creio que o senhor não atira a mim, observou o vigário com ar rusguento.

-Quem em tal cuida, senhor padre? protestou logo o outro. Estou dizendo em geral... Em geral. Eu não...

-Mas, doutor, atalhou o major, onde esteve o senhor de molho este tempão todo?... nalguma fazenda?

Prometia ir longe o interrogatório.

-Eu já estava quase perto do Sucuriú, disse Cirino meio perturbado, no...

-Não é tão perto assim, objetou o vigário. Uma vez...

-Ouçamos, senhor padre, atalhou o coletor denunciando rixa velha com o clérigo. O moço não disse que seja perto daqui...

Repetiu o major as palavras de Cirino, acentuando-as de certo modo:

-Então o doutor já estava quase perto do Sucuriú, não é?

-De fato. Ali encontrei uma pessoa que me devia, há meses um dinheiro...

-Um dinheiro? perguntou o vigário. Uma pessoa?... Que pessoa? Quem será?

-Homem, quem poderá ser? indagaram a um tempo vozes sôfregas.

Prosseguiu o major implacável:

-Deixem o doutor explicar-se... Vocês fazem logo uma algazarra!...

Foi quase a balbuciar que Cirino procurou continuar:

-Sim... certo tropeiro... mandou ordem para mim cobrar... de um parente uma bolada... Também eu tinha que... pagar outra pessoa... que...

-Espere, espere, interrompeu o major, então o senhor velo receber dinheiro ou desembolsar? Não é uma e a mesma coisa...

-Por certo, apoiaram os circunstantes.

Cirino fez repentina parada nas suas explicações.

-Também, disse com alguma volubilidade, muito breve estarei voltando cá. Tenho de ir para lá do rio...

-Vai até as Melancias? Indagou o coletor ajeitando o nome de um pouso para ver se acertava.

-Mais adiante, respondeu o moço. E vendo a impossibilidade de escapar de tão terrível inquirição, mudou de tática.

-Na volta, disse ele dirigindo ao major, hei de lhe comprar algumas fazendas...

-Já adivinhei, exclamou o vigário cortando a palavra a Cirino, o doutor vai casar.

-Ora, chasquearam alguns, para que tanto segredo?... Ninguém lhe vai roubar a noiva!...

-Sobretudo quando as coisas têm de me vir parar às mãos, ponderou o padre.

Por instante, deram o acanhamento e o silêncio de Cirino azo a muitas observações.

-Parabéns! dizia um.

-Quem é essa feliz sertaneja? perguntaram outros.

-Juro-lhes, meus senhores, protestou o moço, não há nada...

Prosseguiu o padre:

-Pois, se quer um conselho, apresse isso; de uma cajadada matarei dois coelhos... É o senhor e o Manecão.

-Na verdade, concordaram os presentes.

-Mas, onde se meteu ele? perguntou um deles.

-Há pouco estava aqui...

-Quem? o Manecão?

-Sim...

-Ali vem ele! anunciou alguém.

No fim da rua, aparecia, com efeito, um homem montado em fogoso cavalo que sofreava com firmeza e mão adestrada.

Era a personificação do capataz de tropa.

Cabelos compridos e emaranhados, ar selváticos e sobranceiro tez queimada e vigorosa musculatura constituíam um tipo que atraía de pronto a atenção.

Metidos os pés numa espécie de polainas de couro cru de veado, grandes chinelas de ferro, lenço vermelho atado ao pescoço, garruchas nos coldres da sela e chicote de cabo de osso em punho, tudo indicava o tropeiro no exercícios da sua lida.

-Nosso Senhor... convosco, disse ao chegar, erguendo ligeiramente a aba do chapéu com a ponta do dedo indicador.

-Bons dias, Sr. Manecão? respondeu por todos o major, ou melhor, boas tardes... Já sei que desta feita vai de batida...

-Boa dúvida, grazinou o vigário, vai ver a pequerrucha.

Sorriu-se o capataz com melancolia:

-Não é por isso Sr. vigário. Não me deixo anarquizar por mulheres; mas, enfim a gente deve um dia deitar a poita... A vida é uma viagem...

Haviam Cirino e Manecão ficado no meio dos curiosos.

Fitaram-se: um, indiferente e altivo no modo de encarar; outro, descorado meio trêmulo.

-Este cujo é o cirurgião? Perguntou à meia voz Manecão? adernando no selim para o lado do coletor. A Cula da venda me disse que tinha chegado... Tem-me cara de enjoado.

-Xi! retrucou o outro, mas tem cabeça. Por aí fez um despotismo de curas.

Cirino, notando que tratavam dele, cumprimentou com um sorriso de amabilidade

-Boa tarde, patrício.

-Ora viva, correspondeu o tropeiro em tom áspero.

E, olhando para o sol, acrescentou:

-Vejam lá o que é um homem estar como mulher... a bater língua... A tarde vem descendo, e muito tenho hoje que palmear... Minha gente, adeus... sr. major, até mais ver... Sr. vigário, breve estou por cá...

Esporeou o animal o círculo abriu-se, e Manecão? partiu em boa marcha.

Aproveitando, por seu turno, aquela saída rápida, que rompera a cadeia dos que o rodeavam, apertou Cirino a mão do major e tomou rumo do Rio Paranaíba, em cuja margem contava passar a noite.

Mal desaparecera, e choveram comentários que nem saraiva.

-Notou o senhor, disse o vigário para o major, como esta mudado?... todo jururu...

-Nem tanto, contrariou o coletor, nem tanto...

O Sr. Taques, major e juiz de paz, tomou ar de profunda meditação.

-Hão de os senhores ver, disse por fim levantando um dedo para o ar, que aí há dente de coelho.

Durante aquela noite e muitos dias subsequentes, repetiu a vila todas estas célebres palavras.

-Foi o major quem o disse, asseveravam convictos, ali há dente de coelho.

A viagem

Às vezes sinto necessidade de morrer, como pessoas acordadas sentem necessidade de dormir.

Mme Du Deffand



Encantador país! Teu aspecto, teus solitários bosques ar puro e balsâmico, tem o poder de dissipar toda a sorte de tristezas, menos a da perda da esperança.

Carlota Smith



Cirino em pouco mais de uma hora, transpôs a distancia da povoação ao rio. Também, na légua e quarto que ate lá media só há de ruim o trecho em que fica a floresta que borda as margens da majestosa corrente.

Nessa mata, trazem os troncos das árvores vestígio das grandes enchentes; o terreno é lodacento e enatado; centro de putrefação vegetal donde irradiam os miasmas que, por ocasião da retirada das águas, se formam em dias de calor abrasador e sufocante.

Abundam ali coqueiros de estípite curto e folhuda coroa chamados aucuris, a que rodeiam numerosas lagoinhas de água empoçada e coberta de limo.

Em nada é, pois, aprazível o aspecto, e a lembrança de que ali imperam as temidas sezões faz que todo o viajante apresse a travessia de tão tristonhas paragens.

Ouve-se a curta distancia o ruído do rio que corre largo, claro e com rapidez.

Como duas verdes orlas refletem-se no espelhado da superfície as elevadas margens, a cujo sopé moitas de sarandis, curvadas pelo esforço das águas e num balancear continuo, produzem doce marulho.

Causa-nos involuntário cismar a contemplação de grande massa liquida a rolar, a rolar mansamente, tangida por força oculta.

Bem como a ondulação incessante e monótona do oceano agita a alma, assim também aquele perpassar perene, quase silencioso, de uma corrente caudal, insensivelmente nos leva a meditar.

E quando o homem medita, torna-se triste.

Franca e espontânea é a alegria, como todo o fato repentino da natureza. A tristeza é uma vaga aspiração metafísica uma elação inquieta e quase dolorosa acima da contingência material.

Ninguém se prepara para ficar alegre. A melancolia, pelo contrário, aos poucos é que chega como efeito de fenômenos psicológicos a encadear-se uns nos outros.

De que modo nasceu aquela enorme mole de água? Donde velo? Para onde vai? Que mistérios encerra em seu seio?

Largo tempo ficou Cirino a olhar para o rio. Em sua mente tumultuavam negros pensamentos.

Já se havia difundido o crepúsculo, e bandos folgazões de quero-queros saudavam os últimos raios do sol e despertavam os ecos em descomunal gritaria. De vez em quando, passava algum pato selvagem, batendo pesadamente as asas; sobre as águas, adejavam garças estirando e encolhendo o níveo colo e pombas, aos centos, cruzavam de margem a margem a buscar inquietas o pouso de querência.

Foi a luz gradativamente morrendo no céu, seguida de perto pelas sombras; e o rio tomou aspecto uniforme como se fora imensa lâmina de prata não brunida.

-Enfim, -conheci o Manecão? pensava Cirino. E para esse é que reservam a minha gentil Inocência... Bonito homem para qualquer... para mim, para ela, horrendo monstro!... E como é forte!...

Digamo-lo, sem por isso amesquinhar o nosso herói, a Idéia de força no rival acabrunhava-o.

-Se eu pudesse... esmagava-o!... E que ar sombrio e desconfiado!... Meu Deus, dai-me coragem... dai-me esperanças... Nossa Senhora da Abadia!... Nosso Senhor da Cana-Verde... vaiei-me!...

E o mancebo, diante daquela natureza acabrunhadora a quem tanto importava a paixão que lhe atanazava-o peito, como o inseto a chilrar debaixo da folha de humilde erva, caiu de joelhos, orando com fervor ou, melhor, desfiando automaticamente as preces que sua mãe lhe havia, em pequeno, ensinado.

E o rio lá se ia sereno; e uma onça ao longe urrava, ou algum pássaro da noite soltava gritos de susto, esvoaçando às tontas.

Transpondo na manhã seguinte, o Rio Paranaíba, pisou Cirino território de Minas Gerais.

Depois de légua e meia em mata semelhante à da margem direita, abrem-se campos dobrados, um tanto arestados do sol, de aspecto pouco variado, mas abundantíssimos em perdizes e codornas.

Tão preocupado levava o moço o espírito que, nem sequer uma só vez, imitou o pio daquelas aves; distração, a que aliás não se furta quem por lá viaja, tão instantes os motivos de instigação.

Foi com impaciência mais e mais crescente que percorreu as dezesseis léguas intermédias à fazenda do Pauda.

Ia com o coração cheio de apreensões e os olhos se lhe arrasavam de lágrimas, de cada vez que contemplava o melancólico buriti. Então, pelo pensamento voava à casa de Inocência. Também, ali junto ao córrego em cuja borda se dera a última entrevista, se erguia uma daquelas palmeiras, rainha dos sertões.

Que estaria fazendo a querida dos seus sonhos?

Que lhe aconteceria? E Manecão?! Já teria lá chegado?

Ao pensar nisto, aumentava-se-lhe a agitação e com vigor esporeava a cavalgadura.

Transformava-se para ele o caminho em dolorosa via, que numa vertiginosa carreira quisera vencer, mas que era preciso ir tragando pouso a pouso, ponto a ponto.

A majestosa impassibilidade da natureza exasperava-o.

Quando o homem sofre deveras, deseja nos raptos do alucinado orgulho, ver tudo derrocado pela fúria dos temporais, em harmonia com a tempestade que lhe vai no íntimo.

-Meu Deus! murmurava Cirino, tudo quanto me rodeia está tão alegre e é tão belo! Com tanta leveza voam os pássaros: as flores são tão mimosas; os ribeirões tão claros... tudo convida ao descanso... só eu a padecer! Antes a morte... Quem me dera arrancar do coração este peso! esta certeza de uma desgraça imensa! Que é afinal o amor?... Daqui a anos talvez nem me lembre mais da pobre Inocência... Estarei me atormentando à toa... Oh não! Essa menina é a minha vida! é o meu sangue... o meu farol para os céus... Quem ma rouba mata-me de uma vez. Venha a morte... fique ela para chorar por mim... um dia contará como um homem soube amar!...

Levantara Cirino a voz. De repente, deu um grande grito, como que o sufocava:

-Inocência!... Inocência!

E as sonoridades da solidão, dóceis a qualquer ruído, repetiram aquele adorado nome, como repetiam o uivo selvático da suçuarana, a nota plangente do sabiá ou a martelada metálica da araponga.

Como tudo, afinal, tem termo, alcançou Cirino, no quarto dia, a casa de Antônio Cesário. Acolheu-o este com toda a amabilidade e franqueza.

Recepçáo cordial

Assinalemos este dia entre os mais felizes; não se poupem ânforas; e, como Sábios, descanso não demos aos nossos pés.

Horácio, «Ode XXVI»



Em breve chegara Manecão à casa do futuro sogro.

Não é grande a distancia de Sant'Ana até lá, e entretanto o animal brioso e descansado que montava o tropeiro viera sempre estimulado do férreo acicate.

Batia de impaciência o coração do capataz, e a lembrança da formosa noiva que o esperava, enchia-o de desconhecido alvoroço. Também, por vezes, fugia-lhe do rosto o toque habitual de severidade, e tênue sorriso afastando a custo os densos bigodes lhe pairava nos lábios,

Acolheu-o Pereira com verdadeira explosão de alegria.

-Viva! viva! exclamou de longe acenando com os braços, seja bem-vindo neste rancho... Ora, até que afinal!... Faltam rojões para festejar a sua chegada... Que demora!... Pensei que não topava mais com o caminho da casa... Nocência vai pular de contente...

Enquanto o mineiro enfiava estas palavras quase em gritos, apeou-se o sertanista que, de chapéu na mão, veio pedir-lhe a bênção.

-Deus o faça um santo, disse Pereira abençoando-o com fervor. Você não queria chegar...

-Como vai a dona? perguntou Manecão.

-Agora, muito bem. Teve sezões, mas já está de todo boa...

-E lembrou-se de mim?

-Olhe, que enjoado... Pois se ele enfeitiça a gente... Eu mesmo só pensava em você... Quando estará por cá aquele marreco? dizia eu comigo mesmo:... e botava uns olhos compridos por essa estrada afora... quanto mais, mulher! Isto é um não acabar nunca de saudades. Mas, observou ele, estamos a bater língua e não o faço entrar... Agorinha mesmo, Nocência foi para o córrego... Desencilhe o pingo e deixe-o por aí...

Fez Manecão o que disse Pereira. Tirou os arreios, não de súbito, mas com cautela e lentidão para que o animal, encalmado como estava, não ficasse airado; deixou sobre o lombo a manta e, apanhando um sabugo de milho, esfregou devagar a anca e o pescoço.

Depois de dar termo àqueles cuidados, penetrou na casa fazendo soar ruidosamente as esporas, que pelas dimensões desproporcionadas o obrigavam a caminhar firmado nos dedos do pé e com a planta levantada.

O mineiro não cabia em si de contente.

-Então, está tudo arranjado? perguntou alegremente.

-Tudo. Os papéis já foram tirados... Tive que ir até Uberaba, e foi o que me atrasou... Quando mecê queira... botamo-nos de partida para a Senhora Sant'Ana... Amanhã cá chegam os cavalos que comprei... Está falado o Lata... o vigário avisado; só... falta o dia...

-Nestes casos, quanto mais depressa melhor... Não acha?

-Certo que sim...

-Então, se quiser, daqui a dois domingos...

-Como queira... Eu, cá por mim... Bem sabe, isto de casórios, o que custa é... tomar resolução... depois... deve-se pegar na carreira... A rapariga esta pronta?...

-Não sei... há de estar... Vejo-a sempre cosendo... Quero ficar bem certo do dia, porque mando chamar a gente do Roberto... Afinal, é preciso matar a porcada e mandar buscar restilo. Quando se casa uma filha e... filha única, as algibeiras devem ficar veleiras. Já estão todos combinados... é só dar o sinal... Tudo se arma logo... Aqui, em frente da casa, faz-se um grande rancho... A latada para a janta há de ser no oitão direito... Já encomendei de Sant'Ana alguns rojões, e o mestre Trabuco prometeu-me uns que deitam lágrimas... Depois, tiros de bacamarte e ronqueiras hão de troar...

-Eu, interrompeu Manecão, mandei com a sua licença vir da cidade duas dúzias de garrafas de vinho da casa do major...

-Olaré! Você meteu-se em gastos!... Duas dúzias de garrafas de vinho?

-Nhor-sim...

-Pois essas, meu caro, hão de ser reguladinhas da silva... Para o vigário... para o major... o coletor... o professor... Enfim, gente de alguma representação, porque com ela conto, sem falar na arraia miúda. Isto há de haver um despotismo. Quero que, dez dias antes da fonçonata venha a comadre do Ricardo com o seu povaréu para prepararem sequilhos, tarecos, broas, biscoitos de polvilho e brevidades. Haverá regalo de chicolate todas as manhãs... Você verá que desta festa falarão... E o sapateado à noite? Os descantes?... Talvez se possa arranjar um cururu valente...

-Mas, perguntou Manecão, qu'é de sua filha?

Riu-se Pereira.

-Maganão! não pensa noutra coisa, hem? Também fui ansim... cada qual tem o seu tempo... Isto é regra de Nosso Senhor Jesus Cristo.

E, saindo para o terreiro, gritou com força, fazendo das mãos buzina:

-Nocência!... Nocência!...

Não teve resposta.

-Coitadinha da pequena, disse ele, há de saltar que nem veadinha, quando voltar do rio.

E acrescentou:

-Já que ela não vem... entremos. Você é de casa: tome por cá e chegue até o meu quarto... Rede e peles macias não faltam.

Ao dizer estas palavras, Pereira bateu amigavelmente no ombro de Manecão e fê-lo seguir para o lanço do fundo da casa.

Cenas íntimas

Santa Maria, advogada nossa, ouvi nossos rogos. Virgem pura, ante Vós se prostra uma infeliz donzela.

Walter Scott, Os Dois Desposados



Descrever o abalo que sofreu Inocência ao dar, cara a cara com Manecão fora impossível Debuxaram-se-lhe tão vivos na fisionomia o espanto e o terror, que o reparo, não só da parte do noivo, como do próprio pai, habitualmente tão despreocupado, foi repentino,

-Que tem você? perguntou Pereira apressadamente.

-Homem, a modos, observou Manecão com tristeza, que meto medo à senhora dona...

Batiam de comoção os queixos da pobrezinha: nervoso estremecimento balanceava-lhe o corpo todo.

A ela se achegou o mineiro e pegou-lhe no braço.

-Mas você não tem febre?... Que é isto, rapariga de Deus?

Depois, meio risonho e voltando-se para Manecão:

-Já sei o que é... Ficou toda fora de si... vendo o que não contava ver... Vamos, Nocência, deixe-se de tolices.

-Eu quero, murmurou ela, voltar para o meu quarto.

E encostando-se à parede, com passo vacilante se encaminhou para dentro.

Ficara sombrio o capataz.

De sobrecenho carregado, recostara-se à mesa e fora, com a vista, seguindo aquela a quem já chamava esposa.

Sentou-se defronte dele Pereira com ar de admiração.

-E que tal? exclamou por fim... Ninguém pode contar com mulheres, iche!

Nada retorquiu o outro.

-Sua filha, indagou ele de repente com voz muito arrastada e parando a cada palavra, viu alguém?

Descorou o mineiro e quase a balbuciar:

-Não... isto é, viu... mas todos os dias... ela vê gente... Por que me pergunta isso?

-Por nada...

-Não;... explique-se... Você faz assim uma pergunta que me deixa um pouco... anarquizado. Este negócio é muito, muito sério. Dei-lhe palavra de honra que minha filha havéra de ser sua mulher... a cidade já sabe e... comigo não quero histórias... é o que lhe digo.

-Esta bom, replicou ele, nada de percipitações. Toda a vida fui ansim... Já volto; vou ver onde pára o meu cavalo.

E saiu, deixando Pereira entregue a encontradas suposições.

Decorreram dias, sem que os dois tocassem mais no assunto que lhes moía o coração. Ambos, calmos na aparência, viviam vida comum, visitavam as plantações, comiam juntos, caçavam e só se separavam à hora de dormir, quando o mineiro ia para dentro e Manecão para a sala dos hóspedes.

Inocência não aparecia.

Mal saía do quarto, pretextando recaída de sezões: entretanto, não era o seu corpo o doente, não; a sua alma, sim, essa sofria morte e paixão; e amargas lágrimas, sobretudo à noite, lhe inundavam o rosto.

-Meus Deus, exclamava ela, que será de mim? Nossa Senhora da Guia me socorra. Que pode uma infeliz rapariga dos sertões contra tanta desgraça? Eu vivia tão sossegada neste retiro, amparada por meu pai... que agora tanto medo me mete... Deus do céu, piedade, piedade.

E de joelhos, diante de tosco oratório alumiado por esguias velas de cera, orava com fervor, balbuciando as preces que costumava recitar antes de se deitar.

Uma noite, disse ela:

-Quisera uma reza que me enchesse mais o coração... que mais me aliviasse o peso da agonia de hoje...

E, como levada de inspiração, prostrou-se murmurando:

-Minha Nossa Senhora mãe da Virgem que nunca pecou, ide adiante de Deus. Pedi-lhe que tenha pena de mim... que não me deixe assim nesta dor cá de dentro tão cruel. Estendei a vossa mão sobre mim. Se é crime amar a Cirino, mandai-me a morte. Que culpa tenho eu do que me sucede? Rezei tanto, para não gostar deste homem! Tudo... tudo... foi inútil! Por que então este suplício de todos os momentos? Nem sequer tem alívio no sono? Sempre ele... ele!

As vezes, sentia Inocência em si ímpetos de resistência: era a natureza do pai que acordava, natureza forte, teimosa.

-Hei de ir, dizia então com olhos a chamejar, à igreja, mas de rastos! No rosto do padre gritarei: Não, não!... Matem-me... mas eu não quero...

Quando a lembrança de Cirino se lhe apresentava mais viva, estorcia-se de desespero. A paixão punha-lhe o peito em fogo...

-Que é isto, Santo Deus? Aquele homem me teria botado um mau olhado? Cirino, Cirino, volta, vem tomar-me... leva-me!... eu morro! Sou tua, só tua... de mais ninguém.

E caía prostrada no leito, sacudida por arrepios nervosos.

Um dia, entrou inesperadamente Pereira e achou-a toda lacrimosa.

Vinha sereno, mas com ar decidido.

-Que tem você, menina, perguntou ele, meio terno, de alguns dias para cá?

Inocência encolheu-se toda como uma pombinha que se sente agarrar.

Puxou-a brandamente o pai e fê-la sentar no seu colo.

-Vamos, que é isto, Nocência? Por que se socou assim no quarto?... Manecão lá fora a toda a hora está perguntando por você... Isto não bonito... É, ou não, o seu noivo?

Redobraram as lágrimas.

-Mulher não deve atirar-se a cara dos homens... mas também é bom não se canhar assim... É de enjoada... Um marido quase, como ele já é...

De repente o pranto de Inocência cessou.

Desvencilhou-se dos braços do pai e, de pé diante dele, encarou-o com resolução:

-Papai, sabe por que tudo isto?

-Sim.

-É porque eu... não devo...

-Não devo o quê?

-Casar.

Arregalou Pereira os olhos e de espanto abriu a boca.

-Que? perguntou ele elevando muito a voz...

Compreendeu a pobrezinha que a lata ia travar-se. Era chegado o momento.

Revestiu-se de toda coragem.

-Sim, meu pai, este casamento não deve fazer-se...

-Você está doida? observou Pereira com fingida tranqüilidade.

Prosseguiu então Inocência com muita rapidez, as faces incendiadas de rubor:

-Conto-lhe tudo papai... Não me queira mal... Foi um sonho... O outro dia, antes de Manecão chegar, estava sesteando e tive um sonho... Neste sonho, ouviu, papai? minha mãe vinha descendo do céu... Coitada! estava tão branca que metia pena... Vinha bem limpa, com um vestido todo azul... leve, leve!

-Sua mãe? balbuciou Pereira tomando de ligeiro assombro.

-Nhor-sim, ela mesma...

-Mas você não a conheceu! Morreu, quando você era pequetita...

-Não faz nada, continuou Inocência, logo vi que era minha mãe... Olhava para mim tão amorosa!... Perguntou-me: Cadê seu pai? Respondi com medo: Esta na roga; quer mecê, que ele venha? -Não, me disse ela, não é perciso; diga-lhe a ele que eu vim ate cá, para não deixar Manecão casar com você, porque há de ser infeliz... muito!... muito!...

-E depois? perguntou Pereira levantando a cabeça com ar sombrio, girando os olhos.

-Depois... disse mais... Se esse homem casar com você, uma grande desgraça há de entrar... nesta casa que foi minha e onde não haverá mais sossego. Bote seu pai bem sentido nisso. E sem mais palavra, sumiu-se como uma luz que se apaga.

Cravou Pereira olhar inquiridor na filha.

Uma suspeita lhe atravessou o espírito.

-Que sinal tinha sua mãe no rosto?

Inocência empalideceu.

Levando ambas as mãos à cabeça e prorrompendo em ruidoso pranto, exclamou:

-Não sei... eu estou mentindo... Isto tudo é mentira! mentira! Não vi minha mãe!... Perdão, minha mãe, perdão!

E, caindo de bruços sobre a cama, ficou imóvel com os cabelos esparsos pelas espáduas.

Contemplou-a Pereira largo tempo sem saber que pensar, que dizer.

Súbito se inclinou sobre o corpo da filha e ao ouvido lhe segredou com muita energia:

-Nocência, daqui a bocadinho Manecão chega da roça... você ha de ir para a sala... se não fizer boa cara, eu a mato.

E erguendo a voz:

-Ouviu? Eu a mato!... Quero antes vê-la morta, estendida, do que... a casa de um mineiro desonrada...

Às pressas saiu do quarto, deixando Inocência na mesma posição.

-Pois bem, murmurou ela, já que é preciso... morra eu!

Em casa de Cesário

Ah! a perspectiva que pode mais docemente sorrir ao meu coração é a do aniquilamento.

Klopstock, A Messíada



Cirino, logo que se estabeleceu em casa do seu novo hospedeiro, tratou de lhe captar as simpatias. Medicou um escravo que estava de cama, fez valer o conhecimento e amizade que tinha com

Pereira, conversou muito a respeito dele e incidentemente deu noticias de Inocência.

Atalhou-o Antônio Cesário neste ponto.

-Mecê a viu? perguntou ele.

-Pois não, respondeu o moço, por sinal que a curei de sezões.

-Ah! É uma guapa rapariga...

-Parece-me...

-Isso é... falo assim, porque afinal... daqui a poucos dias está casada... não sabe?

-Ouvi contar.

-Pois é verdade. O noivo passou por cá e levou a minha licença. É homem de mão-cheia. A pequena deve estar contente. Ah! nem todas no sertão são felizes assim. Tem-se por aqui o mau vezo de arranjar casamentos às cegas, e às vezes se encambulha um mocetão com uma fanadinha ou então uma sujeita de encher o olho com algum rapaz todo engrouvinhado... Cruz! E, uma vez dada a palavra, acabou-se...

Achou Cirino a ocasião própria e redargüiu com vivacidade:

-Então o senhor não é desse parecer.

-Conforme, respondeu logo Cesário com reserva. Aos pais é que convém inziminar essas coisas.

-Boa dúvida... Mas... se... sua afilhada... não gostasse de Manecão?

-Não gostasse?

-Sim.

-E que nos importa isso? Uma menina como ela não sabe o que lhe fica bem ou mal... Ninguém a vai consultar. Mulheres, o que querem é casar. Não ouviu já o patrício dizer que elas não casam com carrapato, porque não sabem qual é o macho?

E Cesário sorriu.

Depois, fechando de repente a cara, perguntou:

-Por que é que estamos a dar de língua nesse particular? Não sou amigo disso. Quer-me parecer que mecê é um tanto namorador...

-Eu? protestou Cirino com vivacidade.

-Boa dúvida. Eu cá nem falar nelas quero. Mulher é para viver muito quietinha perto do tear, tratar dos filhos e criá-los no temor de Deus; não é nem para parolar-se com ela, nem a respeito dela.

Sempre as mesmas teorias de Pereira: a mesma grosseria repassada de desprezo ao sexo fraco, a mesma suscetibilidade para desconfiar de qualquer pessoa ou de qualquer palavra que lhes parecesse menos bem soante aos prevenidos ouvidos.

-Minha afilhada, continuou Cesário, deve levantar as mãos para o céu. Achou um marido que a há de fazer feliz e torná-la mãe de uma boa dúzia de filhos.

Estremeceu Cirino, mas nada disse.

Por toda a parte esbarrava de encontro a preconceitos que nada podia vencer.

Nessa mesma tarde quis montar a cavalo e voltar para Sant'Ana entretanto, o pensamento da resistência com que Inocência encetara a terrível lata com seu pai, atuou em seu espírito e o reteve.

Decidiu-se a atacar o touro pelas aspas.

Restar-lhe-ia ao menos o consolo do desabafo, e num jogo perdido arriscava ainda ousado lance.

-Sr. Cesário, disse ele na manhã seguinte, preciso muito falar-lhe em particular.

-A mim?

-Sim, senhor.

-Pois, estou aqui às suas ordens.

-Quisera que saíssemos. O que lhe vou dizer... ninguém pode... ninguém deve ouvir.

-Oh! O senhor me assusta... Então tem segredos que me contar?

-Tenho...

-Pois vá lá... Mapiaremos fora... Ao meio-dia esteja na minha roga... sabe onde é?

-Sei...

-Espere-me num pau de peroba seco que está derrubado.

-Lá estarei.

Muito antes da hora aprazada, achava-se Cirino no lugar indicado.

Devorava-o a impaciência.

Resolvido a desvendar sem rebuço os seus amores a esse homem a quem mal conhecia, que por ele não tinha senão razões de passageira simpatia, e de quem, contudo, estava dependente sua felicidade, considerava decisivos os momentos.

Quem em tais circunstâncias se acha, enxerga em tudo quanto o rodeia sintomas de bom ou mau agouro, e nesse instante a Cirino pouco parecia sorrir a natureza.

Não chovia; mas o tempo estava carregado e sombrio.

Tinha o céu cor acinzentada e do lado do poente linhas negras e contínuas denunciavam trovoada talvez para a tarde.

Era o local, além disso, tristonho. Enfileiravam-se numa grande área, pés de milho já pendoados, dentre os quais surgiam possantes madeiros de tronco rugoso e galhada completamente despida de ramagem, uns, da base à extrema ponta, lugubremente enegrecidos pelo fogo lançado antes da sementeira; outros perdidas todas as folhas em conseqüência da incisão profunda e circular com que o machado impedira a ascensão da selva. Esses quedavam vivos mas de uma vida latente e esmorecida, denunciada por entanguidos brotos no mais alto do tope.

Quando o dia é claro, aqueles gigantes da floresta, que pela robustez do cerne haviam desafiado as chamas e os esforços do homem, servem de poleiro a inúmeros bandos de papagaios, periquitos, araçaris, ou de graúnas que formam concertos capazes de ensurdecer os ecos.

Naquela ocasião, porém, tudo era silêncio.

Só de vez em quando se ouviam pancadas surdas e intermitentes dos pica-paus de crista vermelha, agarrados aos troncos das árvores e a explorar-lhes os pontos carunchosos, subindo em ziguezagues.

À hora ajustada, apresentou-se Antônio Cesário.

Por cautela vinha armado de uma espingarda de caça, que bem serviria para derrubar alguma onça, ou animal daninho.

Seu rosto, habitualmente sereno, indicava certa inquietação, repassada de curiosidade.

-Aqui me tem, doutor, disse ele descansando a arma sobre o pau derrubado e sentando-se ao lado de Cirino. Estou pronto para ouvi-lo quanto tempo queira...

Muito pensara Cirino nesse momento a que devia chegar e, entretanto, não pudera achar o modo por que encetasse as suas declarações. Parafusara de contínuo mil pretextos sem nada assentar

Foi, pois, a balbuciar que respondeu:

-O sr... há de me desculpar... o incômodo que... lhe dou...

-Incômodo nenhum.

-E deve estar... espantado do que lhe pedi... vir falar comigo... em lugar ermo... comigo que sou como qualquer hóspede. como tantos que sua casa tão franca todos os dias recebe.

-Com efeito, confirmou Cesário.

-Pois bem, daqui a nada tudo lhe ficará claro e explicado. Se enquanto eu falar... o ofender, perdoe-me, ouviu?

Sr. Cesário, continuou Cirino após breve pausa, se o sr. visse um homem arrastado numa corredeira e pudesse atirar-lhe uma corda e salvá-lo... o faria?

-Boa dúvida, replicou o outro com forca. Ainda que corra perigo de vida, não deixarei homem nenhum, branco ou preto, livre ou escravo, rico ou pobre, conhecido ou não, sem o socorro de meu braço.

-Pois bem, exclamou Cirino arrebatadamente, sou eu esse homem que vai morrer, que está perdido e a quem o sr. pode salvar...

E respondendo à tácita suspeita de quem o ouvia:

-Não acredite que esteja doido... não. Estou tão são de juízo como o Sr. e falo-lhe a verdade. Uma palavra esclarece-lhe tudo... eu morro de paixão por uma mulher e essa mulher é... sua afiIhada!... Inocência!

De um pulo levantou-se Cesário. Seus lábios tremiam, os olhos de súbito injetados de sangue. A mão procurou a arma que lhe ficava ao lado.

-Que é isso? balbuciou encarando fixamente Cirino.

Adivinhara-lhe este todos os pensamentos.

Erguera-se também, cara a cara com Cesário:

-Mate-me, bradou ele, mate-me... É um favor que me faz... Dê cabo desta vida desgraçada.

Já arrependido do gesto que fizera e um tanto corrido de sua precipitação, replicou o outro todo sombrio:

-Não tenho razões para matá-lo... O sr. nunca me fez mal...

-Não, prosseguiu Cirino no meio desvairado, peço-lhe por favor... Se o Sr. tem caridade, e é bom, se gosta de seus filhos, se tem pai e mãe no céu... por tudo isso eu lhe peço de joelhos! mate-me... mate-me!

E deixou-se cair aos pés de Cesário, ocultando a cabeça entre as mãos.

Contemplou-o largos instantes o mineiro com surpresa.

Inclinando-se para o moço, bateu-lhe no ombro e quase com brandura lhe disse:

-Que história é essa, doutor?... Isso é loucura! Conte-me que há... Quero saber se a sua bola está girando ou não. Sou homem do sertão, mineiro de lei... mas sei tratar com gente...

A estas palavras, recobrou Cirino algum alento e pôs-se de pé.

Sentando-se então ao lado de Cesário, narrou-lhe tudo, o desespero que o minava, a certeza que tinha do amor de Inocência e a implacável sentença preferida por Pereira.

Ouvia-o Cesário atentamente. Só de vez em quando deixava escapar esta exclamação:

-Ah! mulheres!... mulheres! É a nossa perdição.

Depois que Cirino acabou de falar, encarou-o detidamente e, com ar severo, perguntou:

-Fale-me a verdade, doutor, o senhor nunca trocou palavra com Inocência? Nunca esteve só com ela?

-Estive, respondeu o outro meio receoso.

As faces de Cesário subiu uma onda de sangue.

-Então, rouquejou ele, a desgraça...

-Deus meu, atalhou Cirino com fogo, caia a alma de minha mãe no inferno, se Inocência não é pura... se...

Conteve-o Cesário com um gesto.

-Basta moço: quem jura assim, não mente... Também no meu tempo tive uma paixão infeliz... e sei o que é sofrer...

-Oh! Sr. Cesário, salve-me!...

-Que posso eu fazer? Não sabe o senhor que ela hoje hão pertence nem mesmo ao pai, ao seu próprio pai? Pertence a palavra de honra, e palavra de mineiro não volta atrás... Não sabia o senhor disso, quando deixou que o amor lhe entrasse pelos olhos?... Mulheres não pensam... mulheres o que querem é ver os homens derretidos por elas... sacrificam tudo... e por um requebro pincham na rua a honra de suas casas...

-Não, protestou Cirino, ela não é assim...

-Então é melhor que as outras? objetou Cesário com desdém.

-Sim, sim, é melhor do que tudo deste mundo. Acima dela, só Nossa Senhora!...

Ligeiramente sorriu o mineiro.

-Qual! observou ele, bem disse o outro: a paixão é um transtorno. Fica um homem que nem uma miséria! É...

-Então? interrompeu Cirino.

-Então o quê?... Já lhe não disse quanto basta? Minha afilhada pertence tanto a Manecão, como uma garrucha ou um guampo lavrado que Pereira lhe tivesse dado... Não há meios e modos de voltar atrás...

Não desanimou o mancebo.

Falou por muito tempo com verdadeira eloqüência, apelando principalmente para a proteção que todo o cristão tem obrigação de dispensar ao ente que leva à pia batismal, a seu segundo filho, ao pagãozinho por quem o padrinho se torna responsável perante Deus.

Feriu o sentimento religioso do mineiro e comoveu-o.

-Não me fale assim, contrariou este, o senhor quer ver se me puxa para o seu lado... E quem me assegura que Nocência gosta tanto da sua pessoa?... Quem?

-O coração está-lho dizendo baixinho, respondeu com calma Cirino. O senhor, que é homem de honra, acredita que eu esteja mentindo? Que tudo isso é falso?... diga, acredita?

Cesário tartamudeou:

-Sim... Assunto verdades, mas...

-Ah! exclamou Cirino, o sr. sente a consciência bater-lhe que sua afilhada está desamparada, que vai ser sacrificada... e agora tapa os ouvidos e diz: Não quero ouvir, não quero cumprir a minha palavra! Por que a deu então o sr.... essa palavra de honra de que tanto tala?... Nossa Senhora que a proteja... que a tire deste mundo... Isso há de pesar-lhe no peito... e, quando um dia tiver noticia que Inocência morreu de desgostos, há de dizer lá consigo que ajudou a cavar-lhe a sepultura.

Estava Cesário abalado; com verdadeira ansiedade retorquiu:

-Que histórias me conta o sr.? Eu metido no meu canto... vivendo tão sossegado... não bulindo com ninguém, e agora anarquizado por estes mexericos!... Quem o mandou vir cá?

-Quem seria, retrucou Cirino, senão Inocência? Porventura eu o conhecia?... algum dia o vi?... Não; foi aquele anjo que me disse: busca meu padrinho, é o último recurso. Se ele não nos amparar, então... estamos perdidos de uma vez.

Estas palavras convenceram de todo Cesário.

Ficou em silêncio, recolhido, a meditar; Cirino o observava ofegante.

-Pois bem, disse por fim o mineiro em tom grave e pausado, hei de pensar no que o sr. me conta...

-Oh! Sr. Cesário!...

-Levarei dois dias a remoer sobre o caso... O que disse uma vez, não digo duas... No fim desse tempo, monto a cavalo e apareço por casa de Pereira...

-Sim, sim, balbuciou o moço.

-Amanhã mesmo, de madrugada, o sr. sal daqui e vai esperar-me na Senhora Sant'Ana.

-Irei... salve-me...

Cesário parou um pouco.

-Agora, quero que o sr. me faça um juramento... pelas cinzas de sua mãe.

-Estou pronto.

-Pela salvação de sua alma...

-Pela salvação de minha alma, repetiu Cirino.

-Pela vida eterna...

Cirino acenou a cabeça.

-Jure!

O mancebo cruzou os dois índices e beijou-os com unção abaixando os olhos e empalidecendo.

-O Sr., disse Cesário, jurou antes de saber o que era... Deu-me boa idéia do seu caráter... Farei tudo por ajudá-lo, mas exijo-lhe uma condição... Se quiser aceitá-la, fica valendo o juramento; senão... o dito por não dito...

-Que será, meu Deus? murmurou Cirino.

-E ficar o sr. esperando em Sant'Ana. Se eu aparecer por estes oito dias, iremos juntos à casa do compadre. Se não, é que decidi contrário. Neste caso, virá o sr. até cá e aqui esperará as suas cargas que mandarei buscar. Será sinal de que nunca mais há de procurar botar as vistas em Inocência... nem sequer falar nela. Aceita?

-Aceito, respondeu o moço com exaltação; mas fique certo de uma coisa: se o Sr., no tempo marcado, não estiver na vila, reze por alma de Cirino, porque ele terá deixado este mundo de aflições.

Cesário meneou tristemente a cabeça e retirou-se, sem dizer mais palavra.

Resistência de corça

ACASTO.-Não pode ela falar?

OSVALDO.-Se falar é tão-somente fazer ouvir sons por meio da língua e dos lábios, e aquela criatura muda; mas se tão maravilhosa faculdade consiste também em tornar compreensíveis os menores pensamentos por acionados e expressivos gestos, pode dizer-se que ela a possui, pois seus olhos cheios de eloqüência têm uma linguagem inteligível, embora falha de sons de palavras.

Antiga Comédia Inglesa citada por Walter Scott



Deixamos Inocência tão abatida de corpo, quanto resoluta de espírito.

Pressentia os choques que tinha de suportar, e robustecia a alma na meditação contínua e firme de sua infelicidade.

Estava de joelhos diante da imagem de Nossa Senhora, quando a voz de seu pai a fez levantar.

-Nocência! chamava ele.

Rapidamente passou a pobrezinha a mão pelo rosto para apagar os vestígios de copioso pranto, e com passo e seguro penetrou na sala.

Estavam Pereira e Manecão sentados junto à mesa. O anãozinho Tico aquecia-se aos pálidos raios de um sol meio encoberto e, sentado à soleira da porta, brincava com umas palhinhas.

-Estou aqui, papai, disse Inocência em voz alta e um pouco trêmula.

Encarou-a Manecão com ar entre sombrio e apaixonado.

Julgou dever dizer alguma coisa.

-Até que afinal a dona saiu do ninho... É que hoje o dia está de sol, não é?

A moça nada lhe respondeu; fitou-o com tanta insistência que o fez abaixar os olhos.

-Ela esteve doente, desculpou Pereira.

E voltando-se para a filha:

-Sente-se aqui bem perto de nós... O Manecão quer conversar com você em negócios particulares.

-Bem percebe ela, observou o desazado noivo intentando abrir o motivo para risos.

Inocência replicou em tom incisivo:

-Não percebo.

-Está se... fazendo de... engraçada, balbuciou Manecão. Pois já... se esqueceu... do que tratei com seu pai?... Parece que comeu muito queijo.

Com a mesma entoação e cortando-lhe a palavra retorquiu ela:

-Não me lembro.

Houve uns minutos de silencio.

Acumulava-se a cólera no peito de Pereira; seus olhares irados iam rápidos de Manecão à imprudente filha.

-Pois, se você não se lembra, disse ele de repente, eu cá não sou tão esquecido,

-Ora, recomeçou Manecão levantando-se e vindo recostar-se à beira da mesa para ficar mais chegado à moça, faz-se de enjoada à toa... o nosso casamento...

-Seu casamento? perguntou Inocência fingindo espanto.

-Sim...

-Mas com quem?

-Ué, exclamou Manecão, com quem há de ser... Com mecê...

Pereira fora-se tornando lívido de raiva.

O anão acompanhava toda essa cena com muita atenção. Cintilavam seus olhinhos como diamantes pretos; seu corpo raquítico estremecia de impaciência e susto.

À resposta de Manecão, levantou-se rápida Inocência e, como que acastelando-se por detrás da sua cadeira, exclamou:

-Eu?... Casar com o senhor?! Antes uma boa morte!... Não quero... não quero... Nunca... Nunca...

Manecão bambaleou.

Pereira quis por-se de pé, mas por instantes não pôde.

-Está doida, balbuciou, está doida.

E, segurando-se à mesa, ergueu-se terrível.

-Então, você não quer? perguntou com os queixos a bater de raiva.

-Não, disse a moça com desespero, quero antes...

Não pode terminar.

O pai agarrara-a pela mão, obrigando-a a curvar-se toda.

Depois, com violento empurrão, arrojou-a longe, de encontro à parede.

Caiu a infeliz com abafado gemido e ficou estendida por terra, amparando o peito com as mãos. Mortal palidez cobria-lhe as faces e de ligeira brecha que se abrira na testa deslizavam gotas de sangue.

Ia Pereira precipitar-se sobre ela como para esmagá-la debaixo dos pés, mas parou de repente e, levando as mãos ao rosto, ocultou as lágrimas que dos olhos lhe saltavam a flux.

Manecão não fizera o menor gesto. Extático assistira a toda essa dolorosa cena. A fisionomia estava impassível, mas, por dentro, seu coração era um vulcão.

Lúgubre silencio reinou por algum tempo naquela sala.

O anão chegara-se a Inocência, tomando-lhe uma das mãos: depois, a fizera sentar e, no meio de carinhos, mostrara-lhe por sinais a necessidade de retirar-se.

A custo pôde ela seguir aquele conselho. Quase de rastos e ajudada por Tico é que saiu da presença do pai e de seu perseguidor.

Nenhum movimento fizeram os dois para retê-la. Calados como estavam, deixaram-se ficar de pé, um ao lado do outro, ambos acabrunhados pela grandeza daquela desgraça.

Com frenesi cofiava Manecão o basto bigode.

Pereira tinha a cabeça pendida sobre o peito.

Afinal, exclamou:

-É preciso que eu desembuche o que tenho cá dentro, senão estouro... Quem for homem que seja... Manecão, Nocência para nós está perdida... para nós, porque um homem lhe deitou um mau-olhado...

-E que homem é esse? perguntou em tom surdo e ameaçador o outro.

-Agora vejo como tudo foi... Eu mesmo meti o diabo em casa... Estive alerta... mas o mal já caminhava.

-Mas, quem é ele? tornou a perguntar com impaciência Manecão.

-Um maldito! um infame, um estrangeiro que aqui esteve... Roubou-me o sossego que Deus me deu...

Contou então às pressas Pereira todas as tentativas do alemão Meyer, tentativas que haviam sido descobertas, mas que infelizmente, pelo menos assim supunha, já haviam produzido os seus danosos frutos.

-Ah! disse por fim abaixando a voz, pensou aquele cachorro que tudo era namorar mulheres e depois dar com os pés em polvorosa, não é?... Amanhã mesmo eu lhe saio no rasto.

-Para quê? interrompeu Manecão.

-Respondam os urubus...

-Para matá-lo?

-Sim...

Houve breve pausa.

-Não será, o senhor, disse o capataz, que lhe há de dar cabo da pele.

-Por quê?

-É negócio que me pertence. O senhor é pai... eu porem sou... noivo. Mangaram com os dois... mas o alamão fica no chão.

-Pois seja, concordou Pereira, parta amanhã mesmo ou hoje... agora, se possível for. Cão danado deve logo ser morto, para que a baba não dê raiva. Vá depressa e venha contar-me que aquele homem já não existe... Como velho, como pai... abençôo a mão que o há de matar. Cala o sangue que correr... sobre os meus cabelos brancos...

Havia toda esta conversa sido atentamente ouvida por alguém: o anão Tico.

Viera a pouco e pouco aproximando-se da mesa com os olhos a fulgir.

De repente, colocou-se resolutamente entre Manecão e Pereira.

-Que quer você aqui? perguntou o mineiro com aspereza.

Começou então o homúnculo a explicar por gestos vagarosos, mas muito expressivos, que de tudo estava ciente, participando de todos os projetos e do mesmo sentimento de indignação e desespero que enchia os dois ofendidos.

Depois, apressando mais a gesticulação e por sons meio articulados, fez ver que Pereira laborava em engano, tão-somente quanto à pessoa.

Com multa propriedade de imitação e perfeita mímica, ora levantando o braço para caracterizar as fisionomias, tão exatamente representou Meyer e Cirino, que o mineiro logo os reconheceu.

-Bem sei, bem sei, Tico, murmurou ele. Você fala do doutor e daquele...

Aí o anão fez um gesto de negação e, apontando para o quarto de Inocência, indicou que nada tinha ela com o alemão.

Ficaram pasmos os dois.

-Então, balbuciou Pereira, quem será?... Ci... rino, meu Deus?!

-Sim... Sim! gritou o anão com violento esforço abaixando muitas vezes a cabeça.

-Qual! protestou Pereira, o doutor?...

Com muita habilidade e segurança Tico desenvolveu as provas que tinha.

Gesticulou como um possesso; correu para fora de casa; denunciou as entrevistas; reproduziu ao vivo todas as passadas de Cirino; mostrou o lugar do laranjal donde vira tudo, o galho quebrado em razão da sua queda; repetiu o grito que dera; lembrou a cena da madrugada, findando com aqueles tiros; exprimiu-se por sinais tão adequados e tais movimentos de cabeça e fisionomia, que toda a dúvida desapareceu do espírito de Pereira.

Então tudo se lhe descortinou claro e deslumbrante, e sua cólera subiu a um grau de violência inexprimível.

Esteve a cair fulminado.

-Infame, murmurou roxo de ira, tu me pagas!

-Infame... Infame!

Depois voltando-se para Manecão:

-Dê-me esse... eu o quero...

Abanou o capataz a cabeça.

-Não, respondeu surdamente. Esse me pertence... Caçoou com o senhor... e fez de mim chacota.

-Então, disse apressadamente Pereira, parta hoje... parta já. E quando voltar, diga só: estamos desagravados... Inocência será sua...

Parando um pouco, concluiu tomado de enleio:

-Se quiser aceitá-la.

-Havemos de conversar.

Teve o mineiro uma explosão de desespero.

-Meu Deus, exclamou com dor, em que mundo vivemos nos? Um homem entra na minha casa, come do que eu como, dorme debaixo do meu teto, bebe da água que carrego da fonte, esse homem chega aqui e, de uma morada de paz e de honra, faz um lugar de desordem e vergonha! Não, mil raios me partam!... Não quero mais saber que esse miserável respire o ar que respiro. Não! mil vezes, não! E desde já enxoto a canalhada que trouxe, gente do inferno como ele!... Hei de cuspir-lhes na cara... Pinchá-los fora como cães que são!... Ladrões!... Eu...

Interrompeu-o Manecão com calma:

-Não faça nada... E preciso que ninguém saiba do que se está passando aqui... Ninguém!... percebe?

-E então?

-Faça de conta que recebeu uma letra de Sant'Ana. O cujo foi quem a mandou, para que os camaradas o vão esperar no Leal... Ouviu?

Pereira fez sinal de tudo compreender.

-Depois, acrescentou Manecão com voz sinistra, mãos a obra.

-Você diz bem, retorquiu Pereira, tenha pena de mim... Estou com esta cabeça corno um cortiço de guaxupés... É um zumbido!... Mostre que já é dono desta casa e faça como entender... Entrego-me de pés e mãos atados a você... Tudo lhe pertence... Enquanto a honra do mineiro não for desafrontada... não levanto o rosto... Meu Deus, meu Deus, que vergonha!

-Coragem, coragem, aconselhou o outro.

-Se este socavão não chegar para esconder minhas misérias... mudo-me para as bandas do Apa... Parece que vou morrer... sinto fogo dentro da cabeça...

E, vencido pela emoção, encostou a testa à mesa, deixando cair os braços.

Bateu-lhe Manecão no ombro.

-Que é isso, meu pai? ânimo! De que serve ser homem?... Olhe cara a cara a sua desgraça... que também é minha. Não o consola a certeza de que aquele homem brevemente...

-Sim, replicou Pereira levantando a cabeça e reparando que o anão se retirara, mas que faremos deste tico de gente, que sabe tudo?

-Não o deixe sair mais de casa.

-Qual!... É que nem muçu. Quando a gente mal pensa, surge no Sucuriú e até no Corredor.

-Pois bem... Ficará sabendo que... um só piscar de olho... pode sair-lhe caro... muito caro.

-Então implorou Pereira, vá quanto antes limpar o meu paiol daquela gente... vá... Se eu pudesse ainda dormir... esquecia um pouco, mas.

Com estas palavras retirou-se a custo o mineiro.

Incontinenti foi Manecão despachar os camaradas de Cirino, os quais, pouco depois saiam com destino à casa do Leal.

Em seguida, montando o tropeiro a cavalo, partiu em carreira desapoderada para a Vila de Sant'Ana do Paranaíba, onde chegou alta noite.

Desenlace

Estão contados os grãos de areia que compõem a minha vida. É aqui que devo tombar. É aqui que ela há de acabar.

Shakespeare, Henrique V, Ato I



Eis que vi um cavalo amarelo, e quem o montava, era a morte.

São João, Apocalipse



Durante três dias, foi Cirino rigorosamente espreitado pelo noivo de Inocência.

Com a cautela própria dos seus hábitos esquivos, soube Manecão acompanhar-lhe todos os passos sem ser pressentido.

Assim notou que o rival montava a cavalo e ia até certo ponto da estrada como que esperar por alguém que não chegava. Na ida, mostrava impaciência e inquietação; na volta vinha melancólico e curvado sobre si mesmo, absorto em fundo meditar.

Ia o infeliz mancebo ao encontro de Cesário; mas este não aparecia.

Estava quase expirado o prazo combinado, e prestes a soar a hora do completo desengano.

Oh! se ele pudera!... Agarraria com forças de Josué esse sol que lhe marcava os dias e o deixaria imóvel, até que o seu salvador se resolvesse a estender-lhe a mão.

E já ia findando a semana!...

Completo o círculo de horas, se Cesário não aparecesse, começava a imperar o juramento que dera, irrevogável, implacável!

-Matar-me-ei, dizia Cirino; ficarão sabendo que não menti às minhas palavras.

Nessa firme resolução saiu da vila; passou o Rio Paranaíba e, como costumava, caminhou pela estrada de São Francisco de Sales, talvez três léguas. Contava pousar por aqueles sítios de modo que alongava o seu passeio.

Claro era o dia; lindo.

Por toda parte cantavam mil pássaros. Gritavam as gralhas nos cerrados; piavam as perdizes no relvoso chão.

Cirino ia multo agitado. Nada ouvia; os seus olhos, fitos sempre na frente, buscavam na estrada, ansiosos, o vulto de um cavaleiro.

Soou-lhe de repente aos ouvidos o tropel de um animal.

Alguém vinha a galope.

Seu coração pulsou que parecia ter entrado também a galopar.

Mas o som partia de detrás.

Sem dúvida, algum viajante vindo da vila.

Continuou Cirino na vagarosa marcha.

O estrupido vinha indicando carreira folgada e que breve consigo estaria emparelhando, quem extravagantemente em hora tão imprópria corria à desfilada.

O mancebo de nada cuidava, tanto que mal reparou que alguém a trote largo passara por perto de si, quase a roçar animal contra animal.

Dali a pouco, novo galope se fez ouvir.

Parecia que o mesmo cavaleiro havia dado de rédeas, cortando o rumo que levava.

Dessa vez, porém, Cirino acordou do letargo, esporeou vigorosamente a sua cavalgadura e... esbarrou com Manecão.

Instintivamente empalideceu. O outro estava também muito descorado.

Estacaram eles os animais e fitaram-se alguns minutos, de um lado com desconfiança e pasmo, de outro com mal concentrado furor.

-Patrício, interpelou por fim o capataz em tom provocador, que faz mecê por aqui?

-Eu? perguntou Cirino.

-Nhor-sim, mecê mesmo.

-É boa... viajo.

-Ah! viaja! replicou Manecão. Então é andejo?

-Andejo, não, contestou Cirino com força. Não sou nenhum bruto.

E por prevenção levantou a capa do coldre em que havia uma pistola, fazendo menção de a sacar.

-Não será andejo, continuou o capataz, mas então o que é?

-Sou o que sou, não é da sua conta.

Contraiu-se o rosto de Manecão.

De um tranco chegou o cavalo bem junto a Cirino e disse-lhe em voz surda:

-É um ladrão... é um cachorro!.

A esse insulto, puxou Cirino a pistola.

-Mato-o já, bradou com violência se continua a destratar-me.

Sorriu-se o capataz com desprezo.

-Gentes, observou cuspindo para um lado, vejam só que valentão... E sabe manejar garrucha!...

-Acabemos com isso, gritou Cirino.

-Acabemos, retorquiu Manecão com fingida calma.

-Mas quem é o Sr.? perguntou Cirino.

-Eu?

-Sim!... sim!...

-Então não me conhece?

-Não, balbuciou Cirino.

-Conhece Nocência? uivou Manecão com voz terrível.

E de supetão tirando uma garrucha da cintura, desfechou-a à queima-roupa em Cirino.

Varou a bala o corpo do infeliz e o fez baquear por terra.

Dois gritos estrugiram.

Um de agonia, outro de triunfo.

Ficara Cirino estendido de bruços. Reunindo as forças, que se lhe escapavam com o sangue, voltou-se de costas e prorrompeu em vociferações contra o inimigo, que o contemplava sardônico.

-Matador!... vil!... sim!... conheço Inocência... Ela é minha... Infame!... Mataste-me... mas mataste também a ela!... Que te fiz eu?... Deus te há de amaldiçoar... sim, meu Deus, meus Santos... maldição sobre este assassino... Foge, foge... minha sombra há de seguir-te sempre...

-Melhor, interrompeu Manecão do alto do cavalo, isso mesmo é o que eu quero.

-Ah! queres? continuou Cirino com voz rouquejante, não é?... Pois bem!... De noite e de dia... minha alma há de estar contigo... sempre, sempre!...

Calou-se por um pouco e, revolvendo-se no chão, passou a mão pela testa. Lentejava-lhe dos poros o suor frio e visguento da morte.

Foi seu rosto abandonando a expressão de rancor; a respiração tornou-se-lhe mais difícil.

-Não murmurou com pausa e gravidade, não quero morrer... assim. Devo sair desta vida... como cristão... Hei de saber perdoar... E reunindo as forças, acrescentou com unção e energia: Manecão... eu te perdôo... por Cristo... que morreu... na cruz, para nos salvar... eu te perdôo... Nosso Senhor tenha pena de ti... Eu te perdôo, ouviste?

A medida que o moribundo pronunciava estas palavras, esbugalhara Manecão os olhos de horror com o corpo todo a tremer.

-Não quero o teu perdão, bradou ele a custo.

-Não importa, respondeu-lhe Cirino com voz suave. Ele é... dado do fundo d'alma... Cata sobre tua cabeça...

Quero, quero morrer como cristão... Que me importa agora o mundo, a vingança... tudo?... só Inocência!... Coitada de Inocência... Quem sabe... se... ela... não morrerá? Manecão, dá-me água. Água pelo amor de Deus!... Desce do cavalo, homem... É um defunto que te pede... Desce!...

E com os braços erguidos acenava para Manecão.

-Água, bradou o mancebo forcejando por levantar-se, dá-me água... eu te dou a salvação...

Sentia o capataz escorrer-lhe o suor dentre os cabelos. Queria fugir e não podia. Parecia que os seus olhos tinham de acompanhar passo a passo a agonia da sua vitima. Aquela cena, se lhe afigurava um pesadelo, e completo torpor lhe tolhia os membros.

Tirou-o desse enleio o bater das patas de um animal que vinha pela estrada a trote.

Ouvira também Cirino o estrupido e arregalara com ansiedade os olhos.

Desabrochou-lhe nos lábios um sorriso de tristeza.

Alguém vinha chegando.

Esporeou Manecão com vigor o cavalo e, levantando uma nuvem de poeira, desapareceu num abrir e fechar de olhos.

Nisto assomava um cavaleiro numa das voltas do caminho.

Era Antônio Cesário.

Vendo um homem estirado por terra apressou o passo.

-O doutor?! exclamou apeando-se rapidamente e todo horrorizado.

-Eu mesmo, respondeu Cirino com voz fraca.

-Mas, quem lhe fez este dano, santo Deus?

E correndo para o moço ajoelhou-se junto dele e levantou-lhe o corpo.

-Quem foi o assassino?

-Ninguém, rouquejou o mísero, foi... destino... Morro contente... Dê-me água... e fale-me de Inocência...

-Água? exclamou Cesário com desespero, aqui no meio do cerrado?... O córrego fica a três léguas pelo menos...

-Ah! replicou Cirino meio desvairado, se não há... com que estancar a sede do corpo... estanque a... da alma... Inocência... onde esta? quero vê-la... Diga-lhe que morri... por causa dela...

-Mas, quem o matou? bradou o mineiro.

-Não vale a pena dizê-lo, respondeu o mancebo entre gemidos. Cuide agora... só de mim... Olhe... nunca fui mau... não tenho pecados... grandes... Acha que Deus me... há de perdoar?

-Acho, respondeu Cesário com força...

-Que fiz eu... na minha vida? Talvez... enganasse os outros... dizendo que era... médico... Mas também curei alguns. De nada mais me recordo... Ah! sim... uma divida de honra... Na minha carteira... há uns seiscentos mil-réis; pague... trezentos-ao Totó Siqueira, da vila; de... cinqüenta mil-réis a cada camarada... meu... o mais... distribua... todo... pelos pobres, sobretudo... morféticos... depois das... missas... que por mim... mandar... rezar... ouviu?... ouviu?

Fez o mineiro sinal que sim.

Vinha a morte desdobrando as suas sombras no rosto de Cirino. Ia-se-lhe empanando o brilho dos olhos; ficara a língua trôpega, afilara-se-lhe o nariz e sinistro palor mais realçava a negra cor dos seus cabelos e barbas.

Sentara-se Cesário no chão para segurar com mais jeito o corpo do moribundo. Duas lágrimas vinham-lhe sulcando as másculas faces.

Ligeiro estremecimento agitava o corpo de Cirino.

-Agora, acrescentou com voz muito sumida, chegou... o meu dia... Mas... eu lhe peço... nada diga... à sua afilhada... Não consinta... que case com... Manecão.

-Então, interrompeu Cesário, foi ele quem?...

-Não, não, contestou Cirino, mas... ela havia de ser... infeliz... Ouviu? Promete-me?

-Prometo, respondeu Cesário com firmeza. Juro até...

-Pois bem, suspirou o agonizante, agora... agradeço a morte. Quero apegar-me... às Santas do Paraíso... e chamo por...

E com esforço, no último alento, murmurou mais e mais baixo:

-Inocência!

Na tarde deste dia, o viajante que passasse por aquele sítio poderia ver uma cova coberta de fresco, sobre a qual se erguia uma cruz tosca feita de dois grossos paus amarrados com cipós.

Eram mostras da caridade do mineiro Antônio Cesário

Epílogo

Reaparece Meyer

Possuí-te do justo orgulho e coroem os louros de Apolo tua cabeça.

Horácio



No dia 18 de agosto de 1863, presenciava a cidade de Magdeburgo pomposo espetáculo, há muito anunciado no mundo científico da sabia Germânia.

Era uma sessão extraordinária e solene da Sociedade Geral Entomológica, a qual chamava a postos não só todos os seus membros efetivos, honorários, correspondentes, como muitos convidados de ocasião, a fim de acolher e levar ao capitólio da glória um dos seus mais distintos filhos, um dos mais infatigáveis investigadores dos segredos da natureza, intrépido viajante, ausente da pátria desde anos e de volta da América Meridional, em cujas regiões centrais por tal forma se embrenhara, que impossível havia sido seguir-lhe o roteiro, até nos mapas e cartas especiais do grande colecionador Simão Schropp.

Revestira-se de mil galas a ciência. Todos os sócios de casaca preta, gravata e luvas brancas alguns com discursos nos bolsos, enchiam a sala das sessões muito antes da hora marcada; a orquestra executava a sonata n.º 26 de Ludwig van Beethoven, e senhoras ostentavam toaletes ricas e de aprimorado gosto.

De repente atroou um grito:

-Vivat Meyer! Hurrah! Vivat! Hoch! Hoch!...

E, ao passo que todos os pescoços se estiravam para ver quem entrava sacudiam-se no ar com entusiasmo lenços e chapéus.

Acalmada a ruidosa manifestação, levantou-se o presidente da Sociedade Entomológica, um presidente magro como um espeto e ornamentado de ruiva cabeleira que lhe dava o aspecto de um projeto de incêndio.

-Sim! exclamou ele depois de ter bebido uns goles d'água açucarada e de haver preparado a garganta; eis enfim, aqui, no meio de nós, o grande, o vencedor, o incomparável Guilherme Tembel Meyer!...

E neste gosto falou duas horas seguidas

No dia seguinte, traziam as gazetas de Magdeburgo extensa relação da festa, transcreviam o discurso do presidente e, como apêndice às notas biográficas relativas a Meyer, enumeravam os prodígios entomológicos que havia recolhido em suas dilatadas peregrinações.

«O que há de mais digno de admiração, dizia O Tempo (Die Zeit), em toda a imensa e preciosíssima coleção trazida pelo Dr. Meyer das suas viagens, é sem contestação uma borboleta, gênero completamente novo e de esplendor acima de qualquer concepção. É a Papilo Innocentia... (Seguia-se uma descrição de minuciosidade perfeitamente germânica).»

«O nome, acrescentava a folha, dado pelo eminente naturalista àquele soberbo espécime foi graciosa homenagem à beleza de uma donzela (Mädchen) dos desertos da Província de Mato Grosso (Brasil), criatura, segundo conta o Dr. Meyer, de fascinadora formosura. Vê-se, pois, que também os sábios possuem coração tangível e podem, por vezes, usar da ciência como meio de demonstrar impressões sentimentais de que muitos não os julgam suscetíveis.»

* * *

Inocência, coitadinha...

Exatamente nesse dia fazia dois anos que o seu gentil corpo fora entregue à terra, no imenso sertão de Sant'Ana do Paranaíba, para aí dormir o sono da eternidade.