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Minha formação

Joaquim Nabuco

A maior parte de Minha Formação apareceu primeiro no Comércio de São Paulo, em 1895; depois foi recolhida pela Revista Brasileira, cujo agasalho nunca me faltou... Os capítulos que hoje acrescem são tomados a um manuscrito mais antigo. Só a conclusão é nova. Na revisão, entretanto, dos diversos artigos foram feitas emendas e variantes. A data do livro para leitura deve assim ser 1893-99, havendo nele idéias, modos de ver, estados de espírito, de cada um desses anos. Tudo o que se diz sobre os Estados Unidos e a Inglaterra foi escrito antes das guerras de Cuba e do Transvaal, que marcam uma nova era para os dois países. Algumas das alusões a amigos, como a Taunay e a Rebouças, hoje falecidos, foram feitas quando eles ainda viviam. Foi para mim uma simples distração reunir agora estas páginas; seria, porém, mais do que isso uniformá-las e querer eliminar o que não corresponde inteiramente às modificações que sofri desde que elas primeiro foram escritas.

Agora que elas estão diante de mim em forma de livro, e que as releio, pergunto a mim mesmo qual será a impressão delas... Esta aí muito de minha vida... Será uma impressão de volubilidade, de flutuação, de diletantismo, seguida de desalento, que elas comunicarão? Ou antes de consagração, por um voto perpétuo, a uma tarefa capaz de saciar a sede de trabalho, de esforço e de dedicação da mocidade, e somente realizada a tarefa da vida, saciada aquela sede -ainda mais, transformada por um terremoto à face da época, criado um novo meio social, em que se tornam necessárias outras qualidades de ação, outras faculdades de cálculo para lutas de diverso caráter-, a renúncia à política, depois de dez anos de retraimento forçado, e diante de uma sedução intelectual mais forte, de uma perspectiva final do mundo mais bela e mais radiante?... Sed magis gratiarum actio...

No todo a impressão, eu receio, será misturada; as deficiências da natureza aparecerão, cobertas pela clemência da sorte; ver-se-á o efêmero e o fundamental... Em todo o caso não precisarei de pleitear minha própria causa, porque ela será sempre julgada pela raça mais generosa entre todas... Se alguma coisa observei no estudo do nosso passado, é quanto são fúteis as nossas tentativas para deprimir, e como sempre vinga a generosidade... Infeliz de quem entre nós não tem outro talento ou outro gosto senão o de abater! A nossa natureza está votada à indulgência, à doçura, ao entusiasmo, à simpatia, e cada um pode contar com a benevolência ilimitada de todos... Em nossa história não haverá nunca Inferno, nem sequer Purgatório.

Não dou entretanto, o bon à tirer a este livro, senão porque estou convencido de que ele não enfraquecerá em ninguém o espírito de ação e de luta, a coragem e a resolução de combater por idéias que repute essenciais, mas somente indicará algumas das condições para que o triunfo possa ser considerado uma vitória nacional, ou uma vitória humana, e para que a vida, sem ser uma obra d'arte, o que é dado a muito poucas, realize ao menos uma parcela de beleza, e quando não tenha o orgulho de ter refletido brilhante sobre o país, tenha o consolo de lhe haver sido carinhosamente inofensiva.

A política, entretanto, não foi a minha impressão dominante ao traçar estas reminiscências... Eu já me achava então fora dela.

«Esta manhã, casais de borboletas brancas, douradas, azuis, passam inúmeras contra o fundo de bambus e samambaias da montanha. É um prazer para mim vê-las voar, não o seria, porém, apanhá-las, pregá-las em um quadro... Eu não quisera guardar delas senão a impressão viva, o frêmito de alegria da natureza, quando elas cruzam o ar, agitando as flores. Em uma coleção, é certo, eu as teria sempre diante da vista, mortas, porém, como uma poeira conservada junta pelas cores sem vida... O modo único para mim de guardar essas borboletas eternamente as mesmas, seria fixar o seu vôo instantâneo pela minha nota íntima equivalente... Como com as borboletas, assim com todos os outros deslumbramentos da vida... De nada nos serve recolher o despojo; o que importa, é só o raio interior que nos feriu, o nosso contato com eles... e este como que eles também o levam embora consigo.»

Este traço indecifrável, com que, em Petrópolis, tentei há anos marcar uma impressão de que me fugia o contorno animado, explicará as lacunas deste livro e muitas de suas páginas.

J. N.

Colégio e academia

Não preciso remontar ao colégio, ainda que ali, provavelmente, tenha sido lançada no subsolo da minha razão a camada que lhe serviu de alicerce: o fundo hereditário do meu liberalismo. Meu pai nessa época (1864-1865) tinha terminado a sua passagem do campo conservador para o liberal, marcha inconscientemente começada desde a Conciliação (1853-1857), consciente, pensada desde o discurso que ficou chamado do uti possidetis (1862). Houve diversas migrações em nossa história política do lado liberal para o conservador. Os homens da regência, que entraram na vida pública ou subiram ao poder representando a idéia de revolução, foram com a madureza dos anos restringindo as suas aspirações, aproveitando a experiência, estreitando-se no círculo de pequenas ambições e no desejo de simples aperfeiçoamento relativo, que constitui o espírito conservador. O senador Nabuco, porém, foi quem iniciou, guiou, arrastou um grande movimento em sentido contrário, do campo conservador para o liberal, da velha experiência para a nova experimentação, das regras hieráticas de governo para as aspirações ainda informes da democracia. Ele é quem encarnará em nossa história -entre a antiga «oligarquia» e a República, que deve sair dela no dia em que a escravidão se esboroar- o espírito de reforma. Ele é o nosso verdadeiro Lutero político, o fundador do livre exame no seio dos partidos, o reformador da velha igreja saquarema, que, com os Torres, os Paulinos, os Eusébios, dominava tudo no país. Zacarias, Saraiva, Sinimbu, com os seus grandes e pequenos satélites, Olinda mesmo, em sua órbita independente, não fazem senão escapar-se pela tangente que ele traçou com a sua iniciativa intelectual, a qual parece um fenômeno da mesma ordem que o profetismo e que, por isso mesmo, só lhe consentia ter em política um papel quase imparcial: o de oráculo.

No colégio eu ainda não compreendia nada disto, mas sabia o liberalismo de meu pai, e nesse tempo o que ele dissesse ou pensasse era um dogma para mim: eu não tinha sido invadido pelo espírito de rebeldia e independência, por essa petulância da mocidade que me fará mais tarde, na Academia, contrapor às vezes o meu modo de pensar ao dele, em lugar de apanhar religiosamente, como eu faria hoje, cada palavra sua.

Era natural que eu seguisse aos quinze e dezesseis anos a política de meu pai, mesmo porque essa devoção era acompanhada de um certo prazer, de uma satisfação de orgulho. Entre as sensações da infância que se me gravaram no espírito, lembra-me um dia em que, depois de ler o seu Jornal, o inspetor do nosso ano me chamou à mesa -era um velho ator do teatro S. Pedro, que vivia da lembrança dos seus pequenos papéis e do culto de João Caetano-, para dizer-me com grande mistério que meu pai tinha sido chamado a S. Cristóvão para organizar o gabinete. Filho de presidente do Conselho foi para mim uma vibração de amor-próprio mais forte do que teria sido, imagino, a do primeiro prêmio que o nosso camarada Rodrigues Alves tirava todos os anos. Eu sentia cair sobre mim um reflexo do nome paterno e elevava-me nesse raio: era um começo de ambição política que se insinuava em mim. A atmosfera que eu respirava em casa, desenvolvia naturalmente as minhas primeiras fidelidades à causa liberal. Recordo-me de que nesse tempo tive uma fascinação por Pedro Luís, cuja ode à Polônia, Os Voluntários da Morte, eu sabia de cor. Depois, a questão dos escravos, em 1871, nos separou; mais tarde a nossa camaradagem na Câmara nos tornou a unir. Em casa eu via muito a Tavares Bastos, que me mostrava simpatia, todo o grupo político da época; era para mim estudante um desvanecimento descer e subir a rua do Ouvidor de braço com Teófilo Ottoni; um prazer ir conversar no Diário do Rio com Saldanha Marinho e ouvir Quintino Bocaiúva, que me parecia o jovem Hércules da imprensa e cujo ataque contra Montezuma, a propósito da capitulação de Uruguaiana, me deu a primeira idéia de um polemista destemido.

Na situação em que fui para S. Paulo cursar o primeiro ano da Academia, eu não podia deixar de ser um estudante liberal. Desde o primeiro ano fundei um pequeno jornal para atacar o Ministério Zacarias. Meu pai, que apoiava esse Ministério, escrevia-me que estudasse, me deixasse de jornais e sobretudo de atitudes políticas em que se podia ver, senão uma inspiração, pelo menos uma tolerância da parte dele. Eu, porém, prezava muito a minha independência de jornalista, a minha emancipação de espírito; queria sentir-me livre, julgava-me comprometido perante a minha classe, a academia, e assim iludia, sem pensar desobedecer, o desejo de meu pai, que, provavelmente, não ligava grande importância à minha oposição ao Ministério amigo. Nesse tempo as Cartas de Erasmo, que produziam no país uma revivescência conservadora, me pareciam a obra-prima da literatura política.

As minhas idéias eram, entretanto, uma mistura e uma confusão; havia de tudo em meu espírito. Ávido de impressões novas, fazendo os meus primeiros conhecimentos com os grandes autores, com os livros de prestígio, com idéias livres, tudo o que era brilhante, original, harmonioso, me seduzia e arrebatava por igual. Era o deslumbramento das descobertas contínuas, a eflorescência do espírito: todos os seus galhos cobriam-se espontaneamente de rosas efêmeras.

As palavras de um Crente de Lamennais, a História dos Girondinos de Lamartine, o Mundo Caminha de Pelletan, os Mártires da Liberdade de Esquiros eram os quatro Evangelhos da nossa geração, e o Ashaverus de Quinet o seu Apocalipse. Victor Hugo e Henrique Heine creio que seriam os poetas favoritos. Eu, porém, não tinha (nem tenho), sistematizado, unificado sequer o meu lirismo. Lia de tudo igualmente. O ano de 1866 foi para mim o ano da Revolução Francesa: Lamartine, Thiers, Mignet, Louis Blanc, Quinet, Mirabeau, Vergniaud e os Girondinos, tudo passa sucessivamente pelo meu espírito; a Convenção está nele em sessão permanente. Apesar disso, eu lia também Donoso Cortez e Joseph de Maitre, e até escrevi um pequeno ensaio, com a infalibilidade dos dezessete anos, sobre a Infalibilidade do Papa.

Posso dizer que não tinha idéia alguma, porque tinha todas. Quando entrei para a Academia, levava a minha fé católica virgem; sempre me recordarei do espanto, do desprezo, da comoção com que ouvi pela primeira vez tratar a Virgem Maria em tom libertino; em pouco tempo, porém, não me restava daquela imaginação senão o pó dourado da saudade... Ao catolicismo só vinte e tantos anos mais tarde me será dado voltar por largos circuitos de que ainda um dia, se Deus me der vida, tentarei reconstruir o complicado roteiro. Basta-me dizer, por enquanto, que a grande influência literária que experimentei na vida, a embriaguez de espírito mais perfeita que se podia dar, pelo narcótico de um estilo de timbre sem igual em nenhuma literatura, o meu coup de foudre intelectual, foi a influência de Renan.

Politicamente o fundo liberal ficou intato, sem mistura sequer de tradicionalismo. Seria difícil colher-se em todo o meu pensamento um resquício de tendência conservadora. Liberal, eu o era de uma só peça; o meu peso, a minha densidade democrática era máxima. Nesse tempo dominava a Academia, com a sedução da sua palavra e de sua figura, o segundo José Bonifácio. Os leaders da Academia, Ferreira de Meneses, que, apesar de formado, continuava acadêmico e chefe literário da mocidade, Castro Alves, o poeta republicano de Gonzaga, bebiam-lhes as palavras, absorviam-se nele em êxtase. Rui Barbosa era dessa geração; mas Rui Barbosa, hoje a mais poderosa máquina cerebral do nosso país, que pelo número das rotações e força de vibração faz lembrar os maquinismos que impelem através das ondas os grandes «transatlânticos», levou vinte anos a tirar do minério do seu talento, a endurecer e temperar, o aço admirável que é agora o seu estilo.

As minhas idéias, porém, flutuavam, no meio das atrações diferentes desse período, entre a monarquia e a república, sem preferência republicana, talvez somente por causa do fundo hereditário de que falei e da fácil carreira política que tudo me augurava. Um livro sedutor e interessante -é a minha impressão da época- o 19 de Janeiro, de Emílio Ollivier, tinha-me deixado nesse estado de hesitação e de indiferença entre as duas formas de governo, e a France Nouvelle, de Prévost-Paradol, que eu li com verdadeiro encanto, não conseguiu, apesar de todo o seu arrastamento, fixar a minha inclinação do lado da monarquia parlamentar. O que me decidiu foi a Constituição Inglesa de Bagehot. Devo a esse pequeno volume que hoje não será talvez lido por ninguém em nosso país, a minha fixação monárquica inalterável; tirei dele, transformando-a a meu modo, a ferramenta toda com que trabalhei em política, excluindo somente a obra da abolição, cujo stock de idéias teve para mim outra procedência.

Capítulo II

Bagehot

Não sei a quem devo a fortuna de ter conhecido a obra de Bagehot, ou se a encontrei por acaso entre as novidades da livraria Lailhacar, no Recife. Se soubesse quem me pôs em comunicação com aquele grande pensador inglês, eu lhe agradeceria as relações que fiz com ele em 1869. É desse ano a amizade literária íntima que travei com Jules Sandeau; a este quem me apresentou foi, recordo-me bem, o atual conselheiro Lafayette, da antiga firma da Atualidade, Farnese, Lafayette e Pedro Luís, que eram, com Tavares Bastos, os diretores da mocidade liberal. A Actualidade fora talvez o primeiro jornal nosso de inspiração puramente republicana. A semente que germinou depois, em meu tempo, foi toda espalhada por ela.

Antes de ler Bagehot, eu tinha lido muito sobre a Constituição inglesa. Tenho diante de mim um caderno de 1869, em que copiava as páginas que em minhas leituras mais me feriam a imaginação, método de educar o espírito, de adquirir a forma do estilo, que eu recomendaria, se tivesse autoridade, aos que se destinam a escrever, porque, é preciso fazer esta observação, ninguém escreve nunca senão com o seu período, a sua medida, Renan diria a sua euritmia, dos vinte e um anos. O que se faz mais tarde na madureza é tomar somente o melhor do que se produz, desprezar o restante, cortar as porções fracas, as repetições, tudo o que desafina ou que sobra: a cadência do período, a forma da frase ficará, porém, sempre a mesma. O período de Lafayette ou de Ferreira Viana, de Quintino ou de Machado de Assis, é hoje, com as modificações da idade, que são inevitáveis em tudo, o mesmo com que eles começaram. Está visto que eu não incluo nos começos de um escritor as tentativas que cada um faz para chegar à sua forma própria; o que digo é que o compasso se fixa logo muito cedo, e de vez, como a fisionomia. Nesse livro de minhas leituras de 1869, quarto ano da Academia, encontro no índice, com muita Escravidão e muito Cristianismo, muita Eloqüência inglesa, muito Fox e Pitt.

Nesse tempo a Câmara dos Comuns já tinha para mim o prestígio de primeira Assembléia do mundo, mas a realeza inglesa era ainda a dos quatro Jorges, principalmente a de Jorge III, a bête noire de Martinho de Campos, ao passo que a Câmara dos Lordes, essa, com todo o cortejo das antigualhas dos Tudors, era para meu liberalismo, americanizado por Laboulave, sob disfarce de carnaval histórico, uma odiosa procissão aristocrática em pleno mundo moderno. Dos dois governos, o inglês e o norte-americano, o último parecia mais livre, mais popular. Por motivos diferentes a monarquia constitucional, democratizada por instituições radicais, seria ainda para o Brasil um governo preferível à república, mesmo pelo fato de já existir; mas, em tese, entre essa monarquia e a república, a superioridade se havia, estava ao lado desta. A France Nouvelle-a última parte dela foi verdadeiramente profética-, com toda a sua preferência raciocinada pela monarquia constitucional, deixou-me, como já disse, suspenso, porque todo o seu delicado aparelho tinha como peça principal, ou pelo menos como peça de aperfeiçoamento, a dissolução régia, direito próprio do monarca, e exatamente essa espécie de dissolução é que era para a nossa escola a manivela do governo pessoal.

A Constituição Inglesa de Bagehot é o livro de um pensador político, não de um historiador, nem de um jurista. Quem lê a massa inextricável de fatos que se contêm, por exemplo, na História Constitucional do dr. Stubbs, ou um desses rápidos panoramas de uma época inteira, que de repente Freeman nos desvenda em uma de suas páginas, não encontra em Bagehot nada, historicamente falando, que não lhe pareça, por assim dizer, de segunda mão. O que, porém, nem Freeman, nem Stubbs, nem Gneist, nem Erskine May, nem Green, nem Macaulay conseguiu nos dar tão perfeitamente como Bagehot, aliás um leigo em história e política, um simples amador, foi o segredo, as molas ocultas da Constituição.

Freeman mostrava no seu pequeno livro O Crescimento da Constituição Inglesa que essa Constituição nunca foi feita; que nunca nas grandes lutas políticas da Inglaterra a voz da nação reclamou novas leis, mas só o melhor cumprimento das leis existentes; que a vida, a alma da lei inglesa foi sempre o procedente; que as medidas para fortalecer a coroa alargaram os direitos do povo e vice-versa. Todo ele é cheio de idéias sugestivas que iluminam, para o espírito, um grande campo de visão. De repente encontra-se um quase paradoxo, desses que põem em confusão todas as idéias morais da experiência histórica. S. Luís, dirá ele, com as suas virtudes e prestígio, preparou o caminho para o despotismo dos seus sucessores. Não será o mesmo o efeito do reinado de Pedro II? «Para conquistar a liberdade como uma herança perpétua há épocas em que se precisa mais dos vícios dos reis do que das suas virtudes. A tirania dos nossos senhores Angevinos acordou a liberdade inglesa do seu túmulo momentâneo. Se Ricardo, João e Henrique tivessem sido reis como Alfredo e S. Luís, o báculo de Estêvão Langton, a espada de Roberto Fitzwalter, nunca teriam reluzido à testa dos barões e do povo de Inglaterra.»

Bagehot não tem dessas intuições retrospectivas, dessas vistas gerais locais; o que tem, é a compreensão, a adivinhação do maquinismo que vê funcionar. Tomando a Constituição inglesa como se fosse um relógio de catedral, outros saberão melhor a história desse relógio, o modo da sua construção, as alterações por que passou, as vezes que esteve parado, ou explicarão o simbolismo das figuras que ele põe em movimento, quando o seu poderoso martelo bate as horas do dia; ele, porém, conhece melhor o mecanismo atual, que simplifica explicando-o.

Bagehot, pode-se ver, era um espírito de afinidades e simpatias quase republicanas, como Grote, Stuart Mill, John Morley, e todo o radicalismo positivista inglês. Banqueiro de nascença, ele é um exemplo mais dessa singular atração para os estudos especulativos ou de política pura, que por vezes se notou na alta finança inglesa, com o próprio Grote, Mr. Goschen, ou Gladstone. O seu gênio era desses que renovam todos os assuntos que tratam. Não sei se me engano, mas acredito que a Constituição inglesa é uma esfinge, da qual foi ele quem decifrou o enigma.

As idéias que devo a Bagehot são poucas, mas são todas elas, por assim dizer, chaves de sistemas e concepções políticas, de verdadeiros estados do espírito moderno. Foi ele, por exemplo, quem me deu a idéia do que ele chamou governo de gabinete, como sendo a alma da moderna Constituição inglesa. «No governo de gabinete, diz ele, o Poder Legislativo escolhe o Executivo, espécie de comissão, que ele encarrega do que respeita à parte prática dos negócios e assim os dois poderes se harmonizam, porque o Poder Legislativo pode mudar a sua comissão, se não está satisfeito com ela ou se lhe prefere outra. E, no entanto -tal é a delicadeza do mecanismo-, o Poder Executivo não fica absorvido a ponto de obedecer servilmente, porquanto tem o direito de fazer a legislatura comparecer perante os eleitores, para que estes lhe componham uma Câmara mais favorável às suas idéias.»

Essa é a primeira idéia, ou grupo de idéias, que devia a Bagehot: o governo de gabinete, o gabinete comissão da Câmara, o gabinete saído da Câmara tendo o direito de dissolver a Câmara, dissolução ministerial (não a Coroa só, nem a Coroa com um gabinete contrário à Câmara): tudo, em suma, que depois daquele pequeno livro se tornou outros tantos lugares comuns, mas que ele foi o primeiro a revelar, a fixar.

É ele quem destrói os dois modos clássicos de explicar a Constituição inglesa: o primeiro, que o sistema inglês consiste na separação dos três poderes; o segundo, que consiste no equilíbrio deles. Sua idéia é que os dois poderes, o Executivo e o Legislativo, se unem por um laço que é o gabinete e que, de fato, assim só há um poder, que é a Câmara dos Comuns, de que o gabinete é a principal comissão. «O sistema inglês, diz ele, não consiste na absorção do Poder Executivo pelo Legislativo; consiste na fusão deles.» O rival desse sistema é o que ele chamou sistema presidencial. Essas designações são hoje usadas por todos, mas são todas dele. «A qualidade distintiva do governo presidencial é a independência mútua do Legislativo e do Executivo, ao passo que a fusão e a combinação desses poderes serve de princípio ao governo de gabinete.»

Cada uma das suas palavras, comparando os dois sistemas de governo, merece ser pesada. Resumindo essas páginas, eu contribuo de certo melhor para a educação dos jovens políticos, chamo a sua atenção para os problemas mais delicados, do que se lhes desse idéias minhas. «Comparemos primeiro, diz ele, esses dois governos em tempos calmos. Em uma época civilizada, as necessidades da administração exigem que se façam constantemente leis. Um dos principais objetos da legislação é o lançamento dos impostos. As despesas de um governo civilizado variam sem cessar e devem variar, se o governo faz o seu dever... Se as pessoas encarregadas de prever todas essas necessidades da administração não são as que fazem as leis, haverá antagonismo entre elas e as outras. Os que devem marcar a importância dos impostos entrarão seguramente em conflito com os que tiverem reclamando o seu lançamento. Haverá paralisia na ação do Poder Executivo, por falta de leis necessárias, e erro na da legislatura, por falta de responsabilidade: o Executivo não é mais digno desse nome, desde que não pode executar o que ele decide; a legislatura, por seu lado, desmoraliza-se pela sua independência mesma, que lhe permite tomar certas decisões capazes de neutralizar as do poder rival.»

Da desordem financeira que resulte dessa falta de inteligência entre o Executivo e o Legislativo e dessa fabricação de orçamentos sem o governo, quem é o principal interessado na perfeição da lei de meios, que é o responsável? A quem se pode responsabilizar ou afastar da gestão dos negócios públicos? «Não há ninguém a censurar senão uma legislatura, reunião numerosa de pessoas diversas, que é difícil punir e que estão armadas, elas mesmas, do direito de punir.» Na Inglaterra, o sistema é diferente. Em um momento grave, o gabinete pode recorrer à dissolução; na América, é preciso esperar com paciência, para se resolver qualquer conflito de opinião entre o Executivo e o Legislativo, que expire o prazo de um deles. Até lá eles guerreiam-se implacavelmente, como dois partidos rivais.

Suponha-se que não há motivo possível de conflito: «Os governos de gabinete são os educadores dos povos, os governos presidenciais não o são; pelo contrário, podem corrompê-los. Diz-se que a Inglaterra inventou esta fórmula: a oposição de Sua Majestade; que, primeiro, dentre todos os Estados, ela reconheceu que o direito de criticar a administração é um direito tão necessário na organização política como a própria administração. Essa oposição que se encarrega da crítica, acompanha necessariamente o governo de gabinete. Que magnífico teatro para os debates, que maravilhosa escola de instrução popular e controvérsia política oferece a todos uma Assembléia Legislativa! Um discurso que é aí pronunciado por um estadista eminente, um movimento de partido produzido por uma grande combinação política, eis os melhores modos conhecidos até hoje de despertar, animar e instruir um povo... Os viajantes que na América percorreram mesmo os Estados do Norte, isto é, o grande país onde se mostra por excelência o governo presidencial, observaram que a nação não tem gosto pronunciado pela política e que não se encontra uma opinião trabalhada com todo o acabado e toda a perfeição que se nota na Inglaterra... Sob um governo presidencial, o povo não tem senão um momento das eleições a sua parte de influência... Nada excita tal povo a formar para si uma opinião ou uma educação, como o faria sob um governo de gabinete. Sem dúvida a sua legislatura é um teatro para os debates, mas esses debates são como que prólogos não seguidos de peças; não trazem nenhum desfecho, porque não se pode mudar a administração; não estando o poder à disposição da legislatura, ninguém presta atenção aos debates legislativos. O Executivo, esse grande centro do poder e dos empregos, fica inabalável. Não se pode mudá-lo. O modo de ensino que, pela educação do nosso espírito público, prepara as nossas resoluções e esclarece os nossos juízos, não existe sob este sistema. Um país presidencial não tem necessidade de formar cada dia opiniões estudadas e não tem meio algum de as formar.» O mesmo se dá com a ação da imprensa, que também não pode deslocar a administração. Na Inglaterra, o Times tem feito muitos ministérios; nada de semelhante se podia dar na América... Ninguém se preocupa dos debates do Congresso, eles não dão resultado algum, e ninguém lê os longos artigos de fundo, porque não têm influência sobre os acontecimentos.

Mas não é só o Poder Legislativo que é fraco por essa divisão, é também o Executivo. «Na Inglaterra, um gabinete sólido obtém o concurso da legislatura em todos os atos que têm por fim facilitar a ação administrativa: ele é, por assim dizer, ele próprio, a legislatura. Mas um presidente pode ser embaraçado pelo Poder Legislativo e o é quase inevitavelmente. A tendência natural dos membros de toda a legislatura é impor a sua personalidade. Eles querem satisfazer uma ambição louvável ou censurável; querem, sobretudo, deixar vertígios da sua atividade própria nos negócios públicos.»

Além do enfraquecimento causado por esse antagonismo do Legislativo, o sistema presidencial enfraquece o Poder Executivo, diminuindo-lhe o seu valor intrínseco. «Os homens de Estado entre quem a nação tem o direito de escolher sob o governo presidencial são de qualidade muito inferior aos que lhe oferece o governo de gabinete, e o corpo eleitoral encarregado de escolher a administração é também muito menos perspicaz.»

Todas essas vantagens, porém, são ainda mais preciosas em tempos difíceis, do que nos tempos calmos: «Uma opinião pública bem formada, uma legislatura que infunda respeito, hábil e disciplinada, um Executivo convenientemente escolhido, um Parlamento e uma administração que não se embaraçam reciprocamente, mas que cooperam juntos, são vantagens cuja importância é maior quando se está a braços com grandes questões, do que quando se trata de negócios insignificantes: maior, quando se tem muito que fazer, do que um trabalho fácil. Acrescentemos, porém, que o governo parlamentar, em que existe um gabinete, possui, além disso, um mérito particularmente útil nos tempos tormentosos: o de ter sempre à sua disposição uma reserva de poder pronta para operar, quando circunstâncias extremas o exijam...»

«Sob um governo presidencial, nada semelhante é possível. O governo americano gaba-se de ser o governo do povo soberano; mas, quando aparece uma crise súbita, circunstância na qual o uso da soberania se torna sobretudo necessário, não se sabe onde encontrar o povo soberano. Há um Congresso eleito por um período fixo, que pode ser dividido em frações determinadas, de que se não pode apressar nem retardar a duração: há um presidente escolhido também por um lapso de tempo fixo e inamovível durante todo ele; todos os arranjos estão previstos de modo determinado. Não há em tudo isso nada de elástico; tudo, pelo contrário, é rigorosamente especificado e datado. Aconteça o que acontecer, não se pode precipitar, nem adiar. É um governo encomendado de antemão, e, convenha ou não, ande bem ou mal, preencha ou não as condições desejadas, a lei obriga a conservá-lo.»

Em tempo de guerra ou de relações diplomáticas complicadas, é que se vê o defeito desse sistema em toda a luz. Esse sistema, diz Bagehot, pode-se em uma palavra: -«governar pelo desconhecido». «Ninguém na América tinha a menor idéia do que podia ser mister Lincoln nem do que ele poderia fazer. Sob o governo de gabinete, pelo contrário, os homens de Estado principais são familiarmente conhecidos de todos, não somente pelos seus nomes, mas pelas suas idéias. Nós nem mesmo imaginamos que se possa confiar o exército da soberania a um desconhecido.»

Devo outras idéias a Bagehot. Antes de o ler, eu tinha o preconceito democrático contra a hereditariedade, o princípio dinástico e a influência aristocrática. Foi esse democrata que me fez compreender como o que ele chamou as partes imponentes da Constituição inglesa, «as que produzem e conservam o respeito das populações», são tão importantes como as eficientes, «as que dão à obra o movimento e a direção». Frases como estas gravam-se no pensamento: «Uma segunda e raríssima condição de governo efetivo é a calma do espírito nacional, isto é, essa disposição de espírito que permite atravessar, sem perder o equilíbrio, todas as agitações necessárias que as peripécias dos acontecimentos encerram. Nunca no estado de barbaria ou de meia civilização um povo possuiu essa qualidade. A massa da gente sem instrução na Inglaterra não poderia ouvir hoje tranqüilamente estas simples palavras: Ide escolher o vosso governo; semelhante idéia lhes perturbaria a razão e lhes faria recear um perigo quimérico. A vantagem incalculável (o itálico é meu) das instituições imponentes em um país livre é que elas impedem essa catástrofe. Se a nomeação dos governantes se faz sem abalo, é graças à existência aparente de um governo não sujeito à eleição. As classes pobres e ignorantes imaginam ser governadas por uma rainha hereditária e que governa pela graça de Deus, quando na realidade são governadas por um gabinete e um Parlamento composto de homens escolhidos por elas mesmas e que saem das suas fileiras.»

A pompa, a majestade, o aparto todo da realeza entrava assim para mim nos artifícios necessários para governar e satisfazer a imaginação das massas, qualquer que seja a cultura da sociedade; a realeza passava naturalmente para a classe das instituições a que Herbert Spencer chamou cerimoniais, como os troféus, os presentes, as visitas, as prosternações, os títulos, etc. «Nada mais pueril na aparência do que o entusiasmo dos ingleses pelo casamento do príncipe de Gales. Mas nenhum sentimento está mais em harmonia com a natureza humana. As mulheres, que compõe ao menos metade da raça humana, preocupam-se cem vezes mais de um casamento do que de um ministério.» E além: «Enquanto a espécie humana tiver muito coração e pouca razão, a realeza será um governo forte, porque se harmoniza com os sentimentos espalhados por toda parte, e a República um governo fraco, porque se dirige à razão.»

A idéia principal que recebi de Bagehot foi essa da superioridade prática do governo de gabinete inglês sobre o sistema presidencial americano: por outra, que uma monarquia secular, de origens feudais, cercada de tradições e formas aristocráticas, como é a inglesa, podia ser um governo mais direta e imediatamente do povo do que a república. «Uma vez que o povo americano escolheu o seu presidente, ele não pode mais nada, e o mesmo se dá com o colégio eleitoral que lhe serviu de intermediário.» A Câmara dos Comuns, essa, porém, faz e desfaz o gabinete, de modo que o governo está sempre nas mãos da representação nacional. Se se dá um desacordo entre eles, em que o ministério supunha ter de seu lado a opinião, dissolve a Câmara, e, dentro de dias, a nação se pronuncia. Comparados os dois governos, o norte-americano ficou-me parecendo um relógio que marca as horas da opinião, o inglês, um relógio que marca até os segundos.

Capítulo III

1871-1873. Na Reforma

Caí assim da Academia, tendo vencido o preconceito que torna relutante para certos espíritos a forma monárquica, isto é, o preconceito pela não-eletividade do chefe do Estado. Eu via claramente nessa não-eletividade o segredo da superioridade do mecanismo monárquico sobre o republicano, condenado a interrupções periódicas que são para certos países revoluções certas. Para não sair da relojoaria, a república era, para mim, um relógio de que fosse preciso renovar a mola no fim de pouco tempo; a monarquia, um relógio por assim dizer perpétuo. Não foi pequena aquisição esta que devi a Bagehot; sem ela, sem ter da monarquia parlamentar uma concepção que me fizesse aceitá-la como um aparelho mais sensível à opinião, mais rápido e mais delicado em apanhar-lhe as nuanças fugitivas, guardando ao mesmo tempo inalterável a tradição de governo e a aspiração permanente do destino nacional, eu teria sido arrastado irresistivelmente para o movimento republicano que começava. Ainda assim, não foi logo, de uma vez, que cheguei a dominar as minhas fascinações.

Em 1871 estava no poder o Ministério Rio Branco. Nesses três anos de 71, 72, e 73 escrevi na Reforma, por vezes, artigos políticos. Outras coisas, entretanto, me ocupavam então mais do que a política. A vida, a sociedade, o mundo, as letras, a arte, a filosofia mesmo, tinham para mim maior encanto do que ela. Desde muito moço havia uma preocupação em meu espírito que ao mesmo tempo me atraía para a política e em certo sentido era uma espécie de amuleto contra ela: a escravidão. Posso dizer que desde 1868 vi todo em nosso país através desse prisma. Nas três defesas de júri que fiz na Academia -o meu amigo Alberto de Carvalho há de rir-, alcancei três galés perpétuas. Eram todos crimes de escravos, ou antes imputados a escravos -devo ser coerente hoje com o que provavelmente disse no júri. No meu 5º ano no Recife levei a preparar um livro que ainda guardo, uma espécie de Perdigão Malheiro inédito, sobre a escravidão entre nós. Eu traduzia documentos do Anti-Slavery Reporter para meu pai que, de 1868 a 1871, foi quem mais influiu para fazer amadurecer a idéia da emancipação, formulada em 1866 em projeto de lei por S. Vicente (Pimenta Bueno). A iniciativa, o desejo de que se levasse a questão ao Parlamento, estou convencido, partiu do imperador, que não descansou enquanto o não conseguiu, a primeira vez de Zacarias, a Segunda de Rio Branco. Eu já disse uma vez que possuo o autógrafo, por letra dele, da carta em resposta aos abolicionistas franceses, carta que foi o ponto de partida de tudo. Eu tomava o maior interesse na atitude de meu pai nessa questão; desejava para ele a glória de ser pelo menos o Sumner brasileiro. Recordo-me do prazer que tive quando, em 1869, ele me referiu que se tinha posto de acordo com Sales Torres-Homem para moverem a idéia do Senado, e que Sales estava escrevendo sobre a escravidão um diálogo na forma de Platão.

Eu disse há pouco que não me tinha sido fácil desprender-me da minha atração para tudo que era democracia ultra. O imperador estava em 1871 a empreender a sua primeira visita à Europa. Um artigo que então escrevi na Reforma, com o título Viagem do Imperador, dá bem idéia de quanto era pequeno nesse tempo o meu ângulo de inclinação monárquica. É ainda um escrito de mocidade, não há nele senão mocidade, mas o traço individual que tem cada escritor já está fixo, não mudará mais; -não só não mudará mais, como, vinte anos depois, quando eu pensar em voltar, no escrever, à forma literária, é às medidas da minha frase dos vinte e um anos que hei de tornar. Esse artigo é quase republicano. As minhas novas idéias inglesas não estavam ainda senhoras, da casa, não tinham força para eclipsar as projeções, em parte fantásticas, que nesse tempo, com a sua lanterna mágica, Laboulave acabava de fazer do mundo americano. Por isso eu aconselhava ao imperador que, em vez de ir à velha Europa, fosse à jovem América:

«Sobretudo ele compreenderia uma coisa. Ao ver os estados Unidos à frente do progresso industrial e moral, compreenderia que os reis podem bem ser uma hipótese, um luxo, uma superfetação. Ao ver uma sociedade amplamente liberal e livre, governando-se sem rei, ele compreenderia que, em certas épocas, os povos podem dispensar qualquer tutela. Ao ver a família honrada e respeitada -eu referia-me à pureza do lar e ao respeito dos americanos pela mulher-, tornada uma religião; ao ver a religião feita o laço moral das almas e a trituração dos cultos chegando quase ao número dos indivíduos sem produzir outro efeito senão o de uma maior tolerância e maior fraternidade, ao ver a civilização crescendo» -em terra virgem- «como uma árvore de enormes raízes e de grande sombra; ao ver a vanguarda do progresso ocupada por uma república» -não merecia eu um primeiro prêmio-Laboulaye?-, «o imperador perderia o culto monárquico em que comungam os reis. Ao ver, por outro lado, esse poder que passa de um soldado para um lenhador, para um alfaiate, sempre o mesmo, íntegro e perfeito, ele, guardando o amor da família, que cresceria, porque já não era a dinastia, perderia o culto da hereditariedade.»


Essa era a minha linguagem aos vinte e um anos; nela encontra-se um mínimo de monarquismo e um máximo de republicanismo, o que produz esta preferência por uma monarquia sem hereditariedade, sem cerimonial, sem veneração, toda ao nível comum, como a magistratura popular da Casa Branca. É só gradualmente que a influência do sistema monárquico vai crescendo e prevalecendo sobre esse radicalismo espontâneo, esse igualitarismo inflexível. Aos 21 anos de certo eu não teria compreendido esta máxima política de meu pai no Senado: «A utilidade relativa das leis prefere à utilidade absoluta»; o relativo não existia para mim.

Nesses anos o Partido Liberal leva o Ministério Rio Branco para onde quer. Seguramente a opinião liberal teve muito mais poder sobre aquele Ministério do que sobre o Ministério Sinimbu ou qualquer outro do seu próprio partido, -exceto o Ministério Dantas, porque neste o presidente do Conselho era impressionável à menor censura do liberalismo. A verdade é que o Ministério Rio Branco foi um Ministério reformista como desde o Gabinete Paraná não se tinha visto outro e não se viu nenhum depois. O governo tinha o prurido das reformas, não talvez por inclinação própria, mas para desarmar a oposição liberal. Em dois pontos somente ele mostrou-se conservador, à moda antiga: na sua prevenção contra a eleição direta, que provavelmente era também do imperador, e em relação ao equilíbrio do Prata. Em sua política externa manteve firme a tradição conservadora, ou melhor, a política tradicional da Tríplice Aliança, e a maior probabilidade é que a política liberal da Aliança, continuando, depois da guerra, nos tratados de paz, teria criado uma situação no Prata muito diversa da situação estável e pacífica que resultou dessa mudança de atitude dos conservadores. Em tudo mais foi um Ministério inovador como o Partido Liberal não teria dado igual. O pano das reformas era fornecido pelos liberais; era todo de padrão liberal; mas o mestre conservador talhava nele com uma largueza de tesoura que faria chorar no poder toda a alfaiataria contrária. Na questão religiosa, principalmente, à atitude de Rio Branco só se poderia chamar conservadora por ser Pombalina, ultra-regalista. O Partido Liberal, em vez de exultar, dizia-se roubado, pleiteava as suas patentes de invenção, suas marcas de fábrica.

Nesse tempo, e durante alguns anos, o radicalismo me arrasta; eu sou, por exemplo, dos que tomam parte mais ativa na campanha maçônica de 1873 contra os bispos e contra a Igreja. Entro até nas idéias de Feijó, de uma Igreja nacional, independente da disciplina romana; faço conferências, escrevo artigos, publico folhetos. Não quisera mesmo hoje retirar uma só palavra do que disse então, advogando a liberdade religiosa mais perfeita; entendo ainda, hoje mais do que nunca, depois da esplêndida experiência do pontificado de Leão XIII, que a Igreja tem tudo a ganhar com a liberdade e que o futuro do mundo pode pertencer à aliança, já selada no atual pontificado, da Igreja católica com a democracia. Não é sob Leão XIII que o liberalismo há de mais ser suspeito, e provavelmente este pontificado não será um acidente feliz, mas sim um ponto de partida definitivo, a data de uma nova era na história do catolicismo. Do que preciso fazer renúncia, em favor das traças que o consumiram, é de tudo o que nesses opúsculos escrevi em espírito de antagonismo à religião, com a mais soberba incompreensão de seu papel e da necessidade, superior a qualquer outra, de argumentar a sua influência, a sua ação formativa, reparadora, em todo o caso consoladora, em nossa vida pública e em nossos costumes nacionais, no fundo transmissível da sociedade. Naquele tempo, porém, como teria eu acolhido uma manifestação como esta, cada vez mais verdadeira, mais de que só hoje sinto a profundeza e o alcance -do senador Nabuco, em 1860, no Senado: «Há duas necessidades, a meu ver, muito importantes na situação moral do nosso país: a primeira é a difusão do princípio religioso no interesse da família e da sociedade...?» Posso dizer, falando a nova gíria científica, que eu não tinha então nada de estático, era todo dinâmico.

Um ministério conservador que se encarrega de realizar as reformas liberais, produz, forçosamente, no campo liberal, uma grande confusão. Para quem começava, como eu, a vida política automática na imprensa e no clube do partido, a política do ministério pouco importava, o alvo continuava o mesmo; não obstante, instintivamente, pela voz do sangue, a discutir com o governo conservador que fazia as reformas liberais, eu preferia discutir com a fração que se separava do nosso partido para formar o Partido Republicano. Já nesse tempo a questão da forma de governo começa a dominar em mim todas as outras; eu só excetuaria a dos escravos, mas a lei de 28 de setembro estava votada e a ela se tinha seguido uma espécie de trégua dada à escravidão. Travo, então, na Reforma, um combate com a República, do ponto de vista monárquico. Se, em 1871, eu podia pretender, como disse, o prêmio americano Laboulaye, em 1873, no meu ano de fixação monárquica, eu entraria em concurso para o prêmio inglês Bagehot, com esses artigos também da Reforma. O seguinte trecho basta para mostrar, comparado ao da Viagem do Imperador, a mudança que eu tinha sofrido em dois anos:

«É preciso realmente ser iludido, ou pelas palavras ou pelos símbolos, para chamar ao rei do sistema parlamentar um tirano. Nem mesmo pode comparar-se um Lincoln com uma Vitória: o presidente americano governa, administra, tem à sua disposição milhares de empregos públicos, é o chefe de seu partido, tem uma responsabilidade inteira no governo e uma iniciativa poderosa; pode ser um Washington ou, se quiser, um Johnson. O soberano inglês não tem poder nenhum; o Parlamento indica-lhe o ministro que ele chama, não podendo chamar outro; esse ministro imposto torna-se o chefe de Estado, apresenta as leis a que o soberano não pode negar sanção, e dissolve a Câmara se ela lhe retira a confiança; e enquanto o ministro governa, o rei somente reina. Não terá esse tirano inglês muito menos poder do que o primeiro magistrado americano?»

Dessas idéias eu não devia sair mais, como se verá; não são como as de 1871, arrastamento, entusiasmo, paixão; são dessas formas do espírito que deixam mais a inteligência tomar outra forma; têm para ela a transparência, a clareza da evidência, como se fossem, e realmente são, primeiros teoremas de geometria política.

Capítulo IV

Atração do mundo

Nesses anos de mocidade a que me estou referindo, a política era, de certo, para mim uma forte excitação; em qualquer cena do mundo o lance político interessava-me, prendia-me, agitava-me; por isso mesmo, eu não era, nunca fui, o que se chama verdadeiramente um político, um espírito capaz de viver na pequena política e de dar aí o que tem de melhor. Em minha vida vivi muito da Política, com P grande, isto é, da política que é história, e ainda hoje vivo, é certo que muito menos. Mas para a política propriamente dita, que é a local, a do país, a dos partidos, tenho esta dupla incapacidade: não só um mundo de coisas me parece superior a ela, como também minha curiosidade, o meu interesse, vai sempre para o ponto onde a ação do drama contemporâneo universal é mais complicada ou mais intensa.

Sou antes um espectador do meu século do que do meu país: a peça é para mim a civilização, e se está representando em todos os teatros da humanidade, ligados hoje pelo telégrafo. Uma afeição maior, um interesse mais próximo, uma ligação mais íntima, faz com que a cena, quando se passa no Brasil, tenha para mim importância especial, mas isto não se confunde com a pura emoção intelectual; é um prazer ou uma dor, por assim dizer doméstica, que interessa o coração; não é um grande espetáculo, que prende e domina a inteligência. A abolição no Brasil me interessou mais do que todos os outros fatos de que fui contemporâneo; a expulsão do imperador me abalou mais profundamente do que todas as quedas de tronos ou catástrofes nacionais que acompanhei de longe; por último, não experimentei nenhuma sensação tão cheia, tão prolongada, tão viva, durante meses ininterrompidos, como a última revolta, quando se ouvia o canhão da guerra civil no mar e o silêncio ainda pior do terror em terra. Em tudo isto, porém, há muito pouca política; nesses três quadros, por exemplo, a política suspende-se; o que há é o drama humano universal de que falei, transportado para nossa terra. Não se poderia dizer isto da luta dos partidos, nem do que, exclusivamente, é considerado política pelos profissionais. Esta é uma absorção como a de qualquer hábito, circunscreve a curiosidade a um campo visual restrito: é uma espécie de oclusão das pálpebras. Esse gozo especial do político na luta dos partidos não o conheci; procurei na política o lado moral, imaginei-a uma espécie de cavalaria moderna, a cavalaria andante dos princípios e das reformas; tive nela emoções de tribuna, por vezes de popularidade, mas não passei daí: do limiar; nunca o oficialismo me tentou, nunca a sua deleitação me foi revelada; nunca renunciei a imaginação, a curiosidade, o diletantismo, para prestar sequer os primeiros votos de obediência; só vi de muito longe o véu jacinto e púrpura do Sanctum Sanctorum -(tão de longe, que me pareceu um velho reposteiro verde e amarelo)-, por trás do qual o presidente do Conselho contemplava sozinho face a face a majestade do Poder Moderador.

Isto quer dizer que a minha ambição foi toda em política de ordem puramente intelectual, como a do orador, do poeta, do escritor, do reformador. Não há, sem dúvida, ambição mais alta do que a do estadista, e eu não pensaria em reduzir os homens eminentes que merecem aquele nome em nossa política ao papel de políticos de profissão; mas para ser um homem de governo é indispensável fixar, limitar, encerrar a imaginação nas coisas do país e ser capaz de partilhar, se não das paixões, de certo dos preconceitos dos partidos, ter com eles a mais perfeita comunhão de vida, individuae vitae consuedudinem. Assim, quando eu tivesse, que não tive, as qualidades precisas, estava impedido para a política pela incompressibilidade do meu interesse humano. Politicamente, receio ter nascido cosmopolita. Não me seria possível reduzir as minhas faculdades ao serviço de uma religião local, renunciar a qualidade que elas têm de voltar-se espontaneamente para fora.

Assim, por exemplo, desses anos de minha vida, a que me refiro: em 1870, o meu maior interesse não está na política do Brasil, está em Sedan. No começo de 1871, não está na formação do Gabinete Rio Branco, está no incêndio de Paris. Em 1871, durante meses, está na luta pela emancipação, mas não será também nesse ano o Brasil o ponto da terra para o qual está voltado o dedo de Deus? Em 1872, o que me ocupa o espírito é o centenário d'Os Lusíadas; estou então imprimindo um livro sobre Camões, e a quem trabalha em um livro, apesar do seu nenhum valor literário, como o mostrou Teófilo Braga, não sobra muita atenção ou interesse para dar ao que acontece em redor de si. 1873 é o meu ano, como disse, de fixação monárquica, mas também -o que mostra que a razão amadurece por partes- o ano em que me atiro contra a Igreja com o furor iconoclasta da mocidade, supondo estar dizendo coisas novas, nunca ouvidas por ela em 19 séculos de luta, pensando que ela vai gemer sob os golpes das terríveis hipérboles que lhe arrojo em panfletos e artigos da Reforma: teocracia, invasão ultramontana, conquista jesuíta!... Apesar disso, o ano de 1873 é no meu registro o ano da primeira viagem à Europa, fato de metamorfose pessoal, que é em minha vida a passagem da crisálida para a borboleta.

Não posso mais -se feliz, se infelizmente, é uma questão que me levaria muito longe deslindar-, não posso mais sentir o que sentia aos 24 anos, quando pela primeira vez me fiz de vapor, hoje eu preferiria fazer-me de vela, para a Europa. Como já vi Leão XIII carregado na sedia gestatoria e tive a fortuna de falar longamente a sós com um papa, creio que não faria mais uma viagem para conhecer nenhum grande personagem, exceto, talvez, o imperador da China. Já que não vi um rei mouro em Granada, passo bem sem ter visto Abdul-Hamid no Bósforo. Mesmo o imperador da China talvez eu me contentasse em conhecê-lo pela imagem que me dariam dele, se eu o avistasse, dois rising men da alta diplomacia européia, de quem sou amigo, que tiveram ocasião de penetrar no recinto inviolável e de estudar a infantil figura do Incognoscível sob as aflições da guerra japonesa. O que me interessa nele, bem se pode imaginar, não é o seu trono de almofadas de seda, o seu porta-voz, os seus cachimbos, os seus perfumadores, os seus colares; é a originalidade que o envolve, maravilhosa como o próprio sobrenatural, é a psicologia acumulada de séculos.

Em 1873, porém, a minha ambição de conhecer homens célebres de toda ordem era sem limites; eu tê-los-ia ido procurar ao fim do mundo. Do mesmo modo, com os lugares. O que eu queria, era ver todas as vistas do globo, tudo o que tem arrancado um grito de admiração a um viajante inteligente. Nessa qualidade de câmara fotográfica só lastimava não ter o dom da ubiqüidade. Esta febre itinerante passou-me também. Posso ler, sem perigo, qualquer geografia nova, o Elisée Reclus inteiro; é só uma boa página de Pausânias ou de Estrabão, com os seus nomes antigos, que me perturba ainda. Os mais preciosos livros da minha estante íntima são os meus Baedekers; diversos lugares aí estão marcados com um sinal, e se eu pudesse, tomaria ainda, para visitá-los, o bilhete (hoje não se diz mais o bastão) do peregrino; mas são os lugares somente a que está associada -há anos eu teria dito uma impressão de minha vida- uma das grandes impressões da humanidade, uma das suas revelações na arte, ou na religião.

O que em matéria de viagem, de paisagens me tentaria hoje -quem sabe se não é uma pura restituição de um atavismo longínquo? o meu avô materno, que se transplantou em 1530 para Pernambuco e fundou o morgado do Cabo, João Pais Barreto, era de Viana -seria, talvez, o Lima, se eu tivesse certeza de ter diante dele a mesma impressão dos soldados romanos que chamaram às suas margens Campos Elísios e lhe deram o belo nome de Letes. A verdade é que sinto cada dia mais forte o arrocho do berço: cada vez sou mais servo da gleba brasileira, por essa lei singular do coração que prende o homem à pátria com tanto mais força quanto mais infeliz ela é e quanto maiores são os riscos e incertezas que ele mesmo corre.

Nesse tempo, porém, na minha era antes de Cristo, em pleno politeísmo da mocidade, o mundo inteiro me atraía por igual; cada nova fascinação da arte, da natureza, da literatura e, também, da política, era a mais forte; eu quisera conhecer as celebridades de todos os partidos. Depois do papa, a mais nobre figura da Europa era para mim o conde de Chambord, que acabava de rejeitar a coroa de França para não repudiar a bandeira branca; um Henrique V, bem pouco parecido com Henrique IV, e, no entanto, eu contava como uma boa fortuna à noite que passei no salão de monsieur Thiers1.

A viagem à Europa em tais condições não podia deixar de ser para mim, como foi, o eterno impulso dado ao pêndulo imaginativo. Pelo sentimento, pela atitude, pelo emprego da vida, acredito ter sido, em meu plano inferior, uma das mais consistentes figuras de nossa política; acredito mesmo que passarei nela como um homem de uma só idéia persona unius dramatis, porquanto a minha fidelidade monárquica pode ser considerada, como a de André Rebouças, ainda um último compromisso, uma gratidão, um episódio da libertação dos escravos. Quanto às afinidades espontâneas, porém, às simpatias naturais, ao movimento interior do espírito, dificilmente se encontrará um pêndulo que descreva um raio de oscilação mais largo do que a minha imaginação e a minha curiosidade. O que é um homem político assim diletante, viajante, a quem tudo atrai igualmente, que admira as grandes construções sociais, qualquer que seja o sistema da arquitetura, convencido de que em todos há o mesmo espírito, porque o espírito criador é um só?

Nós, brasileiros, o mesmo pode-se dizer dos outros povos americanos, pertencemos à América pelo sedimento novo, flutuante, do nosso espírito, e à Europa, por suas camadas estratificadas. Desde que temos a menor cultura, começa o predomínio destas sobre aquele. A nossa imaginação não pode deixar de ser européia, isto é, de ser humana; ela não pára na Primeira Missa no Brasil, para continuar daí recompondo as tradições dos selvagens que guarneciam as nossas praias no momento da descoberta; segue pelas civilizações todas da humanidade, como a dos europeus, com quem temos o mesmo fundo comum de língua, religião, arte, direito e poesia, os mesmos séculos de civilização acumulada, e, portanto, desde que haja um raio de cultura, a mesma imaginação histórica.

Estamos assim condenados à mais terrível das instabilidades, e é isto o que explica o fato de tantos sul-americanos preferirem viver na Europa... Não são os prazeres do rastaquerismo, como se crismou em Paris a vida elegantes dos milionários da Sul-América; a explicação é mais delicada e mais profunda: é a atração de afinidades esquecidas, mas não apagadas, que estão em todos nós, da nossa comum origem européia. A instabilidade a que me refiro, provém de que na América falta à paisagem, à vida, ao horizonte, à arquitetura, a tudo o que nos cerca, o fundo histórico, a perspectiva humana; que na Europa nos falta a pátria, isto é, a forma em que cada um de nós foi vazado a nascer. De um lado do mar sente-se a ausência do mundo; do outro, a ausência do país. O sentimento em nós é brasileiro, a imaginação européia. As paisagens todas do Novo Mundo, a floresta amazônica ou os pampas argentinos, não valem para mim um trecho da Via Ápia, uma volta da estrada de Salermo a Amalfi, um pedaço do Cais do Sena à sombra do velho Louvre. No meio dos luxos dos teatros, da moda, da política, somos sempre squatters, como se estivéssemos ainda derribando a mata virgem.

Eu sei bem, para não sair do Rio de Janeiro, que não há nada mais encantador à vista do que, ao acaso, a escolha seria impossível, os parques de S. Clemente, o caminho que margeia o aqueduto de Paineiras na direção da Tijuca, a ponta de S. João, com o Pão de Açúcar, vista do Flamengo ao cair do sol. Mas tudo isto é ainda, por assim dizer, um trecho do planeta de que a humanidade não tomou posse; é como um Paraíso Terrestre antes das primeiras lágrimas do homem, uma espécie de jardim infantil. Não quero dizer que haja duas humanidades, a alta e a baixa, e que nós sejamos desta última; talvez a humanidade se renove um dia pelos seus galhos americanos; mas, no século em que vivemos, o espírito humano, que é um só e terrivelmente centralista, está do outro lado do Atlântico; o Novo Mundo para tudo o que é imaginação estética ou histórica é uma verdadeira solidão, em que aquele espírito se sente tão longe das suas reminiscências, das suas associações de idéias, como se o passado todo da raça humana se lhe tivesse apagado da lembrança e ele devesse balbuciar de novo, soletrar outra vez, como criança, tudo o que aprendeu sobre o céu da Ática...

Em um soberbo livro espanhol, que faz honra à Sociedade de Jesus, Pequeñeces, romance de um padre jesuíta, que é um grande autor, L. Coloma, há um personagem que diz a cada instante -Usted me entiende. Todos nós temos algum conhecido que pontua as suas frases com esse fatigante entende? que os nervos de marquês de Paraná não podiam suportar. O entende? do indivíduo que quer forçar o ouvinte a nada perder do que ele diz, é muito diverso da fórmula habitual com que o imbecil marquês de Villamelon exprimia o que lhe faltava força para pensar. Há também pontos, idéias, modo de sentir que o escritor desejaria expressar por um lado Usted me entiende, levantando apenas a ele vagamente, sem nada precisar, de fato, sem nada dizer. Cada um de nós é só o raio estético que há no interior do seu pensamento, e, enquanto não se conhece a natureza desse raio, não se tem idéia do que o homem realmente é. Nesta confissão da minha formação política, devo, para não deixar ver somente a máscara, o personagem, dar uma espécie de fotografia dos símbolos que se imprimiram e reproduziram mais profundamente no meu cérebro. Assim se reconhecerá que a política não foi senão uma refração daquele filete luminoso que todos temos no espírito.

A instabilidade a que me estou referindo, está grandemente modificada; a dualidade desapareceu em parte, não tão perfeitamente como em meu amigo Taunay... Este, apesar de seu sangue de cruzado, apesar de ter escrito o seu livro clássico em francês, e apesar da sua brilhante propaganda contra o nativismo, é o mais genuíno nativista que eu conheço, porque não compreende sequer a vida em outra terra, em outra natureza. Brasileiro de uma só peça é aquele que não pode viver senão no Brasil. Na mocidade fui um errático, como o próprio imperador acabou na velhice... Quando, porém, entre a pátria, que é o sentimento, e o mundo, que é o pensamento, vi que a imaginação podia quebrar a estreita forma em que estavam a cozer ao sol tropical os meus pequenos debuxos d'almas, Usted me entiende, deixei ir a Europa, a história, a arte, guardando do que é universal só a religião e as letras.

Primeira viagem à Europa

De diversos modos a minha primeira ida à Europa influiu para enfraquecer as tendências republicanas que eu porventura tivesse, e fortificar as monárquicas. Antes de tudo, o republicanismo francês, que era e é o nosso, tem um fermento de ódio, uma predisposição igualitária que logicamente leve à demagogia -a sua maior figura é Danton, o homem da Setembrizada-, ao passo que o liberalismo, mesmo radical, não é só compatível com a monarquia, mas até parece aliar-se com o temperamento aristocrático. Se fosse preciso personificar o liberalismo, poder-se-ia chamar-lhe Lafayettismo, por ter sido Lafayette o principal representante dos gentilhommes libéraux de 1789. Esse estreito republicanismo, que confina nos dias de crise com a demagogia, e, exasperado pelo perigo ou excitado pela posse repentina, imprevista, do poder, chega à epidemia sanguinária do Terror, é um fato, pode-se dizer, de reclusão mental: dá-se somente quando o espírito se encerra em algum sistema filosófico ou fanatismo religioso, em uma doutrina ou em uma previsão social qualquer, e aí se isola inteiramente do mundo externo. A intolerância é, ou era, o característico do republicanismo agressivo francês, e a intolerância é uma fobia da liberdade e do mundo; é um fenômeno de retração intelectual, produzindo a hipertrofia ingênua da personalidade.

É provável que em mim também existisse o embrião republicano; não duvido que, nascido em outra condição, não tivesse meu pai na mais alta hierarquia da política, se não descobrisse, como tantos outros que se revoltaram, modo de vencer o terrível multi sunt vocati, pauci vero electi da antiga oligarquia, eu também tivesse acompanhado o movimento republicano de 1870, do qual faziam parte alguns dos espíritos que me fascinavam. Se assim fosse, porém, estou certo que o movimento abolicionista me teria, mais tarde, destacado dele, e que o 13 de maio me identificaria com a sorte da monarquia libertadora. Se, apesar de tudo, eu me tivesse conservado republicano até 15 de novembro -nascesse eu em que condição nascesse, uma vez que fosse o mesmo que sou, isto é, que tivesse recebido no berço os mesmos rudimentos d'alma-, não tenho a menor dúvida de que o abalo, o choque do desterro do imperador teria posto fim à minha fantasia republicana e restabelecido a sinceridade e a lucidez dos meus sentidos políticos. Como quer que fosse, a viagem de 1873 destruiu no gérmen toda e qualquer inclinação republicana, todo indício de fanatismo que eu pudesse ter no segredo da minha natureza.

Não durou muito tempo essa viagem; foi apenas de um ano. A situação de espírito que ela criou já tinha antecedentes nas minhas relações com a pequena roda em que vivia então o corpo diplomático em Petrópolis e na corte, na convivência com ministros e secretários estrangeiros, alguns deles hoje ministros, e até embaixadores. A situação de espírito cosmopolita ou, antes, mundana, caracteriza-se pela compreensão das soluções opostas dos mesmos problemas sociais, pela tolerância de todas as opiniões, pela igual familiaridade com correligionários e adversários, pela idéia, para dizer tudo, de que acima de quaisquer partidos está a boa sociedade. Esse modo de ser, em política, não é necessariamente eclético, nem, ainda menos, cético; é somente incompatível com o fanatismo, isto é, com a intolerância, qualquer que ela seja. Foi a viagem à Europa a grande deslocação que consolidou a tendência anti-sistemática em que eu já estava, amortecendo em mim o predomínio da força política até 1879, quando pela primeira vez entro para o Parlamento; mesmo no Parlamento, porém, depois do ano de estréia, em que as emoções da tribuna me fizeram tomar calor e interesse pela luta dos partidos, desde 1880 até 1889, quando se fechou definitivamente para mim aquela carreira, posso dizer que o efeito da minha deslocação, de 1873, da política partidária, porque todo o tempo que estive na Câmara me acolhi sob uma bandeira mais larga e me coloquei em um terreno politicamente neutro, como era o da emancipação dos escravos.

Essa viagem que assim imprime à minha evolução política o seu caráter definitivo, durou, como eu disse, pouco tempo. Partindo em agosto de 1873, volto ao Rio de Janeiro em setembro de 1874. É menos de um ano de Europa que tenho da primeira vez; desses onze meses, mais ou menos, passo cinco em Paris, três na Itália, um mês no lago de Genebra, um mês em Londres, um mês em Fontainebleau. A razão desse mês de Ouchy e desse mês de Fontainebleau é que, em viagem, sempre que um lugar me fala, eu me deixo prender por ele e me esqueço de viajar. É assim que, mais tarde, pretendo dar ao Niagara a hora indispensável para ver as quedas, me deixo ficar vinte e tantos dias, sem poder arrancar-me daquele espetáculo até o ter inteiramente absorvido.

O mês de Ouchy quer dizer, sem falar de Lausanne, que os primeiros passeios a pé, à beira do lago, de um lado na direção de Coppet, do outro, na direção de Clarens, as visitas a Genebra com a romaria obrigada a Ferney, me colocavam no teatro literário, talvez o mais interessante da Europa moderna, depois de Weimar, porque Clarens é o cenário da Nova Heloísa, e está cheio de eloqüência de Rousseau; Ferney, o dos últimos anos de Voltaire; Coppet, o da realeza de Corinna com a sua corte vinda de Paris, da Alemanha, da Itália, não esquecendo lorde Byron. Mais do que tudo, porém, nessa faixa de terra que liga intelectualmente o século XVIII ao século XIX, o que me teria prendido eternamente a Ouchy, se eu dispusesse de algumas eternidades nesta vida é o lago, o seu corte, a sua moldura.

O mês de Fontaneibleau tem outra explicação: não é o castelo e a floresta só por si o que me prende; é que volto da Inglaterra, tendo pela primeira vez falado inglês com todo o mundo, fascinado por Londres, tocado de um começo de anglomania, que foi a doença da sociedade em França, e, portanto, até isso, acusa a construçãofrancesa do meu espírito, e Fontaneibleau, com o repouso dos seus jardins simétricos, a frescura de suas águas e das suas sombras, a tranqüilidade do seu silêncio, era o mais admirável retiro que eu podia querer nesse mês da minha vida, que posso chamar do mês de Thackeray. Foi esse o claustro ideal em que, fechado com Vanity Fair, Pendennis, The Newcomes, não sei o que mais, sem dicionários, adivinhando o que não podia traduzir, compreendendo tudo, esgotei em mim mesmo até as lágrimas a impressão do grande romancista inglês -o que fiz depois com George Eliot e Trollope, mas nunca fiz, sinto dizê-lo, com Dickens, nem com sir Walter Scott.

De certo, em minutos pode abrir-se e fechar-se diante dos nossos olhos um espetáculo que não esqueceremos nunca. Percorri em meses a Itália, as grandes capitais antigas somente, sinto também dizê-lo; não fiz sequer a romaria de arte pela Umbria; estive duas horas diante dos quatro monumentos da velha Pisa, que inspiraram a Taine a sua página mais eloqüente: como esquecer, no entanto, essa revelação imorredoura? Keats não disse tudo com o seu verso:

A thing of beauty is a joy for ever?



Não só o que é verdadeiramente belo é «essa alegria», de que ele fala, «para sempre», um raio interior que se incorpora à vida para nunca mais se apagar, quaisquer que sejam as tempestades, dela, como também uma só thing of beauty, um único fragmento da verdadeira beleza, basta para iluminar a existência humana inteira. Nenhum homem terá compreendido bem duas grandes obras d'arte: a coluna grega e a ogiva gótica, um Miguel Angelo e um Piero della Francesca, nem tampouco duas vistas diferentes de natureza: o oceano e os lagos de montanha; as paisagens da neve e os céus do Oriente. Em caso algum, porém, pode-se sentir uma obra de arte de passagem, isto é, sem que ela produza em nós uma vibração correspondente ao esforço, à sensação do criador quando a compôs.

Como é que em minutos nos poderia penetrar a impressão do artista que levou anos para realizar seu pensamento, e morreu ainda agitado por ele? Eu olhei, por exemplo, para a catedral de Reims, com Rodolfo Dantas, em um dia que roubamos a Paris, linguagem do bulevar; parei para ver a catedral de Amiens; roubei outro dia a Paris para fazer a volta da catedral de Rouen; fui a Strasburgo avistar o grande Münster de Erwin von Steibach; com Artur de Carvalho Moreira, um dos mais finos espíritos da nossa geração acadêmica, fiz uma vez a tournée dos castelos históricos do Loire: Chenonceux, Amboise, Blois, Chambord. Horas para tudo isso! Para Francisco I, Diana de Poitiers, a Renascença Francesa! Mais tarde, por não querer apressar-me assim, não fiz com o mesmo companheiro, o qual deu anos de sua vida intelectual exclusivamente aos goethekenners, a visita as cidades de Goethe: Frankfort, Leipzig -Strasburgo, vi, mas sem pensar em Frederica-, Wetzlar e Weimar. Por toda a parte, posso dizer, passei, como passei em 1892, por Coimbra, Alcobaça, Mafra, a Batalha, sem deixar sequer às impressões o tempo de se gravarem no espírito. Uma hora para a catedral de Reims! só não foi um ultraje, uma ofensa àquela divina fachada, porque lá estive em verdadeira humilhação, e não lancei olhares críticos ao seu sublime portal, a toda a sua incomparável legenda, como o gamin lhe atira pedras. Uma hora em Amiens! nesse «Partenão da literatura gótica», como lhe chamou Viollet-le-Duc, e levando na mão a Bíblia de Amiens de John Ruskin, o qual chega a invejar o humilde guarda, cuja função é espanar-lhe as esculturas de madeira, como nunca outras foram talhadas!

De passagem, pode-se ver muita coisa, mas não se tem a revelação de nada. A primeira condição para o espírito receber a impressão de uma grande criação qualquer, seja ela de Deus, seja das épocas -nada é puramente individual-, é o repouso, a ocasião, a passividade, o apagamento do pensamento próprio; dar à forma divina o tempo que ela quiser para refletir-se em nós, para deixar-nos compreendê-la e admirá-la, para revelar-nos o pensamento originário donde nasceu.

De todos esses lugares da Suíça ou da Itália, de Fontaneibleau, de Paris, de Londres, não trago senão impressões literárias, impressões de vida; o grande efeito em mim dessa viagem é assim apagar a política; suspender durante um ano, inteiramente, a faculdade política, que, uma vez suspensa, parada, está quebrada e não volta mais a ser a mola principal do espírito. Eu não podia entretanto estar em França, em uma época de transformação, como foi essa de 1873-74, e às vezes, em contato com homens políticos, nem penetrar na sociedade inglesa, sem que a grande política européia exercesse uma influência positiva sobre o meu espírito, além da modificação operada negativamente, como eu disse, pelo meu afastamento do nosso cenário local e pela sensação d'arte. Apesar de tudo, eu tinha afinidades políticas inapagáveis, que poderiam, quando muito, ficar secundárias, subordinadas à atração puramente intelectual. Dessa modificação positiva falarei agora.

Capítulo VI

A França de 1873-1874

A época em que eu pela primeira vez tinha Paris por menagem, era historicamente tão interessante que um espírito sujeito como o meu a fortes tentações políticas não poderia deixar de voltar-se para o espetáculo dos acontecimentos, apesar dos meus deslumbramentos artísticos e literários. Compreende-se, porém, que a atração contrária à política era ainda mais poderosa, pela novidade, pelo esplendor das suas revelações contínuas, do que o próprio drama contemporâneo. No Rio de Janeiro ou em S. Paulo, quem se alimente de política, quando a sensação de um grande acontecimento se apossa dele, não encontra nada em redor de si que a corrija ou lhe sirva de contrapeso; felizmente, os acontecimentos raros são grandes. Para um jovem brasileiro, porém, que pela primeira vez chega a Paris, é quase impossível imaginar acontecimento que possa torná-lo indiferente ao maravilhoso que o surpreende a cada passo, ou sensação política que não fosse amortecida, dominada logo, pela sensação de arte.

Realmente, a luta entre o duque de Broglie e monsieur Thiers, o teatro do palácio de Versalhes convertido em Assembléia Nacional, o Trianon dando as suas salas para o conselho de guerra de Bazaine, atraíam-me, e fui um dos mais ansiosos espectadores que assistiram nessa época aos debates daquela assembléia, ou que participaram da emoção daquele grande processo militar, apesar de tudo pouco generoso.

Nunca hei de esquecer as frias manhãs de novembro em que o meu querido amigo José Caetano de Andrade Pinto, depois conselheiro de Estado, e eu atravessávamos de carro aberto as alamedas de Versalhes para tomar os nossos lugares na própria tribuna do marechal Bazaine, por detrás dele, quase os únicos que, talvez por lhe sermos estranhos e sermos estrangeiros, tínhamos a coragem de acompanhar daquele lugar os interrogatórios, a acusação e a defesa. No último momento, quando se mandou fechar a tribuna particular do marechal, passamos para o prétoire. Que emoção a nossa quando o duque d'Aumale, de pé, como todo o Conselho, que formava semicírculo em torno dele, a fita vermelha da Legião de Honra passada sobre o grande uniforme, o chapéu de plumas na cabeça como em um campo de batalha, na mão uma grande folha de papel sobre a qual se projetava o refletor de uma lâmpada sustentada por trás dele por um imponente vulto de huissier, com a solenidade de quem depois de um exílio de vinte e cinco anos representava outra vez perante a França, leu os três Oui, à l'humanimité, que sibilaram pela sala toda como as balas de um pelotão!

Também me hei de lembrar sempre da sessão da Assembléia Nacional em que se votou o setenato de Mac-Mahon como medida provisória, dilatória, entre a restauração, temporariamente impossibilitada por causa da bandeira branca, e a república, que não queriam proclamar. Se nesses sete anos morresse o conde de Chambord, regnante ainda o duque de Magenta, quem sabe se o conde de Paris não reuniria os votos dos Chevaulégers e da alta finança do Centro Esquerdo! Afianço a quem me lê que, depois de um discurso pronunciado pelo duque de Broglie, com o seu acento nasal, a sua perfeição acadêmica, sua maneira e suas maneiras ancien régime, ver subir à tribuna o velho Dufaure e de improviso, sem frases cadenciadas, sem períodos embutidos uns nos outros como um mosaico literário, tomar entre as mãos o discurso do neto de Mme de Staël, amassá-lo, dar-lhes as formas que queria, até ninguém mais o poder reconhecer; assistir a um duelo desses, da elegância com a eloqüência, é um prazer que não se esquece mais. E não ouvi Berryer! Ali, em Versalhes, eu encontrava ainda os restos da grande geração parlamentar que começou na Restauração e que trouxe as suas tradições, a sua escola de oratória, para as Câmaras de Luís Filipe. Tudo isto, não é preciso dizê-lo, me interessava no mais íntimo de mim mesmo, intelectualmente, falando, mas um simples relance sobre quaisquer páginas do meu diário nessa época basta para mostrar quanto o meu interesse se dividia e o meu espírito era solicitado em direções contrárias por sensações quase do mesmo valor.

Assim, por exemplo (o itálico é para mostrar as oposições repentinas): «19 de novembro. A sessão do Setenato (em que foi votada a prorrogação dos poderes do marechal).- 21 de novembro - Começo a ir ao processo Bazaine.- 22 de novembro. Visita a Ernesto Renan.- 2 de janeiro (1874) Chateauroux - 3 de janeiro. De manhã. Route de la Châtre. Bosques de álamos batidos pela ventania. Em Nohant às 11 horas. Esperavam-me desde a véspera, tinham um aposento para mim. Maurice Sand, a mulher filha de Calamatta. Fazem-me almoçar. Ao meio-dia, vem George Sand. Conversamos até as 3 horas. Pediu-me para ficar algum tempo em Nohant. Falamos de Renan, de Jaconde, do teatro, de Bressant, do imperador, que ela não viu.- 4 de janeiro. Orleans, Catedral. Casas de Jeane d'Arc, Agnès Sorel, Diane de Poitiers. Notícia da queda de Castelar...- 3 de janeiro. Fomos ao château de Chambord. Escadaria de pedra à double rampe. Os FF e as Salamandras de Fransisco I. O Bourgeois Gentilhomme, 1970. Souvent femme varie. Château de Blois. Quarto de Henrique II. Escada exterior espiral. Renascença Francesa.- 10 de janeiro. Visita a monsieur Thiers».

Talvez o dia em que viram pela primeira vez a Vênus de Milo ou a Jaconde tenha passado indiferente para muitos que notaram as suas menores impressões políticas. Eu, porém, não poderia sequer lembrar-me de que fora político diante do mármore dos mármores ou do colorido que se esvai e de um traço que se apaga de Leonardo. Na própria política eu achava-me dividido pela mais positiva dualidade que se pudesse dar. De sentimento, de temperamento, de razão, eu era um tão exaltado partidário de Thiers como qualquer republicano francês; pela imaginação histórica e estética era porém legitimista; isto é, perante o artista imperfeito e incompleto que há em mim, a figura do conde de Chambord reduzia a de Thiers a proporções moralmente insignificantes. Quando em um mesmo homem há um lírico e um político, a lenda tem para ele uma projeção duas vezes maior que a da história.

Nesse espaço de tempo a que me refiro, a República estava ainda em questão em França; Thiers havia sido forçado a demitir-se, e a sua substituição, com surpresa dele, recaíra no seu general-chefe, que dispunha, absolutamente, do exército, o marechal de Mac-Mahon. A reconciliação do conde de Paris com o chefe da casa de França tinha-se efetuado em Frohsdorf, em 5 de agosto; os cavalos para a entrada solene do rei em Paris estavam sendo negociados, quando o Ministério recuou, sentindo-se sem forças para impor aos soldados a bandeira branca. A Restauração, pode-se dizer, tinha abortado; mas, de um momento para outro, Henrique V podia inspirar-se no precedente de Henrique VI e aceitar a bandeira da Revolução. Ainda há pouco, o general du Barail, que era o ministro da guerra do duque de Broglie, confessou que, se o conde de Chambord tivesse querido, não era o setenato, era sim, a monarquia que teria sido aclamada.

«O marechal, escreve ele, estava convencido de que o príncipe cedera a uma consideração patriótica: ao receio de atrair sobre o seu país a animosidade e até as armas da Alemanha.» O testemunho recente do duque de Broglie e do embaixador em Berlim, o conde de Gontaut-Biron, indicam isso mesmo, que o conde de Chambord viu que a Restauração seria guerra com a Alemanha e quis poupar à França uma Segunda e pior mutilação. Quem sabe, também, à vista dessas revelações diplomáticas, se não foi esse mesmo o motivo secreto superior de Thiers para desertar a Monarquia?

Quem viu o velho estadista empenhar-se na consolidação da República com todo o seu prestígio e o seu poder de persuasão, desde que levantara a França dos campos de batalha onde jazia ferida e retirara do poder da Comuna Paris ainda em chamas, pode pensar que não se dá toda essa dedicação a uma causa que não se tenha intimamente a peito. A verdade é que, se Thiers tivesse empregado em restaurar a monarquia a metade do esforço e do trabalho que empregou em consolidar a República, a realeza provavelmente teria sido proclamada, talvez ainda em Bordéus. Durante muito tempo ele manteve-se como o fiel da balança entre os partidos. Não se pode ler sem emoção esses seus discursos de 1871, quando ele se vê entre os dois lados da Assembléia e inventa distinções para impedir que eles se tratem como inimigos diante do invasor estrangeiro, todas essas distinções sutis, como entre constituir e reorganizar, entre renunciar e reservar o poder constituinte.

Eu era como político francamente thierista, isto é, em França, de fato republicano. Isto não quer dizer, porém, que me sentisse republicano de princípio; pelo contrário. A Terceira República em França foi fundada por monarquistas; foi uma transação de estadistas monárquicos, como Thiers, Dufaure, Rémusat, Léon Say, Casimir Périer, Waddington, e todo o Centro-Esquerdo.

«Soa como um paradoxo, escreveu, com admirável lucidez, um dos hábeis redatores da Quaterly Review em 1890, mas não é por isso menos exato, que a principal barreira diante de uma restauração monárquica em França é o crescente conservatismo que foi sempre inerente ao caráter francês no meio de todas as ebulições do sentimento excitado. O povo sabe que uma mudança na forma de governo só poderia ser realizada por meio de uma revolução ou como resultado de uma guerra, e recua diante da perspectiva de uma e outra eventualidade, preferindo aceitar o presente estado de coisas, ainda que este não lhe desperte entusiasmo.»


Esse espírito conservador da França, inimigo das mudanças bruscas, mesmo para melhorar, é bem caracterizado por esta anedota, como a contou há anos um correspondente do Times. Durante as barricadas de junho, quando se ouvia o canhão nas ruas de Paris, mandaram uma companhia guardar o Ministério de Estrangeiros. O oficial que comandava, de espada desembainhada, entrou na Secretaria, mas parou à porta de uma das salas, vendo que os empregados continuavam tranqüilamente em suas mesas de trabalho, como se nada estivesse acontecendo. Vendo-o, o diretor levanta-se com uma porção de papéis, prontos para a assinatura do ministro, aproxima-se dele e, inclinando-se, pergunta-lhe com a maior deferência e naturalidade: «É ao novo governo que tenho a honra de dirigir-me?»

Era esse conservatismo que pelo órgão, principalmente, de Thiers fundava então a Terceira República; o mesmo que não deixou ainda divorciar-se dela o espírito da burguesia liberal -espírito a que se pode chamar Centre-Gauche-, nenhum analista negará que a quintessência desse conservatismo fosse monárquica, mais sinceramente monárquica do que o espírito de fronde das côteries restauradoras.

Essa primeira grande escola estrangeira em que aprendi, não me podia fazer republicano de sentimento, como não fez republicano de sentimento a nenhum dos seus fundadores, como não fez, nem faz, republicanos aos liberais conservadores ingleses, ou às testas coroadas da Europa, que, sem má vontade à França, preferem a República à Realeza ou ao Império; como não faz republicano ao papa, que protege poderosamente o atual sistema francês. O grande efeito sobre mim daquela atitude de Thiers e dos parlamentares da Monarquia de Julho era dar-me uma grande prova experimental de que a forma de governo não é uma questão teórica, porém prática, relativa, de tempo e de situação, o que em relação ao Brasil era um poderoso alento para a minha predileção monárquica. O grande efeito era este: destruir o gérmen republicano latente, gérmen de intolerância e de fanatismo. E esse foi o grande serviço de Thiers à França moderna: o de acabar com o antigo monopólio jacobino sobre a idéia republicana.

É o mesmo escritor da Quarterly quem finalmente observa: «Ainda que, por um lado, o genuíno sentimento realista esteja quase extinto, por outro, o sentimento republicano também por sua vez esfriou. A nova geração é republicana no sentido de não acreditar na possibilidade de uma restauração monárquica; o ardente republicanismo dos velhos doutrinários, esse, porém, está quase tão morto como a advocacia do direito divino dos reis». Essa modificação, que está hoje terminada, começou em 1871, e foi o resultado da adesão, não foi conversão, do Centro-Esquerdo à situação republicana criada para a França na Europa pela derrota de Sedan. Esse duplo e igual esfriamento e do republicanismo, pode-se dizer que forma a atmosfera natural do liberalismo contemporâneo e da cultura política moderna, e, assim como ela aproveita em França à república, devia aproveitar no Brasil à monarquia. Foi esta a grande influência política que exerceu sobre mim a minha estada em França de 1873-74. Agora resta-me precisar a influência rival que sofri, e a que chamarei influência literária, graças a qual voltei da Europa consideravelmente menos político do que partira.

Capítulo VII

Ernest Renan

Desde a Academia a literatura e a política alternaram uma com a outra, ocupando a minha curiosidade e governando as minhas ambições. Nos primeiros anos a política teve o predomínio; com a viagem à Europa em 1873 passou este para a literatura, e esse meu período literário, começado então, dura até 1879, quando entro para a Câmara.

Eu tinha sempre lido muito e de tudo na época em que me sentia mais político do que homem de letras. Em filosofia tinha assimilado um pouco de Spinosa, Plotino, Kant e Hegel; a nota mais sonora e mais sustentada de cada um deles vibra a mesma em meu espírito ainda hoje que sinto a grandeza da filosofia e coloco Santo Tomás de Aquino entre Aristóteles e Platão. Em religião, eu estava sob a influência de Strauss, Renan, Havet, e formava, também eu, com os fragmentos de todos eles a minha lenda pessoal de Jesus. Pelo espírito, posso dizer que habitei longos anos, da Praia do Flamengo, as bordas solitárias e silenciosas do lago de Genezareth. Em crítica literária, achava-me todo imbuído de Sainte-Beuve, Taine, Scherer, ainda que deste último, de quem falarei, não tanto como depois que o conheci. Em poesia, tinha passado de Lamartine para Victor Hugo, o de Hernani quase exclusivamente, e de V. Hugo para Musset, como devia depois de passar de Musset para Shelley, de Shelley para Goethe, escala em que parei, mas onde não espero morrer, porque tenho diante de mim o Dante..., o que não quer dizer que não tenha nos ouvidos a ressonância das grandes rimas novas de um Banville, e não admire um cinzelado dos fortes relevos de José-Maria Heredia. Em prosa, Chateaubriand e Renan dividiam o império com Cícero, cujas cartas são talvez o livro mundano que eu levaria comigo, se tivesse que ficar encerrado em uma ilha deserta. A frase, a eloqüência, o retrato e a encenação histórica de Macaulay foi também uma influência permanente que se imprimiu em meu espírito; hoje eu teria que acrescentar Mommsen, Curtius, Ranke, Taine, Burkhardt. Quanto ao romance, que é a imaginação abrangendo e modelando a vida, eu ficaria sob a impressão de Jules Sandeau; vivia à sombra dos seus castelos antigos reconstruídos pela moderna burguesia entre as duas sociedades, a velha e a nova, que ele queria fundir pelo amor, é mais que a poesia d'alma de Sandeau, que foi muito grande a que ainda um dia a França há de voltar, era para mim indefinível a impressão, aristocrática e feminina a um tempo, dos últimos encantadores estudos de Cousin sobre a sociedade do século XVII.

Tudo isto formava o fundo do meu espírito, o húmus da minha inteligência, quando começou a fase literária, aquela em que senti uma impulsão interior irresistível para entrar na literatura. O período anterior de receptividade, de plantio, de assimilações; a impressão, o prazer maior era o de ler; agora, vinha a necessidade de produzir, de criar, e dava-se um fato singular, resultado desses anos de leituras francesas: eu lia muito pouco o português, ainda não começara a ler o inglês e desaprendera o alemão da Maria Stuart e de Wallenstein, com verdadeira mágoa do meu velho mestre Goldschmidt. O resultado foi que me senti solicitado, coagido pela espontaneidade própria do pensamento, a escrever em francês.

Um brilhante freqüentador da Revista Brasileira, que possui entre outras qualidades talvez a mais preciosa de todas, uma boa quantidade do fluido simpático, admira-se dessa minha afinidade francesa; com efeito, não revelo nenhum segredo, dizendo que insensivelmente a minha frase é uma tradução livre, e que nada seria mais fácil do que vertê-la outra vez para o francês do qual ela procede. O que me admira é que o mesmo não aconteça a todos os que têm lido tanto em francês como eu, mais do que eu, e cuja vida intelectual tem sido assim em sua parte principal, isto é, em toda a sua função aquisitiva, francesa. E talvez que eles têm uma força de assimilação maior do que a minha -ou que eu tenho mais desenvolvida do que eles a faculdade imitativa? Não sei; mas essa suscetibilidade à influência francesa parece natural em espíritos que recebem quase tudo em francês e que têm horror à tradução; o purismo português, esse, sim, é que, até tornar-se uma segunda natureza literária, exige uma constante vigilância, a retificação exata de todo o trabalho de aquisição intelectual.

A verdade, para dizer tudo, é esta: admirando a força, o acabado, às vezes a grandeza desse estilo vernáculo em que há uma peneira de furos imperceptíveis para impedir qualquer imperfeição estranha, e em que a nossa língua modernizando-se parece conservar a tonalidade antiga, a minha fonografia cerebral adaptou-se contudo às leituras estrangeiras. Falta-me para reproduzir a sonoridade da grande prosa portuguesa o mesmo eco interior que repete e prolonga dentro de mim, em gradações curiosamente mais íntimas e profundas, à medida que se vão amortecendo, o sussurro indefinível, por exemplo, de uma página de Renan. Tem aí o dr. Graça Aranha a confissão da minha deficiência em relação à nossa língua, cuja fibra forte, resistente, primitivamente áspera, lastimo não possuir. Limito-me, talvez por isso mesmo, a escrever, como ele vê, com aqueles dos seus fios e dos seus matizes que se ajustam ao meu tear francês.

O momento em que me apareceu essa febre do verso francês -era em verso, ainda por cima, que eu me sentia forçado a compor-, foi caprichosamente mal escolhido, porquanto coincidiu com a minha primeira viagem à Europa. Não há dúvida também que foi um resultado dela. Da impressão d'arte, da impressão histórica, da impressão literária do Velho Mundo, jorrava em mim a fonte desconhecida das Musas, que em outros têm jorrado do amor e da mocidade. Eu trazia versos de tudo o que vira, como outros viajantes trazem pedras ou folhas de hera do Coliseu, do Fórum, de Posilipo, de Sorrento, de Pompéia, do lago de Genebra, de Versalhes. Esses versos, reuni-os em um volume -Amour et Dieu. Deus no título era tudo o que restava de um longo poema da Eternidade que eu tinha pensado em Ouchy, uma espécie de réplica teísta ao De Rerum Natura. Quando comecei a escrever esses versos, eu ignorava regras fundamentais da prosódia francesa, como a da alternação das rimas; em pouco tempo tinha-me familiarizado com os segredos dos hiatos e hemistíquios. Os meus versos de Amour et Dieu pareceram-me -a ilusão do autor é um dos mais finos estratagemas da Criação- não direi iguais, mas semelhantes aos melhores da decadência em que a França já tinha entrado. Esses versos valiam muito pouco. Não que fossem todos eles maus, mas, porque o que teria realmente valor neles, se fosse um novo caminho aberto por mim à imaginação, era de fato uma estrada já muito percorrida por ela, uma espécie de via sacra das procissões antigas, na qual muito maiores espíritos tinham levantado por toda a parte colunas votivas. Isso por um lado, e por outro, porque o que neles podia soar agradavelmente era declamação poética, e não poesia; pertenceria à retórica, ou à eloqüência, e não à arte, que em tudo é criação.

Desde que toquei na ilusão do autor, vou abrir um parêntesis para uma reminiscência, que talvez previna os jovens poetas contra uma das ciladas mais freqüentes no caminho da mocidade, e até da velhice, a do elogio que de qualquer modo forçamos ou mesmo somente desejamos.

Em 1872, quando Alexandre Dumas Filho escreveu a brochura L'Homme-Femme terminando pelo famoso Tue-la!, publiquei no Rio de Janeiro uma carta em francês a Ernesto Renan com o título Le Droit au Meurtre. Um amigo entregou de minha parte um exemplar dessa brochura ao grande escritor, a quem só me faltou tratar dedivin maître. Hoje descubro, mesmo literariamente falando, os lados fracos da maneira renaniana; naquele tempo eu era o mais inteiramente sugestionado dos nossos renanistas. O meu emissário foi Artur de Carvalho Moreira, de quem já falei, e a carta que ele me escreveu dando conta da sua missão, podia ter a assinatura de Chamfort. L'Homme-Femme, segundo Renan, não era senão un méchant paradoxe que não valia a pena refutar; une plaisanterie, que não se devia tomar ao sério. Quando no ano seguinte fui a Paris, uma das minhas primeiras visitas foi a Renan. Ele lembrava-se do meu nome e não se demorou em responder ao pedido que lhe fiz de alguns momentos para apresentar-lhes as minhas homenagens. Ainda conservo esses curtos pequenos autógrafos: «C'est moi qui serai enchanté de causer avec vous. Tous les jours vers 10 heures, vous êtes sûr de me trouver. Votre très affectueux et dévoué - E. Renan. Rue Vanneau, 29.» Três dias depois, eu subia os quatro andares do nº 29 da rua Vanneau e penetrava no mesmíssimo modesto «apartamento» que Carvalho Moreira me havia fotografado em sua carta. Dentro de minutos me aparecia Renan. Na minha vida tenho conversado com muito homem de espírito e muito homem ilustre; ainda não se repetiu, entretanto, para mim, a impressão dessa primeira conversa de Renan. Foi uma impressão de encantamento; imagine-se um espetáculo incomparável de que eu fosse espectador único, eis aí a impressão. Eu me sentia na pequena biblioteca, diante dos deslumbramentos daquele espírito sem rival, prodigalizando-se diante de mim, literalmente como Luís II da Baviera na escuridão do camarote real, no teatro vazio, vendo representar os Niebelungen em uma cena iluminada para ele só.

Dessa entrevista não saí só fascinado, saí reconhecido. Renan deu-me cartas para os homens de letras que eu desejava conhecer: para Taine, Scherer, Littré, Laboulaye, Charles Edmond, que devia apresentar-me a George Sand, Barthélemy Saint-Hilaire, por intermédio de quem eu conheceria monsieur Thiers. As nossas relações tornaram-se desde o primeiro dia afetuosas, e, naturalmente, quando imprimi o meu Amour et Dieu, mandei-lhe um dos primeiros exemplares. Aqui está a carta que ele me escreveu:

«Sèvres, 15 août 1874. Cher Monsieur, J'ai tardé plus que je n'aurais dû à vous dire tout ce que je pense de vos excellents vers. Je voulais les relire et, puis, j'espérais quelque vendredi vous voir à Paris. Oui, vous êtes vraiment poète. Vous avez l'harmonie, le sentiment profond, la facilité pleine de grâce. Si vous voulez venir après demain, lundi, vers trois ou quatre heures, rue Vanneau, vous serez de me trouver; nous causerons. Je suis prêt à faire tout ce que vous voudrez pour la Revue et les Débats. Malheureusement ces recueils sont depuis longtemps brouilles avec la poésie. Ce sont des vers comme les vôtres qui pourraient les réconcilier. Croyez à mês sentiments les plus affectueux et les plus dévoués.- E. Renan.»


Não é verdade que, para um jovem brasileiro que escrevia pela primeira vez o francês, uma carta assim devia ser uma sensação de fazer época na vida? Leiam agora esta traidora página dos Souvenirs d'Enfance et de Jeunesse, que seguramente não fui o único a inspirar. Vou cometer o crime de traduzir Renan:

«De 1851 acredito não ter praticado uma só mentira, exceto, naturalmente, as mentiras oficiosas e de polidez, que todos os casuístas permitem, e também os pequenos subterfúgios literários exigidos, em vista de uma verdade superior, pelas necessidades de uma frase bem equilibrada ou para evitar um mal maior, como o de apunhalar um autor. Um poeta, por exemplo, nos apresenta os seus versos. É preciso dizer que são admiráveis, porque sem isso seria dizer que eles não têm valor e fazer uma injúria mortal a um homem que teve a intenção de nos fazer uma civilidade.»


A meu respeito, se uma vaga lembrança dos meus versos lhe ocorreu tanto tempo depois ao escrever essa graciosa ironia, o grande escritor enganou-se em um ponto: ele não me teria apunhalado dizendo que os meus versos não valiam nada, em vez de dizer-me que eram admiráveis. George Sand escreveu-me também a respeito do meu livro: «Il est d'une rare distinction et les nobles pensées y parlent une noble langue», e curiosamente, Madame Caro igualmente se referia a «l'oeuvre qui exprime dans une noble style la plus noble sympathie pour notre malheureuse patrie». Todos esses cumprimentos, toda essa nobreza, eu a recolhia e guardava preciosamente como provas de generosa amabilidade e cortesia do caráter francês. Quanto ao valor dos meus versos, porém, a impressão que me ficou e apagou todas as outras, foi o silêncio frio, impenetrável, entretanto polido, atencioso, simpático, de Edmond Scherer. Contei esse episódio para acautelar o talento que se estréia contra a perigosa sedução da eutrapelia literária. Conheço entre nós um mestre dessa arte do espírito, Machado de Assis, mas este, espero, não fará confissões. «Quem se não pode conformar à perda da própria honra, diz S. Filipe Néri, nunca avançará na vida espiritual.» O escritor juvenil que não se resignar ao sacrifício da rua «honra» literária, não fará progressos em literatura.

Capítulo VIII

A crise poética

Agora, as razões pelas quais eu naufragaria sempre no verso. Se o que estava nas páginas de Amour et Dieu fosse novo, eu poderia, de certo, orgulhar-me do meu pensamento; ainda assim, entretanto, não seria poeta. Não era novo, porém. Tomem-se essas quadras:

La terre est une triste et bien sombre demeure:

Pour que l'homme s'attache à ce terrible lieu,

Il faut que le poète avec lui souffre et pleure,

Et lui fasse espérer l'adoption de Dieu.

Car Dieu toujours est loin, et notre humble prière

Ne le fait poit descendre à ce séjour du mal;

En vain nous l'appelons et crions: Notre Père!

Il n'est encore pour nous qu'un soupir, l'idéal.



Se ninguém tivesse dito o mesmo antes, essa humanidade esperando a adoção de Deus, que ainda, por enquanto, um suspiro do seu coração, seria o gérmen de uma sedutora filosofia; aquele trecho, porém, é a tradução, em verso fraco e mal trabalhado, do que Renan mesmo tomara aos alemães e tinha expressado de modo perfeito na mais elegante das prosas. O que me enganava nos meus versos, parecendo-me sonoro e elevado, não pertencia à poesia, pertenceria à eloqüência. Aqui está uma ode à França; é a Alsácia-Lorena que fala à Alemanha:

Tu penses arréter le sang de notre vie,

En t'emparant des rails de nos chemins de fer;

Nous avons cinquante ans pour changer de patrie,

Pour nous enrôler, tous, contents, dans la landwehr?

Ah! la force t'inspire autant de confiance

Que nous en puiserons dans le droit éternel?

Nous sommes les deux bras mutilés de la France,

      Qu'elle tend toujours vers le ciel!



Mme Caro, no agradecimento que me manda, escreve: «Os dois braços mutilados levantados para os céus, acabarão, tenho confiança, por vencer o destino.» Os dois braços mutilados podiam ser os dois joelhos dobrados em oração, os dois pés acorrentados, ou o fígado do Prometeu dos Vosges devorado pela águia negra da Prússia e renascendo sempre. Tudo isto é do domínio da retórica e do panfleto político: é um líbelo em hemistíquios como a Nemésis de Barthélemy. Nada é mais contrário à poesia do que a ênfase, o lugar-comum e o patético da oratória. Onde começa o advogado ou o tribuno, acaba o poeta.

O fato é que não possuo a forma do verso, na qual a idéia se modela por si mesma e donde sai com o timbre próprio da verdadeira rima, que nenhum artifício nem esforço pode imitar. Isto, por um lado, quanto à pequena poesia, à poesia solta, ao que se pode chamar a música da poesia. Quanto à grande poesia, à poesia de imaginação e criação, poema, romance, balada que fosse, para essa eu seria incapaz, além da insuficiência do talento, pela falta de coragem para habitar a região solitária dos espíritos criadores, os quais vivem naturalmente entre figuras tiradas de si mesmos, sem vida própria, autômatos da sua inteligência e da sua vontade, como em um sonho acordado. Nessa altura, onde tudo é fictício, tudo irreal, tudo fantástico, a poesia tem para mim o terror do adytum da Pítia. Mesmo quando as figuras sejam meigas, suaves, humanas, a criação envolve sempre alguma coisa de misterioso e terrível; a completa abstração, que ela supõe, da realidade exterior, do mundo dos sentidos, me daria vertigem.

Há, além da poesia de sentimento e da poesia de criação, outra poesia. O verso é a mais nobre forma do pensamento, a mais pura cristalização da idéia, e, como se tem dito, o que não se pode expressar em verso não vale quase a pena ser conservado. Essa poesia, porém, que engasta as belas idéias na mais durável e perfeita das cravações, pertence quase à espécie dos provérbios, em que se condensa e perpetua a sabedoria humana. Em Homero ela confunde-se com a história; em Dante com o catolicismo; em Goethe com a arte e com a ciência. Essa é do domínio dos mais altos gênios.

A poesia ao meu alcance só podia ser a humilde nota individual; mas, como eu disse, não encontrei em mim a tecla do verso, cuja ressonância interior não se confunde com a de nenhum timbre artificial. Quando mesmo, porém, eu tivesse recebido o dom do verso, teria naufragado, porque não nasci artista. Acredito ter recebido como escritor, tudo é relativo, um pouco de sentimento, um pouco de pensamento, um pouco de poesia, o que tudo junto pode dar, em quem não teve o verso, uma certa medida de prosa rítmica; mas da arte não recebi senão a aspiração por ela, a sensação do órgão incompleto e não formado, o pesar de que a natureza me esquecesse no seu coro, o vácuo da inspiração que me falta... Ustedes me entienden. «O artista, disse Novalis, deve querer e poder representar tudo.» Dessa faculdade de representar de criar a menor representação das coisas -quanto mais uma realidade mais alta do que a realidade, como queria Goethe-, fui inteiramente privado. Nem todos os que têm o dom do verso são por natureza artistas, e nem todos os artistas têm o dom do verso; a prosa os possui como a poesia; a mim, porém, não coube em partilha nem o verso nem a arte.

É singular como entre nós se distribui o título de artista. Muitas vezes tenho lido e ouvido falar de Rui Barbosa como de um artista, pelo modo por que escreve a prosa. No mesmo sentido poder-se-ia chamar a Krupp artista: a fundição é de alguma forma uma arte, uma arte ciclópica, e de Rui Barbosa não é exagerado dizer, pelos blocos de idéias que levanta uns sobre outros e pelos raios que funde, que é verdadeiramente um ciclope intelectual. Mas o artista? Existirá nele a camada da arte? Se existe, e é bem natural, ainda jaz desconhecida dele mesmo por baixo das superposições da erudição e das leituras. Eu mesmo já insinuei uma vez: ninguém sabe o diamante que ele nos revelaria, se tivesse a coragem de cortar sem piedade a montanha de luz, cuja grandeza tem ofuscado a República, e de reduzi-la a uma pequena pedra. Aqui está outro, José do Patrocínio, que não é também um artista, ainda que em sua prosa se encontre o veio de ouro da poesia, filão, é certo, fugitivo, e que se perde a cada instante na rocha política. Dela poder-se-ia extrair verdadeira poesia; fazer com as palhetas da sua frase pelo menos uma imagem, a da loura mãe dos cativos, assim como com o sopro da sua eloqüência de combate se faria um baixo-relevo para um arco de triunfo: o Chant du Depart da abolição. Também ele não tem a faculdade do verso, no qual naufragaria como naufragou no romance, porque o seu reflexo intelectual tem a vibração e a rapidez do relâmpago, e o verso é por natureza diamantino. Por isso mesmo também sua prosa, em que por vezes há o toque da poesia, e quase o calor do sentimento criador, ainda não pertence à arte, como pertence a de Chateaubriand, a de Renan, por exemplo, porque não é um estilo. Não tem governo, tem apenas medida; reflete a ação confusa, a agitação perpétua de uma época desequilibrada, sem um instante de calma, de eternidade, em sua obra, no todo, genial. Agora outro muito diverso. Haverá quem não sinta a música inata de Constâncio Alves? Este é bem da ordem dos pássaros, tem o canto; a prosa dele gorjeia, sobe, trina; no entanto, se quisesse reduzir a uma obra d'arte a ironia melodiosa que tem em si, que restaria dela?

Eu disse que me faltava o dom do verso. O timbre do verso reconhece-se em qualquer quadra. Tome-se Olavo Bilac, por exemplo. Não posso falar de Luís Murat, que tem maior voadura de imaginação, porque tenho até hoje respeitado instintivamente o caos da sua arte; sinto que há no seu talento os elementos da poesia, menos a ordem, o principal de todos, mas que, felizmente para ele, se adquire, ao passo que os outros são de herança. Suas formas confusas e intricadas parecem-me de muda, e eu o aguardo na época em que a mocidade tiver gastado a sua violência e ele entrar no bosque das Musas levando o silêncio e a tranqüilidade na alma. «Ele ensinou-me, disse Goethe falando de Oeser, que a beleza é simplicidade e repouso, do que se segue que nenhum jovem pode tornar-se um mestre.» De Murat esperarei para falar que primeiro ele encontre o seu Oeser. Tome-se Bilac, porém. Basta ler a Profissão de Fé em Panóplias, para ver que o verso nasceu com ele, que não é um esforço, um trabalho, mas a expressão livre, franca, natural do pensamento:

Invejo o ourives quando escrevo;

      Imito o amor

Com que ele em ouro o alto relevo

      Faz de uma flor.



Não me cabe inquirir se o artifice se cingiu sempre em sua obra às regras do ofício, que tão perfeitamente esculpiu; o buril da rima, porém, está em sua mão e ninguém se pode enganar sobre a espécie de metal que ele é digno de lavrar.

O fato que eu queria assinalar, é somente que contraí em França neste ano de 1873-74 a aspiração de autor, a qual se desenvolveu a contato de grandes espíritos da época, que me acolheram como eu podia desejar, especialmente Renan, Scherer, George Sand.

Renan me dera o conselho, que transmito à nova geração de literatos, de entregar-me a estudos históricos. Não há em regra nada mais ingrato, mais fútil, do que a produção que o indivíduo tira toda de si, e é o que acontece quando o talento não tem uma profissão literária séria. Há estudos, como as humanidades, que são apenas a habilitação do espírito para a carreira das letras: quem os tem pode dizer que possui a ferramenta do seu ofício; além da ferramenta, há, porém, que escolher o material. O material em que trabalham os nossos homens de letras, são os costumes, a sociedade, quando são romancistas, ou dramaturgos; as leituras, quando são críticos, a própria vida ou impressões, quando são poetas.

O material preferido é, como se vê, todo ele pouco consistente, efêmero, em parte grosseiro, em parte imprestável ou insuficiente, e assim a produção é quase toda fácil, improvisada, sem trabalho anterior, sem investigação, sem esforço, sem tempo, sem nenhum elemento que revele continuidade, ambição. Faltando a disciplina e a emulação de uma especialidade, que acontece? A inteligência contrai o hábito da dissipação, da indolência, do parasitismo; o talento relava-se, perde todo o peso específico. Temos por isso uma literatura desocupada; o nosso campo literário é composto de flâneurs. A verdade é que vai aumentando consideravelmente em nosso tempo o que Matthew Arnold traduziu por inacessibilidade às idéias, e que esse novo Filistinismo reduzirá a arte dos nossos banquetes literários a um só gênero de iguarias, o gênero nature. O público, o protetor moderno das letras, cuja generosidade tem sido tão decantada, não passa de um Mecenas de meia-cultura, mesmo em França e na Inglaterra. Aconselhar a jovens brasileiros que se dediquem a estudos históricos desinteressados, é aconselhar-lhes a miséria; mas as leis da inteligência são inflexíveis e a produção do espírito que não se alimenta senão de sua própria imaginação, tem que ser cada dia mais frívola e sem valor.

Não me aproveitei do conselho de Renan senão tarde demais na vida, quando comecei a preparar a biografia de meu pai, que é uma perspectiva da época toda de d. Pedro II. O aviso, porém, aí fica para os que quiserem desenvolver e aperfeiçoar o talento literário que possuem, em vez de dispersá-lo e nada apurar dele. O conselho não deixou, entretanto, de influir no meu espírito, se não para me disciplinar a mim mesmo, ao menos para me fazer aquilatar o valor do trabalho e da indagação e sentir a inutilidade, a vacuidade do que é puramente pessoal e espontâneo, desde que não seja característico.

Das minhas conversas com Scherer, o que me contagiou foi a sua admiração pelo romance inglês, que parecia ser a literatura da casa. -Adam Bede, Jane Eyre, etc. Em mim a conquista anglo-saxônia começou por Thackeray, que li então, como já disse, no retiro de Fontainebleau. A respeito de meus versos, o grande crítico manteve esse silêncio desanimador dos médicos que não sabem enganar, quando os doentes ingênuos que se fizeram auscultar, querem surpreender e penetrar com perguntas insidiosas a realidade do seu estado.

A febre poética que se tinha apossado de mim com esse primeiro ensaio de Amour et Dieu, não devia ceder facilmente; eu queria resgatar esse esboço, que me parecia inferior e imperfeito, substituí-lo, e uma idéia, que estava em gérmen em uma de suas poesias, desprendeu-se dele e tomou em meu espírito as proporções extravagantes de um grande drama em verso. Deste falarei mais tarde. Como se vê, bem pouco do político militante restava depois dessa primeira viagem à Europa; eu trocara em Paris e na Itália a ambição política pela literária, crítica, isto é, com uma espessa camada européia na imaginação, camada impermeável à política local, a idéias, preconceitos e paixões de partido, isoladora de tudo que em política não pertencesse à estética, portanto também do republicanismo -porque a minha estética política tinha começado a tornar-se exclusivamente monárquica.

Capítulo IX

Adido de legação

Durante os cinco anos que seguem (1873-78), a política é para mim secundária, quase indiferente, mas esse mesmo estado de espírito é, com relação à monarquia, um processo de consolidação, porquanto, graças a todas essas fascinações de artes e de poesia, a minha estética política, segundo a expressão de que me servi, encerrava-se, isolava-se, cristalizava-se na forma monárquica. Quem me acompanha pode estar certo de que não existe no que vou dizendo nenhuma sombra dessa admiração pela própria imagem, a que Jules Lemaître deu o nome de narcisismo moral. A verdade é que, entre as molas do meu mecanismo, nenhuma teve a elasticidade e a força da que eu chamaria a mola estética. O meu juízo estético foi, em todas as épocas, ainda o é hoje, imperfeito, instintivo, oscilante, como uma agulha que girasse por todo o mostrador: para seguir algumas das suas indicações, faltou-me a resolução, a força de caráter, a coragem e o espírito de sacrifício precisos: mas, em compensação, posso dizer que, através da vida, aspirei ao Absoluto, naufragando sempre, porque na vida da inteligência, ao contrário da vida espiritual, onde, no dizer de um de seus grandes guias, não há nada que se pareça com ancoradouro, há um ancoradouro, mas esse é a religião, e a religião me pareceu, até bem pouco atrás, o remanso das mulheres e das crianças. Durante toda a minha carreira movi-me sempre por algum magnete moral; meus erros foram desvios de idealização; eu nunca teria podido confessar uma idéia, uma crença, um princípio, que não fosse para mim um ímã estético. Sendo assim, se a minha estética fosse republicana, isto é, ateniense, romana, florentina, nunca a monarquia me teria feito despregar a sua bandeira no campo da imaginação como um cavaleiro andante. Para sentir, sempre que a hasteei, a minha dignidade, a minha altivez, o meu espírito expandir-se, era preciso que o signo monárquico atuasse em mim, como uma parceria da arte que está misturada com a história e que de algum modo a diviniza.

Esse processo de idealização, pelo qual a forma monárquica se incorporou à minha consciência estética, se associou a minha idéia de arte, é o principal trabalho político que se opera em mim desde o ano de 1873 até o ano de 1879, em que tomei assento na Câmara. Nesse intervalo, eu tinha voltado à Europa e vivido um ano nos Estados Unidos. Entram neste período as influências da Inglaterra e da sociedade inglesa, da América do Norte e da carreira diplomática, além do desenvolvimento da influência literária, sob a qual voltei de Paris em 1874.

Esta última foi tão forte que, nos dois anos que passei novamente no Rio de Janeiro, não me ocupei de política; fiz, a pedido do imperador, algumas conferências na Escola da Glória sobre o que tinha visto de Miguel Ângelo, de Rafael e dos grandes pintores venezianos; fui colaborador literário do Globo e travei com José de Alencar uma polêmica, em que receio ter tratado com a presunção e a injustiça da mocidade o grande escritor -(digo receio, porque não tornei a ler aqueles folhetins e não me recordo até onde foi a minha crítica, se ela ofendeu o que há profundo, nacional, em Alencar: o seu brasileirismo); escrevi numa revista que apareceu e logo morreu no gênero da Vie Parisienne, a Epocha, e, desde os fins de 1875, entreguei-me à composição de um drama, em verso francês cuja fatura me absorveu durante mais de dois anos.

A idéia do meu drama era o problema da Alsácia-Lorena. Isso revelava bem o fundo político da minha imaginação. A política, felizmente para a inteligência que nasceu com essa diátese, tem lados ainda indefinidos que confinam com a arte, a religião e a filosofia, isto é, para falar a linguagem hegeliana, com as três esferas em que se manifesta o espírito do mundo. O meu drama com ser francês, de precedência, de motivo sentimental, elevava-se, como composição literária, acima do espírito de nacionalidade, visava à unidade da justiça, do direito, do ideal entre as nações, e baseava-se no seu entrecho sobre as afinidades e simpatias que ligaram a França intelectual moderna à Alemanha de Klopstock, Winckelmann, Jean Paul Richter, Johannes Muller, de Novalis e dos Schlegel, de Kant, Fichte, Hegel, Schelling, de Bach, Gluck, Haydn, Mozart, Schubert, Schumann e Beethoven, em uma palavra, à alma parens do século 19.

Por uma aparente anomalia, ao passo que eu era politicamente, como disse, thierista ou republicano em França, o meu drama saía todo legitimista e católico; os personagens eram tirados para mim, não por mim (a produção intelectual é involuntária), da velha rocha em que se estratificaram as grandes tradições francesas. Isso quer dizer que o inconsciente, que é em qualquer de nós o nosso único talento, o nosso único poder criador, era em mim, qualquer que fosse a causa, fosse ela o instinto, fosse a cultura, distintamente monárquico.

Uma composição literária assim caracterizada não podia deixar de ser para o meu espírito uma forte modelação política. Para não voltar a falar desse drama, cuja única qualidade é, talvez, ser inédito, contarei desde já que, depois de o fazer e refazer, copiá-lo e tornar a copiá-lo, acabei-o em 1877, em Nova York. Tenho no meu Diário desse ano a data em que, depois de uma jantar, com egoísmo inflexível de autor, infligi a leitura desses cinco atos a um pequeno comité de amigos de que fazia parte o barão Blanc, então ministro da Itália em Washington, ultimamente ministro de Estrangeiros. Ele me terá perdoado esse sacrifício, ao qual ele mesmo se ofereceu. O enigma europeu da Alsácia-Lorena, que é o fundo da tríplice aliança, lhe terá imposto na Consulta serões mais penosos e fatigantes do que aquela assentada do Buckingham Hotel.

A indiferença política em que me achava, a predisposição literária que acabo de descrever, fez-me entrar para a diplomacia em 1876. Eu tinha perdido 5 anos desde a formatura, mas nesses 5 anos não me teria ocorrido aceitar qualquer posto das mão de um ministro conservador, eu liberal. O preconceito, o extremo partidário, impediam essa apostasia. Nesse intervalo, porém, a intransigência se tinha gastado toda e agora me parecia plausível a idéia, que nunca antes me viera, de que os cargos públicos não são monopólio do partido que está no poder e devem ser confiados a quem melhor os pode desempenhar. Nem era pretensão da minha parte pensar que um lugar de adido de legação estava ao nível da minha capacidade e situação social. Era, pelo contrário, uma sensível redução de pretensões anteriores, porque, ao sair da Academia, creio que só o lugar de ministro me teria contentado. A ambição em mim foi-se progressivamente restringindo à medida que fui vivendo. Não quero dizer que se tenha deslocado do pessoal para o real, do efêmero para o duradouro, isto é, que se tenha gradualmente elevado; graças a Deus, porém, na esfera das competições que formam a luta pela vida ela nunca deu combate a ninguém.

Talvez eu tenha sentido um pouco a desdenhosa voluptuosidade do provérbio: «as glórias que vêm tarde já vêm frias». Como a ambição foi em mim toda de imaginação e despontou pelos meus dezoito ou vinte anos, nada podia ter vindo para mim que não chegasse tarde. Do ponto de vista em que me coloco hoje, sinto bem que o pouco que me tocou, veio a tempo, no momento em que eu estava apto para o receber, e que o que não veio, deixou de vir porque não me convinha ainda, e eu teria naufragado. A impaciência da mocidade, porém, não me deixava apreciar então a generosidade do veto da Fortuna, que me excluía do que eu não estava interiormente preparado para aproveitar. Nesse tempo, eu não tinha a menor idéia de que uma grande vida pública precisa ser alumiada, como a arquitetura de Ruskin, entre outras pelas lâmpadas do sacrifício, da verdade, da imaginação, da beleza e da obediência. O talento, a forma, a eloqüência, o que tinha brilho exterior, tinha para mim maior valor do que o espírito interior de fé, continuidade e submissão, que, único, inspira e forma os verdadeiros padrões humanos.

Como quer que seja, tenho daquele cargo de adido de legação, único que exerci, a mais reconhecida e afetuosa lembrança. Nunca mais teria eu podido aceitar outro; com efeito, pouco depois entrava para a Câmara, e dava-se a minha incompatibilidade de abolicionista militante com o sistema político da escravidão, e, acabada esta, logo em seguida, surgia para mim outra abstenção forçada: a da defesa da monarquia contra os partidos. O signatário daquele decreto foi o barão de Cotegipe. A nomeação não era de certo escandalosa; em qualquer Ministério de Estrangeiros onde não existisse patronato, eu tiraria o meu lugar de adido em concurso: não tenho, porém, em mim essa medida da gratidão com que outros apuram por milímetros o favor ou o serviço que recebem; não conheço a arte de analisar, de decompor, pelas intenções secretas e circunstâncias fortuitas, o obséquio, a distinção, o benefício que nos é feito, de modo a ser o aceitante às vezes quem generosamente cativa e obriga o doador. Se o barão de Cotegipe me tivesse nomeado de vez ministro plenipotenciário, o seu crédito contra mim não teria sido maior do que foi com essa designação para o primeiro degrau da carreira diplomática.

Londres

Talvez eu pudesse resumir o processo da minha solidificação política, dizendo somente que a monarquia faz parte da atmosfera moral da Inglaterra e que a influência inglesa foi a mais forte e mais duradoura que recebi.

Quando pela primeira vez desembarquei em Folkestone, entrando na Inglaterra, eu tinha passado meses em Paris, tinha atravessado a Itália, de Gênova a Nápoles, tinha parado longamente à margem do lago de Genebra, e não me podia esquecer da suave perspectiva, à beira do Tejo, de Oeiras a Belém, cuja tonalidade doce e risonha nunca outro horizonte me repetiu. Por toda a parte eu tinha passado como viajante, demorando-me às vezes o tempo preciso para receber a impressão dos lugares e dos monumentos, o molde íntimo da paisagem e das obras de arte, mas desprendido de tudo, na inconstância contínua da imaginação. Quando avistei, porém, da janela do wagon, por uma tarde de verão, o tapete de relva que cobre o chão limpo e as colinas macias de Kent, e no dia seguinte, partindo do pequeno apartment que me tinham guardado perto de Grosvenor Gardens, fui descortinando uma a uma as fileiras de palácios do West End, atravessando os grandes parques, encontrando em St. James' Street, Pall Mall, Piccadilly, a maré cheia da season, essa multidão aristocrática que a pé, a cavalo, em carruagem descoberta, se dirige duas vezes por dia para o rendez-vous de Hyde Park, e, dias seguidos, penetrei em outras regiões da cidade sem fim, conhecendo a população, a fisionomia inglesa toda, raça, caráter, costumes, maneiras, -posso dizer que senti minha imaginação excedida e vencida. A curiosidade de peregrinar estava satisfeita, trocada em desejo de parar ali para sempre.

Às vezes me distraio a pensar que povo eu salvaria, podendo, se a humanidade se devesse reduzir a um só. Minha hesitação seria entre a França e a Inglaterra, -aliás, sei bem que no começo do século quem eliminasse a Alemanha do movimento das idéias, da poesia, da arte, eliminaria o que ele teve de melhor. Entre a França e a Inglaterra, porém, fico sempre incerto. O meu dever seria, talvez, socorrer a França. «Se madame Récamier e eu estivéssemos a nos afogar, qual de nós duas o senhor salvaria?» -perguntou uma vez madame de Staël ao seu amigo Talleyrand. «Oh! madame, vous savez nager.» A Inglaterra, também, sabe nadar.

O gênio francês tem todos os raios do espírito humano, principalmente os raios estéticos; o gênio inglês não os tem todos, tem até uma opacidade singular nos focos do espírito, que merecem o nome de franceses, em quase todos os que merecem o nome de atenienses. A Inglaterra -a associação de idéias tem sido muitas vezes feita-, é a China da Europa; isto é, tem uma individualidade inamolgável, incapaz de tomar a fisionomia comum. Latinos, alemães, eslavos formarão uma só família, por muitíssimos traços comuns, antes que o inglês deixe de ser um tipo sui generis, à parte do tipo coletivo europeu. Por esse motivo, a França, só, representaria melhor a humanidade do que a Inglaterra; há nela mais atributos universais, maior número de faculdades criadoras, de qualidades de tronco, maior soma de hereditariedade humana, de possibilidades evolutivas portanto, do que no particularismo e no exclusivismo inglês. Em compensação, a raça inglesa parece ser mais sã, mais elástica; ter maior vigor mesmo de gênio e de criação; maior provisão de vida e de força, -ainda que a força sem a imaginação e a cultura, (que na Inglaterra tem sido, em grande parte pelo menos, estrangeira), possa degenerar em brutalidade e egoísmo. Estão aí as razões da minha hesitação, quando imagino um novo dilúvio universal e me pergunto que país, nos mais altos interesses da inteligência humana, mereceria o privilégio de construir a arca.

Qualquer que seja a explicação, o fato é que nunca experimentei esse prazer de viver em Paris, que foi e é a paixão cosmopolita dominante em redor de nós. A grande impressão que recebi não foi Paris, foi Londres. Londres foi para mim o que teria sido Roma, se eu vivesse entre o século 2 e o século 4, e um dia, transportado da minha aldeia transalpina ou do fundo da África Romana para o alto do palatino, visse desenrolar-se aos meus pés o mar de ouro e bronze dos telhados das basílicas, circos, teatros, termas e palácios; isto é, para mim, provinciano do século 19, foi, como Roma para os provincianos do tempo de Adriano ou de Severo:a Cidade. Essa impressãouniversal, da cidade que campeia acima de todas, senhora do mundo pelomilliarium aureum, o qual no século tinha que ser marítimo; essa impressãosoberana, tive-a tão distinta como se a humanidade estivesse ainda toda centralizada. O efeito dessa impressão de domínio foi uma sensação de finalidade, que somente Londres me deu: -não de finalidade intelectual, como dá a Atenas de Péricles, a Florença dos Médicis, a Roma de Leão X, ao homem de arte. A Versalhes do século 17 ao homem de corte, a Roma das Catacumbas ao homem de fé, a Roma antiga ao homem do passado, Niebuhr, Chateaubriand, Ampère, a pequena Weimar do fim do século 18 ao homem de letras, ou Paris, ainda neste século, até Renan e Taine, ao homem de cultura; finalidade material, se me posso expressar assim, de grandeza esmagadora e império ilimitado.

Donde procede essa impressão universal de Londres, seguida dessa sensação de finalidade, que talvez seja toda subjetiva? (Não me parece entretanto.)

O que dá à «Metrópole» esse ascendente imperial, quero crer, é a sua massa gigantesca, as suas perspectivas indefinidas, a solidez eterna, egipcíaca, das construções, as imensas praças, e os parques que se abrem de repente na embocadura das ruas, como planícies onde onde poderiam errar grandes rebanhos, à sombra de velhas árvores, à beira de lagos que merecem pertencer ao relevo natural da Terra. Este último é, para mim, o traço dominante de Londres: o estrangeiro suporia ter entrado no campo, nos subúrbios, quando está no coração da cidade; é a mesma impressão, porém, incalculavelmente mais vasta, que dava a Casa de Ouro: «O ouro e as pedras preciosas não causavam tanta maravilha, por serem já muito vulgares, e uma ostentação ordinária do luxo, como os campos e os lagos, e por uma parte as artificiais solidões e desertos, formados por bosques espessos, e por outra, as largas planícies e longas perspectivas, que dentro do seu imenso círculo se viam.»

Nem pára aí o assombro. E a larga faixa do Tâmisa, com as pontes colossais que o atravessam e os monumentos assentados à sua margem desde Chelsea até a Ponte de Londres, principalmente o maciço dos edifícios de Westminster, a extensa linha das casas do Parlamento, a mais grandiosa sombra que construção civil projeta sobre a terra. É, por outro lado, a City, em roda do Banco de Inglaterra, com o Royal Exchange ao lado, e Lombard Street defronte, o mercado monetário, o verdadeiro comptoir do mundo. Aqui, nas ruas calçadas a madeira, para ainda mais amortecer o ruído, causa uma impressão singular a multidão que não perde um minuto, indiferente a si mesma, à qual nada distrairia o olhar nem arrancaria uma sílaba, e que transporta debaixo do braço, em suas carteiras, massas de capital que seriam precisos wagons para carregar em dinheiro, os cheques que vão para a Clearing-House, os bilhões esterlinos, que por ela passam, transferidos de banco a banco, importados, reexportados, pelo telégrafo para os confins do mundo donde vieram. O transeunte pára no meio de todo esse luxo e refluxo do ouro, sentindo não ouvir o tinido das libras; as oscilações contínuas, subterrâneas, dessas correntes contrárias de metal ele só conhecerá pelo seu efeito sensível: a taxa do desconto.

O que dá também a Londres o seu tom de majestade e soberania é a dignidade, o silêncio que a envolve; a calma, a tranqüilidade, o repouso, a confiança que ela respira; é o ar concentrado, recolhido, severo por vezes da sua fisionomia, e, ao mesmo tempo, a urbanidade das suas maneiras; é o retiro em que se vive no seio dela, no centro das suas ruas mais populosas; o isolamento em que se está nas suas catedrais, como no British Museum, nos seus parques, como nos seus teatros ou nos seus clubes. Esse traço de seriedade e de reserva define, a meu ver, uma raça imperial, energética e responsável, cônscia da sua força, viril e magnânima. Além disso, há uma feição notável, característica, expressão suprema de força e de domínio; não é uma cidade cosmopolita essa metrópole do mundo: é uma cidade inglesa.

Paris ao lado de Londres é uma obra de arte, imortalmente bela, ao lado de uma muralha pelásgica; é um Erechteion, em frente ao Memmonium de Tebas. De certo não há no mundo uma perspectiva arquitetural igual à que se estende do Arco do Triunfo pelos Campos Elísios até o Louvre pelo cais do Sena até apanhar Notre-Dame. Em Londres, não se tem essa impressão de arte que corre por cima da velha Paris toda como um friso grego. Para o artista que precisa inspirar-se exteriormente nas formas da edificação, viver no meio do belo realizado pelo gênio humano. Londres está para Paris como Khorsabad para Atenas. O gênio francês alegre e festivo é em tudo diferente da grande apatia inglesa, e em Paris se está defronte da obra-prima da arte francesa. Por aí não há que comparar. Para o intelectual que precise diariamente de um passeio artístico para vitalizar-se, assim como para o homem de espírito e de salão, Paris é a primeira das residências, porque é a que reúne à arte o prazer de viver em suas formas mais delicadas e elegantes. Não há nada em Londres que corresponda à aspiração francesa, hoje decadente e muito esvaecida, de fazer da vida toda uma arte, aspiração cuja obra-prima foi a polidez do século 17 e o espírito do século 18. Deixando a grande arte que tem cometido infidelidades ao gênio francês, como a de produzir fora de França Goethe, Beethoven e Mozart, as pequenas artes, -e não chamo pequena arte à obra dos grandes ebanistas, incrustadores, cinzeladores do móvel, de Riesener, Boulle, Beneman, Gouthière-, as pequenas artes são ainda exclusivamente francesas, como na Roma de Cícero eram gregas. O que há em Londres como prazer da vida, não é a arte, é o conforto; não é a regra, as medidas, o tom das maneiras, é a liberdade, a individualidade; não é a decoração, é o espaço, a solidez. Paris é um teatro em que todos, de todas as profissões, de todas as idades, de todos os países, vivem representando para a multidão de curiosos que o cercam; Londres é um convento, em forma de clube, em que os que se encontram no silêncio da grande biblioteca ou das salas de jantar não dão fé uns nos outros, e cada um se sente indiferente a todos. Em Paris, a vida é uma limitação; em Londres, uma expansão; em Paris um cativeiro, cativeiro da arte, do espírito, da etiqueta, da sociedade, cativeiro agradável como seja, mas sempre um cativeiro, exigindo uma vigilância constante do ator sobre si mesmo diante do público, que repara em tudo, que nota tudo; em Londres é a independência, a naturalidade, a despreocupação. Ceci tuera cela.

Foi, talvez este lado da vida inglesa o que me seduziu. A impressão artística é, por sua natureza, fatigante, exclusiva, e, além de certo diapasão, inconfortável, como toda vibração demasiado forte. Eu não quisera ser condenado a passar uma hora por dia diante da Jaconde, nem mesmo diante da Vênus de Milo. Para renovar a minha curta faculdade de admirar e de gozar da obra de arte, preciso de longos intervalos de repouso, para dizer a verdade, de obtusão. Londres era essa penumbra que quadra admiravelmente à minha fraca pupila estética; ali tinha à minha disposição, excusez du peu, os mármores de Fídias; não havia época artística ou literária que, querendo viver na meia hora, -de mais não me sentiria capaz-, eu não achasse representada no British Museum, na National Galery, em South Kensington, e nas outras grandes coleções nacionais. Essa proximidade bastava-me; quanto a tudo mais que faz o prazer da vida, eu preferia, como disse, a naturalidade, a calma, o descanso, as grandes perspectivas, o isolamento, o esquecimento de Londres à constante vibração de Paris, vibração cosmopolita de espírito, de prazer, de arte, através de uma atmosfera de luxo, de combate e de teatro.

Eu sei bem que há ali outra vida; que há indiferentes, solitários, reclusos na grande capital, pequenos claustros de silêncio e de meditação, onde não chegam até ao pensador e ao artista os ruídos de fora. Sem isso, Paris não produziria o grande pensamento; mas a viver isolado do movimento de Paris, antes estar separado dele pela Mancha do que pelo Sena, como o meu amigo Rio Branco, que se fechava na margem esquerda, com a sua biblioteca brasileira, as suas provas a corrigir, e os seus íntimos do Instituto.

O fato é que amei Londres acima de todas as outras cidades e lugares que percorri. Tudo em Londres me feria uma nota íntima de longa ressonância: as suas extensas campinas e os seus bosques, como o tijolo enegrecido das suas construções; o movimento atordoador de Regent Circus ou Ludgate Hill, como os recessos de Kensington Park, à sombra do arvoredo secular; os seus dias quentes de verão, quando o asfalto amolece debaixo dos pés, a folhagem se cobre de poeira, e o ar tem o calor seco das termas, como os seus deliciosos dias de maio e junho, quando as mais altas janelas se transformam em jardins suspensos, e as grandes cestas dos parques se enchem de tulipas e jacintos; as suas noites de luar, que faziam Park Lane parecer-me às vezes na névoa, com a sua rua de palácios, um trecho de Veneza, e que de Piccadilly olhando por cima da bruma de Green-Park para a iluminação em roda de Buckingham Palace, me davam sempre a ilusão do outro lado da baía do Rio, visto da esplanada da Glória, como os seus dias escuros e tristes de nevoeiro, que eu não teria então trocado pelo azul do Mediterrâneo nem pela pureza do céu da Ática; os seus traços de maior cidade do mundo, a esplêndida beleza da sua raça, e os menores detalhes de sua fisionomia própria; os mostradores das lojas de luxo de Piccadilly e New-Bond-Street, como os hansoms que paravam em frente; o Times, a Pall Mall Gazette, o Spectator, como o papel aveludado, o tipo, grande e claro, o couro liso, macio, dourado dos livros; a tranqüilidade dos clubes, o recolhimento das igrejas, o silêncio dos domingos, como a confusão, o movimento, o atropelamento em Charig-Cross e Victoria Station, da onda imensa de todas as classes e todas as cidades, que se espalha de Londres, à tarde do sábados, para as praias de mar, para as casas de campo, para as margens do Tâmisa.

Tudo isso, eu vejo bem, não era senão a minha própria mocidade... com a diferença talvez de que os outros lugares, era ela que os coloria, os animava, os assimilava a si, ao passo que em Londres ela transbordava naturalmente pelo jorrar de todas as suas fontes.

Esse sentimento paguei-o caro depois, porque foi em Londres que senti definhar mortalmente a planta humana que há em cada um de nós e sobre a qual o nosso espírito apenas pousa, como o pássaro no mais alto da ramagem: as suas raízes físicas e morais precisavam do solo em que ela se tinha formado; as suas folhas, do nosso sol. Ainda assim, foi a Londres que vim a dever, anos mais tarde, uma restituição que bem compensou aquele deperecimento. Foi em Londres, graças a uma concentração forçada, a qual não teria sido possível para mim senão em sua bruma, que a minha inteligência primeiro se fixou sobre o enigma do destino humano e das soluções até hoje achadas para ele, e, insensivelmente, na escondida igreja dos Jesuítas, em Farm Street, onde os vibrantes açoites do padre Gallway me fizeram sentir que a minha anestesia religiosa não era completa, depois no Oratório de Brompton, respirando aquela pura e diáfana atmosfera espiritual impregnada do hálito de Faber e de Newman, pude reunir no meu coração os fragmentos quebrados da cruz e com ela recompor os sentimentos esquecidos da infância.

Capítulo XI

Grosvenor Gardens

Falei de Londres como se fosse para mima cidade única, porque Londres reuniu em uma só impressão as sensações diferentes que me causaram, ou vieram a causar, Paris, Roma, Pisa, Veneza, Nova York, Boston, Washington. É preciso, para cada um desses nomes, fazer um transporte, de raça, clima, arte, passado, para se ter a impressão inglesa equivalente; mas eu pretendo ter tido em Londres a sensação: de vida suprema que se tem em Paris, de encantamento que se tem em Roma ou Florença, de morte radiante que se tem em Pisa, de poder marítimo e solidez que se tem em Veneza, de opulência, mocidade, e beleza humana que se tem em Nova York, de silêncio, distinção intelectual que se tem em Boston, de instituições civis e indestrutíveis e gigantescas que se tem em Washington diante do Capitólio. Tudo isso transportado, eu já disse, fazendo-se, por exemplo, a redução da impressão do fórum para a da torre de Londres, ou do catolicismo para o protestantismo, como quem dissesse do papa para o arcebispo de Cantuária, ou do Vaticano para Lambeth Palace.

Não pertenço ao número dos solitários, dos fortes, que bastam a si mesmos e podem viver consigo só de arte, de história, de paisagem, de pensamento. Londres com a sua grandeza, o seu império, os seus vastos horizontes interiores, as suas estátuas, o seu friso do Parthenon, os seus touros alados da Assíria, os seus Cartões de Raphael, teria sido para mim uma solidão asfixiante, se eu não tivesse encontrado no meio dela um círculo íntimo onde descansar a imaginação da acuidade, da plenitude de todas aquelas impressões. Sem um mediador plástico, eu não teria ficado ali, apesar de todas as minhas afinidades. Se eu tivesse que definir a felicidade, diria que é a admiração, o sentimento do que é belo em conta de participação com os que nos são harmônicos. O elo de união foi para mim 32, Grosvenor Gardens.

Não tenho espaço nestas páginas para colocar os retratos do dono e da dona da casa. Só direi do primeiro, nas suas roupas de doutor de Oxford, que o seu molde diplomático está para o Brasil tão irreparavelmente perdido como para Veneza o dos seus embaixadores dos séculos 16 e 17. Da baronesa de Penedo basta-me dar este traço: vivendo por mais de trinta anos com a corte e a sociedade inglesa, ela não pôs nunca no segundo plano as suas amizades ainda as mais humildes e exerceu sempre a hospitalidade da sua mansão de Londres à boa moda de nosso país, com a mais igual afabilidade para todos, o que bem mostra a altivez de raça de uma Andrada.

Entre os íntimos de Grosvenor Gardens eu vinha encontrar Rancés, marquês de Casa la Iglesia, o mais belo homem de seu tempo, que não sei se não terá fundado em expiação do seu perfil, alguma Trappa na Andaluzia; o marquês Fortunato, que representava a realeza extinta de Nápoles tão fielmente como se Francisco II ainda habitasse Capodimonte; o velho John Samuel, que nos contava histórias do velho Brasil, tendo vivido e dirigido a moda no Rio de Janeiro no tempo de Pedro I; outro velho, Saraiva, o dicionário português de Londres, verão e inverno em um casacão que lhe descia até os pés, a longa barba inculta, a pele entalhada como um retábulo espanhol, com um montão de livros debaixo do braço e em cada bolso, primeiro e último amigo de dom Miguel na Inglaterra, e que desde 1834 se consolava do desterro, da pobreza, do frio de Londres com os seus alfarrábios e os seus ouvintes.

Encontrei ali ainda mr. Clark, o famoso correspondente do Jornal do Comércio, a quem depois sucedi, a bête noire de Zacarias, um desses old gentlemen que a Inglaterra pode mandar ao estrangeiro, com certificado, como espécime nacional, porque nada do que é essencialmente inglês, perfil, caráter, tradição, maneira, preconceito, humor, orgulho insular, deixaria de estar representado neles; Pellegrini, o caricaturista de Vanity Fair, um dos artistas napolitanos que invadiram com a sua loquacidade alegre, o seu riso comunicativo, a sua mímica irresistível, a fria e reservada sociedade inglesa e tomaram conta dela.

Devo também citar mr. Youle. Este há cinco anos serve em Londres de correspondente aos seus amigos do Brasil e de Portugal; a todos hospeda, agasalha, enche de obséquios, dando-se o incômodo de ir até a Alemanha por um rapaz que o pai quer colocar em uma casa de Hamburgo; tomando o trem de Calais, mal acaba de chegar da Escócia ou de Manchester, para deixar no Sacré Coeur de Paris uma menina que não quer continuar em Rohampton; indo a Lisboa, e, se preciso for, à Madeira para acompanhar um doente que foge do inverno inglês; pronto sempre, incansável nas suas funções de provedor de brasileiros e portugueses na Inglaterra, há meio século, e além disso o oráculo na City, nos grandes bancos, quando se trata de interesses comerciais dos dois países.

Esses eram alguns dos íntimos de 1874-76, período a que me refiro, sem contar os brasileiros que ali se achavam no Brasil. Em períodos anteriores sei que o foram entre outros Musurus Pachá e o infante don Juan, pai de d. Carlos de Espanha; o dr. Gueneau de Mussy, médico fiel da família de Orleans desterrada, e o republicano Dupont, proscrito do Império, companheiro de Ledru-Rollin e de Louis Blanc, o velho barão Leonel de Rothschild, o marquês do Lavradio, modelo dessa distinção e urbanidade portuguesa que parece requintar sobre todas as outras aristocracias.

A Legação do Brasil estava naquele tempo no seu maior brilho: pertencia ao número das casas que tinham o privilégio de receber a realeza, isto é, o príncipe e a princesa de Gales. Muitos argumentos me foram apresentados na mocidade em favor da monarquia; nenhum, porém, teve para mim a força persuasiva, a evidência, destes dois, um que me foi formulado no Pincio, outro que me foi formulado no Hyde Park: a princesa Margarida de Sabóia e a princesa de Gales. A republicanos de boa fé estética -ponhamos tanto os bárbaros como os anacoretas de parte- eu não quisera apresentar outros. A monarquia moderna faria bem para sustentar-se em promulgar a lei sálica em sentido contrário, isto é, em neutralizar ainda mais o poder neutro, estabelecendo a realeza exclusiva das mulheres. Seria isso fazer política experimental, que não se basearia somente no esplêndido e pacífico jubileu da rainha Vitória e na calma relativa em tempos cruéis para a Espanha da regência de d. Maria Cristina, mas no profundo interesse das massas pelos dramas de que a primeira figura é uma mulher. A entrada triunfal em Paris dos restos de Napoleão nunca fará um quadro como o que Tácito nos deixou do Campo de Marte, no «dia maravilhoso» em que foram depositadas no túmulo de Augusto as cinzas de Germânico traduzidas por Agripina. Se ao prestígio da posição se alia na mulher a irradiação da mocidade e da beleza, pode-se dizer que ela tem no cetro um condão de fada. A formosura das rainhas tem, quando é perfeita, um reflexo seu exclusivo, combinação de bondade e soberania, de encanto pessoal e grandeza nacional, de dependência, tremor mesmo, do Destino, e proteção e amparo para os que se acolhem ao seu manto, que forma a dupla projeção, ascendente e descendente, do povo para o trono e do trono para o povo, que na ordem espiritual fez a Rainha dos Anjos comparar-se a si mesma com o arco-íris. Além da família real de Inglaterra e da alta sociedade de Belgrávia e Mayfair que a cerca vinham à Legação príncipes estrangeiros reinantes ou destronados, como esse jovem príncipe imperial, azagaiado na Cafraria, e cuja morte, tão inglória que parece predestinada, me faz sempre lembrar a de Saldanha em Campo Osório.

Era para tal sociedade que o famoso Cortais, inspirando-se nas glórias dos grandes cozinheiros, formava o cortejo dos seus pratos arquitetônicos, verdadeiras obras-primas com que depois pretendeu, segundo me disseram, arruinar a coroa de Itália. Ouvi também que ele, seguindo ainda nisso as tradições dos mestres da arte, mostrara uma vez o seu reconhecimento servindo em um dos banquetes do Quirinal uma composição sua inscrita no cartão real -à la Penedo. Naquele dia o diplomata brasileiro há de ter dito, como Chateaubriand, quando deram o seu nome a um beefsteak: «Agora, sim, não posso mais morrer».

Uma dessas representações de monsieur Cortais diante de testas coroadas com toda a encenação que reclamava, inclusive o grupo de belezas profissionais da alta sociedade inglesa, não podia deixar de apagar de todo no espírito de um jovem adido de Legação brasileiro o prestígio, se o conservavam, das decapitações reais da Convenção ou de Witehall.

Não me tomem por um sibarita, porque me inclinei diante de um grande chefe como diante de um artista. «Il en faudrait au moins un à l'Institut», dizia Talleyrand. Entre o festim de Trimalcião e um menu composto por um estilista francês, há, como entre a dança das alméias e o minuete a longa distância de civilização que separa a sensualidade da elegância.

De todos os sentidos é realmente o paladar o menos intelectualizável, o que admite menor grau de ascetismo. Mesmo a taça de bouillon servida de Maintenon em Saint-Cyr ou a taça de chá preto que conforta a rainha Vitória no terraço de Osborne é sempre um gozo material; não pode sofrer a transformação por que passa até tornar-se uma pura saudade o aroma das rosas e das violetas. O idealismo de que é suscetível a cozinha artística revela-se em não ser principalmente ao sabor que ela visa: a sua ambição seria deixar ao paladar uma sensação vaga, leve, imaterial, quase apenas de um perfume, como a do buquê no vinho, à vista, porém, a impressão durável de um quadro, de uma natureza morta pintada por um mestre. Que ingrato colorido, porém, o dos seus molhos, dos seus cremes nevados, das suas gelatinas e primeurs!

Há, entretanto, poesia real, verdadeira, no alimento são, natural, pátrio; há sentimento, tradição, culto de família, religião, no prato doméstico, na fruta ou no vinho do país. A nós, do norte do Brasil, criados em engenhos de cana, o aroma que rescende das grandes caldeiras de mel nos embriaga toda a vida com a atmosfera da infância. E assim como há poesia na cozinha de cada país, há um quid de arte na cozinha ornamental, cozinha de refinamento, que se procura elevar pelo desenho e pela forma até o motivo do banquete, -e fazer história, fazer política...

O leitor me perdoará a confissão, mas eu não devia calar em minha formação a influência mundana estrangeira, a influência aristocrática, artística, suntuária que descrevi. Assim como a notei em um banquete real em Grosvenor Gardens, poderia notá-la em um baile dos Astors em Nova York; é a mesma impressão de uma tarde de corso na Villa-Borghese, de uma manhã de drawing room em Londres, do grande dia de corridas em Ascot; a mesma do jubileu da rainha em Westminster e do jubileu de Leão XIII no Vaticano. Não posso negar que sofri o magnetismo da realeza, da aristocracia, da fortuna, da beleza, como senti o da inteligência e o da glória; felizmente, porém, nunca os senti sem a reação correspondente; não os senti mesmo, perdendo de todo a consciência de alguma coisa superior, o sofrimento humano, e foi graças a isso que não fiz mais do que passar pela sociedade que me fascinava e troquei a vida diplomática pela advocacia dos escravos.

O fato, entretanto, é este: se eu fosse somente capaz da impressão política, social, a escravidão, a oligarquia dos partidos, e minha falsa compreensão do papel do imperador e da função monárquica, ter-me-iam talvez, depois da morte de meu pai, feito queimar o meu Bagehot e alistar-me sob a bandeira norte-americana. Se, por outro lado, no momento de que dependia a minha carreira, eu tivesse tido exclusivamente a impressão de arte, teria, quem sabe, igualmente inclinado em política para a República. É como explico em Portugal o republicanismo de Ramalho Ortigão, Bordallo Pinheiro, Oliveira Martins, em suas estréias: como uma revolta contra o caráter inestético da instituição, do reinado em que desabrocham; é assim que explico entre nós o republicanismo de Castro Alves, de Ferreira de Menezes, do meu Pedro de Meirelles, de Salvador de Mendonça, de Quintino Bocaiúva, de Lafayette Rodrigues Pereira, de Pedro Luís, e outros. O que me impediu de ser republicano na mocidade foi muito provavelmente o ter sido sensível à impressão aristocrática da vida.

Capítulo XII

A influência inglesa

A impressão mundana, aristocrática, era para mim uma influência política puramente negativa, como o tinha sido a impressão artística da Itália ou a impressão literária de Paris. O efeito da sociedade, como o das artes e das letras, não era outro senão o de impedir o desenvolvimento do gérmen revolucionário que as leituras francesas dos vinte anos tinham deixado em meu espírito. Sem aquelas influências, entregue a meus próprios impulsos, do mesmo modo que meu liberalismo inato degenerou em radicalismo, -o qual foi em mim um puro fenômeno de estagnação em um espaço político fechado-, o radicalismo teria degenerado em republicanismo.

Um distinto escritor, que costumo encontrar na Revista Brasileira, o dr. Pedro Tavares, dessa ordem de republicanos a que chamarei prematuros, mais de uma vez me tem estranhado o que chama o desvio de minha evolução política. Para ele o liberalismo desenvolve-se, completa-se, termina, naturalmente, pelo republicanismo. Terá ele, porém, certeza de que Mirabeau, se vivesse, havia de figurar na Convenção? A crítica é igual à que se fizesse, por exemplo, a Lafayette, por não ter abraçado a República em França depois de ter ajudado a fundá-la na América. O fato é que no republicanismo, falo do sincero, do verdadeiro, há um ideal, mas há também um ressentimento das posições alheias, como no socialismo, no comunismo, no anarquismo há ideal, mas há também inveja, e desta é que parte, quase sempre, o impulso revolucionário.

Sem as influências negativas da imaginação, eu teria sido talvez levado até à República, como tantos que depois se arrependeram; aquelas influências me contiveram somente porque me desviaram, ou me distraíram da política. Eu era, porém, por natureza, um temperamento político. Cedo ou tarde, a política tornaria a seduzir-me, e só uma influência positiva, que criasse em mim uma segunda natureza e modificasse o meu temperamento em suas tendências absolutas, radicais, podia tornar-me monárquico de razão e de sentimento, como fiquei. Essa influência foi o contágio do espírito inglês, o que pude apropriar-me dele.

A minha passagem pela Inglaterra deixou-me a convicção, que depois se confirmou nos Estados Unidos, de que só há, inabalável e permanente, um grande país livre no mundo. A Suíça é um país livre, mas é um pequeno país. Os Estados Unidos são um grande país, mas há nele, sem falar da sua justiça, da lei de Lynch, que lhe está no sangue, das abstenções em massa da melhor gente, do desconceito em que caiu a política, uma população de 7 milhões, toda a raça de cor, para a qual a igualdade civil, a proteção da lei, os direitos constitucionais são contínuas e perigosas ciladas. A França é um grande país e um país livre, mas sem espírito de liberdade arraigado, sujeito sempre às crises das revoluções e da glória.

O que deixa tão funda impressão na Inglaterra é, antes de tudo, o governo da Câmara dos Comuns: a suscetibilidade daquele aparelho, ainda perante as mais ligeiras oscilações do sentimento público, a rapidez dos seus movimentos e a força, em repouso, de reserva, que ele concentra. Mas ainda, porém, do que a Câmara dos Comuns, é a autoridade dos juízes. Somente na Inglaterra, pode-se dizer, há juízes. Nos Estados Unidos a lei pode ser mais forte que o poder; é isto que dá à Corte Suprema de Washington o prestígio de primeiro tribunal do mundo, mas só há um país no mundo em que o juiz é mais forte que os poderosos: é a Inglaterra. O juiz sobreleva à família real, à aristocracia, ao dinheiro, e, o que é mais do que tudo, aos partidos, à imprensa, à opinião; não tem o primeiro lugar no Estado, mas tem-no na sociedade. O cocheiro e o groom sabem que são criados de servir, mas não receiam abusos nem violência da parte de quem os emprega. Apesar de seus séculos de nobreza, das suas residências históricas, da sua riqueza e posição social, o marquês de Salisbury e o duque de Westminster estão certos de que diante do juiz são iguais ao mais humilde de sua criadagem. Esta é, a meu ver, a maior impressão de liberdade que fica da Inglaterra. O sentimento de igualdade de direitos, ou de pessoa, na mais extrema desigualdade de fortuna e condição, é o fundo da dignidade anglo-saxônica.

Exceto essa idéia da justiça, que se foi formando e crescendo em mim, à medida que lia no Times a seção dos tribunais, curso prático de liberdade que a nenhum outro se compara, posso dizer que não fiz na Inglaterra senão verificar por mim mesmo a precisão, a penetração, a agudeza de espírito de Bagehot. O seu pequeno livro, cotejado com o que eu via, ouvia e sabia, explicava-se, tornava-se claro, sensível, palpitante no que antes era obscuro, indiferente; fazia-me compreender o mecanismo de que ele formulara a teoria: passava a ser para mim, em direito constitucional, um verdadeiro evangelho. Uma coisa era ter assimilado aquelas idéias logo ao sair da academia a outra ver funcionar o próprio sistema, receber a impressão viva do que apenas eu aprendera ou decorara.

Essa dupla influência do governo inglês e da liberdade inglesa era, por sua natureza, monárquica. Não podia deixar de inclinar-me interiormente à Monarquia a idéia de que o governo mais livre do mundo era um governo monárquico. Ainda assim um estrangeiro inteligente não seria no seu país inabalavelmente monarquista somente porque o governo chegou na Inglaterra a um grau maior de perfeição do que nos Estados Unidos, que tomaram a forma republicana. Desde que não tínhamos no Brasil os elementos históricos que a liberdade inglesa supõe, a não querer ou cometer o maior erro que se pode cometer em política, -o de copiar de sociedades diferentes instituições que cresceram-, eu não podia repelir a República no Brasil somente por admirar a Monarquia inglesa de preferência à Constituição americana. Era preciso alguma coisa mais, no que respeita à forma de governo, para eu não me deixar arrastar.

A transformação, ou, melhor, a modificação de ideal político que sofri na Inglaterra era, todavia, a preliminar, o preparo para a impenetrabilidade que ofereci depois à aspiração republicana. Até então, a forma republicana me parecera superior a monárquica pelo lado da dignidade humana. Foi na Inglaterra que senti que nunca a nossa raça atingiu ao mesmo ponto de altivez moral que em uma Monarquia. Como o privilégio dinástico, que também o meu radicalismo rejeitava, eu agora o via bem, não se fazia no século 19 senão aproveitar a tradição nacional mais antiga e mais gloriosa para neutralizar a primeira posição do Estado. A concepção monárquica ficava sendo esta: a do governo em que o posto mais elevado da hierarquia fica fora de competição. Era uma concepção simples como a da balança, como a do eixo. Nenhum direito se transformou tanto no decurso deste século no Ocidente como o direito real, que de divino passou a ser passivo. O rei da Inglaterra, se quiser influir na política com as suas idéias próprias e a sua iniciativa, tem primeiro que abdicar e -se a hipótese é admissível-, fazer-se eleger à Câmara dos Comuns ou tomar a decisão da casa dos Lordes. Entre o czar e a rainha Vitória a diferença de autoridade é infinitamente maior do que entre a rainha Vitória e o presidente dos Estados Unidos. O governo pessoal é possível na Casa Branca; é impossível em Windsor Castle.

O chamado privilégio é assim um cargo honorífico, uma tradição nacional, uma conveniência pública, quase uma fórmula algébrica de equilíbrio de forças, de conservação de energia, de moto contínuo. É tão absurdo ressentir-se alguém em sua dignidade da existência desse ponto fixo do sistema político, como seria o ressentir-se da existência do eixo da terra ou da estrela polar. A muitos é impossível deixar de ver no ocupante do trono o homem ou a mulher, o acidente, a pessoa, para ver a função, a existência tradicional, a lei do movimento político. Desses pode-se dizer que são deficientes em imaginação simbólica; mas desaparecendo o simbolismo, podemos estar certos de que desaparecerá também o ideal na religião, na poesia, na arte, na sociedade, no Estado.

A Monarquia constitucional ficava sendo para mim a mais elevada das formas de governo: a ausência de unidade, de unidade, de permanência, de continuidade no governo, que é a superioridade para muitos da forma republicana, convertia-se em sinal de inferioridade. Esse ideal republicano, de um Estado em que todos pudessem competir desde o colégio para a primeira dignidade, passava a ser a meus olhos uma utopia sem atrativo, o paraíso dos ambiciosos, espécie de hospício em que só se conhecesse a loucura das grandezas. Não era este, de certo, o termo da evolução humana, pela qual rezamos todos os dias, quando repetimos o adveniat regnum tuum. Desistir da idéia monárquica não é tão fácil como parece. Mesmo o sistema planetário é monárquico, diz Schopenhauer. O universo é a Monarquia por excelência. Em vez de Cosmos, Humboldt podia ter dado ao seu livro o título de Monarquia. A idéia central de infinito, isto é, Deus, não podia deixar de ser em toda a esfera da inteligência e da atividade humana o verdadeiro ideal. Até hoje a força, transformada em direito e em tradição, terá sido a gênese do ideal monárquico; um dia ele sairá da ciência, da inteligência, da virtude, da santidade. O ideal humano, todo ele, toda a estética religiosa, social, artística, podemos ficar certos, está inteiro na linha: «E criou Deus o homem à sua imagem».

Eu encontrava republicanismo na Inglaterra em espíritos de primeira ordem; havia republicanismo, mais ou menos consciente, em Spencer, em Mill, em Bagehot, em Bright, em Morley, em George Eliot, em G. Henry Lewes, mas era republicanismo sine die, conservado no sentimento monárquico, para impedi-lo de corromper-se. A Inglaterra não seria a nação livre que é se não houvesse no seu caráter uma fibra que impede a veneração dinástica de degenerar em superstição, a «loyalty» de tornar-se servilismo... No coração inglês a fidelidade à Câmara dos Comuns precede a fidelidade à realeza, e dessa regra não faz exceção a própria dinastia, que sente como a nação. Esse fundo de republicanismo, latente, esquecido até, mas que a menor provocação faria ressuscitar o mesmo que sob os Stuarts, longe de ser incompatível com o monarquismo, é que o tem conservado, restringindo, reduzindo o poder real à função que é hoje, puramente moderadora e, só raras vezes, provisoriamente arbitral. Esse republicanismo não impedirá -pelo contrário-, os que o têm em reserva, de inclinar-se diante da rainha e defender a integridade da sua prerrogativa esvaecente.

Como eu disse, porém, não me bastaria mesmo essa profunda modificação de ideal político para impedir-me de acompanhar o movimento republicano entre nós, dadas certas contingências. Eu podia ser monarquista de ideal e julgar a República, em um momento dado, o melhor governo praticável, como se pode ser republicano de ideal -e muitos o são na própria Inglaterra-, e fazer da Monarquia o seu noli me tangere. Além disso, eu podia deixar arrastar-me por uma corrente de entusiasmo, por uma solidariedade de partido, por amizades políticas, ou, mesmo, por algum interesse que soubesse disfarçar-se e insinuar-se-me no espírito, -sob a forma de um sacrifício à causa pública. As idéias para espíritos que vêem os lados opostos das coisas, o que tudo tem de bom e de mau, são pobres, frágeis, antemurais. É preciso, para sustentar a fé política, mais do que a lucidez da inteligência; a não haver um sentimento que interesse o coração, ou uma espécie de ponto de honra que se imponha ao caráter, é indispensável um espírito uniforme de conduta, uma regra certa de direção. No meu caso particular, o que me poupou da ilusão republicana foi um toque apenas do espírito inglês.

Capítulo XIII

O espírito inglês

Sem ele a convicção da superioridade do tipo político da Inglaterra não teria bastado. Quanto à sensação aristocrática da vida, de que também falei, essa, no combate dos partidos, não teria resistido ao primeiro choque. O que entendo por espírito inglês neste caso é a norma tácita de conduta a que a Inglaterra toda parece obedecer, o centro de inspiração moral que governa todos os seus movimentos. Vi quase nada da Inglaterra, sinto dizê-lo, mas vi pedaços que me impedem quase de querer ver o resto, exceto Oxford, cujo lugar tenho vago em minha galeria interior, à espera do seu pequeno quadro. Vi, por exemplo, Cantuária, e tenho no pensamento a calma, o silêncio, a grandeza daquela imponente massa recolhida em si mesma. Vi, na semana de Cowes, Southampton e a ilha de Wight, pequena sombra da Inglaterra no mar, sombra colorida, movente e alegre. Fui em carruagem -poderá haver um dia mais completo de romance?- de Straford-on-Avon, atravessando Warwick, a Kenilworth. Passei dias à margem do Tâmisa, entre Windsor e Henley, e creio que tive reminiscências do paraíso terrestre. É realmente a vinheta mais perfeita que se podia imprimir à margem do capítulo II, v. 10 do Gênese: «Deste lugar de delícias saía um rio que regava o paraíso». Em toda parte a impressão que tive da Inglaterra foi a mesma: ruínas cobertas de hera, antigas gravuras expostas em Pall Mall, montes de trigo nos campos ceifados, castelos recortados no meio de parques florestais, velhas estalagens à beira da estrada, botes encostados ao arvoredo de Cliveden, grandes transatlânticos nas docas de Southampton, sempre a mesma impressão, o cunho inglês estampado em tudo. A sensação foi a mesma para mim da Inglaterra, vista de dentro, na segurança de seus recursos, e vista de fora, inatacável nos seus altos cliffs brancos, a cujos pés o mar se abre como uma trincheira.

É, porém, na sua feição política somente que considero neste momento o espírito inglês, e, ainda mais restritamente, o modo por que ele se manifesta nos movimentos reformistas, a influência que tem sobre os espíritos inovadores. Politicamente, o espírito inglês pode decompor-se em espírito de tradição, em espírito de realidade, em espírito de força e generosidade de progresso e melhoramento, em espírito de ideal: supremacia anglo-saxônia e supremacia cristã no mundo.

A veneração imprime na Inglaterra aos precedentes uma autoridade quase sagrada, o tira a tudo que tem caráter histórico ou função nacional, a feição individual em que se fixa a vista de outros povos. A rainha Vitória é mais do que a augusta, cuja imagem cada família venera no seu lararium interior; é a realeza normanda, Plantagenet, Tudor. Como a rainha, a Constituição. Esta não é mais do que uma procuração em causa própria dada pela nação inglesa à Câmara dos Comuns, e mesmo assim, um mandato de que nunca se viu o instrumento. Nenhum grande legista a redigiu, nenhum homem de Estado a ideou: formou-se espontaneamente, inconscientemente, como a língua inglesa, a arquitetura perpendicular, os contos da nursery. A tradição, como base do temperamento nacional, produz no inglês a faculdade de admirar a massa histórica de uma instituição, como o arquiteto admira a grandeza e o detalhe de uma catedral gótica. Para o inglês, se a liberdade é o grande atributo do homem, se ele a sente como o desenvolvimento da personalidade, a ordem é a verdadeira arquitetura social. Ele compreende e penetra a grandeza do sistema que se perpetua mais do que a das revoluções, ao contrário do latino, que pode viver e ser feliz em um solo político oscilante, sujeito a terremotos contínuos. Daí, para ele o amor da lei e a simpatia, interesse, carinho mesmo, pela autoridade encarregada de executá-la; daí, também, o prestígio do juiz, a popularidade das sentenças que aterrorizam o criminoso, ao contrário das facilidades que este encontra nos países onde decai o instinto de conservação.

Se numa organização assim formada existe, ao lado dessa quase superstição do costume, o espírito de aperfeiçoamento e de progresso, o que resulta é que as reformas, as modificações serão governadas por algumas regras elementares. Uma destas será conservar do existente tudo o que não seja obstáculo invencível ao melhoramento indispensável; outra, que o melhoramento justifique -e para justificar não basta só compensar- o sacrifício da tradição, ou mesmo do preconceito que o embarga; outra regra é respeitar o inútil que tenha o cunho de uma época, só demolir o prejudicial; outra, substituir tanto quanto possível provisoriamente, deixando ao tempo a incumbência de experimentar o novo material ou a nova forma, para consagrá-lo ou rejeitá-lo; uma última, esta rara e extrema, será reformar, no sentido originário da instituição, o mais antigo, procurando o traçado primitivo. Dessas regras resulta o dever de demolir com o mesmo amor e cuidado com que outras épocas edificaram. Nenhum explosivo é legítimo, porque a ação não pode ser de antemão conhecida; é preciso demolir a nível e compasso, retirando pedra por pedra, como foram colocadas.

O que, porém, dirige o espírito de progresso é o espírito de realidade, espírito prático, positivo, que se manifesta pela rejeição de tudo que é teórico, a priori, tentativo, lógico, ou que pretenda à perfeição, à finalidade, à uniformidade, à simetria. A esse espírito corresponde, na ordem política, a idéia de crescimento: as instituições tem o seu habitat como as plantas, as suas latitudes e terrenos próprios, condições especiais de aclimação, obstáculos e perigos de transplantação. Não basta que a reforma seja indicada pela experiência, baseada em uma forte verossimilhança; é preciso que tenha afinidade com as outras instituições. Esse espírito prático, positivo, é a experiência do utilitarismo, do espírito de criar e acumular riqueza, característico da raça. O utilitarismo manifesta-se em que as reformas devem ter uma vantagem econômica, pelo menos indireta, e justificar-se por algarismos. Ao lado, porém, da corrente utilitária, há a corrente imaginativa ou de ideal, moral, nacional, religiosa.

A varonilidade impõe ao reformador não fazer vítimas emissárias, responsabilizando indivíduos ou instituições pelos erros comuns da sociedade, não lavar as mãos como Pilatos das injustiças da multidão, não preferir o fraco para sobre ele descarregar o golpe, em uma palavra, o flair-play. O patriotismo manda não consentir que o espírito de partido suplante o de responsabilidade para com o país. O que, entretanto, na Inglaterra alimenta, renova e purifica o patriotismo, é outra espécie de responsabilidade: a do homem para com Deus. Só quando o orgulho britânico e a consciência cristã estremecem juntos e se unem em uma mesma causa, é que o sentimento inglês desenvolve a sua energia máxima. A inspiração da vida pública na Inglaterra vem em grande parte da Bíblia. A política e a religião sentem que terão sempre muito que fazer em comum, que uma e outra têm o mesmo objetivo prático -elevar a condição moral do homem, e o efeito desse último e, talvez principal elemento do espírito inglês, em relação às reformas, é fazer o argumento moral prevalecer sobre o argumento utilitário.

Tomando-se o espírito inglês, como acabo de delinear, que é que ele inspirará na Inglaterra a republicanos de ideal, que se subordinem, entretanto, como indivíduos, à consciência coletiva, ao instinto nacional? Há uma página interessante em On Compromise, livro típico de casuística intelectual inglesa, escrito por John Morley. Essa página é a melhor ilustração do que eu disse antes sobre o republicanismo que pode existir por baixo do sentimento monárquico, até para dar-lhe brilho e calor. Ele figura um inglês convencido de que a Monarquia, mesmo meramente decorativa, tende a engendrar hábitos sociais degradantes. O dever desse republicando será deixar a Monarquia de lado e abster-se de todos os atos, em público e em particular, que possam, mesmo remotamente, alimentar o espírito de servilismo. «Tal política não interfere, diz-nos mr. Morley, com as vantagens que se diz ter a Monarquia, e tem o efeito de tornar as suas supostas desvantagens tão pouco prejudiciais quanto possível...»

Desse espírito inglês eu disse que tive apenas um toque. Na questão da abolição, entretanto, não me desviei dele. A abolição era uma reforma que o espírito inglês anteporia a todas as outras por toda ordem de sentimento. Se a abolição se fez entre nós sem indenização, a responsabilidade não cabe aos abolicionistas, mas ao partido da resistência. O meu projeto primitivo, em 1880, era a abolição para 1890 com indenização. Se em qualquer tempo um ministro da coroa chegasse às Câmaras e dissesse: «A escravidão não pode mais ser tolerada no Brasil, o nosso grau de civilização repele-a, e eu venho pedir que decreteis a liberdade imediata dos escravos existentes, votando os precisos recursos para a respectiva desapropriação», poderia haver abolicionista que quisesse prolongar a escravidão? Nenhum de nós assumiria a odiosa responsabilidade. Esse homem, porém, não surgiu dentre os estadistas do Império; todos pensavam, ou que a abolição arruinaria a lavoura e o crédito do país, ou que o Brasil não era rico bastante para pagar a libertação moral do seu território. Podia haver abolicionistas contrários à indenização; de fato, os houve; mas podiam eles, acaso, votar nunca contra uma lei de abolição imediata? A responsabilidade foi assim dos partidos, que se comprometeram perante a lavoura a resistir ao movimento, e que teriam, do seu ponto de vista, feito melhor sacando sobre o futuro e desapropriando os escravos, quando o princípio da não-indenização ainda não tinha triunfado no projeto Dantas e na segunda lei de 28 de setembro. Essa intuição só a teve meu querido amigo José Caetano de Andrade Pinto no Conselho do Estado; não lhe deram, porém, valor. Com relação à lei de 13 de maio devo dizer que em 1888 era tarde para se pleitear a eqüidade da desapropriação diante de um movimento triunfante, quando já a maior parte dos escravos tinha sido liberalmente alforriado pelos senhores e o resto da escravatura estava em fuga, depois, sobretudo, de estar por lei consagrado o princípio de que a escravidão era uma propriedade anômala, a que o legislador marcava sem ônus para o Estado o prazo de duração que queria.

Em relação à Monarquia do Brasil aquele toque do espírito inglês bastou para traçar-me uma linha de que eu não poderia afastar-me, mesmo querendo. Era um ponto de honra intelectual, um caso de consciência patriótico definitivamente resolvido em meu espírito, aos 23 anos. Suprimir a Monarquia que tínhamos, ficou claro para mim desde então, era uma política a que eu não poderia nunca associar-me; eu poderia tanto banir, deportar o imperador, como atirar no mar uma criança ou deitar fogo à Santa Casa. Quebrar o laço, talvez providencial, que ligava a história do Brasil à Monarquia, era-me moralmente tão impossível, como me seria no caso de Calabar entregar Pernambuco por minhas próprias mãos ao estrangeiro. Faltar-me-iam forças para uma intervenção dessas no destino do meu país. Seria atrair sobre mim um golpe de paralisia, ferir-me eu mesmo de morte moral. Minha coragem recuava diante da linha misteriosa do Inconsciente Nacional. O Brasil tinha tomado a forma monárquica, eu não a alteraria.

O que vi nos Estados Unidos não fez senão calcar mais profundamente a impressão monárquica que eu levava da Inglaterra. Foi uma segunda chave, de segurança, que fechou em meu pensamento a porta que nunca mais se devia abrir. O espírito político americano, com certas modalidades que não quero amesquinhar, mas que me parecem secundárias, é uma variedade do espírito inglês, o qual merece antes ser chamado espírito anglo-saxônio, porque é um espírito comum de raça, de grande família humana, superior a formas e acidentes de instituições.

Capítulo XIV

Nova York (1876-1877)

Talvez o melhor modo de mostrar o que devo aos Estados Unidos seja reproduzir páginas do meu diário de 1876-77. Cheguei pouco tempo depois da visita do imperador; pude assim recolher o eco da impressão deixada por ele. O ano que passei na grande República foi um dos seus momentos políticos mais interessantes, porque foi o da eleição de Tilden. Como se sabe, os democratas ganharam as eleições de 1876, mas as juntas apuradoras republicanas de alguns Estados do Sul manipularam as atas de forma a dar maioria aos eleitores do seu partido. Ambos os lados reclamavam a vitória, e, como a Câmara dos Representantes era democrata e o Senado republicano, a perspectiva era que o Congresso não chegaria a acordo até março, e que os Estados Unidos teriam dois presidentes com todas as probabilidades de uma guerra civil. O espírito prático, o espírito de transação da raça anglo-saxônia interveio, e as duas casas do Congresso concordaram em entregar o julgamento a uma comissão especial, tirada de cada uma delas e do Supremo Tribunal. A diferença entre Inglaterra e os Estados Unidos não pode ser melhor apresentada do que nesse caso: a resolução americana foi como a inglesa, o acordo em vez da guerra civil dos países latinos, mas nos Estados Unidos, ao contrário do que aconteceria na Inglaterra, a comissão não se elevou acima do espírito de facção, as votações foram todas estritamente partidárias, o que quer dizer, figurando nela cinco membros da Corte Suprema, que o mais alto tribunal da União era composto de politicians. Com juízes ingleses a decisão teria, talvez, sido injusta, mas não seria nunca parcial, dada por motivo político; não se contariam de antemão os votos dos juízes como os dos congressistas. Em tão pouco tempo como tive, nenhum estudo comparativo da educação, da seriedade e dos costumes políticos dos dois países podia ser mais proveitoso para mim do que foi essa campanha eleitoral de 1876-1877 e o desenlace que ela teve. As qualidades e as deficiências da política americana estavam todas visíveis e patentes nessa lição de coisas. Eu tinha acompanhado a luta dos partidos para a captura da cadeira presidencial com o maior interesse, cada boss me era conhecido, como o era cada figura de senador, a opinião de cada jornalista influente, cada nuança das duas convenções. É realmente o momento para o estrangeiro abranger num relance a vida política dos Estados Unidos, esse ano eleitoral. Eu tinha chegado a Nova York a tempo de familiarizar-me com as questões, as alusões, a gíria política do formidável canvass que se ia travar e do qual a política da reconstrução no Sul devia ser o eixo. Interessava-me o Tammany Ring, o Whiskey Ring, o cisma dos Independentes, o Civil-Service Reform, o Railroad Land-Grants, como me interessava o encontro de Gladstone com Disraeli na questão do Oriente, ou a luta de Thiers com o duque de Broglie. Durante mais de um ano fui um verdadeiro americano nos Estados Unidos, como o provérbio manda ser romano em Roma. Era o meio de penetrar, de compreender, de sentir a vida política do país, se eu o queria, e este fora o meu motivo ao desejar ir para os Estados Unidos.

O meu diário desse ano é antes um registro de pensamentos do que de impressões americanas. Há muito pouca política nele, o que mostra que eu vivia em uma atmosfera diversa da que os homens de partido respiram, mesmo no estrangeiro. Reproduzo algumas dessas notas para mostrar isto mesmo, que o meio norte-americano teve sobre mim o efeito que muita vez tem sobre os próprios americanos, de desinteressá-los da política, exceto como e espectadores. Posso dizer que vivi esses dois anos, de 1876 e 1867, na sociedade de Nova York, onde se está tão longe da política americana como em Londres ou em Paris; mas o mundo exterior, que me cercava por toda parte, a rua, a praça pública com os seus cartazes e procissões eleitorais, os jornais com as cenas do Congresso e as torrentes de eloqüência dos meetings, não podia deixar de atrair-me como todo espetáculo nacional curioso e único, além, está visto, do interesse intelectual que eu tinha em saber como um tão grande país era governado e dirigido, as forças sociais e influências morais que presidiam ao seu colossal desenvolvimento. Aqui estão ao acaso algumas das notas.

«22 de outubro. O discurso de Carl Schurz pronunciado ontem no Union League Club, expõe o sentimento republicano na melhor luz. O principal elemento da presente campanha começa a ser a Questão do Sul. Com a aproximação do dia 7 de novembro esse ponto de vista tornar-se-á mais importante do que todos os outros. A camisa ensangüentada (bloody-shirt) caiu em completo descrédito, mas é preciso contar como receio de que o Sul, unido, composto dos antigos Estados rebeldes e onde os candidatos são todos soldados da Confederação, possa dominar o Norte tão cedo, depois da guerra, passando o governo americano a ser representado por antigos separatistas. Esta idéia assunta os que põe acima de tudo a União, mesmo quando seja preciso reduzir os Estados impenitentes a territórios sujeitos ao despotismo militar e entregues politicamente ao domínio conjunto dos carpet-baggers e dos negros. Este elemento decidirá, provavelmente, em favor de Hayes a luta que de outra forma seria nos últimos anos desonra a política americana.»


«1º de janeiro. Cheguei a Washington, em Riggs House. Pela primeira vez ponho o uniforme. À Casa Branca. Apresentação ao presidente, depois à casa do secretário de Estado, mr. Fish. A chamada dinastia Grant, a filha de mrs. Sartoris; a netinha recebendo os cumprimentos pelo avô. Vou com o capitão-tenente Saldanha de Gama visitar os membros da Corte Suprema: através da terrapine e das baked oysters todo dia, até que em casa do secretário da Marinha um solene the reception is over! põe termo à nossa peregrinação de New-Year's day


Eu tinha conhecido Saldanha na Exposição de Filadélfia, depois ligamo-nos muito em Nova York, onde morávamos no mesmo hotel, o Buckingham. Ele ria-se sempre muito daquele: the reception is over! Pobre Saldanha! nascido para o mundo, para o amor, para a glória, quem imaginaria, ao vê-lo naquele tempo em Nova York, que o seu destino seria o que foi? A esfinge da vida que lhe dera, ainda adolescente, um dos seus enigmas indecifráveis para resolver, destruindo nele a aspiração de ser feliz, reapareceu de novo a embargar-lhe o passo no momento em que podia disputar a primeira posição do país.

«11 de janeiro. À casa de mr. John Hamilton, filho de Alexandre Hamilton. Um homem do passado, voltado todo para ele. Diz-me que o Brasil deve conservar o mais tempo possível a sua formação monárquica. Este Whig não acredita que países como os nossos possam durar unidos sob outra forma de governo. Emoção ao mostrar-me o retrato de Luís XVI, presente feito ao pai...»


«22 de fevereiro. Almocei com mr. Marshall no Knickerbocker Club, hoje aniversário de Washington; almoçavam mr. Manton Marble, ex-redator do World, mr. Appleton, o grande editor, mr. Stout, mr. Robinson, mr. Pell, e outros. Ao toast feito ao imperador respondi, como todas as saúdes eram humorísticas, com um ensaio de humor. Disse que nós tínhamos tido receio de que os americanos o guardassem, lembrando-se de que uma grande autoridade para eles, o general Lafayette, dissera da Monarquia constitucional: "Aqui está a melhor das repúblicas". Mas, desde que eles tinham deixado o imperador partir, eu fazia votos para que os dois países conservassem suas instituições como uma aposta de liberdade perpétua entre a Monarquia e a República. Quanto a Washington, fiz uma reserva à sua grande obra: a de ter fundado a capital em uma cidade, sem dúvida, muito agradável, mas para a qual sempre se vai a custo, quando se tem que deixar Nova York.»


«Março, 2. Hoje fui ao Congresso ver os destroços da véspera. (Hayes fora proclamado presidente por um voto.) Não há alegria no lado republicano; no democrata a decepção é grande; mas, em pouco tempo, quando a ferida tiver cicatrizado e se pensar no futuro, esse partido ficará contente de se terem passado as coisas como vimos ontem. O general Banks, antigo speaker da Câmara, cedeu-me a sua cadeira no próprio recinto do Congresso (em sessão), depois veio sentar-se nela o meu ministro, e fomos apresentados a diversos deputados, notáveis, entre eles Lamar e Garfield.»


«8 de março. O presidente propõe uma emenda constitucional, tornando o prazo da presidência de seis anos, sem reeleição. Essa emenda provém do medo que se tem de que as eleições presidenciais sejam tão disputadas pelos dois partidos, que dividem em duas metades o país, como foram as do outono passado, e que os negócios de três em três anos tenham um quarto ano de interrupção e de paralisia, como se tudo peregrinasse e a anarquia ou a guerra civil, talvez a separação, pudesse seguir-me a uma eleição duvidosa. Os interesses do comércio e os da propriedade conseguirão um dia alongar o prazo até seis anos, e como com a maior escassez de eleições elas tendem a tornar-se mais renhidas, não há prazo para o país correr todos os seis anos um risco que não quer correr todos os quatro. Assim, a eleição crítica do chefe do Estado irá sendo o mais possível espaçada, e não é impossível que a República americana se aproxime tão de perto das monarquias eletivas, que, vendo o perigo desta forma, ela prefira a tranqüilidade das longas dinastias...

É curioso que o que há de mais perfeita nesta democracia seja a mulher, que é aqui o ente mais aristocrático do mundo.»


«2 de abril. A idéia de governo hoje é inteiramente diversa da idéia de governo antigamente; tomemos, por exemplo, a liberdade de imprensa nos Estados Unidos, que representavam a nova educação política, e a censura na Rússia. Há muito que dizer em favor de se deixar o pensamento inteiramente livre e sobre os inconvenientes da repressão; mas o correto é que se formam duas sociedades diversas pelo respeito forçado à autoridade e pelo desprestígio dela. A dificuldade que há no caminho da tradição é que a dignidade, ou a altivez pessoal, não quer sacrificar-se aos grandes resultados morais e que os homens se consideram todos iguais por um sentimento que já é indestrutível. Eu sou seguramente igual a um rei, como indivíduo, mas, como do princípio da Monarquia vêm muitos bens para a sociedade, coloco-me em plano inferior. Isso não é quebra de dignidade humana, ainda que a altivez pessoal tenha que se curvar


«13 de maio. Diz-se que Tilden não reconhece Hayes como presidente. É o caso de algum amigo ler-lhe o Kriton. Quando Kriton quer convencer a Sócrates de que deve fugir para evitar uma morte injusta, Sócrates nega-se com o fundamento de que a sentença, injusta como é, é todavia inteiramente legal. Se os juízes fizeram mal em pronunciá-la, ele faria pior em não se sujeitar às leis de Atenas, porque o cidadão que goza da proteção e dos direitos que uma cidade lhe oferece, tem com ela o pacto tácito de respeitar as suas leis. Sócrates recusava a vida por ser ilegal, ainda que soubesse que adviria da sua fuga mais bem do que mal à democracia ateniense. Não devia Tilden reler esse diálogo? Injusta como foi a decisão contra ele, foi estritamente legal, não no sentido de estar de acordo com o direito, mas por ser dada pelos intérpretes competentes da lei. Ele só pode chamar para si e o seu partido as simpatias de todos, sujeitando-se à decisão proferida, salvo o seu direito de brandir contra o novo presidente as fraudes pelas quais chegou ao poder.»


«Junho, 13. Ontem realizou-se no Manhattan Club a recepção dos swallow-tails aos candidatos democráticos eleitos e counted out. Tilden falou pela primeira vez depois da inauguração de Hayes, à qual chamou o mais portentoso acontecimento na história da América. América quer dizer Estados Unidos, porque no México e no Peru há, cada dia, acontecimentos desses muito mais portentosos. "Os males no governo crescem com o êxito e com a impunidade. Não se restringem a si mesmos voluntariamente. Não podem ser nunca limitados senão por forças externas. Uma grande e nobre nação não separa a sua vida política da sua vida moral". Tudo isto é muito exato. O Brasil é a prova. Deve o povo, ou não, fazer política? O adiantamento de um país prova-se pela extensão da idéia de que a política é inseparável dos mais vitais interesses da sociedade, e por aí, de cada um. No Brasil, essa idéia não se derramou, pelas condições especiais em que nos achamos, de território, população, trabalho escravo, etc. Aqui ela está em cada cabeça. O que mais me surpreendeu nessa reunião de Manhattan, foi o governador de Nova York, este de jure e de facto, mr. Robinson, chamar em público ao presidente dos Estados Unidos um presidente fraudulento. Depois de ter dito que não teriam que esperar até 1880 para pô-lo fora da Casa Branca, terminou assim, referindo-se a Tilden e a Hendricks: "Fellow citizens, tivestes a primeira oportunidade de saudar o presidente e o vice-presidente dos Estados Unidos depois da sua eleição. Eu vos felicito e acredito que este é apenas um presságio de fatos que se hão de suceder". A alocução do governador do principal Estado da União proclamando a rebelião, legal ou ilegal, é característico do regime político americano, e do laissez-faire, laissez-passer de que goza neste país a palavra. As revoluções de língua e pena não são nunca um delito; são um desabafo. A boca do politician é uma válvula de segurança das instituições. É o país das válvulas automáticas.»


«19 de junho. Os jornais têm hoje um fato interessante: a visita feita por Frederic Douglass ao seu velho senhor, que deixou na adolescência, para começar a vida de aventuras que o levou até ser marshall em Washington e o grande orador da abolição que foi. "Vim antes de tudo, disse Douglass, ver meu velho senhor, de quem estive separado 41 anos, apertar-lhe a mão, contemplar-lhe o velho rosto bondoso, brilhando com o reflexo da outra vida."

Esta cena dá uma idéia mais tocante da escravidão no Sul do que a Cabana do Pai Tomás. O lugar é St. Michel, Talbot, County, Md. O nome do senhor Capt, Thomas Aould. Marshall Douglass ouviu a sua verdadeira cidade da boca do seu senhor, em cujos livros ele figura assim: "Frederic Balley, fevereiro 1818". Provavelmente, o senhor não registrou mais carreira agitada de Frederic desde a idade de 18 anos (1836). Esse fato é, do que tenho lido, uma das mais profundas e penetrantes apresentações do fato moral complexo da escravidão, o laço entre escravo e senhor.»


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