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Memórias de um sargento de milícias

Manuel Antônio de Almeida

Origem, nascimento e batizado

Era no tempo do rei.

Uma das quatro esquinas que formam as ruas do Ouvidor e da Quitanda, cortando-se mutuamente, chamava-se nesse tempo -O canto dos meirinhos-; e bem lhe assentava o nome, porque era aí o lugar de encontro favorito de todos os indivíduos dessa classe (que gozava então de não pequena consideração). Os meirinhos de hoje não são mais do que a sombra caricata dos meirinhos do tempo do rei; esses eram gente temível e temida, respeitável e respeitada; formavam um dos extremos da formidável cadeia judiciária que envolvia todo o Rio de Janeiro no tempo em que a demanda era entre nós um elemento de vida: o extremo oposto eram os desembargadores. Ora, os extremos se tocam, e estes, tocando-se, fechavam o círculo dentro do qual se passavam os terríveis combates das citações, provarás, razões principais e finais, e todos esses trejeitos judiciais que se chamava o processo.

Daí sua influência moral.

Mas tinham ainda outra influência, que é justamente a que falta aos de hoje: era a influência que derivava de suas condições físicas. Os meirinhos de hoje são homens como quaisquer outros; nada têm de imponentes, nem no seu semblante nem no seu trajar, confundem-se com qualquer procurador, escrevente de cartório ou contínuo de repartição. Os meirinhos desse belo tempo não, não se confundiam com ninguém; eram originais, eram tipos: nos seus semblantes transluzia um certo ar de majestade forense, seus olhares calculados e sagazes significavam chicana. Trajavam sisuda casaca preta, calção e meias da mesma cor, sapato afivelado, ao lado esquerdo aristocrático espadim, e na ilharga direita penduravam um círculo branco, cuja significação ignoramos, e coroavam tudo isto por um grave chapéu armado. Colocado sob a importância vantajosa destas condições, o meirinho usava e abusava de sua posição. Era terrível quando, ao voltar uma esquina ou ao sair de manhã de sua casa, o cidadão esbarrava com uma daquelas solenes figuras, que, desdobrando junto dele uma folha de papel, começava a lê-la em tom confidencial! Por mais que se fizesse não havia remédio em tais circunstâncias senão deixar escapar dos lábios o terrível -Dou-me por citado-. Ninguém sabe que significação fatalíssima e cruel tinham estas poucas palavras! eram uma sentença de peregrinação eterna que se pronunciava contra si mesmo; queriam dizer que se começava uma longa e afadigosa viagem, cujo termo bem distante era a caixa da Relação, e durante a qual se tinha de pagar importe de passagem em um sem-número de pontos; o advogado, o procurador, o inquiridor, o escrivão, o juiz, inexoráveis Carontes, estavam à porta de mão estendida, e ninguém passava sem que lhes tivesse deixado, não um óbolo, porém todo o conteúdo de suas algibeiras, e até a última parcela de sua paciência.

Mas voltemos à esquina. Quem passasse por aí em qualquer dia útil dessa abençoada época veria sentado em assentos baixos, então usados, de couro, e que se denominavam -cadeiras de campanha- um grupo mais ou menos numeroso dessa nobre gente conversando pacificamente em tudo sobre que era lícito conversar: na vida dos fidalgos, nas notícias do Reino e nas astúcias policiais do Vidigal. Entre os termos que formavam essa equação meirinhal pregada na esquina havia uma quantidade constante, era o Leonardo-Pataca. Chamavam assim a uma rotunda e gordíssima personagem de cabelos brancos e carão avermelhado, que era o decano da corporação, o mais antigo dos meirinhos que viviam nesse tempo. A velhice tinha-o tornado moleirão e pachorrento; com sua vagareza atrasava o negócio das partes; não o procuravam; e por isso jamais saía da esquina; passava ali os dias sentado na sua cadeira, com as pernas estendidas e o queixo apoiado sobre uma grossa bengala, que depois dos cinqüenta era a sua infalível companhia. Do hábito que tinha de queixar-se a todo o instante de que só pagassem por sua citação a módica quantia de 320 réis, lhe viera o apelido que juntavam ao seu nome.

Sua história tem pouca coisa de notável. Fora Leonardo algibebe em Lisboa, sua pátria; aborrecera-se porém do negócio, e viera ao Brasil. Aqui chegando, não se sabe por proteção de quem, alcançou o emprego de que o vemos empossado, e que exercia, como dissemos, desde tempos remotos. Mas viera com ele no mesmo navio, não sei fazer o quê, uma certa Maria da hortaliça, quitandeira das praças de Lisboa, saloia rechonchuda e bonitona. O Leonardo, fazendo-se-lhe justiça, não era nesse tempo de sua mocidade mal-apessoado, e sobretudo era maganão. Ao sair do Tejo, estando a Maria encostada à borda do navio, o Leonardo fingiu que passava distraído por junto dela, e com o ferrado sapatão assentou-lhe uma valente pisadela no pé direito. A Maria, como se já esperasse por aquilo, sorriu-se como envergonhada do gracejo, e deu-lhe também em ar de disfarce um tremendo beliscão nas costas da mão esquerda. Era isto uma declaração em forma, segundo os usos da terra: levaram o resto do dia de namoro cerrado; ao anoitecer passou-se a mesma cena de pisadela e beliscão, com a diferença de serem desta vez um pouco mais fortes; e no dia seguinte estavam os dois amantes tão extremosos e familiares, que pareciam sê-lo de muitos anos.

Quando saltaram em terra começou a Maria a sentir certos enojos: foram os dois morar juntos: e daí a um mês manifestaram-se claramente os efeitos da pisadela e do beliscão; sete meses depois teve a Maria um filho, formidável menino de quase três palmos de comprido, gordo e vermelho, cabeludo, esperneador e chorão; o qual, logo depois que nasceu, mamou duas horas seguidas sem largar o peito. E este nascimento é certamente de tudo o que temos dito o que mais nos interessa, porque o menino de quem falamos é o herói desta história.

Chegou o dia de batizar-se o rapaz: foi madrinha a parteira; sobre o padrinho houve suas dúvidas: o Leonardo queria que fosse o Sr. juiz; porém teve de ceder a instâncias da Maria e da comadre, que queriam que fosse o barbeiro de defronte, que afinal foi adotado. Já se sabe que houve nesse dia função: os convidados do dono da casa, que eram todos dalém-mar, cantavam ao desafio, segundo seus costumes; os convidados da comadre, que eram todos da terra, dançavam o fado. O compadre trouxe a rabeca, que é, como se sabe, o instrumento favorito da gente do ofício. A princípio o Leonardo quis que a festa tivesse ares aristocráticos, e propôs que se dançasse o minuete da corte. Foi aceita a idéia, ainda que houvesse dificuldade em se encontrarem pares. Afinal levantaram-se uma gorda e baixa matrona, mulher de um convidado; uma companheira desta, cuja figura era a mais completa antítese da sua; um colega do Leonardo, miudinho, pequenino, e com fumaças de gaiato, e o sacristão da Sé, sujeito alto, magro e com pretensões de elegante. O compadre foi quem tocou o minuete na rabeca; e o afilhadinho, deitado no colo da Maria, acompanhava cada arcada com um guincho e um esperneio. Isto fez com que o compadre perdesse muitas vezes o compasso, e fosse obrigado a recomeçar outras tantas.

Depois do minuete foi desaparecendo a cerimônia, e a brincadeira aferventou, como se dizia naquele tempo. Chegaram uns rapazes de viola e machete: o Leonardo, instado pelas senhoras, decidiu-se a romper a parte lírica do divertimento. Sentou-se num tamborete, em um lugar isolado da sala, e tomou uma viola. Fazia um belo efeito cômico vê-lo, em trajes do ofício, de casaca, calção e espadim, acompanhando com um monótono zunzum nas cordas do instrumento o garganteado de uma modinha pátria. Foi nas saudades da terra natal que ele achou inspiração para o seu canto, e isto era natural a um bom português, que o era ele. A modinha era assim:

Quando estava em minha terra,

acompanhado ou sozinho,

cantava de noite e de dia

ao pé dum copo de vinho!



Foi executada com atenção e aplaudida com entusiasmo; somente quem não pareceu dar-lhe todo o apreço foi o pequeno, que obsequiou o pai como obsequiara ao padrinho, marcando-lhe o compasso a guinchos e esperneios. À Maria avermelharam-se-lhe os olhos, e suspirou.

O canto do Leonardo foi o derradeiro toque de rebate para esquentar-se a brincadeira, foi o adeus às cerimônias. Tudo daí em diante foi burburinho, que depressa passou à gritaria, e ainda mais depressa à algazarra, e não foi ainda mais adiante porque de vez em quando viam-se passar através das rótulas da porta e janelas umas certas figuras que denunciavam que o Vidigal andava perto.

A festa acabou tarde; a madrinha foi a última que saiu, deitando a bênção ao afilhado e pondo-lhe no cinteiro um raminho de arruda.

Capítulo II

Primeiros infortúnios

Passemos por alto sobre os anos que decorreram desde o nascimento e batizado do nosso memorando, e vamos encontrá-lo já na idade de 7 anos. Digamos unicamente que durante todo este tempo o menino não desmentiu aquilo que anunciara desde que nasceu: atormentava a vizinhança com um choro sempre em oitava alta; era colérico; tinha ojeriza particular à madrinha, a quem não podia encarar, e era estranhão até não poder mais.

Logo que pôde andar e falar tornou-se um flagelo; quebrava e rasgava tudo que lhe vinha à mão. Tinha uma paixão decidida pelo chapéu armado do Leonardo; se este o deixava por esquecimento em algum lugar ao seu alcance, tomava-o imediatamente, espanava com ele todos os móveis, punha-lhe dentro tudo que encontrava, esfregava-o em uma parede, e acabava por varrer com ele a casa; até que a Maria, exasperada pelo que aquilo lhe havia custar aos ouvidos, e talvez às costas, arrancava-lhe das mãos a vítima infeliz. Era, além de traquinas, guloso; quando não traquinava, comia. A Maria não lhe perdoava; trazia-lhe bem maltratada uma região do corpo; porém ele não se emendava, que era também teimoso, e as travessuras recomeçavam mal acabava a dor das palmadas.

Assim chegou aos 7 anos.

Afinal de contas a Maria sempre era saloia, e o Leonardo começava a arrepender-se seriamente de tudo que tinha feito por ela e com ela. E tinha razão, porque, digamos depressa e sem mais cerimônias, havia ele desde certo tempo concebido fundadas suspeitas de que era atraiçoado. Havia alguns meses atrás tinha notado que um certo sargento passava-lhe muitas vezes pela porta, e enfiava olhares curiosos através das rótulas: uma ocasião, recolhendo-se, parecera-lhe que o vira encostado à janela. Isto porém passou sem mais novidade.

Depois começou a estranhar que um certo colega seu o procurasse em casa, para tratar de negócios do oficio, sempre em horas desencontradas: porém isto também passou em breve. Finalmente aconteceu-lhe por três ou quatro vezes esbarrar-se junto de casa com o capitão do navio em que tinha vindo de Lisboa, e isto causou-lhe sérios cuidados. Um dia de manhã entrou sem ser esperado pela porta adentro; alguém que estava na sala abriu precipitadamente a janela, saltou por ela para a rua, e desapareceu.

À vista disto nada havia a duvidar: o pobre homem perdeu, como se costuma dizer, as estribeiras; ficou cego de ciúme. Largou apressado sobre um banco uns autos que trazia embaixo do braço, e endireitou para a Maria com os punhos cerrados.

-Grandessíssima!...

E a injúria que ia soltar era tão grande que o engasgou... e pôs-se a tremer com todo o corpo.

A Maria recuou dois passos e pôs-se em guarda, pois também não era das que se receava com qualquer coisa.

-Tira-te lá, ó Leonardo!

-Não chames mais pelo meu nome, não chames... que tranco-te essa boca a socos...

-Safe-se daí! Quem lhe mandou pôr-se aos namoricos comigo a bordo?

Isto exasperou o Leonardo; a lembrança do amor aumentou-lhe a dor da traição, e o ciúme e a raiva de que se achava possuído transbordaram em socos sobre a Maria, que depois de uma tentativa inútil de resistência desatou a correr, a chorar e a gritar:

-Ai... ai... acuda, Sr. compadre... Sr. compadre!...

Porém o compadre ensaboava nesse momento a cara de um freguês, e não podia largá-lo. Portanto a Maria pagou caro e por junto todas as contas. Encolheu-se a choramingar em um canto.

O menino assistira a toda essa cena com imperturbável sangue-frio: enquanto a Maria apanhava e o Leonardo esbravejava, este ocupava-se tranqüilamente em rasgar as folhas dos autos que este tinha largado ao entrar, e em fazer delas uma grande coleção de cartuchos.

Quando, esmorecida a raiva, o Leonardo pôde ver alguma coisa mais do que seu ciúme, reparou então na obra meritória em que se ocupava o pequeno. Enfurece-se de novo: suspendeu o menino pelas orelhas, fê-lo dar no ar uma meia-volta, ergue o pé direito, assenta-lhe em cheio sobre os glúteos, atirando-o sentado a quatro braças de distância.

-És filho de uma pisadela e de um beliscão; mereces que um pontapé te acabe a casta.

O menino suportou tudo com coragem de mártir, apenas abriu ligeiramente a boca quando foi levantado pelas orelhas: mal caiu, ergueu-se, embarafustou pela porta fora, e em três pulos estava dentro da loja do padrinho, e atracando-se-lhe às pernas. O padrinho erguia nesse momento por cima da cabeça do freguês a bacia de barbear que lhe tirara dos queixos: com o choque que sofreu a bacia inclinou-se, e o freguês recebeu um batismo de água de sabão.

-Ora, mestre, esta não está má!...

-Senhor, balbuciou este... a culpa é deste endiabrado... O que é que tens, menino?

O pequeno nada disse; dirigiu apenas os olhos espantados para defronte, apontando com a mão trêmula nessa direção.

O compadre olhou também, aplicou a atenção, e ouviu então os soluços da Maria.

-Ham! resmungou; já sei o que há de ser... eu bem dizia... ora aí está!...

E desculpando-se com o freguês saiu da loja e foi acudir ao que se passava.

Por estas palavras vê-se que ele suspeitara alguma coisa; e saiba o leitor que suspeitara a verdade.

Espiar a vida alheia, inquirir dos escravos o que se passava no interior das casas, era naquele tempo coisa tão comum e enraizada nos costumes, que ainda hoje, depois de passados tantos anos, restam grandes vestígios desse belo hábito. Sentado pois no fundo da loja, afiando por disfarce os instrumentos do ofício, o compadre presenciara os passeios do sargento por perto da rótula de Leonardo, as visitas extemporâneas do colega deste, e finalmente os intentos do capitão do navio. Por isso contava ele mais dia menos dia com o que acabava de suceder.

Chegando ao outro lado da rua empurrou a rótula que o menino ao sair deixara cerrada, e entrou. Dirigiu-se ao Leonardo, que se conservava ainda em posição hostil.

-Ó compadre, disse, você perdeu o juízo?...

-Não foi o juízo, disse o Leonardo em tom dramático, foi a honra!...

A Maria, vendo-se protegida pela presença do compadre, cobrou ânimo, e altanando-se disse em tom de zombaria:

-Honra!... Honra de meirinho... ora!

O vulcão de despeito que as lágrimas da Maria tinham apagado um pouco, borbotou de novo com este insulto, que não ofendia só um homem, porém uma classe inteira! Injúrias e murros à mistura caíram de novo sobre a Maria das mãos e da boca de Leonardo. O compadre, que se interpusera, levou alguns por descuido; afastou-se pois a distância conveniente, murmurando despeitado por ver frustrados seus esforços de conciliador:

-Honra de meirinho é como fidelidade de saloia.

Enfim serenou a tormenta: a Maria sentou-se a um canto a chorar e a maldizer a hora em que nascera, o dia em que pela primeira vez vira o Leonardo, a pisadela, o beliscão com que tinha começado o namoro a bordo, e tudo mais que a dor dos murros lhe trazia à cabeça.

O Leonardo, depois de um pouco de calma, teve um momento de exasperação; avermelharam-se-lhe os olhos e as faces, cerrou os dentes, meteu as mãos nos bolsos do calção, inchou as bochechas, e pôs-se a balançar violentamente a perna direita. Depois, como tomando uma resolução extrema, juntou as folhas dispersas dos autos que o menino despedaçara, enterrou atravessado na cabeça o chapéu armado, agarrou na bengala, e saiu batendo com a rótula e exclamando:

-Vá-se tudo com os diabos!...

-Vai... vai... exclamou a Maria já de novo em segurança, pondo as mãos nas cadeiras, que o caso não há de ficar assim... pôr-me as mãos!... ora.., vou com isto à justiça!...

-Comadre...

-Nada, não atendo, compadre... vou com isto à justiça, e apesar de ser ele um meirinhaço muito velhaco, há de se haver comigo.

-É melhor não se meter nisto, comadre... sempre são negócios com a justiça... o compadre é seu oficial, e ela há de punir pelos seus.

As ameaças da Maria não passavam de bravatas que lhe arrancava o despeito, e portanto com mais quatro razões do compadre cedeu, e foi restituída a paz em casa. Houve então larga conferência entre os dois, no fim da qual o compadre saiu dizendo:

-Ele há de voltar... aquilo é gênio... há de passar... e se não... o dito está dito; fico com o pequeno.

A Maria mostrou-se satisfeita. Tinha ela suas resoluções tomadas, ou anteriormente ou naquela ocasião, e por isso na conferência que referimos tratara de engodar o compadre e arrancar-lhe a promessa de que no caso de algum desarranjo tomaria a si e cuidaria do filho. Esse desarranjo ela figurara e o compadre acreditara que só partiria de Leonardo; porém o leitor vai ver que o pobre homem era condescendente, e que a Maria tinha razão quando falara ironicamente em honra de meirinho.

Toda esta cena que acabamos de descrever passou-se de manhã. À tardinha o Leonardo entrou pela loja do compadre, aflito e triste. O pequeno estremeceu no banco em que se achava sentado, lembrando-se do passeio aéreo que o pontapé de seu pai lhe fizera dar de manhã. O compadre adiantou-se e disse-lhe com um sorriso conciliador:

-O passado passado; vamos... ela está arrependida... doidices de rapariga... mas não há de fazer outra...

O Leonardo não respondeu; pôs-se a passear pela loja com as mãos cruzadas para trás e por baixo das abas da casaca; porém pelo seu semblante via-se que ele estimara as palavras do compadre, e que seria o primeiro a pronunciá-las se ele não o precedesse.

-Vamos até lá, disse o compadre, e acabe-se tudo! Coitada!... ela ficou muito chorosa.

-Vamos, disse o Leonardo!...

Chegando à porta de casa fez uma pequena parada como quem tinha tomado a resolução de não entrar; mas o que ele queria eram algumas súplicas do compadre, que pudessem ser ouvidas pela Maria; a fim de fazê-la acreditar que se ele voltava era arrastado, e não por sua vontade. O compadre percebeu isto, e satisfez o pensamento de Leonardo dizendo:

-Entre, homem... basta de criançadas... o passado passado.

Entraram. A sala estava vazia; o Leonardo sentou-se junto de uma mesa, descansou o rosto numa das mãos, conservando sempre o chapéu armado atravessado na cabeça, o que lhe dava um aspecto entre cômico e melancólico.

-Comadre, disse em voz alta o agente da conciliação, tudo está acabado; venha cá...

Ninguém respondeu.

-Há de estar aí a chorar metida em algum canto, tornou o compadre.

E começou a procurar por toda a casa.

Não era esta mui grande; em pouco percorreu-a toda, e ficou tomado do mais cruel desapontamento por não encontrar a Maria. Voltou portanto à sala entre consternado e espantado.

O Leonardo, supondo que ele tinha achado a Maria, e que sem dúvida a trazia pela mão contrita e humilhada, quis fazer-se de bom: ergueu-se, meteu as mãos nos bolsos, e pôs-se de costas para o lugar donde vinha o compadre.

-Ó compadre, disse este aproximando-se...

-Nada, atalhou o Leonardo sem voltar-se... o dito por não dito... mudei de resolução!...

-Olhe, homem...

-Nada, nada... está tudo acabado...

O Leonardo, dizendo isto, ia dando sempre as costas ao compadre, quando se lhe queria pôr de frente.

-Homem... escute... olhe que a comadre...

-Não quero saber dela... está tudo acabado; e já disse...

-Foi-se embora... homem... foi-se embora, gritou o compadre impacientado.

O Leonardo foi fulminado por estas palavras; voltou-se então todo trêmulo. Não vendo a Maria desatou a chorar.

-Pois bem, disse entre soluços, está tudo acabado... adeus compadre!

-Mas olhe que o pequeno... atalhou este.

O Leonardo nada respondeu, e saiu precipitadamente.

O compadre compreendeu tudo: viu que o Leonardo abandonava o filho, uma vez que a mãe o tinha abandonado, e fez um gesto como quem queria dizer: -está bom, já agora... vá; ficaremos com uma carga às costas.

Ao outro dia sabia-se por toda a vizinhança que a moça do Leonardo tinha fugido para Portugal com o capitão de um navio que partira na véspera de noite.

-Ah! disse o compadre com um sorriso maligno, ao saber da notícia, foram saudades da terra!...

Capítulo III

Despedida às travessuras

O Leonardo abandonara de uma vez para sempre a casa fatal onde tinha sofrido tamanha infelicidade; nem mesmo passara mais por aquelas alturas; de maneira que o compadre por muito tempo não lhe pôde pôr a vista em cima.

O pequeno, enquanto se achou novato em casa do padrinho, portou-se com toda a sisudez e gravidade; apenas porém foi tomando mais familiaridade, começou a pôr as manguinhas de fora. Apesar disto porém captou do padrinho maior afeição, que se foi aumentando de dia em dia, e que em breve chegou ao extremo da amizade cega e apaixonada. Até nas próprias travessuras do menino, as mais das vezes malignas, achava o bom do homem muita graça; não havia para ele em todo o bairro rapazinho mais bonito, e não se fartava de contar à vizinhança tudo o que ele dizia e fazia; às vezes eram verdadeiras ações de menino malcriado, que ele achava cheio de espírito e de viveza; outras vezes eram ditos que denotavam já muita velhacaria para aquela idade, e que ele julgava os mais ingênuos do mundo.

Era isto natural em um homem de uma vida como a sua; tinha já 50 e tantos anos, nunca tinha tido afeições; passara sempre só, isolado; era verdadeiro partidário do mais decidido celibato. Assim à primeira afeição que fora levado a contrair sua alma expandiu-se toda inteira, e seu amor pelo pequeno subiu ao grau de rematada cegueira. Este, aproveitando-se da imunidade em que se achava por tal motivo, fazia tudo quanto lhe vinha à cabeça.

Umas vezes sentado na loja divertia-se em fazer caretas aos fregueses quando estes se estavam barbeando. Uns enfureciam-se, outros riam sem querer; do que resultava que saíam muitas vezes com a cara cortada, com grande prazer do menino e descrédito do padrinho. Outras vezes escondia em algum canto a mais afiada navalha do padrinho, e o freguês levava por muito tempo com a cara cheia de sabão mordendo-se de impaciência enquanto este a procurava; ele ria-se furtiva e malignamente. Não parava em casa coisa alguma por muito tempo inteira; fazia andar tudo numa poeira; pelos quintais atirava pedras aos telhados dos vizinhos; sentado à porta da rua, entendia com quem passava e com quem estava pelas janelas, de maneira que ninguém por ali gostava dele. O padrinho porém não se dava disto, e continuava a querer-lhe sempre muito bem. Gastava às vezes as noites em fazer castelos no ar a seu respeito; sonhava-lhe uma grande fortuna e uma elevada posição, e tratava de estudar os meios que o levassem a esse fim. Eis aqui pouco mais ou menos o fio dos seus raciocínios. Pelo ofício do pai... (pensava ele) ganha-se, é verdade, dinheiro quando se tem jeito, porém sempre se há de dizer: -ora, é um meirinho!... Nada... por este lado não... Pelo meu ofício... verdade é que eu arranjei-me (há neste arranjei-me uma história que havemos de contar), porém não o quero fazer escravo dos quatro vinténs dos fregueses... Seria talvez bom mandá-lo ao estudo... porém para que diabo serve o estudo? Verdade é que ele parece ter boa memória, e eu podia mais para diante mandá-lo a Coimbra... Sim, é verdade... eu tenho aquelas patacas; estou já velho, não tenho filhos nem outros parentes... mas também que diabo se fará ele em Coimbra? Licenciado não: é mau ofício; letrado? era bom... sim, letrado... mas não; não, tenho zanga a quem me lida com papéis e demandas... Clérigo?... Um senhor clérigo é muito bom... é uma coisa muito séria... ganha-se muito... pode vir um dia a ser cura. Está dito, há de ser clérigo... ora, se há de ser: hei de ter ainda o gostinho de o ver dizer missa... de o ver pregar na Sé, e então hei de mostrar a toda esta gentalha aqui da vizinhança que não gosta dele que eu tinha muita razão em lhe querer bem. Ele está ainda muito pequeno, mas vou tratar de o ir desasnando aqui mesmo em casa, e quando tiver 12 ou 14 anos há de me entrar para a escola.

Tendo ruminado por muito tempo esta idéia, um dia de manhã chamou o pequeno e disse-lhe:

-Menino, venha cá, você está ficando um homem (tinha ele 9 anos); é preciso que aprenda alguma coisa para vir um dia a ser gente; de segunda-feira em diante (estava em quarta-feira) começarei a ensinar-lhe o bê-a-bá. Farte-se de travessuras por este resto da semana.

O menino ouviu este discurso com um ar meio admirado, meio desgostoso, e respondeu:

-Então eu não hei de ir mais ao quintal, nem hei de brincar na porta?

-Aos domingos, quando voltarmos da missa...

-Ora, eu não gosto da missa.

O padrinho não gostou da resposta; não era bom anúncio para quem se destinava a ser padre; mas nem por isso perdeu as esperanças.

O menino tomou bem sentido nestas palavras do padrinho: «Farte-se de travessuras por este resto da semana», e acreditou que aquilo era uma licença ampla para fazer tudo quanto de bom e de mau lhe lembrasse durante o tempo que ainda lhe restava de folga. Levou pois todo o dia em uma desenvoltura assustadora; o padrinho foi achá-lo por duas ou três vezes a cavalo em cima do muro que dividia o quintal da casa do vizinho, em grande risco de precipitar-se.

Ao anoitecer, estando sentado à porta da loja, viu ao longe no princípio da rua um acompanhamento alumiado pela luz de lanternas e tochas, e ouviu padres a rezarem; estremeceu de alegria e pôs-se em pé de um salto. Era a via-sacra do Bom Jesus.

Há bem pouco tempo que existiam ainda em certas ruas desta cidade cruzes negras pregadas pelas paredes de espaço em espaço.

Às quartas-feiras e em outros dias da semana saía do Bom Jesus e de outras igrejas uma espécie de procissão composta de alguns padres conduzindo cruzes, irmãos de algumas irmandades com lanternas, e povo em grande quantidade; os padres rezavam e o povo acompanhava a reza. Em cada cruz parava o acompanhamento, ajoelhavam-se todos, e oravam durante muito tempo. Este ato, que satisfazia a devoção dos carolas, dava pasto e ocasião a quanta sorte de zombaria e de imoralidade lembrava aos rapazes daquela época, que são os velhos de hoje, e que tanto clamam contra o desrespeito dos moços de agora. Caminhavam eles em charola atrás da procissão, interrompendo a cantoria com ditérios em voz alta, ora simplesmente engraçados, ora pouco decentes; levavam longos fios de barbante, em cuja extremidade iam penduradas grossas bolas de cera. Se ia por ali ao seu alcance algum infeliz, a quem os anos tivessem despido a cabeça dos cabelos, colocavam-se em distância conveniente, e escondidos por trás de um ou de outro, arremessavam o projétil que ia bater em cheio sobre a calva do devoto; puxavam rapidamente o barbante, e ninguém podia saber donde tinha partido o golpe. Estas e outras cenas excitavam vozeria e gargalhadas na multidão.

Era a isto que naqueles devotos tempos se chamava correr a via-sacra.

O menino, como já dissemos, estremecera de prazer ao ver aproximar-se a procissão. Desceu sorrateiramente a soleira, e sem ser visto pelo padrinho colocou-se unido à parede entre as duas portas da loja, levantando-se na ponta dos pés para ver mais a seu gosto.

Vinha aproximando-se o acompanhamento, e o menino palpitava de prazer. Chegou mesmo defronte da porta; teve ele então um pensamento que o fez estremecer; tornou-se a lembrar das palavras do padrinho: «farte-se de travessuras»; espiou para dentro da loja, viu-o entretido, deu um salto do lugar onde estava, misturou-se com a multidão, e lá foi concorrendo com suas gargalhadas e seus gritos para aumentar a vozeria. Era um prazer febril que ele sentia; esqueceu-se de tudo, pulou, saltou, gritou, rezou, cantou, e só não fez daquilo o que não estava em suas forças. Fez camaradagem com dois outros meninos do seu tamanho que também iam no rancho, e quando deu acordo de si estava de volta com a via-sacra na Igreja do Bom Jesus.

Capítulo IV

Fortuna

Enquanto o compadre, aflito, procura por toda a parte o menino, sem que ninguém possa dar-lhe novas dele, vamos ver o que é feito do Leonardo, e em que novas alhadas está agora metido.

Lá para as bandas do mangue da Cidade Nova havia, ao pé de um charco, uma casa coberta de palha da mais feia aparência, cuja frente suja e testada enlameada bem denotavam que dentro o asseio não era muito grande. Compunha-se ela de uma pequena sala e um quarto; toda a mobília eram dois ou três assentos de paus, algumas esteiras em um canto, e uma enorme caixa de pau, que tinha muitos empregos; era mesa de jantar, cama, guarda-roupa e prateleira. Quase sempre estava essa casa fechada, o que a rodeava de um certo mistério. Esta sinistra morada era habitada por uma personagem talhada pelo molde mais detestável; era um caboclo velho, de cara hedionda e imunda, e coberto de farrapos. Entretanto, para a admiração do leitor, fique-se sabendo que este homem tinha por ofício dar fortuna!

Naquele tempo acreditava-se muito nestas coisas, e uma sorte de respeito supersticioso era tributado aos que exerciam semelhante profissão. Já se vê que inesgotável mina não achavam nisso os industriosos!

E não era só a gente do povo que dava crédito às feitiçarias; conta-se que muitas pessoas da alta sociedade de então iam às vezes comprar venturas e felicidades pelo cômodo preço da prática de algumas imoralidades e superstições.

Pois ao nosso amigo Leonardo tinha-lhe também dado na cabeça tomar fortuna, e tinha isso por causa das contrariedades que sofria em uns novos amores que lhe faziam agora andar a cabeça à roda.

Tratava-se de uma cigana; o Leonardo a vira pouco tempo depois da fuga da Maria, e das cinzas ainda quentes de um amor mal pago nascera outro que também não foi a este respeito melhor aquinhoado; mas o homem era romântico, como se diz hoje, e babão, como se dizia naquele tempo; não podia passar sem uma paixãozinha. Como o ofício rendia, e ele andava sempre apatacado, não lhe fora difícil conquistar a posse do adorado objeto; porém a fidelidade, a unidade no gozo, que era o que sua alma aspirava, isso não o pudera conseguir: a cigana tinha pouco mais ou menos sido feita no mesmo molde da saloia. Por toda a parte há sargentos, colegas e capitães de navios; a rapariga tinha-lhe já feito umas poucas, e acabava também por fugir-lhe de casa. Desta vez porém, como não eram saudades da pátria a causa desta fugida, o Leonardo decidira haver de novo e por todos os meios a posse de sua amada. Encontrou-a com pouco trabalho, e empregando o pranto, as súplicas, as ameaças, porém tudo embalde, decidiu por isso a buscar com meios sobrenaturais o que os meios humanos lhe não tinham podido dar.

Entregou-se portanto em corpo e alma ao caboclo da casa do mangue, o mais afamado de todos os do ofício. Tinha-se já sujeitado a uma infinidade de provas, que começavam sempre por uma contribuição pecuniária, e ainda nada havia conseguido; tinha sofrido fumigações de ervas sufocantes, tragado beberagens de mui enjoativo sabor; sabia de cor milhares de orações misteriosas, que era obrigado a repetir muitas vezes por dia; ia depositar quase todas as noites em lugares determinados quantias e objetos com o fim de chamar em auxílio, dizia o caboclo, as suas divindades; e apesar de tudo a cigana resistia ao sortilégio. Decidiu-se finalmente a sujeitar-se à última prova, que foi marcada para a meia-noite em ponto na casa que já conhecemos. À hora aprazada lá se achou o Leonardo; encontrou na porta o nojento nigromante, que não consentiu que ele entrasse do modo em que se achava, e obrigou-o a pôr-se primeiro em hábitos de Adão no paraíso, cobriu-o depois com um manto imundo que trazia, e só então lhe franqueou entrada.

A sala estava com um aparato ridiculamente sinistro, que não nos cansaremos em descrever; entre outras coisas, cuja significação só conheciam os iniciados nos mistérios do caboclo, havia no meio uma pequena fogueira.

Começando a cerimônia o Leonardo foi obrigado a ajoelhar-se em todos os ângulos da casa, e recitar as orações que já sabia e mais algumas que lhe foram ensinadas na ocasião, depois foi orar junto da fogueira. Neste momento saíram do quarto três novas figuras, que vieram tomar parte na cerimônia, e começaram então, acompanhando-os o supremo sacerdote, uma dança sinistra em roda do Leonardo. De repente sentiram bater levemente na porta da parte de fora, e uma voz descansada dizer:

-Abra a porta.

-O Vidigal! disseram todos a um tempo, tomados do maior susto.

O Vidigal

O som daquela voz que dissera «abra a porta» lançara entre eles, como dissemos, o espanto e o medo. E não foi sem razão; era ela o anúncio de um grande aperto, de que por certo não poderiam escapar. Nesse tempo ainda não estava organizada a polícia da cidade, ou antes estava-o de um modo em harmonia com as tendências e idéias da época. O major Vidigal era o rei absoluto, o árbitro supremo de tudo que dizia respeito a esse ramo de administração; era o juiz que julgava e distribuía a pena, e ao mesmo tempo o guarda que dava caça aos criminosos; nas causas da sua imensa alçada não havia testemunhas, nem provas, nem razões, nem processo; ele resumia tudo em si; a sua justiça era infalível; não havia apelação das sentenças que dava, fazia o que queria, e ninguém lhe tomava contas. Exercia enfim uma espécie de inquirição policial. Entretanto, façamos-lhe justiça, dados os descontos necessários às idéias do tempo, em verdade não abusava ele muito de seu poder, e o empregava em certos casos muito bem empregado.

Era o Vidigal um homem alto, não muito gordo, com ares de moleirão; tinha o olhar sempre baixo, os movimentos lentos, e voz descansada e adocicada. Apesar deste aspecto de mansidão, não se encontraria por certo homem mais apto para o seu cargo, exercido pelo modo que acabamos de indicar.

Uma companhia ordinariamente de granadeiros, às vezes de outros soldados que ele escolhia nos corpos que havia na cidade, armados todos de grossas chibatas, comandada pelo major Vidigal, fazia toda a ronda da cidade de noite, e toda a mais polícia de dia. Não havia beco nem travessa, rua nem praça, onde não se tivesse passado uma façanha do Sr. major para pilhar um maroto ou dar caça a um vagabundo. A sua sagacidade era proverbial, e por isso só o seu nome incutia grande terror em todos os que não tinham a consciência muito pura a respeito de falcatruas.

Se no meio da algazarra de um fado rigoroso, em que a decência e os ouvidos dos vizinhos não eram muito respeitados, ouvia-se dizer «está aí o Vidigal», mudavam-se repentinamente as cenas; serenava tudo em um momento, e a festa tomava logo um aspecto sério. Quando algum dos patuscos daquele tempo (que não gozava de grande reputação de ativo e trabalhador) era surpreendido de noite de capote sobre os ombros e viola a tiracolo, caminhando em busca de súcia, por uma voz branda que lhe dizia simplesmente «venha cá; onde vai?», o único remédio que tinha era fugir, se pudesse, porque com certeza não escapava por outro meio de alguns dias de cadeia, ou pelo menos da Casa da Guarda na Sé; quando não vinha o côvado e meio às costas, como conseqüência necessária.

Foi por isso que os nossos mágicos e a sua infeliz vítima puseram-se em debandada mal conheceram pela voz quem se achava com eles. Quiseram escapar-se pelos fundos da casa, porém ela estava toda cercada de granadeiros, em cujas mãos se viam a arma de que acima falamos. A porta abriu-se sem muita resistência, e o major Vidigal (porque era com efeito ele) com os seus granadeiros achou-os em flagrante delito de nigromancia: estava ainda acesa a fogueira, e os mais objetos que serviam ao sacrifício.

-Oh! disse ele, por aqui dá-se fortuna...

-Sr. major, pelo amor de Deus...

-Eu tinha desejos de ver como era isso; continuem... sem-cerimônia, vamos.

Os infelizes hesitaram um pouco, porém vendo que resistir seria inútil, começaram de novo as cerimônias, de que os soldados se riam, antevendo talvez qual seria o resultado. O Leonardo estava corrido de vergonha, tanto mais porque o Vidigal o conhecia; e procurava cobrir-se do melhor modo com a sua imunda capa. Ajoelhou-se quase arrastado outra vez no mesmo lugar; e recomeçou a dança, a que o major assistia de braços cruzados e com ar pachorrento. Quando os sacrificadores, julgando que já tinham dançado suficientemente, tentaram parar, o major disse brandamente:

-Continuem.

Depois de muito tempo quiseram parar de novo.

-Continuem, disse outra vez o major.

Continuaram por mais meia hora; passado esse tempo, já muito cansados, tentaram dar fim.

-Ainda não; continuem.

Continuaram por tempos esquecidos, já estavam que não podiam de estafados; o nosso Leonardo, ajoelhado ao pé da fogueira, quase que se desfazia em suor. Afinal o major deu-se por satisfeito, mandou que parassem, e sem se alterar disse para os soldados, com a sua voz doce e pausada:

-Toca, granadeiros.

A esta voz todas as chibatas ergueram-se, e caíram de rijo sobre as costas daquela honesta gente, fizeram-na dançar, e sem querer, ainda por algum tempo.

-Pára, disse o major depois de um bom quarto de hora.

Começou então a fazer a cada um, um sermão, em que se mostrava muito sentido por ter sido obrigado a chegar àquele excesso, e que terminava sempre por esta pergunta:

-Então, você em que se ocupa?

Nenhum deles respondia. O major sorria-se e acrescentava com riso sardônico:

-Está bom!

Chegou a vez do Leonardo.

-Pois homem, você, um oficial de justiça, que devia dar o exemplo...

-Sr. major, respondeu ele acabrunhado, é o diabo daquela rapariga que me obriga a tudo isto; já não sei de que meios use...

-Você há de ficar curado! Vamos para a casa da guarda.

Com esta última decisão o Leonardo desesperou. Perdoaria de bom grado as chibatadas que levara, contanto que elas ficassem em segredo; mas ir para a casa da guarda, e dela talvez para a cadeia... isso é que ele não podia tolerar. Rogou ao major que o poupasse; o major foi inflexível. Desfez então a vergonha em pragas à maldita cigana que tanto o fazia sofrer.

A casa da guarda era no largo da Sé; era uma espécie de depósito onde se guardavam os presos que se faziam de noite, para se lhes dar depois conveniente destino. Já se sabe que os amigos de novidades iam por ali de manhã e sabiam com facilidade tudo que se tinha passado na noite antecedente.

Aí esteve o Leonardo o resto da noite e grande parte da manhã, exposto à vistoria dos curiosos.

Por infelicidade sua passou por acaso um colega, e vendo-o entrou para falar-lhe, isto quer dizer que daí a pouco toda a ilustre corporação dos meirinhos da cidade sabia do ocorrido com o Leonardo, e já se preparava para dar-lhe uma solene pateada quando o negócio mudou de aspecto e o Leonardo foi mandado para a cadeia.

Aparentemente os companheiros mostraram-se sentidos, porém secretamente não deixaram de estimar o contratempo porque o Leonardo era muito afreguesado, e enquanto estava ele preso as partes os procuravam.

Capítulo VI

Primeira noite fora de casa

O compadre, apenas dera por falta do afilhado, viu-se presa da maior aflição: pôs em alarma toda a vizinhança, procurou, indagou, mas ninguém lhe deu novas nem mandados dele. Lembrou-se então da via-sacra, e imaginou que o pequeno a teria acompanhado; percorreu todas as ruas por onde passara o acompanhamento, perguntando aflito a quantos encontrava pelo tesouro precioso de suas esperanças; chegou sem encontrar vestígio algum até o Bom Jesus, onde lhe disseram ter visto três meninos que por se portarem endiabradamente na ocasião da entrada da via-sacra o sacristão os correra para fora da igreja.

Foi este o único sinal que pôde colher.

Vagou depois por muito tempo pela rua, e só se recolheu para casa estando já a noite adiantada. Ao chegar à porta de casa abriu-se o postigo de uma rótula contígua, e uma voz de mulher perguntou:

-Então vizinho, nada?

-Nada, vizinha, respondeu o compadre com voz desanimada.

-Ora, quando eu lhe digo que aquela criança tem maus bofes...

-Vizinha, isto não são coisas que se digam...

-Digo-lhe e repito-lhe que tem maus bofes... Deus permita que não, mas aquilo não tem bom fim...

-Oh! senhora, replicou o compadre muito irritado, que tem a senhora com a minha vida e mais das coisas que me pertencem? Meta-se consigo, cuide nos seus bilros e na sua renda, e deixe a vida alheia.

Entrou depois para casa murmurando:

-Um dia faço aqui uma estralada com esta mulher: é sempre isto! parece um agouro!

Toda a noite levou o pobre homem acordado a pensar nos meios de achar o pequeno: e depois de ter formado mil planos, disse consigo:

-Em último lugar vou ter com o major Vidigal.

E esperou que o dia voltasse para prosseguir em suas pesquisas.

Entretanto vamos satisfazer ao leitor, que há de talvez ter curiosidade de saber onde se meteu o pequeno.

Com os emigrados de Portugal veio também para o Brasil a praga dos ciganos. Gente ociosa e de poucos escrúpulos, ganharam eles aqui reputação bem merecida dos mais refinados velhacos: ninguém que tivesse juízo se metia com eles em negócio, porque tinha certeza de levar carolo. A poesia de seus costumes e de suas crenças, de que muito se fala, deixaram-na da outra banda do oceano; para cá só trouxeram maus hábitos, esperteza e velhacaria, e se não, o nosso Leonardo pode dizer alguma coisa a respeito. Viviam em quase completa ociosidade; não tinham noite sem festa. Moravam ordinariamente um pouco arredados das ruas populares, e viviam em plena liberdade. As mulheres trajavam com certo luxo relativo aos seus haveres: usavam muito de rendas e fitas; davam preferência a tudo quanto era encarnado, e nenhuma delas dispensava pelo menos um cordão de ouro ao pescoço; os homens não tinham outra distinção mais do que alguns traços fisionômicos particulares que os faziam conhecidos.

Os dois meninos com quem o pequeno fugitivo travara amizade pertenciam a uma família dessa gente que morava no largo do Rossio, lugar que tinha por isso até algum tempo o nome de campo dos Ciganos. Tinham esses meninos, como dissemos, pouco mais ou menos a mesma idade que ele; porém acostumados à vida vagabunda, conheciam toda a cidade, e a percorriam sós, sem que isso causasse cuidado a seus pais; nunca faltavam a acompanhamento de via-sacra, nem a outra qualquer coisa desse gênero. Encontrando-se nessa noite, como já sabem os leitores, como o nosso futuro clérigo, a ele se associaram, e o carregaram para casa de seus pais, onde, como de costume, havia festa de ciganos (e este costume ainda hoje se conserva); faziam, dissemos, festa todos os dias, porém motivavam-na sempre. Hoje era um batizado, amanhã um casamento, agora anos deste, logo anos daquele, festa deste, festa daquele santo. Na noite de que tratamos havia um oratório armado, e festejava-se um santo de sua devoção; não lhe sabemos o nome.

Pelo caminho o menino teve alguns escrúpulos e quis voltar, porém os outros tal pintura lhe fizeram do que ele ia ver se os acompanhasse, que decidiu-se a segui-los até onde quisessem.

Chegaram enfim à casa, onde já tinha começado a festa.

Ao lado esquerdo da sala estava o oratório iluminado por algumas pequenas velas de cera, sobre uma mesa coberta com uma toalha branca, servia-lhe de espaldar uma colcha de chita com folhos. Em roda da sala estavam colocados assentos de toda a natureza, bancos, cadeiras, etc., onde se assentavam os convidados. Não eram estes em pequeno número, eram ciganos e gente do país; traziam toilettes de toda a casta, do sofrível para baixo; mostravam-se alegres e dispostos a aproveitarem bem a noite.

Os meninos entraram sem que alguém reparasse neles, e foram colocar-se junto do oratório.

Daí a pouco começou o fado.

Todos sabem o que é fado, essa dança tão voluptuosa, tão variada, que parece filha do mais apurado estudo da arte. Uma simples viola serve melhor do que instrumento algum para o efeito.

O fado tem diversas formas, cada qual mais original. Ora, uma só pessoa, homem ou mulher, dança no meio da casa por algum tempo, fazendo passos os mais dificultosos, tomando as mais airosas posições, acompanhando tudo isso com estalos que dá com os dedos, e vai depois pouco e pouco aproximando-se de qualquer que lhe agrada; faz-lhe diante algumas negaças e viravoltas, e finalmente bate palmas, o que quer dizer que a escolheu para substituir o seu lugar.

Assim corre a roda toda até que todos tenham dançado.

Outras vezes um homem e uma mulher dançam juntos; seguindo com a maior certeza o compasso da música, ora acompanham-se a passos lentos, ora apressados, depois repelem-se, depois juntam-se; o homem às vezes busca a mulher com passos ligeiros, enquanto ela, fazendo um pequeno movimento com o corpo e com os braços, recua vagarosamente, outras vezes é ela quem procura o homem, que recua por seu turno, até que enfim acompanham-se de novo.

Há também a roda em que dançam muitas pessoas, interrompendo certos compassos com palmas e com um sapateado às vezes estrondoso e prolongado, às vezes mais brando e mais breve, porém sempre igual e a um só tempo.

Além destas há ainda outras formas de que não falamos. A música é diferente para cada uma, porém sempre tocada em viola. Muitas vezes o tocador canta em certos compassos uma cantiga às vezes de pensamento verdadeiramente poético.

Quando o fado começa custa a acabar; termina sempre pela madrugada, quando não leva de enfiada dias e noites seguidas e inteiras.

O menino, esquecido de tudo pelo prazer, assistiu à festa enquanto pôde; depois chegou-lhe o sono, e, reunindo-se com os companheiros em um canto, adormeceram todos embalados pela viola e pelo sapateado.

Quando amanheceu acordou sarapantado; chamou um dos companheiros, e pediu que o levasse para casa.

O padrinho ia saindo para começar nas pesquisas quando esbarrou com ele.

-Menino dos trezentos... onde te meteste tu?...

-Fui ver um oratório... Não diz que eu hei de ser padre?!...

O padrinho olhou-o por muito tempo, e afinal, não podendo resistir ao ar de ingenuidade que ele mostrava, desatou a rir, e levou-o para dentro já completamente apaziguado.

Capítulo VII

A comadre

Cumpre-nos agora dizer alguma coisa a respeito de uma personagem que representará no correr desta história um importante papel, e que o leitor apenas conhece, porque nela tocamos de passagem no primeiro capítulo: é a comadre, a parteira que, como dissemos, servira de madrinha ao nosso memorando.

Era a comadre uma mulher baixa, excessivamente gorda, bonachona, ingênua ou tola até um certo ponto, e finória até outro; vivia do oficio de parteira, que adotara por curiosidade, e benzia de quebranto; todos a conheciam por muito beata e pela mais desabrida papa-missas da cidade. Era a folhinha mais exata de todas as festas religiosas que aqui se faziam; sabia de cor os dias em que se dizia missa em tal ou tal igreja, como a hora e até o nome do padre; era pontual à ladainha, ao terço, à novena, ao setenário; não lhe escapava via-sacra, procissão, nem sermão; trazia o tempo habilmente distribuído e as horas combinadas, de maneira que nunca lhe aconteceu chegar à igreja e achar já a missa no altar. De madrugada começava pela missa da Lapa; apenas acabava ia à das 8 na Sé, e daí saindo pilhava ainda a das 9 em Santo Antônio. O seu traje habitual era, como o de todas as mulheres da sua condição e esfera, uma saia de lila preta, que se vestia sobre um vestido qualquer, um lenço branco muito teso e engomado ao pescoço, outro na cabeça, um rosário pendurado no cós da saia, um raminho de arruda atrás da orelha, tudo isto coberto por uma clássica mantilha, junto à renda da qual se pregava uma pequena figa de ouro ou de osso. Nos dias dúplices, em vez de lenço à cabeça, o cabelo era penteado, e seguro por um enorme pente cravejado de crisólitas.

Este uso da mantilha era um arremedo do uso espanhol; porém a mantilha espanhola, temos ouvido dizer, é uma coisa poética que reveste as mulheres de um certo mistério, e que lhes realça a beleza; a mantilha das nossas mulheres, não; era a coisa mais prosaica que se pode imaginar, especialmente quando as que as traziam eram baixas e gordas como a comadre. A mais brilhante festa religiosa (que eram as mais freqüentadas então) tomava um aspecto lúgubre logo que a igreja se enchia daqueles vultos negros, que se uniam uns aos outros, que se inclinavam cochichando a cada momento.

Mas a mantilha era o traje mais conveniente aos costumes da época; sendo as ações dos outros o principal cuidado de quase todos, era muito necessário ver sem ser visto. A mantilha para as mulheres estava na razão das rótulas para as casas; eram o observatório da vida alheia. Muito agitada e cheia de acidentes era a vida que levava a comadre, de parteira, beata e curandeira de quebranto; não tinha por isso muito tempo de fazer visitas e procurar os conhecidos e amigos. Assim não procurava o Leonardo muitas vezes; havia muito tempo que não sabia notícia dele, nem da Maria, nem do afilhado, quando um dia na Sé ouviu entre duas beatas de mantilha a seguinte conversa:

-É o que lhe digo: a saloiazinha era da pele do tinhoso!

-E parecia uma santinha... e o Leonardo o que lhe fez?

-Ora, desancou-a de murros, e foi o que fez com que ela abalasse mais depressa com o capitão... pois olhe, não teve razão; o Leonardo é um rapagão; ganhava boas patacas, e tratava dela como de uma senhora!...

-E o filho... que assim mesmo pequeno era um malcriadão...

-O padrinho tomou conta dele; quer-lhe um bem extraordinário... está maluco o coitado do homem, diz que o menino há de por força ser padre... mas qual padre, se ele é um endiabrado!...

Nesta ocasião levantava-se a Deus, e as duas beatas interromperam a conversa para bater nos peitos.

Era uma delas a vizinha do compadre, que prognosticava mau fim ao menino, e com quem ele prometera fazer uma estralada: a outra era uma das que tinham estado na função do batizado.

A comadre, apenas ouviu isso, foi procurar o compadre; não se pense porém que a levara a isso outro interesse que não fosse a curiosidade, queria saber o caso com todos os menores detalhes; isso lhe dava longa matéria para a conversa na igreja, e para entreter as parturientes que se confiavam aos seus cuidados. Entrou pela loja do barbeiro; e apenas o avistou foi-lhe dizendo:

-Então, com que a tal comadre pregou-nos o mono? Veja o que são doidices; fazer aquilo ao Leonardo, um homem que não é mal-arranjado... filho do Reino...

-Apertaram-lhe as saudades da terra, disse o compadre com sorriso maligno.

-Apertada se veja ela entre as unhas do tinhoso! Olhem que joiazinha... E você, mestre, ficou com a carga às costas...

-Carga, não... eu quero-lhe bem, ele é sossegadinho...

Começou então um interrogatório minucioso acerca do que tinha sucedido em casa do Leonardo; e os dois, compadre e comadre, desabafaram a seu gosto. Depois o compadre narrou, mesmo sem ser interrogado, todas as gentilezas do afilhado, e contou suas intenções a respeito dele. A comadre não concordou com elas (o que nada agradou ao compadre), não via o menino com jeito para padre; achava melhor metê-lo na Conceição a aprender um ofício. O compadre porém persistiu em seus intentos, que tinha muita esperança de ver realizados. Afinal a comadre retirou-se.

Pelo caminho foi repetindo o que acabara de saber a quanto conhecido encontrou, sem escrupulizar muito em acrescentar mais uma ou outra circunstância com que carregava as cores do quadro.

Entretanto o compadre aplicava-se a trabalhar na realização de seus intentos, e começou por ensinar o ABC ao menino; porém, por primeira contrariedade, este empacou no F, e nada o fazia passar adiante.

A comadre continuou a aparecer daí em diante por um motivo que mais tarde se saberá.

Por agora vamos continuar a contar o que era feito do Leonardo.

Capítulo VIII

O pátio dos bichos

Ainda hoje existe no saguão do paço imperial, que no tempo em que se passou esta nossa história se chamava Palácio del-rei, uma saleta ou quarto que os gaiatos e o povo com eles denominavam o Pátio dos Bichos. Este apelido lhe fora dado em conseqüência do fim para que ele então servia: passavam ali todos os dias do ano três ou quatro oficiais superiores, velhos, incapazes para a guerra e inúteis na paz, que o rei tinha a seu serviço não sabemos se com mais alguma vantagem de soldo, ou se só com mais a honra de serem empregados no real serviço. Bem poucas vezes havia ocasião de serem eles chamados por ordem real para qualquer coisa, e todo o tempo passavam em santo ócio, ora mudos e silenciosos, ora conversando sobre coisas do seu tempo, e censurando as do que com razão já não supunham do seu, porque nenhum deles era menor de 60 anos. Às vezes acontecia adormecerem todos ao mesmo tempo, e então com a ressonância de suas respirações passando pelos narizes atabacados, entoavam um quarteto, pedaço impagável, que os oficiais e soldados que estavam de guarda, criados e mais pessoas que passavam, vinham apreciar à porta. Eram os pobres homens muitas vezes vítimas de caçoadas que naquele tempo de poucas preocupações eram o objeto de estudo de muita gente.

Às vezes qualquer que os pilhava dormindo chegava à porta e gritava:

-Sr. tenente-coronel, el-rei procura por V. S.ª

Qualquer deles acordava espantado, tomava o chapéu armado, punha o talim, acontecendo às vezes com a pressa ficar o chapéu torto ou a espada do lado direito, e lá corria a ter com el-rei.

-Às vossas ordens, real senhor, dizia ainda bocejando.

O rei, que percebia o negócio, desatava a rir e o mandava embora.

Quando chegava o pobre homem abaixo, ia cada um dos que por ali se achavam indagar, o mais seriamente que era possível, qual tinha sido o objeto do chamado del-rei.

Faziam-lhes destas e doutras, mas daí a pouco deixavam-se eles enganar de novo.

Vamos fazer o leitor tomar conhecimento com um desses ativos militares, que entra também na nossa história.

Era velho como seus companheiros, porém decerto por ele não é que tinha vindo ao quarto o apelido que lhe davam: suas feições quebradas pela idade tinham ainda certa regularidade de contorno que bem denotava que seu tempo de rapaz não fora a respeito de beleza mal favorecido; de seus cabelos que o tempo levara restavam apenas orlando-lhe as têmporas e a nuca alguns anéis crespos e prateados; sua calva era nobre e imponente. Fora valente; ganhara por seus feitos as dragonas de tenente-coronel; era filho de Portugal, e acompanhara el-rei na sua vinda ao Brasil.

Estas qualidades porém não lhe serviam de salvaguarda, e sofria como os outros as caçoadas dos gaiatos.

Assim um dia que uma mulher de mantilha o foi procurar, e se pôs com ele a conversar por algum tempo em particular, passavam uns e outros e escarravam junto da porta, ou deixavam escapar uma ou outra chalaça análoga.

-Amores velhos nunca se esquecem, dizia um.

-Bravo! Gosto do bom gosto, dizia outro.

A mulher de mantilha é nossa conhecida, porque nem mais nem menos é a comadre; e o negócio que aí a levou também nos interessa, pois que se trata da soltura do pobre Leonardo. Ouça portanto o leitor a conversa dos dois.

-Sr. tenente-coronel, disse a comadre ao chegar, venho me valer de V. S.ª: meu compadre Leonardo está na cadeia.

-O Leonardo?! Mas então por quê?

-Ora! Maluquices!

E chegando-se ao ouvido do velho, contou-lhe a comadre baixinho a causa da prisão do Leonardo.

O velho desatou a rir.

-Bem pregado!... disse.

-Agora eu queria que V. S.ª fizesse o favor de falar por ele ao Sr. major Vidigal, que foi quem o prendeu... coitado do homem: é uma vergonha; mas também ele não se emenda!

E prosseguindo, a comadre contou muito em segredo, como já o tinha feito a todos os seus conhecidos, toda a história dos infelizes amores do Leonardo com a Maria, todas as diabruras do menino que ela deixara e de que o padrinho tomara conta: passou depois a relatar todo o ocorrido com a cigana, e voltou de novo à história da prisão, que contou e recontou vinte vezes, sem lhe escapar a mais pequenina circunstância. No fim tornou a fazer o seu pedido, a que o velho prometeu satisfazer, e então saiu ela recebendo no saguão muitos cumprimentos e sorrisos maliciosos. Na porta por onde saiu estava encostado um cadete que lhe disse:

-Estimo que fosse feliz; no dia do batizado não se esqueça da gente.

-Arrenego! foi a única resposta que ela deu, e passou.

Como o velho tenente-coronel conhecia a comadre e o Leonardo, e por que se interessava por ele, o leitor saberá mais para diante.

Esse conhecimento era antigo, e o Leonardo apenas se achou na cadeia, lembrou-se da proteção que o velho lhe podia prestar em semelhante aperto; mandou por um colega chamar a comadre, e a encarregou da missão de ir ter com ele, missão que ela aceitou de bom grado, e que desempenhou, segundo vimos, satisfatoriamente.

O velho, apenas a comadre saiu, tomou o chapéu armado, pôs a espada à cinta e saiu, depois de ter contado aos companheiros o que sucede a quem vai tomar fortuna. Um deles, que era crédulo até ao entusiasmo a respeito de feitiçarias, ficou muito indignado com o caso, e prometeu também empenhar-se pelo Leonardo.

Já vê pois o leitor que o negócio não estava mal parado, e em breve saberá o resultado de tudo isto.

Capítulo IX

O - arranjei-me - do compadre

Os leitores estarão lembrados do que o compadre dissera quando estava a fazer castelos no ar a respeito do afilhado, e pensando em dar-lhe o mesmo oficio que exercia, isto é, daquele arranjei-me, cuja explicação prometemos dar. Vamos agora cumprir a promessa.

Se alguém perguntasse ao compadre por seus pais, por seus parentes, por seu nascimento, nada saberia responder, porque nada sabia a respeito. Tudo de que se recordava de sua história reduzia-se a bem pouco. Quando chegara à idade de dar acordo da vida, achou-se em casa de um barbeiro que dele cuidava, porém que nunca lhe disse se era ou não seu pai ou seu parente, nem tão pouco o motivo por que tratava da sua pessoa. Também nunca isso lhe dera cuidado, nem lhe veio à curiosidade indagá-lo.

Esse homem ensinara-lhe o ofício, e por inaudito milagre também a ler e a escrever. Enquanto foi aprendiz passou em casa do seu... mestre, em falta de outro nome, uma vida que por um lado se parecia com a do fâmulo, por outro com a do filho, por outro com a do agregado, e que afinal não era senão vida de enjeitado, que o leitor sem dúvida já adivinhou que ele o era. A troco disso dava-lhe o mestre sustento e morada, e pagava-se do que por ele tinha já feito.

Quando passou de menino a rapaz, e chegou a saber barbear e sangrar sofrivelmente, foi obrigado a manter-se à sua custa e a pagar a morada com os ganchos que fazia, porque o produto do mais trabalho pertencia ainda ao mestre. Sujeitou-se a isso. Porém queriam ainda mais: exigiam que continuasse a empregar-se no serviço doméstico. Lavrou-lhe então n'alma um arrepio de dignidade: já era oficial, e não queria rebaixar o seu oficio. Virou mareta; fez-se duro, e safou-se de casa sem escrúpulos nem remorsos, pois bem sabia que estavam saldas as contas de parte a parte. Tinham-no criado; ele tinha servido. Também não encontrou grande resistência à sua deliberação.

Apenas passou o primeiro ímpeto e teve tempo de reflexionar, quase que começou a arrepender-se por não saber qual o meio de achar arranjo. Viu-se na rua, sem saber para onde ir, tendo por única fortuna uma bacia de barbear embaixo do braço, um par de navalhas e outro de lancetas na algibeira. Verdade é que quem tinha consigo estes trastes estava com as armas e uniforme do ofício; porém isso não bastava; o pobre rapaz estava em apertos.

Passou a primeira noite em casa de um colega, e no dia seguinte ao amanhecer, tomando os seus apetrechos, saiu em busca de que fazer para aquele dia, e de destino para os mais que se iam seguir.

Achou ambas as coisas; uma trouxe a outra.

No Largo do Paço um marujo que estava sentado em uma pedra junto ao mar chamou-o para que lhe fizesse a barba: mãos à obra, que já naquele dia não morria de fome.

Todo o barbeiro é tagarela, e principalmente quando tem pouco que fazer; começou portanto a puxar conversa com o freguês. Foi a sua salvação e fortuna.

O navio a que o marujo pertencia viajava para a Costa e ocupava-se no comércio de negros; era um dos comboios que traziam fornecimento para o Valongo, e estava pronto a largar.

-Ó mestre! disse o marujo no meio da conversa, você também não é sangrador?

-Sim, eu também sangro...

-Pois olhe, você estava bem bom, se quisesse ir conosco... para curar a gente a bordo; morre-se ali que é uma praga.

-Homem, eu da cirurgia não entendo muito...

-Pois já não disse que sabe também sangrar?

-Sim...

-Então já sabe até demais.

No dia seguinte saiu o nosso homem pela barra fora: a fortuna tinha-lhe dado o meio, cumpria sabê-lo aproveitar; de oficial de barbeiro dava um salto mortal a médico de navio negreiro; restava unicamente saber fazer render a nova posição. Isso ficou por sua conta.

Por um feliz acaso logo nos primeiros dias de viagem adoeceram dois marinheiros; chamou-se o médico; ele fez tudo o que sabia... sangrou os doentes, e em pouco tempo estavam bons, perfeitos. Com isto ganhou imensa reputação, e começou a ser estimado.

Chegaram com feliz viagem ao seu destino; tomaram o seu carregamento de gente, e voltaram para o Rio. Graças à lanceta do nosso homem, nem um só negro morreu, o que muito contribuiu para aumentar-lhe a sólida reputação de entendedor do riscado.

Poucos dias antes de chegar ao Rio o capitão do navio adoeceu; a princípio nem ele nem alguém teve a menor dúvida de que ficaria bom logo depois da primeira sangria; porém repentinamente o negócio complicou-se, e nem com a terceira e quarta se pôde conseguir coisa alguma. No fim do quarto dia convenceram-se todos e o próprio doente capitão de que estava chegada a sua hora. Nem por isso porém inculparam o nosso homem.

-Ali não há sangria que o salve, diziam; chegou a sua vez de dar à costa... há de ir.

O capitão teve de fazer suas últimas disposições, e, como dissemos, tendo o médico granjeado grande amizade e confiança, foi escolhido para desempenhá-las.

O capitão chamou-o à parte, e em segredo lhe fez entrega de uma cinta de couro e uma caixa de pau pejadas de um bom par de doblas em ouro e prata, pedindo que fielmente as fosse entregar, apenas chegasse à terra, a uma filha sua, cuja morada lhe indicou. Além deste dinheiro encarregou-o também de receber a soldada daquela viagem e lhe dar o mesmo destino. Eram estas suas únicas e últimas vontades que o encarregava de cumprir, declarando-lhe que lá do outro mundo o espiaria para ver como cuidava disso.

Poucas horas depois expirou.

Desse dia em diante nenhum só doente escapou mais, porque o médico já não sangrava tanto; andava preocupado, distraído, e assim levou até chegar à terra.

Apenas saltou, declarou que não se tinha dado bem, e que não embarcaria mais.

Quanto às ordens do capitão... histórias; quem é que lhe havia de vir tomar contas disso? Ninguém viu o que se passou; de nada se sabia. Os únicos que podiam ter desconfiado e fazer alguma coisa eram os marinheiros; porém estes partiram em breve de novo para a Costa.

O compadre decidiu-se a instituir-se herdeiro do capitão, e assim o fez.

Eis aqui como se explica o arranjei-me, e como se explicam muitos outros que vão aí pelo mundo.

Explicações

O velho tenente-coronel, apesar de virtuoso e bom, não deixava de ter na consciência um sofrível par de pecados, desses que se chamam da carne, e que não hão de ser levados em conta, não de hoje, que a idade o tornara inofensivo, porém do tempo da sua mocidade: o resultado de um deles fora um filho que deixara em Lisboa, fruto de um derradeiro amor que tivera aos 36 anos. Por castigo em nada havia ele saído ao pai, e nem os conselhos, nem os cuidados e nem o exemplo deste puderam encaminhá-lo por boa vereda. Aos 20 anos, tendo sentado praça, era um cadete desordeiro, jogador e o mais insubordinado do seu regimento. Bastantes vergonhas custara ao pobre pai, que cuidadoso procurava sempre por todos os meios encobrir-lhe os defeitos e remediar as gentilezas que fazia, já pagando por ele dívidas de jogo, já atabafando-lhe as desordens e curando com ouro as brechas que ele fazia na cabeça de seus adversários. Houve porém uma que as circunstâncias e mesmo a natureza do caso não permitiram que tivesse remédio. Poucos dias antes de embarcar para o Brasil em companhia del-rei, estando o infeliz pai em preparativos de viagem, viu entrar-lhe pela porta adentro uma mulher velha, baixa, gorda, vermelha, vestida, segundo o costume das mulheres da baixa classe do país, com uma saia de ganga azul por cima de um vestido de chita, um lenço branco dobrado triangularmente posto sobre a cabeça e preso embaixo do queixo, e uns grossos sapatões nos pés. Parecia presa de grande agitação e de raiva: seus olhos pequenos e azuis faiscavam de dentro das órbitas afundadas pela idade, suas faces estavam rubras e reluzentes, seus lábios franzinos e franzidos apertavam-se violentamente um contra o outro como prendendo uma torrente de injúrias, e tornando mais sensível ainda seu queixo pontudo e um pouco revirado.

Apenas se achou ela em frente do capitão (era este o posto que tinha nesse tempo o velho) foi-se chegando para ele com ar resoluto e enfurecido. O capitão recuou instintivamente um passo.

-Ah! Sr. capitão, disse ela por fim pondo as mãos nas cadeiras, chegando a boca muito perto do rosto dele e abanando raivosa a cabeça: olhe que isto assim não vai direito; faz-me andar a cabeça à roda... põe-me os miolos a ferver... e eu estouro... já viu!...

-Mas o que há então, mulher?... Eu não lhe conheço...

-Não quero cá saber de nada... Já lhe disse que isto não vai bem... e eu estouro...

-Mas por quê?... O que é que tem?... É preciso que você diga...

-Não tenho nada que dizer... Estouro, já lhe disse, Sr. capitão!...

-Pois estoure com trezentos diabos! mas ao menos diga pelo que é que estoura.

-Não tenho nada que dizer... já lhe disse... isto põe a cabeça da gente como uma cebola podre, não tem lugar nenhum... Ir-me por lá com ares de santarrão comprar frutas...

-Quem, mulher de Deus? Você não se explicará?

-Qual explicar, nem meio explicar! Pois então por ser cá a gente uma mulher velha, que já perdeu os achegos ao mundo, e ela uma pobre rapariga tola e bisbilhoteira, com vontade de saber de tudo, vir-me cá a mim pregar o mono na bochecha, e a ela em lugar ainda mais melindroso...

-Mas quem é que pregou monos a você mais a ela? e quem é ela?...

-Faz-se de novo! continuou a mulher exasperando-se; pois o Sr. capitão já não tinha consentido no casamento?...

-Que casamento? Com quem?

-Ai, ai, ai, que cá me anda a cabeça como uma nora solta... Pois o Sr. capitão não sabe que tem um filho?...

-Sim, sei, respondeu este começando a descobrir o mistério.

-E não sabe que ele é um pedaço de um mariola!...

A isto o capitão podia, porém não se animou a responder afirmativamente, e perguntou somente:

-E que mais?...

-E não sabe também que eu tenho uma filha que trouxe do Lumiar, a Mariazinha?

-Como, se eu nem a conheço?...

-Pois é uma rapariga muito capaz... e o diabo do tal cadete do seu filho andou por lá a entender com ela muito tempo: namoro para cá, namoro para lá, presentes daqui, promessas dacolá... e afinal de contas... brás!... E então que lhe parece?

O capitão foi às nuvens.

-Até lhe prometeu casamento, dizendo que o Sr. capitão consentia... Ora eu bem sei que ela também teve sua culpa... mas eu desculpo isso, porque também já fui rapariga... e sei que quando começa cá o diabo no corpo, adeus! Mas isto põe a gente tonta, porque... enfim a rapariga podia vir a fazer fortuna.

O capitão tinha compreendido tudo, e por mais algumas explicações que se seguiram viu-se reduzido ao maior aperto. Desta vez a diabrura do rapaz era irremediável. A mulher tinha toda a razão; porém casar seu filho com a filha de uma colareja... isso não poderia ser; além de que nada tinha que deixar ao filho, e só com o soldo de cadete não poderia sustentar mulher e casa, restando além disso a dúvida se ele estaria ou não pelos autos...

Despediu a velha, não sem lhe prometer que providenciaria sobre o caso.

-Olhe, veja lá, disse ela ao sair; se o negócio não se arranja, eu estouro!...

O pobre homem ficou nos apuros; foi ter com a ofendida, e procurou, oferecendo-lhe alguma coisa para seu dote, obter que ela se calasse, e que desistisse de suas pretensões; esta quis a princípio recusar, porém a mãe aconselhou-a que aceitasse, sem dúvida com medo de estourar. Deste modo ficou o caso um pouco remediado, posto que a consciência do capitão, que era de homem de honra, não ficara de modo algum satisfeita. O tempo porém não dava lugar a mais; era chegado o momento de acompanhar a el-rei, e ele partiu deixando o filho recomendado a quantos amigos tinha. Decorreram os anos, e quando menos esperava soube ele que se achava no Rio de Janeiro em companhia do Leonardo a tal Mariazinha, que então já era a Maria que os leitores bem conhecem. Procurou fazer o que pudesse por ela para satisfazer todos os seus escrúpulos de pai honrado, porém quis fazê-lo ocultamente. Foi ter com a comadre, a quem já conhecia, e a encarregou de o avisar apenas sentisse que a Maria sofria qualquer necessidade. Nunca porém teve ocasião de exercer a sua boa vontade diretamente para com ela. Apenas tinha feito ao Leonardo um pequeno favor em ocasião em que este se achava embaraçado por causa de uma irregularidade em uns autos que se lhe atribuía, e que a comadre o aconselhou de procurá-lo mesmo sem o conhecer, a título de que era muito bom homem e amigo de servir a todos.

Eis aqui por que o Leonardo se dirigiu no seu segundo apuro ao velho tenente-coronel por intermédio da comadre, e por que este prometeu empenhar-se por ele, o que com efeito tratou de cumprir.

Como dissemos, apenas a comadre saiu, saiu ele também, e foi tratar de pôr o Leonardo na rua. Dirigiu-se primeiro à cadeia para colher do próprio Leonardo todas as informações, e então pôde ver que as que lhe tinha dado a comadre eram exatíssimas, e que ela não deixara escapar a menor circunstância. O Leonardo repetiu e confessou tudo o que ele já sabia, corrido de embaraço e de vergonha; e ao despedir-se o velho:

-Sr. tenente-coronel, disse-lhe ele, V.S.ª já me livrou de uma que não era culpa minha; livre-me desta também... olhe que está comprometida a minha honra...

O Leonardo esquecia-se da teoria da Maria.

-A honra não, respondeu o velho, o que está comprometido é o seu juízo: hão de dizer (e eu sou o primeiro) que você está doido.

-Fugi de uma saloia e fui cair numa cigana... tem razão!...

O velho saiu sorrindo-se. Daí dirigiu-se à casa de um seu amigo, fidalgo de valimento, para dele obter a soltura do Leonardo. Morava ele em uma das ruas mais estreitas da cidade, em um sobrado de sacada de rótulas de pau com pequenos postigos que se abriam às furtadelas, sem que ninguém de fora pudesse ver quem a eles chegava.

A poeira amontoada nos cordões da rótula e as paredes encardidas pelo tempo davam à casa um aspecto triste no exterior; quanto ao interior, andava pelo mesmo conseguinte. A sala era pequena e baixa; a mobília que a guarnecia era toda de jacarandá e feita no gosto antigo; todas as peças eram enormes e pesadas; as cadeiras e o canapé, de pés arcados e espaldares altíssimos, tinham os assentos de couro, que era a moda da transição entre o estofo e a palhinha. Quem quiser ter idéia exata destes móveis procure no consistório de alguma irmandade antiga, onde temos visto alguns deles.

As paredes eram ornadas por uma dúzia de quadros, ou antes de caixas de vidro que deixavam ver em seu interior paisagens e flores feitas de conchinhas de todas as cores, que não eram totalmente feios, porém que não tinham decerto o subido valor que se lhes dava naquele tempo. À direita da sala havia sobre uma mesa um enorme oratório no mesmo gosto da mobília.

Havia finalmente em um canto uma palma benta, destas que se distribuem no domingo de ramos; e se o leitor agora supuser tudo isto coberto por uma densa camada de poeira, terá idéia perfeita do lugar em que foi recebido o velho tenente-coronel, que era pouco mais ou menos semelhante em todas as casas ricas de então, e por isso nos demoramos em descrevê-lo.

Sem se fazer esperar muito, apareceu o dono da casa: era um homem já velho e de cara um pouco ingrata; vinha de tamancos, sem meias, em mangas de camisa, com um capote de lã xadrez sobre os ombros, caixa de rapé e lenço encarnado na mão.

Em poucas palavras o velho expôs-lhe o caso e lhe pediu que fosse falar a el-rei em favor de Leonardo.

A princípio opôs ele algumas dúvidas, dizendo:

-Homem, pois eu hei de ir a palácio por causa de um meirinho? El-rei há de rir-se do meu afilhado.

Afinal, porém, teve de ceder a instâncias da amizade, e prometeu tudo. O velho saiu satisfeito e foi levar a nova ao Leonardo, que pulou de contente. Poucos dias depois chegou a ordem de soltura, e ele foi posto na rua. Acreditara que tinha acabado de passar pelo pior dos suplícios, porém insuportáveis torturas começaram para ele no dia em que saiu da cadeia: a mofa, o escárnio, o riso dos companheiros seguiu-o por muitos dias, incessante e martirizador.

Capítulo XI

Progresso e atraso

Dadas as explicações do capítulo precedente, voltemos ao nosso memorando, de quem por um pouco nos esquecemos. Apressemo-nos a dar ao leitor uma boa notícia: o menino desempacara do F, e já se achava no P, onde por uma infelicidade empacou de novo. O padrinho anda contentíssimo com este progresso, e vê clarear-se o horizonte de suas esperanças; declara positivamente que nunca viu menino de melhor memória do que o afilhado, e cada lição que este dá sabida de quatro em quatro dias pelo menos é para ele um triunfo. Há porém uma coisa que o entristece no meio de tudo: o menino tem para a reza, e em geral para tudo quanto diz respeito à religião, uma aversão decidida; não é capaz de fazer o pelo-sinal da esquerda para a direita, fá-lo sempre da direita para a esquerda, e não foi possível ao padrinho, apesar de toda a paciência e boa vontade, fazê-lo repetir de cor sem errar ao menos a metade do padre-nosso; em vez de dizer «venha a nós o vosso reino» diz sempre «venha a nós o pão nosso». Ir à missa ou ao sermão é para ele o maior de todos os suplícios, isto faz que o padrinho desespere às vezes, e até chegue a concordar com a comadre em que o menino não tem jeito para clérigo; porém são nuvens passageiras; sempre há isto ou aquilo que faz renascer todas as esperanças, e o homem caminha animado na sua obra.

O que ele porém esperava não esperavam todos, e ninguém via no menino senão um futuro peralta da primeira grandeza; quem mais contava com isso era a vizinha do barbeiro, aquela a quem ele chamava o agouro do pequeno. Era a tal vizinha uma dessas mulheres que se chamam de faca e calhau, valentona, presunçosa, e que se gabava de não ter papas na língua: era viúva, e importunava a todo o mundo com as virtudes do seu defunto. Serrazina e amiga de contrariar, não perdia ocasião de desmentir o vizinho em suas esperanças a respeito do afilhado, declarando que não lhe via jeito para coisa nenhuma, que não queria para coisa que lhe pertencesse o fim que ele havia ter, e que quando ele crescesse o melhor remédio era dar-lhe com os ossos a bordo de um navio ou pôr-lhe o côvado e meio às costas. O barbeiro desesperava com isso; por muito tempo conseguiu conter-se, porém um dia não pôde mais, e disparatou com a sujeita. Chegando por acaso à porta da loja, a vizinha que estava à janela disse-lhe em tom de zombaria:

-Então, vizinho, como vai o seu reverendo?

Um velho que morava defronte, e que também se achava à janela, desatou a rir com a pergunta.

O compadre foi às nuvens, avermelhou-se-lhe a calva, franziu a testa, porém fez que não tinha ouvido. A vizinha pôs-se também a rir, percebendo o cavaco, e acrescentou:

-Padre amigo do fado... tem que ver... Quando vai ele outra vez à casa dos ciganos?...

O velho defronte redobrou a risada. A vizinha continuou:

-Então ele já encarrilha o padre-nosso?

O compadre exasperou-se completamente; e, estudando uma injúria bem grande para responder, disse afinal:

-Já... já... senhora intrometida com a vida alheia... já sabe o padre-nosso, e eu o faço rezar todas as noites um pelo seu defunto marido que está a esta hora dando coices no inferno!...

-Hein?... O que é que você diz, senhor raspa-barbas? Você mete terceiros na conversa? disse a vizinha encrespando-se; olhe que esse de quem você fala nunca foi sangrador, nem viveu de aparas de cabelos... Não se meta comigo que hei de lhe dizer das últimas e pôr-lhe os podres na rua... Coices no inferno!!! ora dá-se? um santo homem... Coices no inferno... Pois agora saiba, porque eu cá não tenho papas na língua, que o tal seu afilhado das dúzias é um pedaço de um malcriadão muito grande, que há de desonrar as barbas de quem o criou... E não tem que ver, porque ele é de má raça... já ouviu? não se meta comigo...

-E você, respondeu o compadre enquanto a vizinha tomava fôlego, por que se mete com o que não é da sua repartição?

Ela prosseguiu:

-Hei de me meter; não é da sua conta, nem venha cá dar regras, que eu não preciso de você...

-Mas o que tem você que entender com uma criança inocente que nunca lhe fez mal?...

-Tenho muito, porque não me deixa parar os telhados com pedras, faz-me caretas quando me vê na janela, e trata-me como se eu fosse alguma saloia ou mulher de barbeiro... Digo-lhe e repito-lhe... aquilo tem maus bofes, e não há de ter bom fim...

-Está bom, senhora, respondeu o compadre que tinha bom gênio, e que só fora levado àquele excesso pelo amor do afilhado; basta de rezingas, olhe a vizinhança.

-Ora, tomara a vizinhança ver-se livre do tal diabo...

O menino chegou nessa ocasião à porta, e pondo-se na ponta dos pés, esticando o pescoço, e abanando-o como a vizinha e imitando-lhe a voz, repetiu:

-Ver-se livre do tal diabo...

O compadre achou tanta graça, que se deu por vingado, e desatou a rir por seu turno.

-Ah! disse a vizinha, agradece a boa vontade, meu diabo em figura de menino; tu não tens a culpa; a culpa tem quem te dá ousadias.

-A culpa tem quem te dá ousadias... repetiu o menino arremedando.

O compadre ria-se a perder.

A vizinha desesperada bateu com o postigo e recolheu-se, porém por muito tempo falou em voz alta, de maneira que toda a vizinhança ouvia, dizendo quanto impropério lhe veio à cabeça contra o barbeiro e o menino.

-O pequeno encheu-me as medidas, disse este consigo, vingou-me desta; agora falta-me aquele velho de defronte que também a acompanhou na risota; mas não faltará ocasião.

Esqueceu-nos dizer que o barbeiro, apesar de ter sabido, pouco se importara com a prisão do Leonardo, e, referindo-se à causa da infelicidade deste, dissera apenas:

-É bem feito, para ele não se deixar arrastar para toda a parte agarrado em quanto rabo-de-saia lhe aparece.

Nem foi à cadeia visitá-lo, nem levar-lhe o filho para tomar a bênção, o que a comadre muito reprovou quando soube.

O velho tenente-coronel, depois de ter posto na rua o Leonardo, informado miudamente, como sabe o leitor, pela comadre do destino da Maria, decidiu tomar o menino sob sua proteção, e acreditou que, se conseguisse felicitá-lo, lavaria seu filho do pecado de ter desonrado a Maria. Por intermédio da comadre mandou oferecer ao compadre seu préstimo em favor do pequeno, mandou-lhe propor até que o deixasse ir para a sua companhia. O compadre porém não esteve por isso de modo nenhum, e até se prometeu aceitar para qualquer outra coisa a proteção do tenente-coronel foi a instâncias da comadre.

-Não quero, dizia ele, que me roubem o gosto de tê-lo feito gente; comecei a minha obra, hei de acabá-la.

-Homem, retorquira-lhe a comadre, você faz mal; olhe que o velho é homem de representação; veja como ele com duas voltas e meia pôs o Leonardo na rua.

-Nada, não hei de dar o gostinho aqui a esta súcia da vizinhança; hei de eu mesmo fazer a coisa por minhas mãos. Lá se o tenente-coronel quiser fazer alguma coisa por ele, aceito; mas quanto a tirá-lo da minha companhia, isso nunca. Agora já é birra; hei de levar a minha avante.

Capítulo XII

Entrada para a escola

É mister agora passar em silêncio sobre alguns anos da vida do nosso memorando para não cansar o leitor repetindo a história de mil travessuras de menino no gênero das que já se conhecem; foram diabruras de todo o tamanho que exasperaram a vizinha, desgostaram a comadre, mas que não alteraram em coisa alguma a amizade do barbeiro pelo afilhado: cada vez esta aumentava, se era possível, tornava-se mais cega. Com ele cresciam as esperanças do belo futuro com que o compadre sonhava para o pequeno, e tanto mais que durante este tempo fizera este alguns progressos: lia soletrado sofrivelmente, e por inaudito triunfo da paciência do compadre aprendera a ajudar missa. A primeira vez que ele conseguiu praticar com decência e exatidão semelhante ato, o padrinho exultou; foi um dia de orgulho e de prazer: era o primeiro passo no caminho para que ele o destinava.

-E dizem que não tem jeito para padre, pensou consigo; ora acertei o alvo, dei-lhe com a balda. Ele nasceu mesmo para aquilo, há de ser um clérigo de truz. Vou tratar de metê-lo na escola, e depois... toca.

Com efeito foi cuidar nisso e falar ao mestre para receber o pequeno; morava este em uma casa da rua da Vala, pequena e escura.

Foi o barbeiro recebido na sala, que era mobiliada por quatro ou cinco longos bancos de pinho sujos já pelo uso, uma mesa pequena que pertencia ao mestre, e outra maior onde escreviam os discípulos, toda cheia de pequenos buracos para os tinteiros; nas paredes e no teto havia penduradas uma porção enorme de gaiolas de todos os tamanhos e feitios, dentro das quais pulavam e cantavam passarinhos de diversas qualidades: era a paixão predileta do pedagogo.

Era este um homem todo em proporções infinitesimais, baixinho, magrinho, de carinha estreita e chupada, excessivamente calvo; usava de óculos, tinha pretensões de latinista, e dava bolos nos discípulos por dá cá aquela palha. Por isso era um dos mais acreditados da cidade. O barbeiro entrou acompanhado pelo afilhado, que ficou um pouco escabriado à vista do aspecto da escola, que nunca tinha imaginado. Era em um sábado; os bancos estavam cheios de meninos, vestidos quase todos de jaqueta ou robissões de lila, calças de brim escuro e uma enorme pasta de couro ou papelão pendurada por um cordel a tiracolo: chegaram os dois exatamente na hora da tabuada cantada. Era uma espécie de ladainha de números que se usava então nos colégios, cantada todos os sábados em uma espécie de cantochão monótono e insuportável, mas de que os meninos gostavam muito.

As vozes dos meninos, juntas ao canto dos passarinhos, faziam uma algazarra de doer os ouvidos; o mestre, acostumado àquilo, escutava impassível, com uma enorme palmatória na mão, e o menor erro que algum dos discípulos cometia não lhe escapava no meio de todo o barulho; fazia parar o canto, chamava o infeliz, emendava cantando o erro cometido, e cascava-lhe pelo menos seis puxados bolos. Era o regente da orquestra ensinando a marcar o compasso. O compadre expôs, no meio do ruído, o objeto de sua visita, e apresentou o pequeno ao mestre.

-Tem muito boa memória; soletra já alguma coisa, não lhe há de dar muito trabalho, disse com orgulho.

-E se mo quiser dar, tenho aqui o remédio; santa férula! disse o mestre brandindo a palmatória.

O compadre sorriu-se, querendo dar a entender que tinha percebido o latim.

-É verdade: faz santos até às feras, disse traduzindo.

O mestre sorriu-se da tradução.

-Mas espero que não há de ser necessária, acrescentou o compadre.

O menino percebeu o que tudo isto queria dizer, e mostrou não gostar muito.

-Segunda-feira cá vem, e peço-lhe que não o poupe, disse por fim o compadre despedindo-se. Procurou pelo menino e já o viu na porta da rua prestes a sair, pois que ali não se julgava muito bem.

-Então, menino, sai sem tomar a bênção do mestre?...

O menino voltou constrangido, tomou de longe a bênção, e saíram então.

Na segunda-feira voltou o menino armado com a sua competente pasta a tiracolo, a sua lousa de escrever e o seu tinteiro de chifre; o padrinho o acompanhou até a porta. Logo nesse dia portou-se de tal maneira que o mestre não se pôde dispensar de lhe dar quatro bolos, o que lhe fez perder toda a folia com que entrara: declarou desde esse instante guerra viva à escola. Ao meio-dia veio o padrinho buscá-lo, e a primeira notícia que ele lhe deu foi que não voltaria no dia seguinte, nem mesmo aquela tarde.

-Mas você não sabe que é preciso aprender?...

-Mas não é preciso apanhar...

-Pois você já apanhou?...

-Não foi nada, não, senhor; foi porque entornei o tinteiro na calça de um menino que estava ao pé de mim; o mestre ralhou comigo, e eu comecei a rir muito...

-Pois você vai-se rir quando o mestre ralha...

Isto contrariou o mais que era possível ao barbeiro. Que diabo não diria a maldita vizinha quando soubesse que o menino tinha apanhado logo no primeiro dia de escola?... Mas não havia reclamações, o que o mestre fazia era bem-feito. Custou-lhe bem a reduzir o menino a voltar nessa tarde à escola, o que só conseguiu com a promessa de que falaria ao mestre para que ele lhe não desse mais. Isto porém não era coisa que se fizesse, e não foi senão um engodo para arrastar o pequeno. Entrou este desesperado para a escola, e por princípio nenhum queria estar quieto e calado no seu banco; o mestre chamou-o e pô-lo de joelhos a poucos passos de si; passado pouco tempo voltou-se distraidamente, e surpreendeu-o no momento em que ele erguia a mão para atirar-lhe uma bola de papel. Chamou-o de novo, e deu-lhe uma dúzia de bolos.

-Já no primeiro dia, disse, você promete muito...

O menino resmungando dirigiu-lhe quanta injúria sabia de cor.

Quando o padrinho voltou de novo a buscá-lo, achou-o de tenção firme e decidida de não se deixar engodar por outra vez, e de nunca mais voltar, ainda que o rachassem. O pobre homem azuou com o caso.

-Ora, logo no primeiro dia!... disse consigo; isto é praga daquela maldita mulher... mas hei de teimar, e vamos ver quem vence.

Capítulo XIII

Mudança de vida

À custa de muitos trabalhos, de muitas fadigas, e sobretudo de muita paciência, conseguiu o compadre que o menino freqüentasse a escola durante dois anos e que aprendesse a ler muito mal e escrever ainda pior. Em todo este tempo não se passou um só dia em que ele não levasse uma remessa maior ou menor de bolos; e apesar da fama que gozava o seu pedagogo de muito cruel e injusto, é preciso confessar que poucas vezes o fora para com ele: o menino tinha a bossa da desenvoltura, e isto, junto com as vontades que lhe fazia o padrinho, dava em resultado a mais refinada má-criação que se pode imaginar. Achava ele um prazer suavíssimo em desobedecer a tudo quanto se lhe ordenava; se se queria que estivesse sério, desatava a rir como um perdido com o maior gosto do mundo; se se queria que estivesse quieto, parece que uma mola oculta o impelia e fazia com que desse uma idéia pouco mais ou menos aproximada do moto-contínuo. Nunca uma pasta, um tinteiro, uma lousa lhe durou mais de 15 dias: era tido na escola pelo mais refinado velhaco; vendia aos colegas tudo que podia ter algum valor, fosse seu ou alheio, contanto que lhe caísse nas mãos: um lápis, uma pena, um registo, tudo lhe fazia conta; o dinheiro que apurava empregava sempre do pior modo que podia. Logo no fim dos primeiros cinco dias de escola declarou ao padrinho que já sabia as ruas, e não precisava mais de que ele o acompanhasse; no primeiro dia em que o padrinho anuiu a que ele fosse sozinho fez uma tremenda gazeta; tomou depois gosto a esse hábito, e em pouco tempo adquiriu entre os companheiros o apelido de gazeta-mor da escola, o que também queria dizer apanha-bolos-mor. Um dos principais pontos em que ele passava alegremente as manhãs e tardes em que fugia à escola era a igreja da Sé. O leitor compreende bem que isto não era de modo algum inclinação religiosa; na Sé à missa, e mesmo fora disso, reunia-se gente, sobretudo mulheres de mantilha, de quem tomara particular zanguinha por causa da semelhança com a madrinha, e é isso o que ele queria, porque internando-se na multidão dos que entravam e saíam, passava desapercebido, e tinha segurança de que o não achariam com facilidade se o procurassem.

Pelo hábito de freqüentar a igreja tomara conhecimento e travara estreita amizade com um pequeno sacristão, que, digamos de passagem, era tão boa peça como ele; apenas se encontravam limitavam-se a trocar olhares significativos enquanto o amigo andava ocupado no serviço da igreja; assim porém que se acabavam as missas, e que saíam as verdadeiras beatas, reuniam-se os dois, e começavam a contar suas diabruras mais recentes, travando o plano de mil outras novas. Por complacência, ou antes por prova de decidida amizade, o companheiro confiava ao nosso gazeador um caniço, e faziam juntos o serviço e as maroteiras: a mais pequena que faziam era irem de altar em altar escorropichando todas as galhetas, o que lhes incendea mais o desejo de traquinar.

Esta vida durou por muito tempo; porém afinal já eram as gazetas tão repetidas, que o padrinho se viu forçado a acompanhá-lo outra vez todos os dias para a escola, o que desfez todos os planos que os dois tinham concertado. O nosso futuro clérigo tinha muitas vezes pensado em como não lhe seria agradável ver-se revestido como o seu companheiro de uma batina e uma sobrepeliz, e feito também sacristão, ter a toda hora à sua disposição quantos caniços quisesse, ter por sua e de seu amigo toda a igreja, poder nos dias de festa, tomando o turíbulo, afogar em ondas de fumaça a cara da velha que mais perto lhe ficasse na ocasião da missa. Oh! Isto era um sonho de venturas! Vendo-se privado, depois que o padrinho o acompanhava, de gozar parte destes prazeres, como fazia nos dias de fugida, atearam-se-lhe os desejos, e começou a confessá-los ao padrinho, dando a entender que nada havia de que agora gostasse tanto como fosse a igreja, para a qual, dizia ele, parecia ter nascido. Isto foi para o padrinho um alegrão, porque neste gosto recente do pequeno via furo aos seus projetos.

-Eu bem dizia... pensava consigo; não tem dúvida, vou adiante; o rapaz está-me enchendo as medidas.

Afinal o menino tomou um dia uma resolução última, e propôs ao padrinho que o fizesse sacristão.

-Isso seria muito bom, disse ele, a fim de acostumar-me para quando for padre.

A princípio a idéia deslumbrou o padrinho, porém mais tarde acudiu-lhe a reflexão, e assentou que seria rebaixar o menino e comprometer a sua dignidade futura. Afinal porém tantas foram as rogativas e argumentos do pequeno, que se viu obrigado a ceder. O menino tinha nisso duas enormes vantagens, satisfazia seus desejos e saía da escola, poupando assim as remessas diárias de bolos.

-Está bem, dissera consigo o padrinho, ele já sabe ler alguma coisa e escrever: deixo-o, para fazer-lhe a vontade, algum tempo na Sé, para que também tome mais amor àquela vida, e depois, apenas o vir com o juízo mais assente, hei de ir adiante com a coisa. Foi em conseqüência procurar aquele sacristão da Sé que dançara o minuete na festa do batizado, que era nada menos do que o pai do sacristãozinho com que o nosso pequeno travara amizade, para arranjar o afilhado, que não queria outra igreja que não fosse a Sé. Felizmente pôde ele ser admitido; com a prática que tivera dos dias de gazeta aprendera pouco mais ou menos todo o cerimonial que é mister a um sacristão: ajudar a missa já ele sabia, às outras coisas aperfeiçoou-se em pouco tempo.

Em poucos dias aprontou-se, e em uma bela manhã saiu de casa vestido com a competente batina e sobrepeliz, e foi tomar posse do emprego. Ao vê-lo passar a vizinha dos maus agouros soltou uma exclamação de surpresa a princípio, supondo alguma asneira do compadre; porém reparando, compreendeu o que era, e desatou uma gargalhada.

-E que tal?!... Deus vos guarde, Sr. cura, disse fazendo um cumprimento.

O menino lançou-lhe um olhar de revés, e respondeu entre dentes:

-Eu sou cura, e hei de te curar...

Era aquilo uma promessa de vingança.

-Ora dá-se? continuou a vizinha consigo mesma; aquilo na igreja é um pecado!!

Chegou o menino à Sé impando de contente; parecia-lhe a batina um manto real. Por fortuna houve logo nesse dia dois batizados e um casamento, e ele teve assim ocasião de entrar no pleno exercício de suas funções, em que começou revestindo-se da maior gravidade deste mundo. No outro dia porém o negócio começou a mudar de figura, e as brejeiradas começaram.

A primeira foi em uma missa cantada. Coube ao pequeno o ficar com uma tocha, e ao companheiro o turíbulo ao pé do altar.

Por infelicidade a vizinha do compadre, a quem o menino prometera curar, sem pensar no que fazia colocou-se perto do altar junto aos dois. Assim que a avistou, o novo sacristão disse algumas palavras a seu companheiro, dando-lhe de olho para a mulher. Daí a pouco colocaram-se os dois disfarçadamente em distância conveniente, e de maneira tal, que ela ficasse pouco mais ou menos com um deles atrás e outro adiante. Começaram então os dois uma obra meritória: enquanto um, tendo enchido o turíbulo de incenso, e balançando-o convenientemente, fazia com que os rolos de fumaça que se desprendiam fossem bater de cheio na cara da pobre mulher, o outro com a tocha despejava-lhe sobre as costas da mantilha a cada passo plastradas de cera derretida, olhando disfarçado para o altar. A pobre mulher exasperou-se, e disse-lhes não sabemos o quê.

-Estamos te curando, respondeu o menino tranqüilamente.

Vendo que não tirava partido, quis a devota mudar de lugar e sair, porém o aperto era tão grande que o não pôde fazer, e teve de aturar o suplício até o fim. Acabada a festa, dirigiu-se ao mestre-de-cerimônias, e fez uma enorme queixa, que custou aos dois uma tremenda sarabanda. Pouco porém se importaram com isso, uma vez que tinham realizado o seu plano.

Capítulo XIV

Nova vingança e seu resultado

A sarabanda que o mestre-de-cerimônias passara aos dois pequenos em razão do que haviam feito à pobre mulher não produziu, como dissemos, nenhum efeito sobre eles no sentido de os emendar; não perdoaram porém a humilhação que sofreram diante da sua vítima, e a vingança de que ela tinha gozado; na primeira ocasião que tiveram tiraram desforra, pregando também uma peça ao mestre-de-cerimônias.

Foi o caso assim:

O mestre-de-cerimônias era um padre de meia-idade, de figura menos má, filho da Ilha Terceira, porém que se dava por puro alfacinha: tinha-se formado em Coimbra; por fora era um completo São Francisco de austeridade católica, por dentro refinado Sardanapalo, que podia por si só fornecer a Bocage assunto para um poema inteiro; era pregador que buscava sempre por assunto a honestidade e a pureza corporal em todo o sentido; porém interiormente era sensual como um sectário de Mafoma. O público ignorava talvez semelhante coisa, porém outro tanto não acontecia aos dois meninos, que andavam ao fato de tudo: o mestre-de-cerimônias, fiado em que pela sua pouca idade dariam eles pouca atenção a certas coisas, tinha-os algumas vezes empregado no seu serviço, mandando recados a uma certa pessoa, que, saiba o leitor em segredo, era nada menos do que a cigana, objeto dos últimos cuidados do Leonardo, com quem V. Rev.ma vivia há certo tempo em estreitas relações, salvando, é verdade, todas as aparências da decência.

Chegou o dia de uma das primeiras festas da igreja, em que o mestre-de-cerimônias era sempre o pregador: era no sermão desse dia que o homem se empregava, muito tempo antes, pondo abaixo a livraria, e fazendo um enorme esforço de inteligência (que não era nele coisa muito vigorosa). Já se vê pois que ele devia amar o seu sermão tanto que quase rebentou de raiva em um ano em que por doente o não pôde pregar. Entendia que todos o ouviam com sumo prazer, que o povo se abalava à sua voz: enfim, aquele sermão anual era o meio por que ele esperara chegar a todos os fins, a que contava dever toda a sua elevação futura; era o seu talismã. Digamos entretanto que era bem mau caminho o tal sermão, porque se podia ele demonstrar alguma coisa, era a insuficiência do padre para qualquer coisa desta vida, exceto para mestre-de-cerimônias, em que ninguém o desbancava. Pois foi nesse ponto delicado que os dois meninos buscaram feri-lo, e o acaso os favoreceu, excedendo de muito os seus desejos e esperanças, e fazendo a sua vingança completíssima.

Chegou, como dissemos, o dia da festa; havia três ou quatro dias antes que o mestre-de-cerimônias não saía de casa, empregado em decorar a importante peça. Foi o nosso sacristão calouro encarregado de lhe ir avisar da hora do sermão. Chegou à casa da cigana, onde o padre costumava estar; bateu, e, apesar de todas as recomendações que costumava ter, disse em voz alta:

-O Rev. mestre-de-cerimônias está aí?...

-Fale baixo, menino, disse a cigana de dentro da rótula... O que quer você com o Sr. padre?

-Precisava muito falar com ele por causa do sermão de amanhã.

-Entra, entra, disse o padre que o ouvira...

-Venho dizer a V. Rev.ma, disse o menino entrando, que amanhã às dez horas há de estar na igreja.

-Às dez? Uma hora mais tarde do que de costume...

-Justo, respondeu o menino sorrindo-se internamente de alegria, e saiu.

Foi logo dali dar parte ao companheiro de que o seu plano tinha saído completamente aos seus desejos, pois o que ele queria era que o padre faltasse ao sermão, e por isso, encarregado de lhe indicar a hora, a trocara, e em vez de nove dissera dez.

Dispuseram-se as coisas; postou-se a música de barbeiros na porta da igreja; andou tudo em rebuliço: às nove horas começou a festa.

As festas daquele tempo eram feitas com tanta riqueza e com muito mais propriedade, a certos respeitos, do que as de hoje: tinham entretanto alguns lados cômicos; um deles era a música de barbeiros à porta. Não havia festa em que se passasse sem isso; era coisa reputada quase tão essencial como o sermão; o que valia porém é que nada havia mais fácil de arranjar-se; meia dúzia de aprendizes ou oficiais de barbeiro, ordinariamente negros, armados, este com um pistão desafinado, aquele com uma trompa diabolicamente rouca, formavam uma orquestra desconcertada, porém estrondosa, que fazia as delícias dos que não cabiam ou não queriam estar dentro da igreja.

A festa seguiu os seus trâmites regulares; porém apenas se foi aproximando a hora, começou a dar cuidados a tardança do pregador. Fez-se mais esta cerimônia, mais aquela, e nada de aparecer o homem. Despachou-se a toda pressa um dos meninos que não entrara na festa para ir procurar o padre; ele deu duas voltas pela vizinhança, e veio dizendo que o não tinha encontrado. Subiram os apuros; não havia remédio; era preciso um sermão, fosse como fosse.

Estava assistindo à festa um capuchinho italiano, que, por bondade, vendo o aperto geral, ofereceu-se para improvisar o sermão.

-Mas V. Rev.ma não fala a língua da gente, objetaram-lhe.

-Capisco! respondeu este, e la necessitá!...

Depois de alguma perplexidade aceitaram-se finalmente os bons ofícios do capuchinho, e foi ele levado ao púlpito. Os meninos triunfantes sorriam-se um para o outro. Apenas apareceu o pregador ao povo houve um murmúrio geral; os gaiatos sorriam-se contando já com o partido que dali tirariam para um bom par de risadas; algumas velhas prepararam-se para uma grande compunção ao aspecto das imensas barbas do pregador; outras menos crentes, vendo que não era o orador costumado, exclamaram despeitadas:

-Arrenego!

-Deus me perdoe.

-Pois aquilo é que prega hoje?...

Apesar porém de tudo isto, a atenção foi profunda e geral, animando a todos uma grande curiosidade. O orador começou: falava já há um quarto de hora sem que ninguém ainda o tivesse entendido: começavam já algumas velhas a protestar que o sermão todo em latim não tinha graça, quando de repente viu-se abrir a porta do púlpito e aparecer a figura do mestre-de-cerimônias, lavado em suor e vermelho de cólera; foi um sussurro geral. Ele adiantou-se, afastou com a mão o pregador italiano, que surpreendido parou um instante, e entoou com voz rouca e estrondosa o seu per signum crucis. Àquela voz conhecida o povo despertou do aborrecimento, benzeu-se, e se dispôs a escutá-la. Nem todos porém foram desta opinião; entenderam que se devia deixar acabar o capuchinho, e começaram a murmurar. O capuchinho não quis ceder de seu direito, e prosseguiu na sua arenga. Foi uma verdadeira cena de comédia, de que a maioria dos circunstantes ria-se a não poder mais; os dois meninos, autores principais da obra, nadavam em um mar de rosas.

-Ó mei cari fratelli! exclamava por um lado o capuchinho com voz aflautada e meiga, la voce della Providenza...

-Semelhante às trombetas de Jericó, rouquejava por outro lado o mestre-de-cerimônias...

-Piace al cor... acrescentava o capuchinho.

-Anunciando a queda de Satanás, prosseguia o mestre-de-cerimônias.

E assim levaram por algum tempo os dois, acompanhados por um coro de risadas e confusão, até que o capuchinho se resolveu a abandonar o posto, murmurando despeitado:

-Che bestia, per Dio!

Acabado o sermão, desceu do púlpito o mestre-de-cerimônias já um pouco aplacado por ter conseguido fazer-se ouvir, porém ainda bastante furioso para vir protestando arrancar uma por uma as quatro orelhas dos dois pequenos, de quem desconfiava que partira o que acabava de sofrer. Chegou à sacristia, que estava cheia de gente; vendo os dois meninos investiu para eles, e prendendo a cada um com uma mão pela gola da sobrepeliz...

-Então... então... dizia com os dentes cerrados... a que horas é o sermão?

-Eu disse às nove, sim, senhor; pode perguntar à moça, que ela bem ouviu...

-Que moça, menino, que moça? disse o padre exasperado por estar tanta gente e ouvir aquilo.

-Aquela moça cigana, lá onde V. Rev. ma estava; ela ouviu, eu disse às nove.

-Oh! disseram os circunstantes.

-É falso, respondeu com força o mestre-de-cerimônias largando os meninos para evitar novas explicações, e dando satisfação aos circunstantes com protestos de ser falso o que os meninos acabavam de dizer.

Entretanto serenou o alvoroço, acabou-se a festa, o povo retirou-se. O mestre-de-cerimônias sentado a um canto pensava consigo:

-E que tal? não ia perdendo o meu sermão deste ano por causa daquele endiabrado?! Depois que o maldito menino entrou para esta igreja anda tudo aqui em uma poeira! Ainda em cima dizer à vista de tanta gente que eu estava em casa da cigana! Nada... vou dar com ele daqui para fora...

E com efeito tratou de fazer com que os dois meninos, ou pelo menos o mais novo, fosse despedido. Sem muito custo o conseguiu, porque por certo não gozava ele de grandes simpatias.

Foi esta a pior peça que se lhe podia pregar: ele estava como em um paraíso, e expeliam-no dele; e depois a maldita vizinha como não havia ficar satisfeita vendo-o despedido, e a madrinha que se opusera formalmente à sua entrada para a Sé... tudo isto fazia-o desesperar...

Não se tinha ele enganado em suas previsões; apenas chegou em casa, e que se soube pela vizinhança do que se tinha passado, a vizinha, pilhando de jeito o compadre:

-Então, disse-lhe, eu não lhe tenho dito que aquilo tem maus bofes?...

-Senhora, pelo amor de Deus, meta-se com a sua vida...

-Estou vingada... pensava que a minha mantilha nova havia de ficar assim...

O compadre retirou-se para evitar nova desordem.

A comadre, apenas soube também do sucesso, veio ter com o compadre para dizer-lhe:

-Eu bem lhe digo; ele não serve para aquilo; é melhor pô-lo na Conceição; lá há mais sujeição; olhe, eu podia arranjar isso com o tenente-coronel...

O compadre porém não pareceu resolvido a aceitar o conselho.

Capítulo XV

Estralada

Apesar de tudo quanto havia já sofrido por amores, o Leonardo de modo algum queria emendar-se; enquanto se lembrou da cadeia, dos granadeiros e do Vidigal esqueceu-se da cigana, ou antes só pensava nela para jurar esquecê-la; quando porém as caçoadas dos companheiros foram cessando, começou a renovar-se a paixão, e teve lugar uma grande luta entre a sua ternura e a sua dignidade, em que esta última quase triunfava, quando uma descoberta maldita veio transtornar tudo. Não sabemos por que meio o Leonardo descobriu um dia que o rival feliz que o pusera fora de combate era o reverendo mestre-de-cerimônias da Sé! Subiu-lhe com isto o sangue à cabeça:

-Pois um padre!?... dizia ele; é preciso que eu salve aquela criatura do inferno, onde ela se está metendo já em vida...

E começou de novo em tentativas, em promessas, em partidos para com a cigana, que a coisa alguma queria dobrar-se. Um dia que a pilhou de jeito à janela abordou-a, e começou ex-abrupto a falar-lhe deste modo:

-Você está já em vida no inferno!... pois logo um padre?!...

A cigana interrompeu-o:

-Havia muitos meirinhos para escolher, mas nenhum me agradou...

-Mas você está cometendo um pecado mortal... está deitando sua alma a perder...

-Homem, sabe que mais? você para pregador não serve, não tem jeito... eu como estou, estou muito bem; não me dei bem com os meirinhos; eu nasci para coisa melhor...

-Pois então tem alguma coisa que dizer de mim?... Hei de me ver vingado... e bem vingado.

-Ora! respondeu a cigana rindo-se.

E começou a cantarolar o estribilho de uma modinha.

O Leonardo compreendeu que falando-lhe no inferno e em castigos da outra vida nada arranjava, e decidiu dar-lhe o castigo mesmo nesta vida. Retirou-se murmurando:

-Faço uma estralada, dê no que der...

Poucos dias depois aconteceu que a cigana fazia anos; segundo o costume, apenas apareceu este pretexto, armou-se logo uma função: não nos daremos ao trabalho de descrevê-la; em um dos capítulos antecedentes já viu o leitor o que isso era: viola, modinhas, fado, algazarra, e estava a festa completa. O Leonardo soube logo do que havia, e jurou que esse seria o dia da vingança.

Ser valentão foi em algum tempo ofício no Rio de Janeiro; havia homens que viviam disso: davam pancada por dinheiro, e iam a qualquer parte armar de propósito uma desordem, contanto que se lhes pagasse, fosse qual fosse o resultado.

Entre os honestos cidadãos que nisto se ocupavam, havia, na época desta história, um certo Chico-Juca, afamadíssimo e temível. Seu verdadeiro nome era Francisco, e por isso chamaram-no a princípio -Chico-; porém tendo acontecido que conseguisse ele pelo seu braço lançar por terra do trono da valentia a um companheiro que era no seu gênero a maior reputação do tempo, e a quem chamavam -Juca,- juntaram este apelido ao seu, como honra pela vitória, e chamaram-no daí em diante -Chico-Juca.

Este homem era o desespero do Vidigal; tinha-lhe já pregado umas poucas, porém ainda não tinha sido possível agarrá-lo. Os granadeiros conheciam-no às léguas, porém nunca conseguiram pôr-lhe as mãos.

Tendo levado todo o dia à espreita, o Leonardo viu entrar sorrateiramente o mestre-de-cerimônias, pela volta de ave-maria, quando ainda não tinha começado a função.

-Ah! Nem esta noite quer perder?! Pois há de sair-lhe cara a funçanata...

Saiu dali e foi direito procurar o Chico-Juca, que era seu antigo conhecido; achou-o em uma taverna defronte do Bom Jesus. O Chico-Juca era um pardo, alto, corpulento, de olhos avermelhados, longa barba, cabelo cortado rente; trajava sempre jaqueta branca, calça muito larga nas pernas, chinelas pretas e um chapelinho branco muito à banda; ordinariamente era afável, gracejador, cheio de ditérios e chalaças; porém nas ocasiões de sarilho, como ele chamava, era quase feroz. Como outros têm o vício da embriaguez, outros o do jogo, outros o do deboche, ele tinha o vício da valentia; mesmo quando ninguém lhe pagava, bastava que lhe desse na cabeça, armava brigas, e só depois que dava pancadas a fartar é que ficava satisfeito; com isso muito lucrava: não havia taverneiro que lhe não fiasse e não o tratasse muito bem.

Estava na porta da taverna sentado sobre um saco quando lhe apareceu o Leonardo.

-Olá, mestre pataca! disse ele apenas o viu, pensei que ainda estava de xilindró tomando fortuna por causa da cigana...

-É mesmo por causa desse diabo que te venho procurar.

-Homem, cabeçada e murro velho sei eu dar, porém fortuna! nunca tive tal habilidade...

-Não se trata de fortuna, disse-lhe o Leonardo baixinho, trata-se de pancada velha...

-Ui! temos dança?... vai-te embora... tu não és capaz de armar um sarilho... sempre foste um podre!...

-Bem sei, eu não sou capaz... mas tu... tu que és mestre disto...

-Eu... então por que diabo e onde queres tu que eu arme esse sarilho?...

-Não te hás de arrepender, disse o Leonardo batendo significativamente com os dedos no bolso do colete.

O Chico-Juca entendeu o verso; carregou o chapéu um pouco mais para o lado, e pôs-se a escutá-lo com curiosidade.

O Leonardo disse então o que queria: tratava-se nada menos do que de ir o Chico-Juca nessa mesma noite, fosse como fosse, à função da cigana, e de armar ali por alta noite uma grande desordem: preveniu-o logo que o Vidigal havia de estar por perto; e assim, apenas estivesse armada a história, era pôr-se ao fresco. A causa de tudo isto o Leonardo não lhe quis explicar, e também ele não teve grande curiosidade de saber: tratava-se de uma desordem; fosse qual fosse o motivo, estava sempre pronto. Assim, depois de se regatear um pouco o preço, chegaram os dois a um acordo, e ficou tudo tratado.

Deixando o Chico-Juca, o Leonardo foi procurar o Vidigal, e deu-lhe parte do que naquela noite havia em casa da cigana, e afiançou-lhe que a coisa acabava por força em desordem. Portanto cumpria que o Sr. major por lá aparecesse para o que desse e viesse.

-Está bem, disse-lhe o Vidigal; você quer tirar sua desforra; é justo. Lá hei de ir, e não precisava a sua advertência, pois já sabia que havia hoje por lá anos, e tinha tenção de aparecer.

O Leonardo retirou-se contente vendo que seu plano saía às mil maravilhas, e dispôs-se a gozar do resultado, pondo-se à espreita de lugar conveniente. Começou a brincadeira. Já se tinha cantado meia dúzia de modinhas e dançado por algum tempo a tirana, quando o Chico-Juca apareceu, e por intermédio de um conhecido (ele os tinha em toda parte) foi introduzido na sala, e começou a observar o que se passava. Havia na sala um quarto cuja porta estava fechada: de vez em quando a cigana lá entrava, demorava-se um pouco e saía; daí a pouco tornava a entrar levando consigo alguma das camaradas mais do peito, e tornava a sair; passado pouco tempo, entrava ainda levando outra amiga. Alguns faziam reparo nisso, outros porém não tinham desconfiança alguma. Ia a festa continuando, e lá pela meia-noite, quando começava a aferventar, foi de repente interrompida. Viu-se um dos rapazes que tocavam viola parar subitamente, e, interrompendo o estribilho da modinha que cantava, gritar enfurecido:

-Isto passa de mais... varro... menos essa, Sr. Chico-Juca; nada de graças pesadas com essa moça, que é cá coisa minha...

O Chico-Juca estava com efeito há mais de meia hora a dirigir graçolas das suas a uma moça que ele bem sabia que era coisa do rapaz que estava tocando: tanto fez, que este, tendo percebido, proferiu aquelas palavras que acabamos de ouvir.

-Você respinga?!... respondeu-lhe o Chico-Juca dirigindo-se para ele.

O rapaz, que não era peco, pôs-se em pé e replicou:

-Tenho dito, nada de graças com ela!...

Mal tinha pronunciado estas palavras quando o Chico-Juca, arrancando-lhe a viola da mão, bateu-lhe com ela em cheio sobre a cabeça; o rapaz reagiu, e começou a confusão.

O Chico-Juca foi acometido por um pouco; porém ligeiro e destemido, distribuía a cada qual o seu quinhão de cabeçadas e pontapés: algumas mulheres meteram-se na briga, e davam e levavam como qualquer; outras porém desfaziam-se em algazarra. De repente o Chico-Juca embarafustou pela porta fora, e desapareceu.

Era tempo, porque não se tinha passado muito tempo quando assomou na porta, que ele deixara aberta, a figura tranqüila do Vidigal, rodeada por uma porção de granadeiros. O Chico-Juca tinha-lhes escapado, apesar de o terem visto quando saía, porque o major, sendo nessa ocasião poucos os soldados, não quis mandar segui-lo com medo que lhe faltasse gente, pois via que dentro da casa o negócio estava feio. Entrou, pois, deixando-o passar.

Apenas o viram, pararam todos aterrados.

-Então que briga é esta?... disse ele descansadamente.

Começaram todos a desculpar-se como podiam; e segundo o crédito que mereciam pela sua reputação era-lhes distribuída a justiça: se era sujeito já conhecido, e que não era aquela a primeira em que entrava, ficava de lado, e um granadeiro tomava conta dele; os outros eram mandados embora. Neste ínterim a cigana muito perturbada olhava repetidas vezes para a porta do quarto, dando sinais da mais viva inquietação. Não escapou isto ao Vidigal, que no fim de tudo disse a um granadeiro:

-Revista aquele quarto...

A cigana deu um grito; o granadeiro obedeceu e entrou no quarto: ouviu-se então um pequeno rumor, e o Vidigal disse logo cá de fora:

-Traz para cá quem estiver lá dentro.

No mesmo instante viu aparecer o granadeiro trazendo pelo braço o Rev. mestre-de-cerimônias em ceroulas curtas e largas, de meias pretas, sapatos de fivela, e solidéu à cabeça. Apesar dos aparos em que se achavam, todos desataram a rir: só ele e a cigana choravam de envergonhados.

Esta última pôs-se aos pés do Vidigal, mas ele foi inflexível; e o Rev. foi conduzido com os outros para a casa da guarda na Sé, sendo-lhe apenas permitido pôr-se em hábitos mais decentes.

Capítulo XVI

Sucesso do plano

Para sossegarmos os leitores, que estarão sem dúvida com cuidado no mestre-de-cerimônias, apressamo-nos a dizer que não chegou ele a ir à cadeia; o Vidigal quis dar-lhe apenas uma amostra do pano, e depois de o ter exposto na casa da guarda por algumas horas, como já acontecera ao Leonardo, à vistoria pública, o deixou ir embora envergonhado, abatido, maldizendo a idéia que tivera de ir assistir de dentro do quarto à festa dos anos da sua amásia. Quanto ao Leonardo, não cabia em si de contente; por pouco que a sua vingança não tinha sido completa: vira o seu rival, como já a ele próprio sucedera, preso pelos granadeiros, levado à casa da guarda, sofrendo aí a vistoria dos curiosos; faltara, é verdade, a sova e os dias de cadeia, porém também ele era um simples meirinho, e o mestre-de-cerimônias um sacerdote respeitado, e por isso qualquer coisa bastava para feri-lo gravemente.

Além disto o mestre-de-cerimônias, depois de graves meditações, sabendo que ficara malvisto de seus companheiros pelo escândalo que dera, se bem que fosse certo não estar nenhum deles a tal respeito em circunstâncias de lhe atirar a primeira pedra, ouvindo um murmúrio surdo que se levantava ameaçando-o com a perda do lugar que exercia na Sé, decidiu-se a abandonar a cigana, e assim o fez. Com isto o Leonardo deu-se de todo por satisfeito, e renasceram-lhe as esperanças de conquistar o antigo posto, uma vez que o principal inimigo o tinha abandonado. A cigana, desprezada, não quereria sem dúvida ficar por muito tempo devoluta; e como ele se achava com requerimento em caixa, e contava serviços atrasados, era provável que obtivesse favorável despacho, porque também ela ainda nem sonhava que tudo o que tinha sucedido pudesse ter sido obra sua.

Começou pois o sentimental Leonardo a rondar a porta da sua antiga amante: se a via na janela, ora parava na esquina a dirigir-lhe olhares suplicantes; passando por junto dela deixava ora escapar um magoadíssimo suspiro ou uma queixa amargurada.

Todas estas cenas, desempenhadas por aquela figura do Leonardo, alto, corpulento, avermelhado, vestido de casaca, calção e chapéu armado, eram tão cômicas, que toda a vizinhança se divertiu com elas por alguns dias. Alguns imprudentes começaram, conversando das janelas, a atirar indiretas à cigana; esta ficou-se com isso, e foi essa a fortuna do Leonardo. Um dia que ele passou deu-lhe ela de olho que entrasse.

O Leonardo teve uma sensação inexplicável; seu rosto coloriu-se em todos os tons, desde o vermelho, que era sua cor habitual, até o roxo enegrecido; depois baixou gradualmente até a palidez marmórea; caminhando do lugar onde estava até à porta da cigana, não sentiu o solo debaixo de seus pés; quando deu acordo de si estava com os olhos rasos d'água nos braços da antiga amada que lhe pedia mil perdões, que prometia ser dali em diante fiel até à morte, se bem que se não esquecia de declarar no meio de tudo que se o recebia de novo em sua casa era porque queria quebrar a castanha na boca daquelas más-línguas da vizinhança que se estavam metendo com a sua vida. O pobre homem não cabia em si; parecia um viajante que volta aos velhos lares, ou um cabo-de-guerra que acaba de livrar do poder do inimigo uma praça sitiada. Enfim reataram-se de todo os afrouxados laços.

O Leonardo caiu em dar parte aos seus companheiros que tinha afinal vencido a intrincada demanda; custou-lhe isto uma tremenda caçoada de todos, e sérias repreensões de alguns. Mas com coisa alguma se importava naquela ocasião: a felicidade o cegava a ponto de não ver aquilo que lhe estava entrando pelos olhos.

A comadre, apenas soube do que havia sucedido, foi procurar o Leonardo, e começou em um longo sermão a querer persuadí-lo que tinha dado um passo errado.

-Pois, compadre, disse-lhe ela, você não se emendou ainda!...

-Qual, história, eu sou doido por estas coisas.

-Mas, homem, você não se tem dado bem nem com as saloias nem com as ciganas; para que antes não procura uma filha cá da terra?...

A comadre tinha uma sobrinha que vivia em sua companhia, e que lhe pesava sofrivelmente sobre as costas; desde há muito nutria por isso uma idéia de que o leitor mais tarde terá conhecimento quando ela se realizar, ou antes disso, se a perceber pelas palavras da comadre.

-Nada, não gosto dessa gente...

-Não tem razão; há por aí muita rapariga capaz; é verdade que o que elas querem é o toma lá, dá cá debaixo do arco-cruzeiro...

-É por isso mesmo que eu não gosto.

Depois de algumas outras tentativas a comadre retirou-se um pouco contrariada, mas não de todo desanimada; ela contava com a cigana para ajudá-la a realizar o seu plano, e o leitor verá para diante que tinha nisso razão.

Quanto ao nosso ex-sacristão, continuava ainda a estar sem destino, o que sobremaneira incomodava ao compadre, mas que nem por isso o desanimava. Coimbra era a sua idéia fixa, e nada lha arrancava da cabeça. Até o próprio velho tenente-coronel já lhe tinha ido pessoalmente falar por solicitações da comadre, porém nada conseguira. Exasperado com essa obstinação deixara o negócio de parte, e não se importara mais com coisa alguma.

Capítulo XVII

D. Maria

Um dia de procissão foi sempre nesta cidade um dia de grande festa, de lufa-lufa, de movimento e de agitação; e se ainda é hoje o que os nossos leitores bem sabem, na época em que viveram as personagens desta história a coisa subia de ponto; enchiam-se as ruas de povo, especialmente de mulheres de mantilha; armavam-se as casas, penduravam-se às janelas magníficas colchas de seda, de damasco de todas as cores, e armavam-se coretos em quase todos os cantos. É quase tudo o que ainda hoje se pratica, porém em muito maior escala e grandeza, porque era feito por fé, como dizem as velhas desse bom tempo, porém nós diremos, porque era feito por moda: era tanto do tom enfeitar as janelas e portas em dias de procissão, ou concorrer de qualquer outro modo para o brilhantismo das festividades religiosas, como ter um vestido de mangas de presunto, ou trazer à cabeça um formidável trepa-moleque de dois palmos de altura.

Nesse tempo as procissões eram multiplicadas, e cada qual buscava ser mais rica e ostentar maior luxo: as da quaresma eram de uma pompa extraordinária, especialmente quando el-rei se dignava acompanhá-las, obrigando toda a corte a fazer outro tanto: a que primava porém entre todas era a chamada procissão dos ourives. Ninguém ficava em casa no dia em que ela saía, ou na rua ou nas casas dos conhecidos e amigos que tinham a ventura de morar em lugar por onde ela passasse, achavam todos meio de vê-la. Alguns haviam tão devotos, que não se contentavam vendo-a uma só vez; andavam de casa deste para a casa daquele, desta rua para aquela, até conseguir vê-la desfilar de princípio a fim duas, quatro e seis vezes, sem o que não se davam por satisfeitos. A causa principal de tudo isto era, supomos nós, além talvez de outras, o levar esta procissão uma coisa que não tinha nenhuma das outras: o leitor há de achá-la sem dúvida extravagante e ridícula; outro tanto nos acontece, mas temos obrigação de referi-la. Queremos falar de um grande rancho chamado das -Baianas,- que caminhava adiante da procissão, atraindo mais ou tanto como os santos, os andores, os emblemas sagrados, os olhares dos devotos; era formado esse rancho por um grande número de negras vestidas à moda da província da Bahia, donde lhe vinha o nome, e que dançavam nos intervalos dos Deo-gratias uma dança lá a seu capricho. Para falarmos a verdade, a coisa era curiosa: e se não a empregassem como primeira parte de uma procissão religiosa, certamente seria mais desculpável. Todos conhecem o modo por que se vestem as negras da Bahia; é um dos modos de trajar mais bonito que temos visto, não aconselhamos porém que ninguém o adote; um país em que todas as mulheres usassem desse traje, especialmente se fosse desses abençoados em que elas são alvas e formosas, seria uma terra de perdição e de pecados. Procuremos descrevê-lo.

As chamadas Baianas não usavam de vestido; traziam somente umas poucas de saias presas à cintura, e que chegavam pouco abaixo do meio da perna, todas elas ornadas de magníficas rendas; da cintura para cima apenas traziam uma finíssima camisa, cuja gola e mangas eram também ornadas de renda; ao pescoço punham um cordão de ouro ou um colar de corais, os mais pobres eram de miçangas; ornavam a cabeça com uma espécie de turbante a que davam o nome de trunfas, formado por um grande lenço branco muito teso e engomado; calçavam umas chinelinhas de salto alto, e tão pequenas, que apenas continham os dedos dos pés, ficando de fora todo o calcanhar; e além de tudo isto envolviam-se graciosamente em uma capa de pano preto, deixando de fora os braços ornados de argolas de metal simulando pulseiras.

Poucos dias depois dos últimos acontecimentos narrados nos capítulos antecedentes, chegou o dia da procissão dos ourives. Os nossos costumes nesse tempo a respeito de franqueza e hospitalidade não eram lá muito louváveis; nesse dia porém sofriam uma exceção, e, como dissemos, as portas daqueles que moravam nas ruas por onde passava a procissão se abriam a todos os amigos e conhecidos. Em virtude disso aconteceu que se achassem reunidos em casa de uma certa D. Maria o compadre acompanhado do afilhado (ricamente vestido nesse dia com o seu robissão de duraque preto e o seu boné de pêlo de lontra), a comadre e a vizinha dos maus agouros.

D. Maria era uma mulher velha, muito gorda; devia ter sido muito formosa no seu tempo, porém dessa formosura só lhe restavam o rosado das faces e alvura dos dentes; trajava nesse dia o seu vestido branco de cintura muito curta e mangas de presunto, o seu lenço também branco e muito engomado ao pescoço; estava penteada de bugres, que eram dois grossos cachos caídos sobre as frontes; o amarrado do cabelo era feito na coroa da cabeça, de maneira que simulava um penacho. D. Maria tinha bom coração, era benfazeja, devota e amiga dos pobres, porém em compensação destas virtudes tinha um dos piores vícios daquele tempo e daqueles costumes: era a mania das demandas. Como era rica, D. Maria alimentava este vício largamente; as suas demandas eram o alimento da sua vida; acordada pensava nelas, dormindo sonhava com elas; raras vezes conversava em outra coisa, e apenas achava uma tangente caía logo no assunto predileto; pelo longo hábito que tinha da matéria, entendia do riscado a palmo, e não havia procurador que a enganasse; sabia todos aqueles termos jurídicos e toda a marcha do processo de modo tal, que ninguém lhe levava nisso a palma. Essa mania chegava nela à impertinência, e aborrecia desesperadamente a quem a ouvia, falando nos últimos provarás que lhe tinha feito o seu letrado nos autos da sua demanda de terras, nas razões finais que se tinham apresentado na ação que intentava contra um dos testamenteiros de seu pai, no depoimento das testemunhas no seu processo por causa da venda das suas casas, na citação que mandara fazer a um seu inquilino que lhe havia passado um crédito de 20 doblas e que agora negava a dívida, e em mil outras coisas deste gênero.

Apenas entrara o compadre, de quem era antiga amiga, e a quem não via há muito tempo, começou logo D. Maria por dar-lhe parte que aquela antiga demanda com o testamenteiro de seu pai ainda não estava acabada, e por aí ia já prosseguindo conforme seu costume, quando o compadre lhe apresentou o afilhado, e começou também a contar a sua história.

Começou ele pela origem do pequeno; remontou à pisadela e ao beliscão com que a Maria e o Leonardo tinham começado o seu namoro na viagem de Lisboa ao Rio de Janeiro, o que fez dar a D. Maria boas risadas. Passou em seguida à festa do batizado, que descreveu detalhadamente. Até aqui era o drama risonho e feliz; veio depois a tragédia; contou todas aquelas histórias da perfídia da Maria, dos ciúmes do Leonardo e da briga final, cujo resultado trouxera o pequeno às suas mãos.

D. Maria ouviu tudo com a maior atenção, e só interrompia ao compadre de vez em quando para lançar uma praga à Maria, manifestar compaixão pelo Leonardo, e dar alguma risada pelas travessuras do pequeno. Quando a conversa estava nesta altura, a vizinha dos maus agouros, que também já se achava presente, porém que até ali estivera distraída, chegou-se para intervir na conversa, já se sabe, contra o pequeno. Referiu então alguma das suas graçolas, acrescentando sempre no fim de cada período e dirigindo-se ao compadre:

-O vizinho, por mais bem que lhe queira, não poderá negar isto...

O compadre, que no meio de tudo tinha sempre pintado a história do menino com cores muito favoráveis, não cessando de gabar a sua mansidão, boa índole, e dourando sempre as suas diabruras com o título de inocências, ingenuidades ou coisas de criança, começou a dar o cavaco com o desmentido que lhe dava a vizinha, que ao contrário dele pintava tudo com cores negras. A comadre interveio também nessa ocasião, porém conservando uma posição duvidosa: ora era da opinião do compadre, ora da opinião da vizinha.

D. Maria, que morria por conversa, e sobretudo por novidades, tomava o maior interesse na história, e ninguém se lembrava de que vez alguma tivesse ela esquecido por tanto tempo suas demandas.

O pequeno, sentado em um canto, ouvia tudo em silêncio observador. O compadre mal se podia conter, em respeito a D. Maria, com as invectivas da vizinha; esta, julgando-se segura na roda em que estava, desabafava largamente contra o menino. Finalmente terminou dirigindo-se a D. Maria, e dizendo na sua frase do costume:

-Então, senhora, é o que eu digo ou não? Tem maus bofes...

-Maus bofes, atalhou o compadre já com a calva muito vermelha, maus bofes? ora esta...

O pequeno lançou do seu lugar à vizinha um olhar fulminante, e que queria pouco mais ou menos dizer:

-Deixa estar que esta não fica sem troco.

D. Maria, vendo que o compadre começava a exasperar-se, fez-se medianeira, e disse dirigindo-se à vizinha:

-Você tem-lhe raiva demais; realmente a função da cera na mantilha é para dar o cavaco, porém, bem diz o mestre: qual é a criança que não faz travessuras? Isto tudo há de passar com a idade.

Dirigindo-se depois ao pequeno.

-Venha cá, Sr. travesso, disse-lhe com bondade, venha defender-se do que aqui estão dizendo a seu respeito.

O menino chegou-se com um ar entre vexado e capadoçal, colocou-se em pé entre a madrinha e a vizinha.

D. Maria fez-lhe então algumas perguntas, a que ele respondeu com prontidão, porém com mau modo. A vizinha não se julgou muito em segurança com tão bom vizinho a seu lado, e foi querendo levantar-se. O menino, percebendo isto, não quis perder ocasião de fazer o quer que fosse de maligno contra ela; estendeu a ponta do pé, e pisou-lhe com toda a força na barra da saia preta que ela conservava tendo tirado a mantilha. A vizinha, vendo-lhe o gesto, sem entender bem o que era, percebeu que ele preparava alguma, e quis levantar-se rapidamente: lá se foram alguns quatro palmos da barra da saia.

-Ah! disse o menino fingindo-se espantado...

-Valha-te, Deus, menino! disse a comadre.

A vizinha contemplava a sua saia rota, dizendo para os circunstantes:

-Então é o que eu digo, ou não? Tem maus bofes!...

O compadre sorria-se disfarçadamente vendo a vingança que o menino tomava do que a vizinha acabava de dizer.

-Ora, disse afinal D. Maria com ar de quem não estava muito certa no que dizia, ele estava descuidado, não foi por querer...

O menino foi sentar-se, e a conversa prosseguiu.

Chegou-se ao ponto do destino que o padrinho queria dar ao afilhado, e, segundo era costume, começou logo grande divergência entre o compadre e a comadre; esta não falava senão na Conceição, e aquele não falava senão em Coimbra.

D. Maria, solicitada a dar a sua opinião, disse:

-Pois olhem, se fosse comigo, eu havia de pô-lo em um cartório, e havia de fazer dele um bom procurador de causas.

-Oh! Não, respondeu o compadre; perdoe-me, Sra. D. Maria, perdoe-me se lhe ofendo com isso, mas eu tenho uma birra dos diabos com as tais demandas...

-Pois olhe, não tem razão, elas dão-me que fazer, mas eu já estou acostumada. Por exemplo, aquela demanda das terras, isto tem sido um nunca acabar; os herdeiros do meu compadre João Bernardo, que ainda não estavam habilitados em juízo, mandaram-me aqui citar...

E por aí continuava, sem que ninguém soubesse onde pararia, quando felizmente teve de interromper-se porque a procissão se aproximava, e todos correram às janelas.

Isto deu fim à conversa, começou a desfilar a procissão, que realmente fazia bonito efeito, sobretudo vista da casa de D. Maria, que era, e tínhamos esquecido esta circunstância, na mesma rua dos Ourives: as luzes das tochas refletidas nos galões das armações das portas e nas tabuletas cheias de ouro e prata em obra, com que os ourives nesse dia costumavam ornar os intervalos de suas casas, tinham um aspecto de muita riqueza e luxo, ainda que de mau gosto. De tudo que levava a procissão, o que mais mereceu as honras do agrado dos devotos foi o rancho das Baianas que o leitor já conhece, e o sacrifício de Abraão, que ia representado ao vivo.

Caminhava adiante um menino com um feixe de lenha aos ombros, representando Isaac: logo atrás dele um latagão vestido com um traje extravagante, com uma enorme espada de pau suspensa sobre a cabeça do menino; era Abraão; um pouco mais atrás um anjo, suspendendo o furibundo gládio por uma fita de 3 ou 4 varas de comprimento.

Terminada a procissão, retiravam-se os convidados.

Ao sair o compadre com o pequeno, D. Maria chegou-se a ele, e disse-lhe significativamente:

-Apareça, que temos que conversar a respeito do pequeno...

Já se vê que o menino não era dos mais infelizes, pois que, se tinha inimigos, achava também protetores por toda a parte. Para diante os leitores verão o papel que D. Maria representará nesta história.

Capítulo XVIII

Amores

Os leitores devem já estar fatigados de histórias de travessuras de criança; já conhecem suficientemente o que foi o nosso memorando em sua meninice, as esperanças que deu, e o futuro que prometeu. Agora vamos saltar por cima de alguns anos, e vamos ver realizadas algumas dessas esperanças. Agora começam histórias, se não mais importantes, pelo menos um pouco mais sisudas.

Como sempre acontece a quem tem muito onde escolher, o pequeno, a quem o padrinho queria fazer clérigo mandando-o a Coimbra, a quem a madrinha queria fazer artista metendo-o na Conceição, a quem D. Maria queria fazer rábula arranjando-o em algum cartório, e a quem enfim cada conhecido ou amigo queria dar um destino que julgava mais conveniente às inclinações que nele descobria, o pequeno, dizemos, tendo tantas coisas boas, escolheu a pior possível: nem foi para Coimbra, nem para a Conceição, nem para cartório algum; não fez nenhuma destas coisas, nem também outra qualquer: constituiu-se um completo vadio, vadio-mestre, vadio-tipo.

O padrinho desesperava com isso vinte vezes em cada dia por ver frustrado o seu belo sonho, porém não se animava mais a contrariar o afilhado, e deixava-o ir à sua vontade.

A comadre tinha conseguido o seu fim, pelo que diz respeito à sobrinha; tanto fizera, que o Leonardo, pilhando a cigana em nova infidelidade, resolveu-se... e arranjou-se... Dessa época começou ele a viver sossegado: o vento da idade começava a apagar-lhe as flamas de ternura.

D. Maria envelhecera sofrivelmente, porém não perdera de modo nenhum a sua mania favorita das demandas: a última que tivera foi talvez a mais desculpável, a mais razoável de todas. Teve por causa a tutoria de uma sua sobrinha que ficara órfã por morte de um seu irmão. Este irmão tinha um compadre que não gozava de boa reputação: ora, tendo a órfã ficado senhora de alguns mil cruzados que deixara seu pai, ainda que este não tivesse feito testamento, por ser ela filha única e legítima, o compadre apresentou-se pretendendo ser seu tutor.

D. Maria, percebendo o caso, apresentou-se também, e afinal venceu: foi nomeada tutora, e veio-lhe a sobrinha para casa: ela estimou isso, tanto mais que a sua idade já a fazia precisar, ainda não de um apoio, porém de uma companhia.

As mais personagens continuaram no mesmo estado.

Daqui em diante trataremos o nosso memorando pelo seu nome de batismo: não nos ocorre se já dissemos que ele tinha o nome do pai; mas se o não dissemos, fique agora dito. E para que se possa saber quando falamos do pai e quando do filho, daremos a este o nome de Leonardo, e acrescentaremos o apelido de pataca, já muito vulgarizado nesse tempo, quando quisermos tratar daquele.

Leonardo havia pois chegado à época em que os rapazes começam a notar que o seu coração palpita mais forte e mais apressado, em certas ocasiões, quando se encontra com certa pessoa, com quem, sem saber por que, se sonha umas poucas de noites seguidas, e cujo nome se acode continuamente a fazer cócegas nos lábios.

Já dissemos que D. Maria tinha agora em casa sua sobrinha: o compadre, como a própria D. Maria lhe pedira, continuou a visitá-la, e nessas visitas passavam longo tempo em conversas particulares. Leonardo acompanhava sempre o seu padrinho e fazia diabruras pela casa enquanto estava em idade disso, e depois que lhes perdeu o gosto, sentava-se em um canto e dormia de aborrecimento.

Disso resultou que detestava profundamente as visitas, e que só se sujeitava a elas obrigado pelo padrinho.

Em uma das últimas vezes que foram à casa de D. Maria, esta, assim que os viu entrar, dirigiu-se ao compadre e disse-lhe muito contente:

-Ora, afinal venci a minha campanha... veio ontem para o meu poder a menina... O tal velhaco do compadre de meu irmão não levou a sua avante.

-Muitos parabéns, muitos parabéns! respondeu o compadre.

Leonardo deu pouca atenção a isso; há muito tempo que ouvia falar da tal sobrinha; sentou-se a um canto, e começou a bocejar como de costume.

Depois de mais algumas palavras trocadas entre os dois, D. Maria chamou por sua sobrinha, e esta apareceu. Leonardo lançou-lhe os olhos, e a custo conteve o riso. Era a sobrinha de D. Maria já muito desenvolvida, porém que, tendo perdido as graças de menina, ainda não tinha adquirido a beleza de moça: era alta, magra, pálida: andava com o queixo enterrado no peito, trazia as pálpebras sempre baixas, e olhava a furto; tinha os braços finos e compridos; o cabelo, cortado, dava-lhe apenas até o pescoço, e como andava mal penteada e trazia a cabeça sempre baixa, uma grande porção lhe caía sobre a testa e olhos, como uma viseira. Trajava nesse dia um vestido de chita roxa muito comprido, quase sem roda, e de cintura muito curta; tinha ao pescoço um lenço encarnado de Alcobaça.

Por mais que o compadre a questionasse, apenas murmurou algumas frases ininteligíveis com voz rouca e sumida. Mal a deixaram livre, desapareceu sem olhar para ninguém. Vendo-a ir-se, Leonardo tornou a rir-se interiormente.

Quando se retiraram, riu-se ele pelo caminho à sua vontade. O padrinho indagou a causa da sua hilaridade; respondeu-lhe que não se podia lembrar da menina sem rir-se.

-Então lembras-te dela muito a miúdo, porque muito a miúdo te ris.

Leonardo viu que esta observação era verdadeira.

Durante alguns dias umas poucas de vezes falou na sobrinha da D. Maria; e apenas o padrinho lhe anunciou que teriam de fazer a visita do costume, sem saber por que, pulou de contente, e, ao contrário dos outros dias, foi o primeiro a vestir-se e dar-se por pronto.

Saíram e encaminharam-se para o seu destino.

Capítulo XIX

Domingo do Espírito Santo

Era esse dia domingo do Espírito Santo. Como todos sabem, a festa do Espírito Santo é uma das festas prediletas do povo fluminense. Hoje mesmo que se vão perdendo certos hábitos, uns bons, outros maus, ainda essa festa é motivo de grande agitação; longe porém está o que agora se passa daquilo que se passava nos tempos a que temos feito remontar os leitores. A festa não começava no domingo marcado pela folhinha, começava muito antes, nove dias cremos, para que tivesse lugar as novenas. O primeiro anúncio da festa eram as Folias. Aquele que escreve estas Memórias ainda em sua infância teve ocasião de ver as Folias, porém foi já no seu último grau de decadência, e tanto que só as crianças como ele lhe davam atenção e achavam nelas prazer; os mais, se delas se ocupavam, era unicamente para lamentar a diferença que faziam das primitivas. O que dantes se passava, bem-encarado, não estava muito longe de merecer censura; porém era costume, e ninguém vá lá dizer a alguma velha desse tempo que aquilo devia ser por força muito feio, porque leva uma risada na cara, e ouve uma tremenda filípica contra as nossas festas de hoje.

Entretanto digamos sempre o que eram as Folias desse tempo, apesar de que os leitores o saberão pouco mais ou menos. Durante os 9 dias que precediam ao Espírito Santo, ou mesmo não sabemos se antes disso, saía pelas ruas da cidade um rancho de meninos, todos de 9 a 11 anos, caprichosamente vestidos à pastora: sapatos de cor-de-rosa, meias brancas, calção da cor do sapato, faixas à cintura, camisa branca de longos e caídos colarinhos, chapéus de palha de abas largas, ou forrados de seda, tudo isto enfeitado com grinaldas de flores, e com uma quantidade prodigiosa de laços de fita encarnada. Cada um destes meninos levava um instrumento pastoril em que tocavam, pandeiro, machete e tamboril. Caminhavam formando um quadrado, no meio do qual ia o chamado imperador do Divino, acompanhados por uma música de barbeiros, e precedidos e cercados por uma chusma de irmãos de opa levando bandeiras encarnadas e outros emblemas, os quais tiravam esmolas enquanto eles cantavam e tocavam.

O imperador, como dissemos, ia no meio: ordinariamente era um menino mais pequeno que os outros, vestido de casaca de veludo verde, calção de igual fazenda e cor, meias de seda, sapatos afivelados, chapéu de pasta, e um enorme e rutilante emblema do Espírito Santo ao peito: caminhava pausadamente e com ar grave.

Confessem os leitores se não era coisa deveras extravagante ver-se um imperador vestido de veludo e seda, percorrendo as ruas cercado por um rancho de pastores, ao toque de pandeiro e machete. Entretanto, apenas se ouvia ao longe a fanhosa música dos barbeiros, tudo corria à janela para ver passar a Folia: os irmãos aproveitavam-se do ensejo, e iam colhendo esmolas de porta em porta.

Enquanto caminhava o rancho, tocava a música de barbeiros; quando parava, os pastores, acompanhando-se com seus instrumentos, cantavam; as cantigas eram pouco mais ou menos no gênero e estilo desta:

O Divino Espírito Santo

É um grande folião,

Amigo de muita carne,

Muito vinho e muito pão.



Eis aí o que era a Folia, eis aí o que o compadre e o afilhado encontraram no caminho.

A este episódio da Folia seguiam-se outros de que vamos em breve dar conta aos leitores. Por agora porém voltemos aos nossos visitantes.

Chegaram eles à casa de D. Maria, e acharam ainda todos à janela, porque acabava de passar a Folia. D. Maria recebeu-os com a sua costumada amabilidade. Leonardo ao entrar lançou logo os olhos para a sobrinha de D. Maria; porém, sem saber por que, não teve desta vez mais vontade de rir-se; entretanto a menina continuava a ser feia e esquisita; nesse dia estava ainda pior do que nos outros. D. Maria tinha tido pretensões de asseá-la; vestira-lhe um vestido branco muito curto, pusera-lhe um lenço de seda encarnado ao pescoço, e penteara-a de bugres. Por isso, agora que tendo ela tirado a costumada viseira de cabelos, lhe podemos ver o rosto, digamos, em abono da verdade, que se estava nesse dia mais esquisita quanto ao todo, podia-se-lhe notar que não era tão feia de cara como a princípio pareceu.

O caso foi que o Leonardo começou a olhar para ela sem mais vontade de rir-se; olhou uma, duas, três, quatro, muitas vezes enfim, sem que nunca satisfizesse ao que ele interiormente chamava curiosidade de apreciar aquela figura.

A menina por sua parte continuava no seu inalterável silêncio e concentração, de olhos baixos e queixo no peito. Entretanto quem tivesse hábito de observador fino poderia ter visto algum levantar de pálpebras rápido, e algum olhar fugaz dirigido para o lado do Leonardo.

D. Maria e o compadre conversaram segundo o seu costume.

Na ocasião da saída, D. Maria, dirigindo-se ao compadre, disse-lhe:

-Olhe, escute: nós hoje vamos ao Campo ver o fogo, bem podíamos ir todos juntos; que diz?

-Sim, podíamos, respondeu o compadre: eu tinha de ir só com o meu rapaz; mas uma vez que me oferece, iremos todos juntos. E leva a senhora a sua menina, não é?

-Oh! Levo, coitada; ela nunca viu o fogo; no tempo do pai nunca saía...

Sem pensar, o Leonardo estremeceu de contente: pareceu-lhe que desse modo teria mais ocasião de satisfazer a sua curiosidade. A menina nem se mexeu; pareceu-lhe aquilo absolutamente indiferente.

-Pois então estamos ajustados, acrescentou o compadre, e à noite cá as viremos buscar.

E saíram.

Capítulo XX

O fogo no campo

À hora determinada vieram os dois, padrinho e afilhado, buscar D. Maria e sua família, segundo haviam tratado: era pouco depois de ave-maria, e já se encontrava pelas ruas grande multidão de famílias, de ranchos de pessoas que se dirigiam uns para o Campo e outros para a Lapa, onde, como é sabido, também se festejava o Divino. Leonardo caminhava parecendo completamente alheio ao que se passava em roda dele; tropeçava e abalroava nos que encontrava; uma idéia única roía-lhe o miolo; se lhe perguntassem que idéia era essa, talvez mesmo o não soubesse dizer. Chegaram enfim mais depressa do que supusera o barbeiro, porque o Leonardo parecia naquela noite ter asas nos pés, tão rapidamente caminhara e obrigara o padrinho a caminhar com ele.

D. Maria estava já pronta e os esperava com algumas outras pessoas com quem também tratara ir de companhia, e em um momento puseram-se a caminho. Formavam todos um grande rancho acompanhado por não pequeno número de negras e negrinhas escravas e crias de D. Maria, que levavam cestos com comida e esteiras. D. Maria deu o braço ao compadre, e o mesmo fizeram as outras senhoras aos demais cavalheiros. Por gracejo D. Maria fez com que o Leonardo desse o braço a sua sobrinha; ele aceitou a incumbência com gosto, mas não sem ficar alguma coisa atrapalhado, e deu na pobre menina alguns encontrões, embaraçado por não saber se lhe daria a esquerda ou a direita; finalmente acertou, e deu-lhe a esquerda, ficando ele do lado da parede. Ofereceu-lhe o braço, porém Luizinha (tratemo-la desde já por seu nome) pareceu não entender o oferecimento ou não dar fé dele. Contentou-se pois o Leonardo em caminhar ao seu lado.

Assim chegaram ao Campo, que estava cheio de gente. Nesse tempo ainda se não usavam as barracas de bonecos, de sortes, de raridades e de teatros, como hoje: usavam-se apenas algumas que serviam de casas de pasto. Depois de passarem por diante delas, D. Maria e a sua gente se dirigiram para o Império. Luizinha estava atônita no meio de todo aquele movimento, diante daquele espetáculo que via pela primeira vez, pois era verdade o que dissera D. Maria: no tempo de seu pai raras ou nenhumas vezes saía de casa. Assim, sem o saber, parava algumas vezes embasbacada a olhar para qualquer coisa, e o Leonardo muitas vezes via-se forçado a puxar-lhe pelo braço para obrigá-la a prosseguir.

Chegaram ao Império, que era nesse tempo quase defronte da igreja de Sant'Ana, no lugar agora ocupado por uma das extremidades do quartel de Fuzileiros. Todos sabem o que é o Império, e por isso o não descreveremos. Lá estava na sua cadeira o imperador, que o leitor já viu passeando pela rua no meio de seus foliões. Luizinha, vendo-o, pôs-se nas pontas dos pés, esticou o pescoço, e encarou-o por muito tempo estática e absorta. O Leonardo vendo isto sentiu um não sei quê por dentro contra o menino que atraía a atenção de Luizinha, e passou-lhe pela mente o desejo louco de voltar atrás 6 ou 7 anos de sua existência, e ser também imperador do Divino.

Nas escadas do Império fazia-se leilão como ainda hoje, divertindo-se muito o povo ali apinhado com as graçolas pesadas do pregoeiro. Estiveram aí algum tempo entretidos os nossos conhecidos, e foram depois procurar no meio do Campo um lugar onde pudessem fazer alto para cear e ver o fogo. Acharam-no, não sem alguma dificuldade, pois que muitas outras famílias se haviam adiantado e tomado as melhores posições. Grande parte do Campo estava já coberta daqueles ranchos sentados em esteiras, ceando, conversando, cantando modinhas ao som de guitarra e viola. Fazia gosto passear por entre eles, e ouvir aqui a anedota que contava um conviva de bom gosto, ali a modinha cantada naquele tom apaixonadamente poético que faz uma das nossas raras originalidades, apreciar aquele movimento e animação que geralmente reinavam. Era essa a parte (permitam-nos a expressão) verdadeiramente divertida do divertimento.

Os nossos conhecidos sentaram-se com os outros em roda de suas esteiras, e começaram a cear. Leonardo, apesar das emoções novas que experimentava desde certo tempo, e principalmente naquela noite, nem por isso perdeu o apetite, e esqueceu-se por algum tempo de sua companheira para cuidar unicamente do seu prato. No melhor da ceia foram interrompidos pelo ronco de um foguete que subia: era o fogo que começava. Luizinha estremeceu, ergueu a cabeça, e pela primeira vez deixou ouvir sua voz, exclamando extasiada ao ver cair as lágrimas inflamadas do foguete que aclaravam todo o Campo:

-Olhe, olhe, olhe!...

Alguns dos circunstantes desataram a rir; o Leonardo deu o cavaco com aquelas risadas, e as achou muito fora de tempo. Felizmente Luizinha estava por tal maneira extasiada, que não deu atenção a coisa alguma, e enquanto duraram os foguetes não tirou os olhos do céu.

Aos foguetes seguiram-se, como sabem os leitores, as rodas. Nessa ocasião o êxtase da menina passou a frenesi; aplaudia com entusiasmo, erguia o pescoço por cima das cabeças da multidão, tinha desejos de ter duas ou três varas de comprido para ver tudo a seu gosto. Sem saber como, unia-se ao Leonardo, firmava-se com as mãos sobre os seus ombros para se poder sustentar mais tempo nas pontas dos pés, falava-lhe e comunicava-lhe a sua admiração! O contentamento acabou por familiarizá-la completamente com ele. Quando se atacou a lua, a sua admiração foi tão grande que, querendo firmar-se nos ombros de Leonardo, deu-lhe quase um abraço pelas costas. O Leonardo estremeceu por dentro, e pediu ao céu que a lua fosse eterna; virando o rosto, viu sobre seus ombros aquela cabeça de menina iluminada pelo clarão pálido do misto que ardia, e ficou também por sua vez extasiado; pareceu-lhe então o rosto mais lindo que jamais vira, e admirou-se profundamente de que tivesse podido alguma vez rir-se dela e achá-la feia.

Acabado o fogo, tudo se pôs em andamento, levantaram-se as esteiras, espalhou-se o povo. D. Maria e sua gente puseram-se também em marcha para casa, guardando a mesma disposição com que tinham vindo. Desta vez porém Luizinha e Leonardo, não é dizer que vieram de braço, como este último tinha querido quando foram para o Campo, foram mais adiante do que isso, vieram de mãos dadas muito familiar e ingenuamente. Este ingenuamente não sabemos se se poderá com razão aplicar ao Leonardo. Conversaram por todo o caminho como se fossem dois conhecidos muito antigos, dois irmãos de infância, e tão distraídos iam que passaram à porta da casa sem parar, e já estavam muito adiante quando os sios de D. Maria os fizeram voltar. A despedida foi alegre para todos e tristíssima para os dois. Entretanto, como sempre que se despedia, o compadre prometeu voltar, e isso serviu de algum alívio, especialmente ao Leonardo, que tomara tudo o que se acabava de passar mais em grosso.

Capítulo XXI

Contrariedades

Cremos, pelo que temos referido, que para nenhum dos leitores será ainda duvidoso que chegara ao Leonardo a hora de pagar o tributo de que ninguém escapa neste mundo, ainda que para alguns seja ele fácil e leve, e para outros pesado e custoso: o rapaz amava. É escusado dizer a quem.

Como é que a sobrinha de D. Maria, que a princípio tanto desafiara a sua hilaridade por esquisita e feia, lhe viera depois a inspirar amor, é isso segredo do coração do rapaz que nos não é dado penetrar: o fato é que ele a amava, e isto nos basta. Convém lembrar que se pela sorte de um pai se pode augurar a de um filho, o Leonardo em matéria de amor não prometia decerto grande fortuna. E com efeito, logo depois da noite do fogo no Campo, em que as coisas começavam a tomar vulto, principiou a roda a desandar-lhe em quase todos os sentidos. Luizinha, uma vez extinto o entusiasmo, que, suscitado pelas emoções que experimentara na noite do fogo, a acordara da sua apatia, voltara de novo ao seu antigo estado: e, como de tudo esquecida, na primeira visita que o barbeiro e o Leonardo fizeram a D. Maria depois desses acontecimentos, nem para este último levantara os olhos; conservara-se de cabeça baixa e olhos no chão.

Ora, para quem, como o Leonardo, levara depois daquela feliz noite a construir esses castelos de extravagante arquitetura com que sonhamos nos dias felizes do primeiro amor, isso foi já uma contrariedade sem nome; quando se viu assim tratado quase desatou a chorar; só o conteve o receio de não poder depois justificar o seu pranto com qualquer pretexto. A este primeiro movimento sucedeu-lhe um momento de calma, e depois cresceu-lhe por dentro uma chama de raiva, e esteve a ponto de chegar-se para a menina, desenterrar-lhe o queixo do peito, e chamá-la quatro ou cinco vezes de estúrdia e feia. Afinal cismou um pouco e murmurou um -que me importa!- que pretendia ser desprezo, e que não era senão despeito.

À primeira visita depois da noite do fogo seguiram-se muitas outras em que as coisas se passaram pouco mais ou menos do mesmo modo.

Um novo sucesso veio porém um dia dar outra cor e andamento aos sucessos; foi o encontro dos dois, padrinho e afilhado, em casa de D. Maria com uma personagem estranha a ambos. Era um conhecido de D. Maria que havia há pouco chegado de uma viagem à Bahia. Figure o leitor um homenzinho nascido em dias de maio, de pouco mais ou menos 35 anos de idade, magro, narigudo, de olhar vivo e penetrante, vestido de calção e meias pretas, sapatos de fivela, capote e chapéu armado, e terá idéia do físico do Sr. José Manuel, o recém-chegado. Quanto ao moral, se os sinais físicos não falham, quem olhasse para a cara do Sr. José Manuel assinava-lhe logo um lugar distinto na família dos velhacos de quilate. E quem tal fizesse não se enganava de modo algum; o homem era o que parecia ser. Se tinha alguma virtude, era a de não enganar pela cara. Entre todas as suas qualidades possuía uma que infelizmente caracterizava naquele tempo, e talvez que ainda hoje, positiva e claramente o fluminense, era a maledicência. José Manuel era uma crônica viva, porém crônica escandalosa, não só de todos os seus conhecidos e amigos, e das famílias destes, mas ainda dos conhecidos e amigos dos seus amigos e conhecidos e de suas famílias. Debaixo do mais fútil pretexto tomava a palavra, e enfiava um discurso de duas horas sobre a vida de fulano ou de beltrano.

Por exemplo, conversando-se sobre qualquer objeto acontecia falar-se em D. Francisca Brites.

-Conheci muito D. Francisca Brites, atalhava imediatamente o incansável falador; era mulher de João Brites, filho bastardo do capitão Sanches; em tempo de casada diziam suas coisas dela, e a culpa tinha Pedro d'Aguiar, sujeito que não gozava de boa nota, principalmente depois que se meteu aí n'alhada de um testamento falso que atribuíram ao Lourenço da Cunha, que, em abono da verdade, era bem capaz disso, pois não era sujeito de mãos limpas. Foi até ele quem furtou de casa a filha de D. Úrsula, que foi moça de Francisco Borges, a quem deixou para seguir a Pedro Antunes, que por sinal lhe deu bem má vida.

E também ela não devia esperar outra coisa dele, porque homem que se atreveu a fazer o que ele fez a três filhas que tinha, é capaz de tudo. Chegou a pôr pela porta fora com um pau as pobres moças depois de as ter espancado desapiedadamente. Entretanto uma delas foi bem feliz: achou aí um capitão de navio que tratou dela; as outras não, coitadas...

-Infelizes por quê? acudia por acaso algum dos circunstantes; elas casaram...

-Casaram, sim, é verdade, retorquia ele tomando novo fôlego, porém com que marido? Um tomava moafas de todo o tamanho, o outro gastou tudo quanto tinha no jogo. Conheci-os a ambos muito bem...

E por aí prosseguia e internava-se a perder de vista pela geração toda dos dois maridos, e era capaz de gastar nesse trabalho horas inteiras.

Desde o primeiro dia que o padrinho e o afilhado se encontraram com José Manuel em casa de D. Maria, nenhum dos dois lhe ficou por certo querendo muito bem, e este não querer bem foi crescendo de dia em dia, especialmente pela parte do Leonardo. E o caso é que ele tinha razão; foi o instinto que o avisou de que ali havia um inimigo. Tão exagerados eram os afagos de José Manuel para com D. Maria, e tanto repartia ele esses afagos com Luizinha, que bem claro se deixou ver que havia neles fim oculto. Afinal o negócio aclarou-se. D. Maria era, como dissemos, rica e velha; não tinha outro herdeiro senão sua sobrinha; se morresse D. Maria, Luizinha ficaria arranjada, e, como era muito criança e mostrava ser muito simples, era uma esposa conveniente a qualquer esperto que se achasse, como José Manuel, em disponibilidade; este pois fazia a corte à velha com intenções na sobrinha. Quando Leonardo, esclarecido pela sagacidade do padrinho, entrou no conhecimento destas coisas, ficou fora de si, e a idéia mais pacífica que teve foi que podia mui bem, quando fosse visitar D. Maria, munir-se de uma das navalhas mais afiadas de seu padrinho, e na primeira ocasião oportuna fazer de um só golpe em dois o pescoço de José Manuel. Porém teve de aplacar-se e ceder às admoestações do padrinho, que sabia de todos os seus sentimentos, e que os aprovava.

Capítulo XXII

Aliança

Se Leonardo se afligira do modo que acabamos de ver pelo contratempo que lhe sobreviera com o aparecimento e com as disposições de José Manuel, o padrinho não se incomodava menos com isso: vendo que o afilhado se fazia homem, e tendo decididamente abortado aquele seu gigantesco plano de mandá-lo a Coimbra, enxergava na sobrinha de D. Maria um meio de vida excelente para o seu rapaz. Verdade é que se lembrava de que D. Maria podia com muito justa razão, se as coisas continuassem do mesmo modo, quando chegasse o momento do desfecho das coisas, recusar sua sobrinha a um rapaz que não se ocupava em coisa alguma, e que não tinha futuro. Por este motivo muitas vezes instava com o afilhado para que ensaiasse na cara de algum freguês tolo entrar no ofício; porém este recusava-se obstinadamente. A comadre, quando alguma vez aparecia por casa do barbeiro, não cessava de insistir no seu antigo projeto de fazer o rapaz entrar para a Conceição. Uma ocasião em que nisso falou diante dele, custou-lhe a história uma forte sarabanda: o rapaz tomara gosto à vida de vadio, e por princípio algum queria deixá-la. E se em outras ocasiões estava ele desse humor, agora depois dos últimos acontecimentos, quando o amor e o ciúme lhe ocupavam a alma, não queria ouvir falar em semelhantes coisas; acreditava que a sua melhor ocupação devia consistir em dar cabo do rival que se lhe antepusera.

No meio de tudo isto pior era que José Manuel parecia adiantar-se cada vez mais; astuto como era, insinuava-se destramente no ânimo de D. Maria, e a cativava com atenções de toda a sorte. O compadre começou a banzar sobre o caso, e um dia veio-lhe uma idéia: era preciso pôr a comadre ao corrente do que se passava, e interessá-la no negócio; ela era bem capaz, se quisesse, de arcar com José Manuel, e pô-lo fora de combate; gozava boa fama de ter jeito para essas coisas. Com efeito mandou chamar a comadre e expôs-lhe tudo.

-Sim! respondeu ela ao ouvir a narração; o caso é este? Pois está de cor o tal sujeito: hei de mostrar-lhe para quanto presto. Já hoje mesmo vou visitar a D. Maria.

Mal sabia José Manuel que tormenta se levantava contra ele. Há muito percebera ele que Leonardo e seu padrinho o não podiam tragar, e mesmo que tinham segundas tenções a respeito de Luizinha, porém nunca lhe passara pela mente que seria mister lutar com eles. Em breve teve de ver que se enganava. A comadre foi, como prometera, à casa de D. Maria, e achando lá José Manuel procurou fazer-se ostensivamente muito sua camarada, ainda que baixinho, e de vez em quando soltava perto de D. Maria algumas indiretas contra ele.

Quando José Manuel acabava de contar uma história com todos os detalhes costumados sobre a vida deste ou daquele, a comadre murmurava, por exemplo:

-Que língua! safa...

E com estas e outras ia pondo em relevo, sem parecer que tinha tal intenção, o caráter do adversário.

Além da qualidade de maldizente, José Manuel mentia com um descaro como raras vezes se encontra. D. Maria, amiga de novidades, e além disso muito crédula, comungava perfeitamente quanta peta lhe queria ele embutir. Uma das suas histórias mais comuns era a que ele intitulava -O naufrágio dos potes.- Acontecera-lhe na sua última viagem à Bahia, e ele a contava pelo modo seguinte:

«Estávamos quase a chegar ao ancoradouro; viajava ao lado do meu navio um enorme peru carregado unicamente de potes. De repente arma-se um temporal, que parecia vir o mundo abaixo; o vento era tão forte, que do mar, apesar da escuridão, viam-se contradançar no espaço as telhas arrancadas da cidade alta. Afinal quando já parecia tudo sossegado e começava a limpar o tempo, veio uma onda tão forte e em tal direção, que as duas embarcações esbarraram com toda a força uma contra a outra. Já muito maltratadas pelo temporal que acabavam de suportar, não puderam mais resistir, e abriram-se ambas de meio a meio: o navio vazou toda a sua carga e passageiros, e o peru toda a sua carregação de potes; ficou o mar coalhado deles, em tão grande quantidade os havia! Os marinheiros e outros passageiros trataram de agarrar-se a tábuas, caixões e outros objetos para se salvarem; porém o único que se escapou fui eu, e isso devo à feliz lembrança que tive; do pedaço do navio em que tinha ficado dei um salto sobre o pote que boiava mais perto. Com o meu peso o pote mergulhou, e enchendo-se d'água desapareceu debaixo de meus pés; porém isto não teve lugar antes que eu, percebendo o que ia acontecer, não saltasse imediatamente deste pote para outro. A este outro e a todos os mais aconteceu a mesma coisa, porém servi-me do mesmo meio, e assim, como a força das ondas os impelia para a praia, vim de pote em pote até à terra sem o menor acidente!»

Como esta, contava José Manuel milhares de histórias.

Foi também isso um tema de que se serviu a comadre para o desconceituar no ânimo de D. Maria, sempre, é verdade, muito sorrateiramente.

Veremos quais foram os resultados que alcançaram o compadre e o Leonardo com a aliança formada com a comadre contra o concorrente à Luizinha.

Capítulo XXIII

Declaração

Enquanto a comadre dispunha seu plano de ataque contra José Manuel, Leonardo ardia em ciúmes, em raiva, e nada havia que o consolasse em seu desespero, nem mesmo as promessas de bom resultado que lhe faziam o padrinho e a madrinha. O pobre rapaz via sempre diante de si a detestável figura de seu rival a desconcertar-lhe todos os planos, a desvanecer-lhe todas as esperanças. Nas horas de sossego entregava-se às vezes à construção imaginária de magníficos castelos, castelos de nuvens, é verdade, porém que lhe pareciam por instantes os mais sólidos do mundo; de repente surdia-lhe de um canto o terrível José Manuel com as bochechas inchadas; e soprando sobre a construção, a arrasava num volver d'olhos.

Entretanto o que havia de notável é que Luizinha, causa de tantas tormentas, ignorava tudo, e a tudo continuava indiferente. Leonardo veio a entender, depois de muito meditar, que isto constituía um dos principais defeitos de sua posição; se a comadre e o compadre conseguissem derrotar a José Manuel, e pô-lo em estado de não poder mais entrar em combate, quem poderia dizer que o triunfo era completo? Não havia ainda uma segunda campanha a dar contra a indiferença de Luizinha? Daqui concluiu ele que era mister ir já rompendo fogo por esse lado; e como lhe pareceu o de mais importância, não quis confiar a nenhum dos aliados o seu ataque, e decidiu-se a dá-lo em pessoa. Devia começar, como o sabe de cor e salteado a maioria dos leitores, que é sem dúvida nenhuma muito entendida na matéria, por uma declaração em forma.

Mas em amor, assim como em tudo, a primeira saída é o mais difícil. Todas as vezes que esta idéia vinha à cabeça do pobre rapaz, passava-lhe uma nuvem escura por diante dos olhos e banhava-se-lhe o corpo em suor. Muitas semanas levou a compor, a estudar o que havia de dizer a Luizinha quando aparecesse o momento decisivo. Achava com facilidade milhares de idéias brilhantes; porém mal tinha assentado em que diria isto ou aquilo, e já isto e aquilo lhe não parecia bom. Por várias vezes tivera ocasião favorável para desempenhar a sua tarefa, pois estivera a sós com Luizinha; porém nessas ocasiões nada havia que pudesse vencer um tremor de pernas que se apoderava dele, e que não lhe permitia levantar-se do lugar onde estava, e um engasgo que lhe sobrevinha, e que o impedia de articular uma só palavra. Enfim, depois de muitas lutas consigo mesmo para vencer o acanhamento, tomou um dia a resolução de acabar com o medo, e dizer-lhe a primeira coisa que lhe viesse à boca.

Luizinha estava no vão de uma janela a espiar para a rua pela rótula; Leonardo aproximou-se tremendo, pé ante pé, parou e ficou imóvel como uma estátua atrás dela, que, entretida para fora, de nada tinha dado fé. Esteve assim por longo tempo calculando se devia falar em pé ou se devia ajoelhar-se. Depois fez um movimento como se quisesse tocar no ombro de Luizinha, mas retirou depressa a mão. Pareceu-lhe que por aí não ia bem; quis antes puxar-lhe pelo vestido, e ia já levantando a mão quando também se arrependeu. Durante todos estes movimentos o pobre rapaz suava a não poder mais. Enfim, um incidente veio tirá-lo da dificuldade. Ouvindo passos no corredor, entendeu que alguém se aproximava, e tomado de terror por se ver apanhado naquela posição, deu repentinamente dois passos para trás, e soltou um -ah!- muito engasgado. Luizinha, voltando-se, deu com ele diante de si, e recuando espremeu-se de costas contra a rótula; veio-lhe também outro -ah!- porém não lhe passou da garganta, e conseguiu apenas fazer uma careta.

A bulha dos passos cessou sem que ninguém chegasse à sala; os dois levaram algum tempo naquela mesma posição, até que o Leonardo, por um supremo esforço, rompeu o silêncio, e com voz trêmula e em tom o mais sem graça que se possa imaginar perguntou desenxabidamente:

-A senhora... sabe... uma coisa?

E riu-se com uma risada forçada, pálida e tola.

Luizinha não respondeu. Ele repetiu no mesmo tom:

-Então... a senhora... sabe ou... não sabe?

E tornou a rir-se do mesmo modo. Luizinha conservou-se muda.

-A senhora bem sabe... é porque não quer dizer...

Nada de resposta.

-Se a senhora não ficasse zangada... eu dizia...

Silêncio.

-Está bom... eu digo sempre... mas a senhora fica ou não fica zangada?

Luizinha fez um gesto de quem estava impacientada.

-Pois então eu digo... a senhora não sabe... eu... eu lhe quero... muito bem.

Luizinha fez-se cor de uma cereja; e fazendo meia-volta à direita, foi dando as costas ao Leonardo e caminhando pelo corredor. Era tempo, pois alguém se aproximava.

Leonardo viu-a ir-se, um pouco estupefato pela resposta que ela lhe dera, porém não de todo descontente: seu olhar de amante percebera que o que se acabava de passar não tinha sido totalmente desagradável a Luizinha.

Quando ela desapareceu, soltou o rapaz um suspiro de desabafo e assentou-se, pois se achava tão fatigado como se tivesse acabado de lutar braço a braço com um gigante.

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