Selecciona una palabra y presiona la tecla d para obtener su definición.
Siguiente


Lucíola

José de Alencar

- I -

A senhora estranhou, na última vez que estivemos juntos, a minha excessiva indulgência pelas criaturas infelizes, que escandalizam a sociedade com a ostentação do seu luxo e extravagâncias.

Quis responder-lhe imediatamente, tanto é o apreço em que tenho o tato sutil e esquisito da mulher superior para julgar de uma questão de sentimento. Não o fiz, porque vi sentada no sofá, do outro lado do salão, sua neta, gentil menina de 16 anos, flor cândida e suave, que mal desabrocha à sombra materna. Embora não pudesse ouvir-nos, a minha história seria uma profanação na atmosfera que ela purificava com os perfumes da sua inocência; e -quem sabe?- talvez por ignota repercussão o melindre de seu pudor se arrufasse unicamente com os palpites de emoções que iam acordar em minha alma.

Receei também que a palavra viva, rápida e impressionável não pudesse, como a pena calma e refletida, perscrutar os mistérios que desejava desvendar-lhe, sem romper alguns fios da tênue gaza com que a fina educação envolve certas idéias, como envolve a moda em rendas e tecidos diáfanos os mais sedutores encantos da mulher. Vê-se tudo; mas furta-se aos olhos a indecente nudez.

Calando-me naquela ocasião, prometi dar-lhe a razão que a senhora exigia; e cumpro o meu propósito mais cedo do que pensava. Trouxe no desejo de agradar-lhe a inspiração; e achei voltando a insônia de recordações que despertara a nossa conversa. Escrevi as páginas que lhe envio, as quais a senhora dará um título e o destino que merecerem. É um perfil de mulher apenas esboçado.

Desculpe, se alguma vez a fizer corar sob os seus cabelos brancos, pura e santa coroa de uma virtude que eu respeito. O rubor vexa em face de um homem; mas em face do papel, muda e impassível testemunha, ele deve ser para aquelas que já imolaram à velhice os últimos desejos, uma como essência de gozos extintos, ou extremo perfume que deixam nos espinhos as desfolhadas rosas.

De resto, a senhora sabe que não é possível pintar sem que a luz projete claros e escuros. Às sombras do meu quadro se esfumam traços carregados, contrastam debuxando o relevo colorido de límpidos contornos.

- II -

A primeira vez que vim ao Rio de Janeiro foi em 1855.

Poucos dias depois da minha chegada, um amigo e companheiro de infância, o Dr. Sá, levou-me à festa da Glória; uma das poucas festas populares da corte. Conforme o costume, a grande romaria desfilando pela Rua da Lapa e ao longo do cais, serpejava nas faldas do outeiro e apinhava-se em torno da poética ermida, cujo âmbito regurgitava com a multidão do povo.

Era ave-maria quando chegamos ao adro; perdida a esperança de romper a mole de gente que murava cada uma das portas da igreja, nos resignamos a gozar da fresca viração que vinha do mar, contemplando o delicioso panorama da baía e admirando ou criticando as devotas que também tinham chegado tarde e pareciam satisfeitas com a exibição de seus adornos.

Enquanto Sá era disputado pelos numerosos amigos e conhecidos, gozava eu da minha tranqüila e independente obscuridade, sentado comodamente sobre a pequena muralha e resolvido a estabelecer ali o meu observatório. Para um provinciano recém-chegado à corte, que melhor festa do que ver passar-lhe pelos olhos, à doce luz da tarde, uma parte da população desta grande cidade, com os seus vários matizes e infinitas gradações?

Todas as raças, desde o caucasiano sem mescla até o africano puro; todas as posições, desde as ilustrações da política, da fortuna ou do talento, até o proletário humilde e desconhecido; todas as profissões, desde o banqueiro até o mendigo; finalmente, todos os tipos grotescos da sociedade brasileira, desde a arrogante nulidade até a vil lisonja, desfilaram em face de mim, roçando a seda e a casimira pela baeta ou pelo algodão, misturando os perfumes delicados às impuras exalações, o fumo aromático do havana às acres baforadas do cigarro de palha.

-É uma festa filosófica essa festa da Glória! Aprendi mais naquela meia hora de observação do que nos cinco anos que acabava de esperdiçar em Olinda com uma prodigalidade verdadeiramente brasileira.

A lua vinha assomando pelo cimo das montanhas fronteiras; descobri nessa ocasião, a alguns passos de mim, uma linda moça, que parara um instante para contemplar no horizonte as nuvens brancas esgarçadas sobre o céu azul e estrelado. Admirei-lhe do primeiro olhar um talhe esbelto e de suprema elegância. O vestido que o moldava era cinzento com orlas de veludo castanho e dava esquisito realce a um desses rostos suaves, puros e diáfanos, que parecem vão desfazer-se ao menor sopro, como os tênues vapores da alvorada. Ressumbrava na sua muda contemplação doce melancolia e não sei que laivos de tão ingênua castidade, que o meu olhar repousou calmo e sereno na mimosa aparição.

-Já vi esta moça! disse comigo. Mas onde?...

Ela pouco demorou-se na sua graciosa imobilidade e continuou lentamente o passeio interrompido. Meu companheiro cumprimentou-a com um gesto familiar; eu, com respeitosa cortesia, que me foi retribuída por uma imperceptível inclinação da fronte.

-Quem é esta senhora? perguntei a Sá.

A resposta foi o sorriso inexprimível, mistura de sarcasmo, de bonomia e fatuidade, que desperta nos elegantes da corte a ignorância de um amigo, profano na difícil ciência das banalidades sociais.

-Não é uma senhora, Paulo! É uma mulher bonita. Queres conhecê-la?...

Compreendi e corei de minha simplicidade provinciana, que confundira a máscara hipócrita do vício com o modesto recato da inocência. Só então notei que aquela moça estava só, e que a ausência de um pai, de um marido, ou de um irmão, devia-me ter feito suspeitar a verdade.

Depois de algumas voltas descobrimos ao longe a ondulação do seu vestido, e fomos encontrá-la, retirada a um canto, distribuindo algumas pequenas moedas de prata à multidão de pobres que a cercava. Voltou-se confusa ouvindo Sá pronunciar o seu nome:

-Lúcia!

-Não há modos de livrar-se uma pessoa desta gente! São de uma impertinência! disse ela mostrando os pobres e esquivando-se aos seus agradecimentos.

Feita a apresentação no tom desdenhoso e altivo com que um moço distinto se dirige a essas sultanas do ouro, e trocadas algumas palavras triviais, meu amigo perguntou-lhe:

-Vieste só?

-Em corpo e alma.

-E não tens companhia para a volta?

Ela fez um gesto negativo.

-Neste caso ofereço-te a minha, ou antes a nossa.

-Em qualquer outra ocasião aceitaria com muito prazer; hoje não posso.

-Já vejo que não foste franca!

-Não acredita?... Se eu viesse por passeio!

-E qual é o outro motivo que te pode trazer à festa da Glória?

-A senhora veio talvez por devoção? disse eu.

-A Lúcia devota!... Bem se vê que a não conheces.

-Um dia no ano não é muito! respondeu ela sorrindo.

-É sempre alguma coisa, repliquei.

Sá insistiu:

-Deixa-te disso; vem conosco.

-O senhor sabe que não é preciso rogar-me quando se trata de me divertir. Amanhã, qualquer dia, estou pronta. Esta noite, não!

-Decididamente há alguém que te espera.

-Ora! Faço mistério disto?

-Não é teu costume decerto.

-Portanto tenho o direito de ser acreditada. As aparências enganam tantas vezes! Não é verdade? disse voltando-se para mim com um sorriso.

Não me lembra o que lhe respondi; alguma palavra que nada exprimia, dessas que se pronunciam às vezes para ter o ar de dizer alguma coisa. Quanto a Lúcia, fazendo-nos um ligeiro aceno com o leque, aproveitou uma aberta da multidão e penetrou no interior da igreja, em risco de ser esmagada pelo povo.

Não preciso dizer-lhe, pois adivinha, que acabava de fazer uma triste figura. Não sou tímido; ao contrário peco por desembaraçado. Mas nessa ocasião diversas circunstâncias me tiravam do meu natural. A expressão cândida do rosto e a graciosa modéstia do gesto, ainda mesmo quando os lábios dessa mulher revelavam a cortesã franca e impudente; o contraste inexplicável da palavra e da fisionomia, junto à vaga reminiscência do meu espírito, me preocupavam sem querer. Atribuo a isto ter eu apenas balbuciado algumas palavras durante a conversa, e haver cortejado respeitosamente a senhora, que apesar de tudo ainda me aparecia nesta mulher, mal a voz lhe expirava nos lábios, porque, então, o desdém que vertia de sua frase volúbil passava, e o semblante em repouso tomava uns ares de meiga distinção.

A festa continuou, e fomos acabá-la em uma alegre reunião, onde se dançou e brincou até duas horas da noite.

Quando apaguei a minha vela ao deitar-me, na dúbia visão que oscila entre o sono e a vigília, foi que desenhou-se no meu espírito em viva cor a reminiscência que despertara em mim o encontro de Lúcia. Lembrei-me então perfeitamente quando e como a vira a primeira vez.

Fora no dia da minha chegada. Jantara com um companheiro de viagem, e ávidos ambos de conhecer a corte, saímos de braço dado a percorrer a cidade. Íamos, se não me engano, pela Rua das Mangueiras, quando, voltando-nos, vimos um carro elegante que levavam a trote largo dois fogosos cavalos. Uma encantadora menina, sentada ao lado de uma senhora idosa, se recostava preguiçosamente sobre o macio estofo, e deixava pender pela cobertura derreada do carro a mão pequena que brincava com um leque de penas escarlates. Havia nessa atitude cheia de abandono muita graça; mas graça simples, correta e harmoniosa; não desgarro com ares altivos, decididos, que afetam certas mulheres à moda.

No momento em que passava o carro diante de nós, vendo o perfil suave e delicado que iluminava a aurora de um sorriso raiando apenas no lábio mimoso, e a fronte límpida que à sombra dos cabelos negros brilhava de viço e juventude, não me pude conter de admiração.

Acabava de desembarcar; durante dez dias de viagem tinha-me saturado da poesia do mar, que vive de espuma, de nuvens e de estrelas; povoara a solidão profunda do oceano, naquelas compridas noites veladas ao relento, de sonhos dourados e risonhas esperanças; sentia enfim a sede da vida em flor que desabrocha aos toques de uma imaginação de vinte anos, sob o céu azul da corte.

Recebi pois essa primeira impressão com verdadeiro entusiasmo, e a minha voz habituada às fortes vibrações nas conversas à tolda do vapor, quando zunia pelas enxárcias a fresca viração, minha voz excedeu-se:

-Que linda menina! exclamei para meu companheiro, que também admirava. Como deve ser pura a alma que mora naquele rosto mimoso!

Um embaraço imprevisto, causado por duas gôndolas, tinha feito parar o carro. A moça ouvia-me; voltou ligeiramente a cabeça para olhar-me, e sorriu. Qual é a mulher bonita que não sorri a um elogio espontâneo e a um grito ingênuo de admiração? Se não sorri nos lábios, sorri no coração.

Durante que se desimpedia o caminho, tínhamos parado para melhor admirá-la; e então ainda mais notei a serenidade de seu olhar que nos procurava com ingênua curiosidade, sem provocação e sem vaidade. O carro partiu; porém tão de repente e com tal ímpeto dos cavalos por algum tempo sofreados, que a moça assustou-se e deixou cair o leque. Apressei-me, e tive o prazer de o restituir inteiro.

Na ocasião de entregar o leque apertei-lhe a ponta dos dedos presos na lava de pelica. Bem vê que tive razão assegurando-lhe que não sou tímido. A minha afoiteza a fez corar; agradeceu-me com um segundo sorriso e uma ligeira inclinação da cabeça; mas o sorriso desta vez foi tão melancólico, que me fez dizer ao meu companheiro:

-Esta moça não é feliz!

-Não sei; mas o homem a quem ela amar deve ser bem feliz!

Nunca lhe sucedeu, passeando em nossos campos, admirar alguma das brilhantes parasitas que pendem dos ramos das árvores, abrindo ao sol a rubra corola? E quando ao colher a linda flor, em vez da suave fragrância que esperava, sentiu o cheiro repulsivo de torpe inseto que nela dormiu, não a atirou com desprezo para longe de si?

É o que se passava em mim quando essas primeiras recordações roçaram a face da Lúcia que eu encontrara na Glória. Voltei-me no leito para fugir à sua imagem, e dormi.

- III -

A corte tem mil seduções que arrebatam um provinciano aos seus hábitos, e o atordoam e preocupam tanto, que só ao cabo de algum tempo o restituem à posse de si mesmo e ao livre uso de sua pessoa.

Assim me aconteceu. Reuniões, teatros, apresentações às notabilidades políticas, literárias e financeiras de um e outro sexo; passeios aos arrabaldes; visitas de cerimônia e jantares obrigados; tudo isto encheu o primeiro mês de minha estada no Rio de Janeiro. Depois desse tributo pago à novidade, conquistei os foros de cortesão e o direito de aborrecer-me à vontade.

Uma bela manhã, pois, estava na crítica posição de um homem que não sabe o que fazer. Li os anúncios dos jornais; escrevi à minha família; participei a minha chegada aos amigos; e por fim ainda me achei com uma sobra de tempo que embaraçava-me realmente. Acendi o charuto; e ao través da fumaça azulada, lancei uma vista pelos dias decorridos. «Lembrar-se é viver outra vez», diz o poeta.

De repente caiu-me um nome da memória. Achara em que empregar a manhã.

-Vou ver a Lúcia.

Depois da festa da Glória tinha-a encontrado algumas vezes, mas sem lhe falar. Lembro-me de uma manhã em casa do Desmarais. Lúcia passava, parou na vidraça e entrou para comprar algumas perfumarias; o seu vestido roçara por mim; mas ela não me olhou, nem pareceu ter-me visto. Essa circunstância, e talvez um resquício do desgosto que deixara a minha decepção, tiraram-me a vontade de a cumprimentar; contudo conservei o chapéu na mão todo tempo que esteve na loja. Quando escolhia alguns vidros de extratos, mostraram-lhe um que ela repeliu com um gesto vivo e um sorriso irônico:

-Flor de laranja!... É muito puro para mim!

Ao sair, dobrou o seu talhe flexível inclinando-se vivamente para o meu lado, enquanto a mão ligeira roçagava os amplos folhos da seda que rugia arrastando. Esse movimento podia ser uma profunda cortesia disfarçada com certo acanhamento; e podia não passar de um gesto habitual de faceirice feminina.

Outra vez estava no teatro; tinha ido fazer minha visita a um camarote durante o último intervalo, e conversando reparei na insistência com que me examinava um binóculo da segunda ordem. Da pessoa que o fitava só via a mão pequena e a fronte pura, que denunciavam uma mulher. Depois, ao levantar o pano, vi Lúcia naquela direção, e pareceu-me reconhecer nela a indiscreta luva cor de pérola e o curioso instrumento que me perseguira com o seu exame.

Eis quais eram as minhas relações com essa moça; e confesso que vestindo-me sentia algumas apreensões sobre a recepção que me esperava; não há nada que mais vexe do que a posição de um homem solicitando da memória rebelde da pessoa a quem se dirige um reconhecimento tardio.

Não obstante, poucos minutos depois subia as escadas de Lúcia, e entrava numa bela sala decorada e mobiliada com mais elegância do que riqueza. Ela mostrou não me reconhecer imediatamente; mas apenas falei-lhe do nosso primeiro encontro na Rua das Mangueiras, sorriu e fez-me o mais amável acolhimento. Conversamos muito tempo sobre mil futilidades, que nos ocorreram; e eu tive ocasião de notar a simplicidade e a graça natural com que se exprimia.

O que porém continuava a surpreender-me ao último ponto, era o casto e ingênuo perfume que respirava de toda a sua pessoa. Uma ocasião, sentados no sofá, como estávamos, a gola de seu roupão azul abriu-se com um movimento involuntário, deixando ver o contorno nascente de um seio branco e puro, que o meu olhar ávido devorou com ardente voluptuosidade. Acompanhando a direção desse olhar, ela enrubesceu como uma menina e fechou o roupão; mas doce e brandamente, sem nenhuma afetação pretensiosa.

Tal é a força mística do pudor, que o homem o mais ousado, desde que tem no coração o instinto da delicadeza, não se anima a amarrotar bruscamente esse véu sutil que resguarda a fraqueza da mulher. Se a resistência irrita-lhe o desejo, o enleio casto, a leve rubescência que veste a beleza como de um santo esplendor, influem mágico respeito. Isto, quando se ama; quando a atração irresistível da alma emudece os escrúpulos e as suscetibilidades. O que não será pois quando apenas um desejo ou um capricho passageiro nos excita? Então, ousar é mais do que uma ofensa; é um insulto cruel.

Se eu amasse essa mulher, que via pela terceira ou quarta vez, teria certamente a coragem de falar-lhe do que sentia; se quisesse fingir um amor degradante, acharia força para mentir; mas tinha apenas sede de prazer; fazia dessa moça uma idéia talvez falsa; e receava seriamente que uma frase minha lhe doesse tanto mais, quanto ela não tinha nem o direito de indignar-se, nem o consolo que deve dar a consciência de uma virtude rígida.

Quando me lembrava das palavras que lhe tinha ouvido na Glória, do modo por que Sá a tratara e de outras circunstâncias, como do seu isolamento a par do luxo que ostentava, tudo me parecia claro; mas se me voltava para aquela fisionomia doce e calma, perfumada com uns longes de melancolia; se encontrava o seu olhar límpido e sereno; se via o gesto quase infantil, o sorriso meigo e a atitude singela e modesta, o meu pensamento impregnado de desejos lascivos se depurava de repente, como o ar se depura com as brisas do mar que lavam as exalações da terra.

E continuávamos a conversar tranqüilamente de mil coisas, menos daquela que me tinha levado à sua casa. Não posso repetir-lhe todo esse longo diálogo; mal conseguirei recompor com as minhas lembranças algum fragmento dele.

-Há muito tempo que está no Rio de Janeiro? perguntou-me Lúcia depois de uma pausa.

-Há pouco mais de um mês. Cheguei justamente no dia em que a encontrei pela primeira vez.

-Ah! no mesmo dia?...

Acabava de desembarcar.

-Mas naquela tarde, lembro-me... o senhor estava fumando. Se quer, pode acender o seu charuto; não me incomoda.

Recusei por delicadeza.

-Veio passear? Demora-se pouco naturalmente.

-Vim ver a corte; e depois talvez me resolva a ficar.

-De uma vez?

-Se achar meio de estabelecer-me. Sou pobre; preciso fazer uma carreira; e a corte oferece-me outros recursos, que não encontro em Pernambuco.

-Ah! é filho de Pernambuco?... Que bonita cidade que é o Recife! Como são lindos aqueles arrabaldes da Madalena, da Ponta do Uchoa e da Soledade!...

-Já esteve no Recife! Em que época?

-Fazem dois anos.

-Em 1853... Devo tê-la visto alguma vez! Nesse tempo era eu estudante e conhecia todas as moças bonitas da cidade.

-Então já vê que não me podia conhecer! Demais, estive apenas uma tarde. O vapor pouco se demorou.

-Donde vinha?

-Da Europa. Apenas desembarquei, meti-me num carro, e fui passear. Vinte dias embarcada! Sabe o que é isto? Tinha saudade das árvores e dos campos de minha terra, que eu não via há oito meses! Que passeios encantadores por aquelas quintas cobertas de mangueiras, que bordam as margens do rio! Havia uma sobretudo na Soledade, que me encantou: era uma casinha muito alva que aparecia no fundo de uma rua de arvoredo sombrio; mas tudo tão gracioso, tão bem arranjado que parecia uma pintura. Duas senhoras, uma já de idade, que me pareceu a mãe, e outra ainda mocinha e muito bonita, passeavam pela quinta colhendo flores e frutas. Mandei parar o carro, e fiquei olhando com inveja para a casa e as duas senhoras, pensando na vida tranqüila e sossegada que se devia viver naquele retiro.

-A senhora me faz saudades de minha terra. Lembrei-me de minha casa, e das tardes em que passeava assim por aqueles sítios com minha mãe e minha irmã.

-O senhor tem mãe e irmã! Como deve ser feliz! disse Lúcia com sentimento.

-Quem é que não tem uma irmã! respondi-lhe sorrindo. E minha mãe ainda é muito moça para que eu tivesse a desgraça de a haver perdido.

-Perdi a minha muito cedo e fiquei só no mundo; por isso invejo a felicidade daqueles que têm uma família. Há de ser tão bom a gente sentir-se amada sem interesse!

Depois de uma hora de conversa despedi-me, e voltei sem ter arriscado um gesto ou uma palavra duvidosa.

-Já vai? disse Lúcia vendo-me tomar o chapéu.

-Não posso demorar-me mais tempo. Se a minha visita não lhe aborrece, voltarei outro dia.

-Deu-me tanto prazer! Até amanhã; sim?

E apertou-me a mão cordialmente.

Na rua achei-me tão ridículo com os meus vinte e cinco anos e os meus escrúpulos extravagantes, que estive para voltar. Como podia eu temer um engano, depois do que sabia dessa mulher?

Encontrei-me à tarde com Sá no Hotel da Europa, onde costumava jantar. Estava ainda muito viva a lembrança do que me sucedera naquela manhã para não aproveitar a ocasião de falar-lhe a respeito, tendo porém o cuidado de ocultar o papel que havia representado na pequena comédia.

-Tens visto a Lúcia? perguntei-lhe.

-Não; há muito tempo que não a encontro.

-Tu a conheces bem, Sá?

-Ora! Intimamente!

-Tens toda a certeza de que ela seja o que me disseste na Glória?

-E esta! Pois duvidas?... Vá à casa dela; já te apresentei.

-Supunha que fosse apenas uma dessas moças fáceis, a quem contudo é preciso fazer a corte por algum tempo.

-O tempo de abrir a carteira. Andas no mundo da lua, Paulo. Queres saber como se faz a corte à Lúcia?... Dando-lhe uma pulseira de brilhante, ou abrindo-lhe um crédito no Wallerstein.

-Não é sem razão que te pergunto isto; encontrei-a há dias, e a sua conversa, os seus modos, pareceram-me tão sérios!

-Por que lhe falaste nesse tom? Naturalmente a trataste por senhora como da primeira vez; e lhe fizeste duas ou três barretadas. Essas borboletas são como as outras, Paulo; quando lhes dão asas, voam, e é bem difícil então apanhá-las. O verdadeiro, acredita-me, é deixá-las arrastarem-se pelo chão no estado de larvas. A Lúcia é a mais alegre companheira que pode haver para uma noite, ou mesmo alguns dias de extravagância.

Acabamos de jantar e não tocamos mais no assunto.

-Tens que fazer sábado depois do teatro? perguntou-me Sá com um sorriso maligno.

-Nada, senão dormir.

-Pois vá cear comigo. Dormirás durante o dia. Asseguro-te que não perderás o teu tempo.

-Até sábado, então.

Esta conversa desgostou-me; porque me fez parecer ainda mais ridículo aos meus olhos.

Tinha uma vaga desconfiança, pelo tom do convite, de que Lúcia iria à casa do Sá; e protestei que antes disso me reabilitaria de minha estúrdia ingenuidade.

- IV -

No dia seguinte à mesma hora voltei à casa de Lúcia; achei-a ao piano.

-O que estava tocando?

-Nem sei!... Uma valsa que aprendi de ouvido.

-Continue!

-Não sei tocar, não! Estava brincando; não tinha que fazer. -Como passou de ontem?

-Bem, obrigado. Já vê que a minha segunda visita não se demorou muito.

-Ainda assim não compensa a demora da primeira.

-Sentiu essa demora?... Qual! ontem nem me conheceu.

-Tanto como na Glória. Ainda que se tivessem passado anos, creio que em qualquer parte onde me encontrasse com o senhor, o reconheceria.

-Por que motivo então fingiu ontem não se lembrar de mim, logo que entrei?

-Por quê?... Queria ver uma coisa.

-E não se pode saber o que era?

-Não é preciso!

-Há de me dizer!...

E tomei-lhe as mãos que estavam frias e trêmulas.

-Pois bem, eu lhe digo. Queria ver se ainda se lembrava do nosso primeiro encontro, respondeu ela furtando o corpo ao meu abraço.

-Duvidava?... Não tinha razão; talvez fosse eu o que melhor guardasse essa lembrança.

Lúcia abanou a cabeça lentamente:

-Que vestido levava eu naquela tarde? perguntou sorrindo.

A pergunta embaraçou-me. Quando admiro uma mulher bonita, a impressão que ela produz em mim não me deixa ver mais que a sua beleza.

-Nem se recorda!

-É um defeito meu. Não reparo na toilette das moças bonitas pela mesma razão por que não se repara na moldura de um belo quadro.

-Que desculpa!... E eu por que reparei no seu traje, na cor de sua sobrecasaca, em tudo; até na sua bengala? Não é esta; a outra era mais bonita; tinha o castão de marfim. Está vendo que me lembro perfeitamente, e entretanto não tenho esses objetos diante dos olhos!

-Ah! É este o vestido?

-O vestido, as jóias, o penteado, o leque, aquele que o senhor apanhou. Nem desse se lembrava! Só falta o chapéu! Quer vê-lo?

Lúcia saiu um instante e voltou. Ou porque a minha memória se avivasse, ou porque a ausência desse gentil chapéu, que parecia fugir-lhe da cabeça, tão de leve a cingia, mutilasse a graciosa imagem que eu vira na tarde de minha chegada; o fato é que a aparição já desvanecida surgira de repente aos meus olhos.

-Agora lembro-me! Estou vendo-a como a vi da primeira vez!

-Como daquela vez não me verá mais nunca!

-O que lhe falta?

-Falta o que o senhor pensava e não tornará a pensar! disse ela com a voz pungida por dor íntima!

Não compreendi então aquelas palavras, nem o tom com que foram proferidas; procurei-lhes o sentido, acompanhando com os olhos a Lúcia que tirava lentamente o chapéu, e fitava na sua imagem refletida pelo espelho um triste olhar.

-Ah! já sei! O que eu pensava?... Mas ainda penso: acho-a hoje tão bonita ou mais do que naquela tarde.

-Não é isto!

-O que é então? Venha dizer-me.

Passei-lhe o braço pela cintura e apertei-a ao peito; eu estava sentado, ela em pé; meus lábios encontraram naturalmente o seu colo e se embeberam sequiosos na covinha que formavam nascendo os dois seios modestamente ocultos pela cambraia. Com o meu primeiro movimento, Lúcia cobriu-se de ardente rubor; e deixou-se ir sem a menor resistência, com um modo de tímida resignação.

Quando porém os meus lábios se colaram na tez de cetim e meu peito estreitou as formas encantadoras que debuxavam a seda, pareceu-me que o sangue lhe refluía ao coração. As palpitações eram bruscas e precípites. Estava lívida e mais branca do que o alvo colarinho do seu roupão. Duas lágrimas em fio, duas lágrimas longas e sentidas, como dizem que chora a corça expirando, pareciam cristalizadas sobre a face, de tão lentas que rolavam.

É o coração, quando fortemente confrangido por violenta emoção, que espreme esse soro do sangue que gela e coalha.

Pungiu-me aquela aflição.

Retirei vivamente o braço; enquanto Lúcia sentava-se trêmula, afastei-me revoltado contra mim, e ao mesmo tempo indignado contra essa mulher que zombava da minha credulidade, e contra Sá que me iludira. Não sabia o que pensar; para fugir a uma posição que me incomodava horrivelmente, fui debruçar-me na janela.

Um instante depois ouvi sua voz doce e carinhosa:

-Não se agaste comigo!

Voltei-me; ela sorriu a dois passos de mim, e com uma expressão suplicante, como de quem pedisse perdão.

-Acabemos com isso, Lúcia. Sabes o que me traz à tua casa: se te desagrado por qualquer motivo, dize francamente, que eu tomo o meu chapéu e não te aborrecerei mais. Se pensas que valho tanto como os outros, não percas o tempo a fingir o que não és. Esta comédia de amor pode divertir os mocinhos de 18 anos e os velhos de 50; mas afianço-te que não lhe acho a menor graça.

-Não seja tão injusto! Em que lhe pareço fingida? Já me perguntou alguma coisa que eu lhe negasse? Já me recusei a um pedido seu?

-Entretanto te ofendeste com uma simples carícia!

-Não me ofendi; e a prova é que não dei sinal de desagrado, nem conservo o menor ressentimento. Não me conhece!... Sei o que valho, e não sou capaz de iludir a ninguém, muito menos ao senhor.

-Mas, há pouco, o que significavam essas lágrimas?

-Ah, não repare! Sofro do coração; às vezes sobe-me o sangue à cabeça, fico muito pálida, e sinto uma dor aguda que me arranca lágrimas dos olhos!... Não é nada; passa-me logo. Já passou! concluiu com um sorriso dorido.

-É diferente; desculpa. Incomodava-me essa idéia de pensares que estava disposto a fazer-te a corte. Seria soberanamente ridículo para nós ambos.

-Decerto!

Lúcia acompanhou estas duas palavras com um riso estridente e um olhar que ainda vejo brilhar nas sombras de minhas recordações: olhar vivo e cintilante, que luziu como as chispas do brilhante ferido pela réstia da luz, e veio bater-me em cheio na face, cobrindo-me com o mais agro desprezo que pode estilar um coração de mulher.

Dirigiu-se a uma porta lateral, e fazendo correr com um movimento brusco a cortina de seda, desvendou de relance uma alcova elegante e primorosamente ornada. Então voltou-se para mim com o riso nos lábios, e de um gesto faceiro da mão convidou-me a entrar.

A luz, que golfava em cascatas pelas janelas abertas sobre um terraço cercado de altos muros, enchia o aposento, dourando o lustro dos móveis de pau-cetim, ou realçando a alvura deslumbrante das cortinas e roupagens de um leito gracioso. Não se respiravam nessas aras sagradas à volúpia, outros perfumes senão o aroma que exalavam as flores naturais dos vasos de porcelana colocados sobre o mármore dos consolos, e as ondas de suave fragrância que deixava na sua passagem a deusa do templo.

Lúcia não disse mais palavra; parou no meio do aposento, defronte de mim.

Era outra mulher.

O rosto cândido e diáfano, que tanto me impressionou à doce claridade da lua, se transformara completamente: tinha agora uns toques ardentes e um fulgor estranho que o iluminava. Os lábios finos e delicados pareciam túmidos dos desejos que incubavam. Havia um abismo de sensualidade nas asas transparentes das narinas que tremiam com o anélito do respiro curto e sibilante, e também nos fogos surdos que incendiavam a pupila negra.

À suave fluidez do gesto meigo sucedeu a veemência e a energia dos movimentos. O talhe perdera a ligeira flexão que de ordinário o curvava, como uma haste delicada ao sopro das auras; e agora arqueava enfunando a rija carnação de um colo soberbo, e traindo as ondulações felinas num espreguiçamento voluptuoso. Às vezes um tremor espasmódico percorria-lhe todo o corpo, e as espáduas se conchegavam como se um frio de gelo a invadira de súbito; mas breve sucedia a reação, e o sangue abrasando-lhe as veias, dava à branca epiderme reflexos de nácar e às formas uma exuberância de seiva e de vida, que realçavam a radiante beleza.

Era uma transfiguração completa.

Enquanto a admirava, a sua mão ágil e sôfrega desfazia ou antes despedaçava os frágeis laços que prendiam-lhe as vestes. À mais leve resistência dobrava-se sobre si mesma como uma cobra, e os dentes de pérola talhavam mais rápidos do que a tesoura o cadarço de seda que lhe opunha obstáculos. Até que o penteador de veludo voou pelos ares, as tranças luxuriosas dos cabelos negros rolaram pelos ombros arrufando ao contato da pele melindrosa, uma nuvem de rendas e cambraias abateu-se a seus pés, e eu vi aparecer aos meus olhos pasmos, nadando em ondas de luz, no esplendor de sua completa nudez, a mais formosa bacante que esmagara outrora com o pé lascivo as uvas de Corinto.

Saí alucinado!

Fora delírio, convulsão de prazer tão viva que, através do imenso deleite, traspassava-me uma sensação dolorosa, como se eu me revolvera no meio de um sono opiado, sobre um leito de espinhos. É que as carícias de Lúcia vinham impregnadas de uma irritabilidade que cauterizava.

Há mulheres gastas, máquinas do prazer que vendem, autômatos só movidos por molas de ouro. Mas Lúcia sentia; sentia sim com tal acrimônia e desespero, que o prazer a estorcia em cãibras pungentes. Seu olhar queimava; e às vezes parecia que ela ia estrangular-me nos seus braços, ou asfixiar-me com seus beijos.

De repente surgiu lívida, e estendeu-me a mão aberta. Ouvi uma palavra soluçada, voz opressa, que não entendi, mas adivinhei.

Imagine qual revolução houve em mim; e a profunda indignação com que me precipitei sobre minha carteira para atirá-la à face dessa mulher. Mas ela reteve-me com a força sobre-humana que lhe davam as contrações nervosas.

-Estava gracejando! Não é assim que me queria?

E soltou uma gargalhada.

Debalde pedi uma explicação. Ao delírio sucedera prostração absoluta, orgasmo da constituição violentamente abalada. Vendo então esse corpo inerte e pasmo, com os olhos vítreos e as mãos crispadas, tive dó e como um pressentimento de que a vida o abandonaria breve.

Quando lho dei a perceber, ela respondeu-me:

-Que importa? Contanto que tenha gozado de minha mocidade! De que serve a velhice às mulheres como eu?

Ao retirar-me ia pela segunda vez levar a mão à carteira, quando o olhar de Lúcia correu-me de vergonha. Entretanto ela, abatida ainda, porém calma, apertava-me a mão por despedida. Que magia tinham aqueles olhos fúlgidos, quando um sentimento forte lhes toldava a doce serenidade!

Conto-lhe estes fatos, como se escrevesse no dia em que eles sucederam, ignorando o seu futuro; entretanto, talvez que, apesar disto, compreenda as palavras equívocas e as causas ocultas que naquela ocasião resistiram à minha perspicácia.

Mas a senhora lê e eu vivia; no livro da vida não se volta, quando se quer, a página já lida, para melhor entendê-la; nem pode-se fazer a pausa necessária à reflexão. Os acontecimentos nos tomam e nos arrebatam às vezes tão rapidamente que nem deixam volver um olhar ao caminho percorrido.

Assim o meu espírito preocupou-se um momento com a singularidade daquela cortesã, que ora levava a impudência até o cinismo, ora esquecia-se do seu papel no simples e modesto recato de uma senhora; porém vieram logo outros pensamentos distrair-me.

- V -

As grandes sensações de dor ou de prazer pesam tanto sobre o homem, que o esmagam no primeiro momento e paralisam as forças vitais. É depois que passa esse entorpecimento das faculdades, que o espírito, insigne químico, decompõe a miríada de sensações, e vai sugando a gota de fel ou de essência que ainda estila dos favos apenas libados.

Foi o que me sucedeu; e não sei se no dia seguinte trocaria a voluptuosidade lenta e infinita de minhas recordações ainda recentes por outra hora da febre ardente que na véspera me prostrara nos braços de Lúcia. Mas então não me lembrava que vendo-a, todos os meus desejos, que eu supunha extenuados, iam acordar de novo, tigres famintos da presa em que uma vez se tinham cevado.

Estava no teatro lírico, onde o acaso me colocara junto de um moço com quem havia feito conhecimento na sociedade e cujo nome não me acode agora. Em falta de outro, lhe darei o de Cunha.

Esperando que se levantasse o pano, corríamos ambos com o binóculo as ordens de camarotes, que se começavam a encher. É um regalo semelhante ao do gastrônomo, que antes de sentar-se à mesa belisca as iguarias que vão se ostentando aos olhos gulosos. A comparação me agrada; porque realmente nunca senti essa gula de olhar que devora com uma fome canina, como quando contemplava uma multidão de mulheres bonitas. Cada uma delas me emprestava uma forma sedutora, um encanto, um contorno para a estátua ideal que a imaginação moldava, aperfeiçoando a capricho.

À medida que fazíamos alguma descoberta astronômica, ou na região dos planetas de primeira e segunda ordem, ou entre as nebulosas da última esfera, comunicávamos ao companheiro, que imediatamente assestava o telescópio. Começavam então as competentes observações sobre o astro. Já tínhamos examinado algumas constelações ou grupos de estrelas brilhantes e dois ou três planetas superiores, discorrendo Cunha sobre a sua órbita, os seus satélites e o ponto da elíptica em que se achavam. Tínhamos lobrigado no fundo de um camarote a cauda luminosa de um cometa; finalmente estudávamos um aerólito ou estrela cadente, conjeturando sobre as causas prováveis do fenômeno atmosférico-financeiro.

-Aí está a Lúcia, disse Cunha. Na segunda ordem, quarto camarote depois de vésper.

Assim havíamos batizado um planeta que se recolhia infalivelmente entre nove e dez horas da noite.

Esqueci-me dizer que a ópera começara; as nossas observações podiam fazer-se então em céu desnublado. Vi Lúcia sentada na frente do seu camarote, vestida com certa galantaria, mas sem a profusão de adornos e a exuberância de luxo que ostentam de ordinário as cortesãs, ou porque acreditem que a sua beleza, como as caixinhas de amêndoas, cota-se pelo invólucro dourado, ou porque no seu orgulho de anjos decaídos desejem esmagar a casta simplicidade da mulher honesta, quantas vezes defraudada nessa prodigalidade.

Não me posso agora recordar das minúcias do traje de Lúcia naquela noite. O que ainda vejo neste momento, se fecho os olhos, são as nuvens brancas e nítidas, que se frocavam graciosamente, aflando com o lento movimento de seu leque; o mesmo leque de penas que eu apanhara, e que de longe parecia uma grande borboleta rubra pairando no cálice das magnólias. O rosto suave e harmonioso, o colo e as espáduas nuas, nadavam como cisnes naquele mar de leite, que ondeava sobre formas divinas.

A expressão angélica de sua fisionomia naquele instante, a atitude modesta e quase tímida, e a singeleza das vestes níveas e transparentes, davam-lhe frescor e viço de infância, que devia influir pensamentos calmos, senão puros. Entretanto o meu olhar ávido e acerado rasgava os véus ligeiros e desnudava as formas deliciosas que ainda sentia latejar sob meus lábios. As sensações amortecidas se encarnavam de novo e pulsavam com uma veemência extraordinária. Eu sofria a atração irresistível do gozo fruído, que provoca o desejo até a consunção; e conheci que essa mulher ia se tornar uma necessidade, embora momentânea, da minha vida.

-É uma bonita mulher! disse ao meu vizinho, com um ar de indiferença para disfarçar a minha emoção.

-A mais bonita mulher do Rio de Janeiro e também a mais caprichosa e excêntrica. Ninguém a compreende.

-Conheço-a apenas de vista; porém disseram-me que é uma boa moça, muito amável...

-Oh! Posso falar a este respeito. Fui seu amante quatro meses.

-E por que a deixou? Aborreceu-se?

-Não a deixei. É seu costume; um belo dia, sem causa, sem o mínimo pretexto, declara a um homem que as suas relações estão acabadas; e não há que fazer. Podem oferecer-lhe somas loucas, é tempo perdido. Também no dia seguinte, ou no mesmo, daí a uma hora, toma outro amante que não conhece, que nunca viu.

-Todas são assim, com pouca diferença; ninguém sabe qual é o fio que faz dançar essas bonecas de papelão.

-Nem tanto. Há mulheres, que, ou por interesse, ou por amizade, ou mesmo por hábito, se inquietam com a idéia de que seu amante as abandone; mas para esta é absolutamente indiferente. Tem dias em que está de um humor insuportável: fica uma estátua, e não há forças humanas que possam arrancar daquela massa inerte um sorriso, uma palavra, um movimento. Se o homem não possui grande dose de paciência para sofrê-la calado, ela fecha-lhe a porta muito delicadamente, e manda-lhe dizer pela criada -«que tenha a bondade de deixá-la tranqüila para todo o sempre». -E uma vez dito, não volta.

-Para quem tem direitos adquiridos, parece-me um tanto forte!

-É o seu engano, continuou o Cunha que estava de veia. A Lúcia não admite que ninguém adquira direitos sobre ela. Façam-lhe as propostas mais brilhantes: sua casa é sua e somente sua; ela o recebe, sempre como hóspede; como dono, nunca. Na ocasião em que o senhor a toma por amante, ela previne-o de que reserva-se plena liberdade de fazer o que quiser e de deixá-lo quando lhe aprouver, sem explicações e sem pretextos, o que sucede invariavelmente antes de seis meses; está entendido que lhe concede o mesmo direito.

-Ao menos há reciprocidade!

-Não lhe pede nada, nem sequer doces em tempo de festa, ou sorvetes quando está no teatro. Nunca a vi bordar em malhas transparentes um desses desejos disfarçados com que as mulheres iscam à generosidade de seus apaixonados. Se indagam do seu gosto a respeito de algum objeto que lhe destinam, desconversa e não responde; aceita friamente o que lhe dão, e nada mais. Ora, com uma mulher desta natureza, que não oferece a mínima ocasião de prestar-lhe um serviço e ganhar-lhe a amizade ou a gratidão, é possível ter direitos adquiridos?

-Há de sofrer com isso!... Tenho-a visto duas ou três vezes e sempre vestida simplesmente. Não traz um brilhante; entretanto que outras, que não a valem, andam cobertas. Repare!...

-Qual! Não é essa a razão! Nunca lhe faltam amantes; sei de grandes fortunas no Rio de Janeiro que se dariam por felizes se ela se decidisse a arruiná-las. E para não ir muito longe, embora não seja rico, caso ela ainda quisesse...

-Ah! Então as suas relações estão cortadas?

-Inteiramente; e de uma maneira célebre. Vou-lhe contar. Passeávamos numa noite de luar claro como dia; vendo minha mulher na janela, escondi-me involuntariamente no fundo do carro com receio de que me reconhecesse. Era inútil, porque estava distraída olhando para o mar. Entretanto Lúcia, por maldade, mandou ao cocheiro que parasse, saltou do carro, e esteve muito tempo, em pé, na grade, voltada para minha casa. Eu não sabia o que fizesse, compreende bem; não queria mostrar-me, e tinha medo de um escândalo. Felizmente ela foi caminhando, e a alguma distância mandou parar um tílburi que passava; o carro a tinha acompanhado; chegou-se à portinhola e disse-me: «Não gosto de gente que se esconde, meu senhor. Vá olhar para o mar ao lado de sua mulher; é mais inocente e mais poético. De amanhã em diante não nos conhecemos». Debalde quis impedi-la, meteu-se no tílburi; e o cocheiro, que tinha um excelente animal, logrou-me: foi-me impossível segui-los. Voltei nessa mesma noite e nos dias seguintes à sua casa, e achei sempre a porta fechada para mim; até que me recebeu para dizer-me com toda a macieza e doçura, que eu supunha ter comprado a chave de sua casa, e por isso ia-me restituir o preço de uma venda que ficara sem efeito. Saí para não voltar mais!

-Arrufos! Se não a procurasse, ela o mandaria chamar no outro dia. É sempre a sombra do provérbio chinês: segue quem a foge.

-São águas passadas. Estávamos falando da simplicidade de seu trajar. A razão é outra; é pura avareza.

-Como! Não disse que ela não se deixava levar pelo interesse? Não compreendo. Uma mulher que rejeita ofertas brilhantes e leva o seu escrúpulo a nunca pedir, nem mesmo uma coisa insignificante... Essa mulher não pode ser avarenta! O senhor conserva algum ressentimento, disse eu sorrindo.

-Ora! replicou ele encolhendo os ombros. Não faltam bonitas mulheres. Mas esse desinteresse de Lúcia é um cálculo, e um cálculo muito fino. Uma mulher que pede, marca o preço de sua gratidão ou do seu amor; a mulher que não pede é um abismo que nunca se enche! Tenho experiência destas coisas.

-Em todo o caso, ainda que ela fosse de uma mesquinhez sórdida, as jóias não se gastam com o uso.

-Se ela as vende!

-Não é possível!

-Também eu duvidei por muito tempo, mas tive a prova. Há aqui um Sr. Jacinto que fez sociedade com ela; tudo que lhe dão, até roupas, é imediatamente reduzido a dinheiro. Lúcia deve ter por aí em casa do Gomes ou do Souto seus trinta a quarenta contos.

-Guarda para a velhice, se lá chegar.

A tecla que vibrara em nosso espírito ressoava tão melodiosamente, que o pano descera sobre o primeiro ato do Hernani, sem darmos por isso. O Cunha me parecia conservar vivas saudades de suas relações com essa moça, que ainda o interessava apesar de tudo. Quanto a mim, todas as excentricidades e defeitos que atribuíam a Lúcia, ao passo que a faziam descer na minha estima, davam-lhe um sainete de originalidade e um picante sabor que me excitava. O vício também tem sua beleza e sua atração, como a virtude; a diferença é que no âmago do fruto os lábios encontram terra e cinza em vez de polpa deliciosa.

Há de ter reparado em que me desse por desconhecido de Lúcia; é hábito meu, desde que entrei no mundo, não admitir os estranhos à intimidade de minha vida, ainda mesmo quando se trata de objetos sem conseqüência. Só dispo a minha alma entre amigos.

Como já lhe disse, suspeitava que Lúcia devia assistir à ceia, para a qual Sá me convidara, na quinta-feira, jantando no Hotel da Europa. Naquela ocasião quis ter a certeza; e creia que subindo as escadas da segunda ordem desejava ter-me enganado.

Preciso dizer-lhe a razão?

Ela não estava só: uma multidão de adoradores invadira a porta de seu camarote. Cortejei-a e passei, esperando a ocasião em que lhe pudesse falar. Tudo quanto achei para mandar levar-lhe foi sorvetes, doces, algumas flores de baile que vendiam à porta, e o libreto da ópera. As mulheres, a senhora o sabe por experiência, agradecem mais essas pequenas atenções de que a cercam, do que os verdadeiros sacrifícios; e eu tinha resolvido fazer a conquista de Lúcia por oito ou quinze dias.

Estive com ela no intervalo seguinte.

-Não tinha nem uma moça bonita do seu conhecimento a quem dar estas flores tão lindas? disse apertando-me a mão e mostrando dois cactos que se estrelavam, um no seio e outro entre os seus cabelos.

-Sabes quem as mandou?

-Adivinhei pelo cheiro. É tão suave!...

-Ficam-te muito bem; parecem ter nascido aí entre as rendas e os cabelos.

-Hei de enfeitar-me sempre assim.

-E com as flores que eu te mandarei todas as manhãs.

-Disse isto à toa. Não tenho paciência, nem gosto para estas coisas! Agora foi uma lembrança e já me está aborrecendo, replicou, batendo com a ponta dos dedos afilados nas pétalas da flor.

Notei no tom de Lúcia durante o resto desta conversa uma diferença extraordinária com o modo singelo e modesto que ela tinha em sua casa; agora era a frase ríspida, incisiva e levemente embebida na ironia que destilava de seus lábios, e cujas gotas a maior parte das vezes salpicavam a ela própria. A cortesã revelava-se a mim sem rebuços, depois que deixara cair na falda do leito o seu último véu. Não sei se estimei ou senti essa brusca transição; a franqueza me punha mais à vontade, é certo, porém desvanecia uma doce ilusão, que, por mais transparente que seja, nubla o espírito crédulo, quando procura no fundo do prazer um átomo sequer de amor.

Perguntei-lhe afinal se me permitia acompanhá-la depois do teatro.

-Esta noite não me pertence!...

-Não vais para casa?

-Não.

-Já sei! Estás convidada para uma ceia...

-Quem lhe disse?

-Em casa do Sá.

-Ah! Não me lembrava que ele é seu amigo! E o senhor, também vai?...

-Para ter o prazer de tua companhia.

-Ainda não estou inteiramente resolvida! murmurou com lentidão, e atalhou logo com certo estouvamento: porém não, vou! Por que deixaria de ir? Havemos de divertir-nos muito: o Sá tem gosto.

Acendeu-se nos seus olhos o fogo que já uma vez me tinha queimado as faces; só mais tarde devia ter a explicação desse olhar.

Quando tomei o meu lugar nas cadeiras, Lúcia tinha desaparecido.

- VI -

Sá habitava, num dos arrabaldes da corte, uma chácara, que caprichara em preparar.

Com trinta anos de idade, um caráter fleumático e uma imaginação ardente, o meu amigo tinha errado a sua vocação; a natureza o destinara para milionário, tal era o seu desprezo pelo dinheiro quando se tratava de realizar um de seus mil sonhos dourados. Gozando do conforto e mesmo da elegância que lhe permitia uma folgada abastança, as flores que ia colhendo pelo caminho estavam longe de satisfazer-lhe as fantasias orientais; por isso impunha a si mesmo o sacrifício de acumular algumas pequenas reservas, fruto das economias de muitos dias, para consumi-las em poucas horas, com um desapego selvagem.

A alma obcecada pelo trabalho, irritada pelas migalhas de prazer que babujava aqui e ali, tinha de tempos a tempos necessidade de um banho russiano. Nesses dias Sá dava férias às ocupações graves, convidava alguns amigos, e oferecia à imaginação um pasto régio. Era o reinado efêmero da devassidão, naquela existência alegre, mas calma de ordinário.

A sua casa de moço solteiro estava para isso admiravelmente situada entre jardins, no centro de uma chácara ensombrada por casuarinas e laranjeiras. Se algum eco indiscreto dos estouros báquicos ou das canções eróticas escapava pelas frestas das persianas verdes, confundia-se com o farfalhar do vento na espessa folhagem; e não ia perturbar, nem o plácido sono dos vizinhos, nem os castos pensamentos de alguma virgem que por ali velasse a horas mortas.

Cheguei por volta de meia-noite.

Já estavam reunidos os convidados: Lúcia, três belas mulheres que eu conhecia de vista, e um senhor de cabelos e barbas brancas, vestido com esmero extremo, mas com alguma excentricidade inglesa; um desses velhos ainda verdes que se esforçam em reconstruir sobre os últimos rescaldos de fogos extintos, com o auxílio de um empertigamento cômico, uma atividade elástica e um fátuo repertório de anedotas galantes, a mocidade fictícia que só a eles próprios ilude. Sá mo apresentou com estas palavras:

-O Sr. Couto, capitalista.

O sexto convidado era um moço de 17 anos, o Sr. Rochinha, que trazia impressa na tez amarrotada, nas profundas olheiras e na aridez dos lábios, a velhice prematura. Libertino precoce, curvado pela consunção, tinha o orgulho do vício, que estampara nas faces, receando talvez que o insultassem pondo em dúvida os seus brasões de nobreza, conquistados com o copo em punho nalguma tasca imunda. Se fosse pobre, o Sr. Rochinha teria fumaças de poeta byroniano; mas ainda era rico da herança que esbanjava, e portanto não passava de um moço gasto!

Sá tinha jeito para escolher os seus convidados. O contraste do vício que apresentavam aqueles dois indivíduos: o velho galanteador, fazendo-se criança com receio de que o supusessem caduco; e o moço devasso, esforçando-se por parecer decrépito, para que não o tratassem de menino; essa antítese viva devia oferecer ao observador cenas grotescas. O que eu vi entrando era uma pequena amostra.

O Sr. Couto, fresco e repolhudo, bamboleando-se na cadeira, fazia sortes que as mulheres aplaudiam, e consumia o terceiro copo de água gelada, para abrandar o fogo interno. O Sr. Rochinha, derreado pelo sofá, erguia às vezes a cabeça pesada de sono e torpor para absorver um cálice de conhaque da garrafa que tinha ao lado.

Sá, que se embalançava numa cadeira de palha, saboreando o antegosto das delícias gastronômicas, ergueu-se para receber-me:

-Só esperávamos por ti. Onde te meteste no teatro, que não te vi?

-Estive do lado oposto...

-Cuidei que nos encontrássemos na saída. É meia-noite; vamos cear.

Ao som do tímpano apareceu um criado, que recebeu ordem de servir.

A reunião nada tinha ainda que assustasse os bons costumes. À exceção de alguns gracejos dúbios da galantaria enrugada do Sr. Couto, conversava-se alegremente como no mais aristocrático salão. Havia mesmo um ligeiro tom de cerimônia, que, se não era bastante para acanhar, tirava contudo ao diálogo o colorido vivo e animado que lhe dá a palavra solta.

Entretanto, se a senhora não conhece as odes de Horácio e os Amores de Ovídio, se nunca leu a descrição da festa de Baco e não tem notícia dos mistérios de Adônis ou do rito afrodísio das virgens de Pafos, que em comemoração do nascimento da deusa iam certos dias do ano banhar-se na espuma do mar e oferecer as primícias do seu amor a quem mais cedo as cobiçava; se ignora tudo isto, rasgue estas folhas, ou antes queime-as, para que sua neta, achando as tiras que ficarem sobre a mesa, não se lembre de fazer delas papelotes.

Se ao contrário apreciou esses trechos admiráveis da literatura clássica, pode continuar a ler, pois não achará imagem, nem palavra que revolte o bom gosto: sensitiva delicada dos espíritos cultos.

Anunciada a ceia, atravessamos o jardim para ir à sala do serviço.

Não posso deixar de fazer-lhe uma breve descrição dessa parte da casa, que ocupava a ala direita do edifício, formando uma espécie de pavilhão. Era o palácio encantado do sibaritismo, que só de longe em longe e nas horas mortas da noite, abria suas portas a chave de ouro para alguns adeptos de seu culto ou para algum profano que desejasse iniciar-se nos lúbricos mistérios.

Entremos, já que as portas se abrem de par em par, cerrando-se logo depois de nossa passagem. A sala não é grande, mas espaçosa; cobre as paredes um papel aveludado de sombrio escarlate, sobre o qual destacam entre espelhos duas ordens de quadros representando os mistérios de Lesbos. Deve fazer idéia da energia e aparente vitalidade com que as linhas e colorido dos contornos se debuxavam no fundo rubro, ao trêmulo da claridade deslumbrante do gás.

A mesa oval, preparada para oito convivas, estava colocada no centro sobre um estrado, que tinha o espaço necessário para o serviço dos criados; o resto do soalho desaparecia sob um felpudo e macio tapete que acolchoava o rodapé e também os bordos do estrado. Os aparadores de mármore cobertos de flores, frutos e gelados, e os bufetes carregados de iguarias e vinhos, eram suspensos à parede. Não pousava o pé de um móvel na orla aveludada que cercava a mesa, e parecia abrir os braços ao homem ébrio de vinho ou de amor, convidando-o a espojar-se na macia alcatifa, como um jovem poldro nas cálidas areias da várzea natal.

Pela volta da abóbada de estuque que formava o teto, pelas almofadas interiores das portas, e na face de alguns móveis, havia tal profusão de espelhos, que multiplicava e reproduzia ao infinito, numa confusão fantástica, os menores objetos. As imagens, projetando-se ali em todos os sentidos, apresentavam-se por mil faces.

Não lhe falo da ceia que nada tinha de especial. Suntuosa e delicada, como os sabem preparar aqui, sorria aos olhos e trescalava de aromas penetrantes e deliciosos, que iam prurir as fibras gástricas. Esse perfume sibárico e o aspecto brilhante das iguarias esquisitas, entre as irradiações do cristal e os reflexos áureos, rubros ou violáceos do madeira, do porto e do borgonha, é talvez o mais delicado acepipe que um anfitrião de gosto oferece aos seus hóspedes; porque nesse bocado homérico os olhos e o olfato servem com fartura ao paladar um pouco de tudo; um primor de todos os manjares que a capacidade do estômago não permite absorver.

Sentamo-nos dois a dois, porque só havia na sala quatro cadeiras. Não se espante; eram cadeiras medidas para dois corpos, espécies de pequenos sofás de palhinha, onde se estava mais do que comodamente. Esta singularidade era um símbolo da união, ou melhor, da comunhão, que o dono da casa queria que houvesse durante a ceia: não eram oito pessoas, mas quatro amigos que se divertiam em amável companhia. Acrescia que a longa separação das cadeiras, e a espessa cortina de flores, deixava a cada um plena liberdade: era ao mesmo tempo a solidão e a convivência.

Ao anunciar da ceia, Lúcia tomou-me o braço que ia oferecer-lhe. Sentamo-nos a um dos lados da mesa em face de Sá. O Sr. Couto, como de rigor, impava de gula e fatuidade, defronte da sonolência do Rochinha e à ilharga de uma linda espanholita, que o olhava à sorrelfa com um momo de petulante zombaria.

Depois da sopa, Sá ergueu o copo cheio de velho madeira e saudou os seus hóspedes:

-Estão feitos os cumprimentos, meus senhores: gozemos. É meia-noite, disse mostrando a pêndula de alabastro. Até uma hora come-se. Caso alguém reclame, prorroga-se o tempo.

-A não ser o Sr. Couto! murmurou a companheira deste.

-Aprovado sem discussão, retrucou o velho. Com os diabos, Nina! Comer é uma das boas coisas deste mundo; porém não é a melhor.

-Demais, a mesa aí fica; e ninguém erra a boca mesmo no escuro! acudiu Laura rindo.

Creio que o Sr. Couto corou; em todo o caso remexeu-se, como se estivesse sobre alfinetes.

-Ora! Isso sucedeu uma vez; e foi para te meter febre.

-Não se trata dos sessenta anos do Sr. Couto...

-Quarenta e cinco, minha jóia! E por fazer!...

-Passemos à ordem do dia! exclamava uma francesa já abrasileirada, que tinha privado com um orador da câmara.

-Bem! continuou Sá: a hora seguinte bebe-se. É bastante?

-É demais! Em menos tempo dou conta de uma cesta de champanha! gritou Nina.

-Não admira! Uma burra vale mais do que uma cesta; e tu eras capaz de esvaziá-la num minuto!

-Então, adotada a meia hora? perguntou Sá interrompendo o Couto.

-Para mim é indiferente, respondeu o Rochinha acordando. Já se foi o tempo em que me embriagava com essas limonadas de espuma e esses vinagres do Reno. Sou uma velha esponja, meu caro: fui curtido a kirsch e rum.

-Manda-se preparar para ti uma gengibrada.

-Que bicho é esse?

-É uma infusão de gengibre fervida em aguardente de trinta e seis graus, com uma garrafa de marasquino.

-Deliciosa bebida! disse Lúcia. Não leva também algumas gotas de chumbo derretido?

-Finalmente, meus senhores, as duas horas em ponto, imola-se a razão no fundo das garrafas.

-Bravo! gritaram as mulheres em coro.

-Aceito por unanimidade!

-Posso imolar a minha desde já, gritou o Couto.

-Não admito! Requeiro que se respeitem as cãs...

-E a inocência dos criados.

-À vista das considerações devidas ao sexo, cedo!

-É melhor; mesmo porque seria difícil imolar o que não existe.

-Procedamos em regra. Às duas horas portanto pára-se a pêndula. Abolição completa da razão, do tempo, da luz; e inauguração solene do reinado das trevas e da loucura. Até lá liberdade completa dentro dos limites da decência; tudo quanto possa alegrar, como o gracejo, a cantiga, o brinde ou o discurso, é permitido; salvo o direito ao respeitável público feminino e masculino de patear as sensaborias.

-Nota do taquígrafo. Numerosos apoiados; o orador é cumprimentado.

E o Couto para realizar o seu dito propôs a saúde de Sum, e acompanhou-a com um discurso recheado de disparates, interrompido a cada palavra pela algazarra dos estouros báquicos.

Não tomei nem uma parte nesse primeiro tiroteio; Lúcia apenas dissera uma palavra. Ela estava visivelmente contrariada; por momentos caía em profunda distração, de que eu a tirava a custo; depois tomava-se de um estouvamento e sofreguidão que não era natural. Uma vez levantado o cálice, a contração muscular foi tão violenta que o cristal espedaçou-se entre as falanges delicadas. Tinha-se ferido, e para estancar o sangue, mergulhou o dedo no meu copo cheio de Sauterne: o áureo licor enrubesceu; e eu esgotei-o até a última gota num assomo de galanteio romântico.

Lúcia acompanhou o meu movimento com um olhar tão cheio do que olhava, como se eu lhe bebera a própria vida nessas gotas tintas de seu sangue.

-Se o bebesse todo!... balbuciou.

-Tu morrias, Lúcia! respondi sorrindo.

-Eu... viveria; e o resto seria pasto dos vermes, como foi pasto dos homens.

Semelhante à mosca importuna que se afoga no vinho, a palavra lúgubre afogou-se no entusiasmo que começava a brilhar em todas as frontes.

Lúcia apanhou no ar o primeiro dito que passava para fazê-lo ressaltar com uma das réplicas vivaces, titilantes de sarcasmo e ironia, que em certos momentos fervilhavam de seus lábios. Era impossível segui-la nesse brilhante rasto de seu espírito.

- VII -

-Sr. Couto, dizia Sá, recomendo-lhe estas perdizes! Estão saturadas de trufas e castanhas.

-Obrigado; é muito forte para mim. Daqui a dez anos, não digo que não.

-Passa-me as perdizes! exclamou o Rochinha piscando os olhos com certa malícia.

-Por favor, Sr. Couto, disse Lúcia rindo, empreste ao Sr. Rocha os seus cabelos brancos! Por esta noite ao menos...

-Oh! já não são poucos os que eu tenho.

-Mas não são bastantes, Rochinha, atalhou Sá. Lúcia tem razão.

Esta continuou:

-Vou fazer uma proposta.

-Muito bem; atenção em ambas as colunas, gritou o velho Couto abrindo os braços.

-Proponho...

-A minha saúde?

-Um coro com acompanhamento de pratos?

-Não! não! Se continuam, subo à rampa!

-Silêncio!

-Proponho que esta noite o Sr. Couto seja tratado por Coutozinho, que é mais terno; e o Sr. Rochinha sem o embirrante diminutivo, que lhe dá uns ares de menino de colégio!...

Houve explosão de gritos e aplausos.

-Acrescenta, disse o Sá, que Nina chamará o Sr. Couto -nhonhô, e Laura o Rochinha -papai.

-Não admito! O incesto é contra a moral, gritou Lúcia.

-Como trata-se de nomes, eu também proponho uma mudança, bocejou o Rochinha. Em lugar de Lúcia -diga-se Lúcifer.

-É velho! Não valia a pena acordar para isto. Quem não sabe que eu sou anjo de luz, que desci do céu ao inferno?

A guerrilha de facécias e ditos mais ou menos chistosos continuou tão viva, que renuncio à idéia de reproduzi-la.

Não pensava, quando comecei a escrever estas páginas que lhe destino, lutar com tamanhas dificuldades; uma coisa é sentir a impressão que se recebeu de certos acontecimentos, outra comunicar e transmitir fielmente essa impressão. Para o conseguir, cumpre que nada se omita; e aí justamente está o meu embaraço, porque há episódios daquela noite, que eu desejava bem poder deixar nos refolhos de minha memória ou no fundo do meu tinteiro.

Se tivesse agora ao meu lado o Sr. Couto, estou certo que ele me aconselharia para as ocasiões difíceis uma reticência. Com efeito, a reticência não é a hipocrisia no livro, como a hipocrisia é a reticência na sociedade?

Sempre tive horror às reticências; nesta ocasião antes queria desistir do meu propósito, do que desdobrar aos seus olhos esse véu de pontinhos, manto espesso, que para os severos moralistas da época aplaca todos os escrúpulos, e que em minha opinião tem o mesmo efeito da máscara, o de aguçar a curiosidade.

Por isso quando em alguns livros moralíssimos vejo uma reticência, tremo! Se uma curiosidade ingênua de 15 ou 16 anos passar por ali, não verá abrir-se em cada um desses pontinhos o abismo do desconhecido?

A minha história é imoral; portanto não admite reticências; mas tenho um desvanecimento, pouco modesto, confesso. Caso a senhora cometesse a indiscrição de ler estas páginas a alguma menina inocente, talvez chegassem ao fim sem uma única pergunta. A borboleta esvoaça sem pousar entre as flores venenosas, por mais brilhantes que sejam; e procura o pólen no cálice da violeta e de outras plantas humildes e rasteiras. O espírito da moça é a borboleta; o seu instinto a castidade.

Entretanto, se este manuscrito tivesse de sair à luz pública algum dia, e um editor escrupuloso quisesse dar ao pequeno livro passaporte para viajar das estantes empoeiradas aos toucadores perfumados e às elegantes banquinhas de costura, bastaria substituir certos trechos mais ousados por duas ordens de pontinhos.

A que se reduz por fim de contas a moral literária! Ao mesmo que a decência pública: a alguns pontos de mais ou de menos.

Lúcia fizera uma pausa na sua estrepitosa alegria, e caíra no costumado abatimento e distração. Eu a contemplava admirado do letargo que a tornava inteiramente estranha ao que ali se passava, quando ela voltou-se para mim com o seu sorriso de anjo decaído:

-Não lhe disse que nos havíamos de divertir muito?

-Contudo preferia estar só contigo. Todo o prazer de tão amável companhia, todo o brilho de teu espírito, que como o diamante faísca mais vivo quanto mais vivos são os raios da luz que o fere, nada disto faz esquecer a manhã de ontem!

-Ora! Há tanta mulher bonita! Qualquer destas vale mais do que eu, acredite! Demais, quando tiver bebido alguns copos de clicot e sentir-se eletrizado, saberá o senhor de quem são os lábios que toca? Qual? É uma mulher! Uma presa em que ceva o apetite! Que importa o nome? Sabe porventura o nome das aves e dos animais que lhe preparam esta ceia? Conhece-os?... Nem por isso as iguarias lhe parecem menos saborosas.

Estas palavras, assim lidas friamente, nada são comparadas com a voz amarga e sibilante que as pronunciava. Soltavam-se de seus lábios, e caíam no meu espírito, tão impregnadas de ondas de sarcasmo, que deixavam passando uma impressão cáustica e dolorosa.

-Não fales assim, Lúcia. Podia responder-te com a tua mesma comparação. Estas gelatinas e massas delicadas sabem que paladar as tem de gozar? Nem por isso deixam de exalar os mesmos aromas e guardar igual sabor para o dono da casa, como para qualquer dos convidados.

-Ou para os criados a quem se atiram os sobejos da ceia?... Não cuide que me ofendo! Se o senhor não diz porque é delicado, pensa-o talvez!

-Mudemos de conversa. Este tom de ironia me incomoda. Deste-me uma hora de prazer, que não esquecerei nunca. Não apagues o perfume desta lembrança.

-Que mal faz? Comprará outras horas de igual prazer: custam-lhe tão pouco!

-Oh! não seria o mesmo, não!

-Já não teria o encanto da novidade?

-Não teria a doce ilusão que arrancarias do meu espírito.

-Mas o senhor não sabe então?... perguntou erguendo os grandes olhos límpidos e fulgurantes.

-Sei tudo, mas não o quero saber; e menos de tua boca! Não sou para ti mais do que os outros; não te mereço nada; porém deixa-me a venda sobre os olhos, eu te peço! Sinto-me feliz com ela.

-O que não o impediria de ver-me com indiferença passar dos seus braços aos de qualquer destes homens, daquele velho por exemplo.

-Serias capaz de fazer isso, Lúcia?

-O que tenho eu feito toda a minha vida? Logo ou alguns dias depois... Questão de tempo!

-Não falas seriamente! É impossível!

-Aborreço o fingimento: não gosto de passar pelo que não sou. É tão ridícula essa comédia do amor, que representam os velhos e os meninos!

O escárnio da repetição de palavras, que eu lhe dissera na véspera, esmagou-me.

-Estás tão calada agora, Lúcia! exclamou o Couto.

-Paulo está naturalmente fazendo-lhe a corte! replicou Sá rindo.

-E por isso Lúcifer desapareceu do horizonte!

-Lúcifer espera o reino das trevas! O Sr. Paulo fazendo-me a corte!... Seria soberanamente ridículo para nós ambos!

-É a segunda vez que repetes uma palavra dita por mim num momento de despeito! Se te ofendi, perdoa-me, murmurei à meia voz.

-Gostei da frase!

Estourava o champanha, fumegando nos cálices de cristal. Foi o sinal de um concerto infernal de saúdes, hurras e cantigas descabeladas, com o acompanhamento de uma orquestra de copos e pratos; no meio do rumor distinguia-se a voz de falsete do Couto, e a risada estridente de Lúcia, cujas volatas tinham o timbre metálico do canto da araponga entre os murmúrios da floresta. Apenas começaram as primeiras explosões produzidas pelos vapores do vinho aristocrático, os criados saíram batendo a porta do serviço, que fechou-se interiormente.

Estávamos sós; a pêndula marcava uma hora e quarenta minutos; pouco tardaria o momento solene que o dono da casa, novo Erasmo, destinara para a inauguração da loucura.

-Meus senhores, confesso que a minha vaidade de anfitrião, amador das artes, está um tanto humilhada! Ainda não disseram uma palavra a respeito dos meus quadros!

-De quem é a culpa? A magnificência da ceia e a amabilidade do hóspede não consentiram que levantássemos os olhos.

-Mas são realmente soberbas estas pinturas!... exclamou o Couto. Que posições admiráveis!... Ressuscitariam um morto. Apenas noto a ausência absoluta do sexo feio.

-Isso prova o bom gosto do pintor.

-E o mau gosto das filhas de Lesbos.

-Então acham essas mulheres admiráveis?

-Provocantes!

-Arrebatadoras!...

-E tu, Paulo, que dizes?

-Digo que vi ontem um quadro deste gênero, que eu não trocaria por todas as tuas pinturas! Era uma mulher; mas as formas palpitavam; a carne latejava sob os olhos que a devoravam; os lábios comiam de beijos a vítima que eles provocavam; e entre a cútis transparente corria o sangue, que se precipitava do coração espadanando em cascatas!

-Sublime! A descrição é digna do quadro... que eu não vi! disse o Rochinha.

-Onde descobriste essa maravilha?

-É meu segredo.

-Nem se pode saber o nome do artista, Sr. Silva?

-Não adivinharam ainda!

-Será Rafael?

-É um Ticiano póstumo!

-Ou algum gênio desconhecido?

-Enganaram-se: é um artista de todos os tempos e de todos os países; é o artista divino que fez as flores, as estrelas e as mulheres!

-Ah! neste gênero de pintura tenho visto o melhor que é possível!

-Eu aposto, disse Lúcia, que o Sr. Silva, como os poetas, embelezou o seu quadro. Viu o que sentia; mas não o que era.

-Que importa! É outra ilusão minha que desejo guardar!

-Talvez não a guarde por muito tempo...

-Pois, meus senhores, continuou Sá, mostrando-lhes estas pinturas, preparei-lhes uma agradável surpresa. É nada menos que o original delas; não o original frio e calmo, mas um verdadeiro modelo, vivendo, palpitando, sorrindo, esculpindo em carne todas as paixões que deviam ferver no coração daquelas mulheres.

-Onde está ele?

-Lúcia vai mostrar-nos.

-Ah!...

-Magnífico!

-Que maçada! Esqueci o meu pince-nez, disse o Rochinha.

-Estás pronta, Lúcia?

Ela ergueu-se, circulando a mesa com o olhar ardente e fascinado.

-Tu não farás isto, Lúcia! disse-lhe eu à meia voz.

Dobrando como uma palma flexível o seu talhe esbelto, atirou-me ao ouvido uma palavra, que vazou no meu cérebro e correu-me pela medula dos ossos, como gota de metal em fusão.

-É preciso pagar a conta da ceia!

Travei-lhe da mão:

-Eu te suplico.

O seu corpo oscilou; caiu inerte sobre a cadeira.

-Que é isso? exclamou Sá. Tens vergonha de Paulo? É a única pessoa demais que está hoje aqui.

-Ah! não é a primeira vez? perguntei empalidecendo.

-Será a primeira vez que copiará estes quadros, pois não há oito dias que os comprei; mas Lúcia não precisa de modelos, e já nos mostrou, não uma, porém muitas noites, que tem, com a beleza dos anjos, o gênio da estatuária. Não é verdade, meus senhores?

-Bem vês, Sá, que a honra não é para todos. Sou indigno dela! disse eu.

-O que me está parecendo é que Lúcia quer apaixonar-te.

Soltei uma gargalhada.

-Perde o seu tempo! A mim?

Lúcia ergueu a cabeça com orgulho satânico, e levantando-se de um salto, agarrou uma garrafa de champanha, quase cheia. Quando a pousou sobre a mesa, todo o vinho tinha-lhe passado pelos lábios, onde a espuma fervilhava ainda. Ouvi o rugido da seda; diante de meus olhos deslumbrados passou a divina aparição que admirara na véspera.

Lúcia saltava sobre a mesa. Arrancando uma palma de um dos jarros de flores, trançou-a nos cabelos, coroando-se de verbena, como as virgens gregas. Depois agitando as longas tranças negras, que se enroscaram quais serpes vivas, retraiu os rins num requebro sensual, arqueou os braços e começou a imitar uma a uma as lascivas pinturas; mas a imitar com a posição, com o gesto, com a sensação do gozo voluptuoso que lhe estremecia o corpo, com a voz que expirava no flébil suspiro e no beijo soluçante, com a palavra trêmula que borbulhava dos lábios no delíquio do êxtase amoroso.

Deviam de ser sublimes de beleza e sensualidade esses quadros vivos, que se sucediam rápidos; porque até as mulheres aplaudiam com entusiasmo e frenesi. Revoltou-me tanto cinismo; ergui-me da mesa.

-Que é isso? Não admiras? O que viste era mais perfeito!

-Não por certo!... Estes quadros são mais expressivos e naturais! São sublimes de verdade! Porém sinto-me sufocado pela atmosfera desta sala; preciso de ar.

Abri a porta que dava para o jardim, e saí.

- VIII -

Não sou dos felizes, que conservam a virgindade d'alma, e levam à santa comunhão do casamento a pureza e castidade das emoções. Bem cedo ainda senti murchar a bonina delicada do coração; e afoguei a minha ignorância nos gozos rapidamente fruídos e brevemente olvidados.

Há porém na febre dos sentidos uma união íntima da matéria, unissonância de desejos e repercussão instantânea do prazer, que opera a transfusão mística da palavra santa. O homem e a mulher são a possessão mútua -una caro, a carne única, onde vivem duas almas que nada vêem, porque só vêem a si.

Compreenda agora por que a bacante ficou fria e gelada para mim, na sua ardente lascívia. A mulher que com seus encantos cevava outros olhos que não os meus, a estátua animada de desejos que eu não havia excitado, em vez de provocar em mim a admiração, indignou-me. Tive vergonha e asco, eu, que na véspera apertara com delírio nos meus braços essa mesma cortesã, menos bela ainda e menos deslumbrante, do que agora na sua fulgurante impudência.

Quando a mulher se desnuda para o prazer, os olhos do amante a vestem de um fluido que cega; quando a mulher se desnuda para a arte, a inspiração a transporta a mundos ideais, onde a matéria se depara ao hálito de Deus; quando porém a mulher se desnuda para cevar, mesmo com a vista, a concupiscência de muitos, há nisto uma profanação da beleza e da criatura humana, que não tem nome.

É mais do que a prostituição: é a brutalidade da jumenta ciosa que se precipita pelo campo, mordendo os cavalos para despertar-lhes o tardo apetite.

Contudo, passado o primeiro assomo, achei em minha alma, talvez mais piedade do que indignação. Lembrei-me do que Lúcia me tinha dito ao ouvido, da entonação áspera de sua voz, do estrépito nervoso de seu riso, e tive dó dessa moça. Que motivo a obrigava a descer tão baixo? Não era a cupidez, não; apesar de quanto me dissera o Cunha no teatro, havia naquela mulher um quer que seja, que revelava à primeira vista a nobreza do caráter. Devia de ser a depravação; mas a depravação como ainda não tinha encontrado, que se violentava, em vez de comprazer-se nos seus excessos.

Uma curiosidade irresistível me aproximara da porta que ficara entreaberta.

Lúcia, trançando a sua longa manta listrada de escarlate, que a envolveu como um pálio romano, voltara ao seu lugar e amolgara sobre a cadeira um corpo sem articulações. Os aplausos e a ruidosa grita continuavam no meio do fogo rolante de ditos licenciosos. Passado um instante ela ergueu a cabeça, e seu olhar embaciado circulou, indo lentamente de um a outro conviva.

-Quem estava aqui? balbuciou indicando o lugar que eu havia deixado.

-Já perdeste a memória? Bom sinal!

-Era eu, Lúcia! Não te lembras! disse o Couto.

-Mas havia alguém aqui?

-Não te inquietes!... Paulo foi tomar ares no jardim. Já volta.

-E se não voltar..., disse o Couto esticando-se na sua pretensiosa reticência.

-Era ele!... exclamou Lúcia rindo às gargalhadas.

-Está embriagada! pensei eu.

-E tu, Nina, não queres que também admiremos a tua beleza? dizia Sá.

-É verdade! Apreciaremos o contraste! gritou o Rochinha.

-Nada, ainda não desci a este ponto.

-Com efeito é preciso ter perdido a vergonha, murmurou Laura com desprezo.

Lúcia, que saíra da mesa, voltou-se com uma dignidade e nobreza impossível de pressentir na cortesã da véspera e na bacante de há pouco; mas essa expressão foi rápida; sucedeu-lhe a habitual doçura, ainda realçada por um tom humilde.

-Não faças caso, é inveja, exclamou Sá.

-Tens razão, Laura, perdi a vergonha para ganhar o dinheiro de que precisas; e desci a este ponto, Nina, desde que me habituei a desprezar o insulto, tanto como o corpo que nós costumamos vender.

E sem esperar resposta, dirigiu-se à porta e saiu. O meu primeiro movimento foi de repulsão; mas não sei que atração irresistível me prendia a esta mulher, que a segui de longe. Vi-a caminhar de um lado para outro, olhando em torno como se procurasse alguém; por fim caiu extenuada sobre um banco de relva.

Aproximei-me então, e tomei-a nos braços; metiam dó as contrações nervosas que crispavam seu belo corpo, e os soluços de angústia que lhe partiam o seio e cerravam a garganta, sufocando-a. Penou assim um tempo longo, em que receei por vezes que não expirasse sobre o meu peito. Finalmente a crise passou; foi-se acalmando, e desfaleceu.

-Que idéia triste o senhor deve ter de mim! murmurou com a voz sumida.

-Para que te prestas a estas coisas!

-O que sou eu?

-Embora! Há sempre um resto de dignidade, que impede a mulher de consentir no que acabas de fazer.

-Dignidade de quem se despreza a si mesma!... O que é este corpo que lhes mostrei há pouco, e que lhes tenho mostrado tantas vezes! O que vale para mim? O mesmo, menos ainda, do que o vestido que despi; este é de seda e custou o que não custa uma de minhas noites!... Oh! creia, mais nua do que há pouco me sinto eu agora, coberta como estou e aqui onde a sombra nem lhe deixa ver meu rosto!... Porém sua alma vê o que fui e o que sou, e tenho vergonha!

Lúcia atirou-se soluçando sobre o meu peito; e o que me restava ainda de indignação, desvaneceu-se.

-Por que não persististe na tua recusa? Eu te pedi!

-Tinha eu o direito de recusar? Não foi para isso que se deu esta ceia!

-Sá te disse alguma coisa a meu respeito?

-Não; mas adivinhei. Queria que lhe roubasse a surpresa que estava preparada, e aguasse com uma contrariedade a festa de seu amigo? Demais, não havia de saber; não lhe contariam, se já não lhe contaram, toda a minha vida?

-Não me incomodaria tanto como o que vi.

-Mas então para que veio?

-Não sabia o que se tinha de passar; suspeitava que te havia de encontrar aqui; porém nunca pensei que homens de educação achassem prazer em obrigar uma pobre mulher a semelhante degradação!

-Eles compram o seu prazer onde o acham; a degradação e a miséria é a de quem recebe o preço. Senti-o hoje! Nunca isso custou-me tanto! Conheci que era uma infâmia; se o senhor não zombasse de mim, não o teria feito por coisa alguma deste mundo.

-Nem sei onde estava naquele momento! Mas, Lúcia, já que o confessas, promete-me... Nada sou para ti, as nossas relações datam de ontem; porém em nome da indignação que senti, e do interesse que me inspiras, promete-me que nunca mais farás semelhante coisa.

Ela ergueu-se:

-Eu lhe juro, disse com a fala grave e comovida.

Sentando-se de novo ao meu lado, continuou:

-E o senhor não me julgará muito indigna? Não me desprezará?

-Não te desprezo; tenho pena de ti.

Lúcia travou-me da mão e beijou-a.

Esse beijo submisso fez-me mal.

Afastei-me arrebatadamente. Senti as mãos úmidas de lágrimas, que eu não sentira chorando-as. Lúcia aproximou-se pouco e pouco; os seus passos ligeiros crepitavam na areia; parou diante de mim, e não me animei a olhá-la.

Estranha contradição!

Quando a lembrança ainda recente devia avivar as cores do quadro vergonhoso e revoltante que me tinha indignado, eu esquecia a pesar meu. Se fazia um esforço para evocar a cena da ceia, as idéias confundiam-se; a imagem da bacante, surgida um momento, ia-se desvanecendo até sumir-se; e nas sombras que nublavam o meu pensamento assomava radiante a mulher que eu possuíra na véspera com todas as forças de minha vitalidade. O desejo parecia mesmo ter adquirido nova têmpera, e mais poderosa, na luta de que saíra.

Lúcia se tinha sentado junto de mim; alisava-me os cabelos, olhando-me à luz das estrelas.

-Se não tivesse vindo! suspirou ela. Não me fugiria; talvez olhasse para mim como das primeiras vezes que nos vimos; ao menos ainda poderia dar-lhe um pouco de prazer, já que nada mais tinha para dar-lhe.

-E por que não me darás ainda, Lúcia, esse prazer?

-Depois do que se passou?

-Cala-te! murmurei surdamente. Tu és uma criança!... Não tens culpa do que fizeste!

-Deveras me perdoa?... Ainda me quer?

Colei os meus lábios ao ouvido de Lúcia; tinha vergonha do eco de minhas palavras.

-Quero-te para sempre! Quero que sejas minha e minha só.

-Ah!...

Lúcia saltou como a gazela prestes a desferir a corrida, quando as baforadas do vento lhe trazem o faro de tigre remoto; estendendo o braço mostrou-me a sala da ceia, donde escapava luz e rumor.

-Mais longe!...

Fomos través das árvores até um berço de relva coberto por espesso dossel de jasmineiros em flor.

-Sim! Esqueça tudo, e nem se lembre que já me visse! Seja agora a primeira vez!... Os beijos que lhe guardei, ninguém os teve nunca! Esses, acredite, são puros!

Lúcia tinha razão. Aqueles beijos, não é possível que os gere duas vezes o mesmo lábio, porque onde nascem queimam, como certas plantas vorazes que passam deixando a terra maninha e estéril. Quando ela colou a sua boca na minha pareceu-me que todo o meu ser se difundia na ardente inspiração; senti fugir-me a vida, como o líquido de um vaso haurido em ávido e longo sorvo.

Havia na fúria amorosa dessa mulher um quer que seja da rapacidade da fera.

Sedenta de gozo, era preciso que o bebesse por todos os poros, de um só trago, num único e imenso beijo, sem pausa, sem intermitência e sem repouso. Era serpente que enlaçava a presa nas suas mil voltas, triturando-lhe o corpo; era vertigem que nos arrebatava a consciência da própria existência, alheava um homem de si e o fazia viver mais anos em uma hora do que em toda a sua vida.

A aspereza e feroz irritabilidade da véspera se dissipara. O seu amor tinha agora sensações doces e aveludadas, que penetravam os seios d'alma, como se a alma tivera tato para senti-las.

Não fui eu que possuí essa mulher; e sim ela que me possuiu todo, e tanto, que não me resta daquela noite mais do que uma longa sensação de imenso deleite, na qual me sentia afogar num mar de volúpia.

Quando o primeiro raio da manhã tremulando entre as folhas rendadas veio esclarecer-nos, Lúcia, reclinada a face na mão, me olhava com o ressumbro de doce melancolia, que era a flor de seu semblante em repouso. Embebendo o olhar no meu, procurou o pensamento no fundo de minha alma. Sorri; ela corou; mas desta vez entravam também no rubor os toques vivaces do júbilo que iluminou-lhe a fronte.

Incompreensível mulher!

A noite a vira bacante infrene, calcando aos pés lascivos o pudor e a dignidade, ostentar o vício na maior torpeza do cinismo, com toda a hediondez de sua beleza. A manhã a encontrava tímida menina, amante casta e ingênua, bebendo num olhar a felicidade que dera, e suplicando o perdão da felicidade que recebera.

Se naquela ocasião me viesse a idéia de estudar, como hoje faço à luz das minhas recordações, o caráter de Lúcia, desanimaria por certo à primeira tentativa. Felizmente era ator neste drama e guardei, como a urna de cristal guarda por muito tempo, o perfume de essência já evaporada, as impressões que então sentia. É com ela que recomponho este fragmento de minha vida.

Lúcia disse-me adeus; não consentiu que a acompanhasse, porque isso me podia comprometer. Insisti debalde; e recolhi-me de meu lado quebrado de fadiga e sono.

Em casa de Sá já se dormia quando partimos.

- IX -

Acordei por volta de duas horas, e fui escrever. Depois da noite que passara talvez suponha que fiz versos. Pois engana-se: fiz contas.

Revi o meu livro de assentos, dando balanço à minha fortuna, que então orçava por uma quinzena de contos. Era bem pobre; mas estava independente, formado, no ardor da mocidade e sem encargos de família. Já tinha a intenção de estabelecer-me aqui; e antes de começar a vida árida e o trabalho sério do homem que visa ao futuro, queria dar um último e esplêndido banquete às extravagâncias da juventude.

Quem melhor do que Lúcia me ajudaria a consumir as migalhas que me pesavam na carteira, e me embelezaria um ou dois meses da vida que eu queria viver por despedida? Separei o necessário para a minha subsistência durante dois anos; e com a fé robusta que se tem aos vinte anos, rico de esperanças, destinei o resto ao festim de Sardanapalo, onde eu devia queimar na pira do prazer a derradeira mirra da mocidade.

Tendo registrado no meu budget, com um simples traço de pena, a importante resolução, saí para matar a sede de ar, de sol e de espaço que sente o homem depois do sono tardio e enervador. Espaciei o corpo pela Rua do Ouvidor; o espírito pelas novidades do dia; os olhos pelo azul cetim de um céu de abril e pelas galas do luxo europeu expostas nas vidraças.

Era um domingo; o ócio dos felizes desocupados tinha ganhado o campo e os arrabaldes. Encontrei por isso poucos conhecidos e fria palestra.

Queria fazer horas para ir ver Lúcia. Com os hábitos de voluptuosa indolência, que tomam as mulheres a quem faltam os cuidados domésticos, não era natural que tão cedo fosse visível. Para ocupar-me dela, entrei em casa do Valais, o joalheiro do bom-tom.

Comprei, não o que desejava, mas o que permitiam as minhas finanças. Só os milionários gozam do prazer de medir a sua liberalidade pela efusão do sentimento; entretanto o desejo avulta justamente onde míngua a fortuna. Tinha escolhido uma dessas galantarias de ouro e brilhantes, que custam algumas centenas de mil-réis, e valem um capricho, uma tentação, um sorriso de prazer.

Ao sair vi um adereço de azeviche muito simplesmente lavrado, e por isso mesmo ainda mais lindo na sua simplicidade. Tênue filete de ouro embutido bordava a face polida e negra da pedra. Há certos objetos que um homem dá à mulher por um egoístico instinto do belo, só para ver o efeito que produzem nela. Lembrei-me que Lúcia era alva, e que essa jóia devia tomar novo realce com o brilho de sua cútis branca e acetinada. Não resisti; comprei o adereço, e tão barato, que hesitei se devia oferecê-lo.

Seriam quatro horas.

Achei Lúcia reclinada no sofá. Estava matando o tempo, ora examinando o crivo dos punhos e o debuxo do penteador de cambraia, ora cerrando as pálpebras para engolfar o espírito nalguma deliciosa reminiscência.

-Preguiçoso! Há duas horas que o espero! disse dando-me a mão e sorrindo.

-Saí há muito tempo, e não passei por aqui com receio de incomodar-te.

-Tenha a bondade de dizer: quem lhe deu o direito de pensar que me incomoda?

-O meu gênio! Desconfio de mim.

-Pois o seu gênio enganou-o; fique sabendo que o senhor nunca me pode incomodar a qualquer hora que venha aqui! Nunca; ouviu?

-E quanto tempo durará isso?

-Ah! já lhe disseram que sou volúvel! Eles têm razão de o dizer; porém má como sou, ainda assim não me julgue pelo que lhe contarem.

-Não te julgo, nem te quero julgar. Conheço-te de ontem; de ontem somente, tu o disseste!

-Pois essa que fui ontem continuarei a ser, já que Deus não quis que fosse a outra, que viu da primeira vez.

-Não era mais bonita do que a desta noite.

-Quem sabe? Mas diga-me, continuou acariciando-me o rosto com a mão travessa; deveras pensou hoje alguma vez em mim, ou esqueceu-se apenas nos separamos?

-Tanto, que te trouxe uma lembrança.

-Ah! quero ver, sou muito curiosa!

Tirei as jóias e dei-lhe; o sorriso faceiro que despontava no lábio murchou de repente. Atribuí a excesso de curiosidade e atenção, porém ela abrindo lentamente a caixa, lançou-lhe apenas um olhar distraído, e deitou-a sobre a cadeira com uma frieza glacial e um desgosto, que transparecia entre a expressão de forçada amabilidade com que me agradeceu:

-Obrigada; não valho tanto!

Esse tanto foi dito com uma surda vibração, e profunda, como se a voz que o articulara houvesse ferido interiormente todas as cordas de sua alma. «Cunha tinha razão, pensei eu; a cupidez e a avareza são as molas ocultas que movem este belo autômato de carne. Está habituada a presentes de milionário; desdenha a migalha do pobre».

Tive ímpetos de cuspir dos lábios os beijos que recebera e não podia pagar pelo seu justo preço.

Abria ela a outra caixa com a mesma lentidão e indiferença; quando súbito expandiu-se num desses enlevos que descem, como ondas de fluido luminoso, da fronte apaixonada e inteligente da mulher que ama. Soltou um pequeno grito de prazer, e agradeceu-me desta vez sem palavras, com um só olhar, mas olhar como ela unicamente os tinha; olhar fundo e longo, que parecia surgir de um abismo e dilatar-se ao infinito.

Posso eu descrever-lhe a ingênua alegria e as visagens graciosas e infantis que ela fez diante dessa jóia sem valor? Era a gárrula travessura da criança a quem se deu um brinquedo bonito; a mimosa garridice da menina que festeja o seu primeiro enfeite de moça; as carícias felinas do gato brincando com a tímida presa que vai devorar.

-Que bonito, meu Deus! exclamava a cada instante. Quero ver como me fica! Hei de trazê-lo sempre!

Imediatamente substituiu os brincos que tinha pelos de azeviche, cingiu o colar, e saltando como uma louquinha, correu ao espelho; aí repetiu-se a mesma cena. Apesar da naturalidade e do ímpeto involuntário destes gestos, a minha habitual desconfiança suspeitou naquela efusão de contentamento uma zombaria amarga; supus um momento, que ela pretendia ironicamente fazer-me sentir por esse modo a mesquinhez do presente.

Não lhe cause isto surpresa; lembre-se que idéia devia fazer então dessa mulher pelos precedentes que conhecia de sua vida.

-Que significa esta admiração fora de propósito, Lúcia? Estou arrependido de te haver oferecido semelhante ninharia; mas cuidei que me perdoasses em atenção à outra, que não me parecia muito indigna de tua beleza. Não sou rico; e há pouco a indiferença com que recebeste esta pulseira fez-me sentir bem amargamente a minha pobreza. Estou convencido que o fizeste sem querer.

Essa criatura tinha a intuição rápida e instantânea, que é no homem a segunda vista do gênio, e em algumas mulheres privilegiadas um instinto sutil do coração. À primeira palavra, a expansiva alegria que vertia de toda sua pessoa caiu-lhe aos pés. Ficou séria, submissa e envergonhada, como a criança traquinas, que surpreende em flagrante o ralho paterno. Recolheu confusa o adereço e veio sentar-se ao meu lado.

-Diz que recebi com indiferença esta pulseira! E qual é a causa da minha alegria? Disfarcei para o senhor não pensar que desejo me venha ser somente pelo valor destes brilhantes. Além disto, quando se recebe mais do que se vale, fica-se acanhada.

Compreendo hoje as rápidas transições que se operavam nessa mulher; mas naquela ocasião, como podia adivinhar a causa ignota que transfigurava de repente a cortesã depravada na menina ingênua, ou na amante apaixonada!

-Mas por isso não se zangue comigo!

E inclinou a face para receber uma carícia.

-Torno a pedir-te, Lúcia; nunca me digas o que não sentes. Tens o mau gosto de te rebaixares.

-Se eu quisesse parecer melhor do que realmente sou e fingir sentimentos que não posso ter, me tornaria ridícula. Talvez o senhor fosse o primeiro a escarnecer de mim.

-Tudo isto, sabes o que é? É orgulho ofendido por algumas palavras que me escaparam anteontem. Não negues; já te conheço melhor do que tu mesma.

-Deveras! É difícil conhecer-me; mais difícil do que pensa. Eu mesma, sei o que às vezes se passa em mim? E o motivo que me arrasta sem querer? Não repare nestas esquisitices! Ralhe comigo, quando eu merecer; prometo corrigir-me.

-Era o meio de me tornar insuportável. Daqui a uma semana não me poderias aturar.

-Experimente!

-Não; dizem que és muito caprichosa, e não há nada que eu respeite como os caprichos de uma mulher. Fica o que tu és; somente sentiria que cometesses excessos como os de ontem.

-Já lhe dei um juramento!

-Acredito nele. Portanto não há necessidade de te humilhares diante de mim, que não tenho direito de pedir-te contas de tua vida. Não te pergunto pelo passado. O que te peço são alguns instantes de prazer. Quando te aborrecer, previne-me.

-O senhor nunca me há de aborrecer! Se este prazer que lhe dou vale alguma coisa, tome dele quanto queira; pertence-lhe todo!

Davam seis horas. Lúcia pediu-me que jantasse com ela, e fê-lo com tal humildade e timidez, que apesar dos meus escrúpulos aceitei para não mortificá-la. Enquanto ela vestia-se no toucador, recostei-me no sofá e descontei quase uma hora do sono perdido na véspera. Abrindo os olhos vi Lúcia reclinada sobre mim.

-Devias estar maçada por me ver dormir. Por que não me acordaste?

-Agora mesmo acabei de aprontar-me.

Estava encantadora com o seu roupão de seda cor de pérola ornado de grandes laços azuis, cuja gola cruzando-se no seio deixava-lhe apenas o colo descoberto. Nos cabelos simplesmente penteados, dois cactos que apenas começavam a abrir às primeiras sombras da noite. Mas tudo isso era nada a par do brilho de seus olhos e do viço da pele fresca e suave, que tinha reflexos luminosos.

-Foi para mim que te fizeste tão bonita?

-E para quem mais? disse com um acento queixoso. Estou a seu gosto?

-Como sempre.

-Pois vamos jantar.

Ela fez-me as honras de sua casa como uma verdadeira senhora, com o tato esquisito que põe o hóspede à sua vontade, cercando-o contudo de mil atenções delicadas. O jantar foi sério. Ou porque Lúcia nessa ocasião desejasse conservar a sua dignidade de dona de casa; ou porque a presença dos criados a acanhasse, o fato é que não deixou nunca o tom ligeiramente cerimonioso que havia tomado.

Depois de jantar sentamo-nos no terraço, onde tomamos café, e eu fumei o meu charuto, do qual ela brincando roubou-me algumas fumaças com tal graça e prazer, que bem provavam ter cultivado mais esse vício.

A noite estava bonita e estrelada, e o céu coalhado de nuvens que recortavam sobre o azul as formas caprichosas. Lúcia tinha a alma poética; falava da natureza com o entusiasmo ingênuo que dá a vida contemplativa àqueles que não conhecem os segredos da ciência; muitas vezes fazia-me perguntas que me embaraçavam; outras cortava a frase colorida com um riso em que vertia a sua fina ironia.

-Ali está a minha estrela! Olhe, sou eu! disse mostrando-me Lúcifer, que se elevava no oriente, límpida e fulgurante.

Não pude deixar de sorrir-me.

-És muito linda no céu, sobretudo hoje que vestes um manto de tão puro azul; mas eu te prefiro aqui junto de mim, Lúcia.

-Também eu; antes queria viver sempre neste cantinho da terra como agora, respondeu-me tomando as mãos e olhando-me, do que no céu como ela brilhando para o mundo inteiro.

Calou-se um instante.

-Se eu ainda lá estivesse, desceria agora para vir sentar-me aqui. Mas Lúcifer deixou no céu a luz que perdeu para sempre.

Quando voltamos ao salão, já estava iluminado.

É preciso ter como Lúcia a beleza, a sedução e o espírito que enchem uma sala; a mobilidade e a elegância que multiplicam uma mulher, como o prisma reproduz o raio do sol por suas mil facetas; para assim consumir deliciosamente uma noite com as filigranas da galantaria feminina. Em três horas, que voaram, quer saber o que fez essa mulher? Tocou e cantou com sentimento, conversou com a sua graça habitual, representou-me tipos da comédia fluminense; fez a sátira dos ridículos da época; recitou versos de Garrett, como o faria a Gabriela; brincou, saltou, dançou; e por fim acabou tornando-me criança como ela, e obrigando-me a jogar prendas que eram resgatadas com um beijo na face.

Às dez horas quis retirar-me. Lúcia suspendeu-se ao meu ouvido, e balbuciou muito baixo uma súplica:

-Fique!

Um olhar eloqüente, raio voluptuoso que rompeu o enleio encantador de seu gesto, disse-me quanto havia nessa palavra. O meio de resistir a semelhante pedido?

Siguiente