Selecciona una palabra y presiona la tecla d para obtener su definición.
Siguiente


Siguiente

O badejo

Comédia em três atos, em verso

Arthur Azevedo

Representada pela primeira vez no Rio de Janeiro, no Teatro São Pedro de Alcântara, no dia 15 de outubro de 1898, por iniciativa do CENTRO ARTÍSTICO pelo corpo cênico do ELITE-CLUB.

Ao doutor João do Rego Barros

AMIGO DA ARTE E DOS ARTISTAS

O. D. C.

Arthur Azevedo

PERSONAGENS

ATORES

RAMOSSENHOR FREDERICO COSTA
LUCASSENHOR ORLANDO TEIXEIRA
BENJAMINSENHOR TEIXEIRA JÚNIOR
CÉSARSENHOR ANTÔNIO SANTOS
O COZINHEIROSENHOR COLOMI CASTELÕES
O COPEIROSENHOR CARLOS DE FREITAS
AMBROSINASENHORITA CONSTANÇA TEIXEIRA
ANGÉLICADONA OLGA PRUDENTE

A cena passa-se no Rio de Janeiro.

Atualidade.

Sala de visitas, bem mobiliada, em casa de RAMOS. Três portas ao fundo, dando para o jardim. Uma porta à direita comunicando com a sala de jantar e outra à esquerda, dando para os dormitórios. À esquerda uma mesa com álbuns, porta-cartões, etc. À direita um sofá. Consolo ao fundo. Piano. Cadeiras.

Cena I

RAMOS. Só.

RAMOS

(Só.)

O almoço com certeza vai custar-me
Uns duzentos mil réis, afora os vinhos;
Mas se caso a Ambrosina, ainda é barato,
Porque muito me custa a senhorita.
Das minhas rendas a metade vai-se
5
Em vestidos, chapéus, leques e luvas,
Espetáculos, bailes e concertos;
Ela casada, cessam tais despesas;
É preciso, porém, que o noivo seja
Um rapaz sério e não nenhum pelintra
10
Que deseje viver à minha custa:
Pior seria a emenda que o soneto.
Mas não são as despesas que me ralam;
Não sou unhas-de-fome, Deus louvado;
Rala-me a idéia de bater a bota,
15
E deixar a pequena sem marido,
Exposta sabe Deus a que perigos!
Dirão que meto minha filha à cara
Dos pretendentes; ora adeus! Que o digam!
A Ambrosina já fez vinte e dois anos:
20
É tempo de arranjar-lhe casamento.

Cena II

RAMOS, ANGÉLICA, O COZINHEIRO.

ANGÉLICA
Ora aqui tens o nosso cozinheiro.
Desejavas ouvi-lo: aqui to trago.
Entra, Fabrício.

(O COZINHEIRO entra.)

Quer saber teu amo
O que arranjaste para o almoço. Fala.
25
O COZINHEIRO
Não pode ser melhor o meu cardápio.
RAMOS
Cardápio? Não conheço essa palavra!
O COZINHEIRO
Foi arranjada pelo Castro Lopes.
Eu não digo menu, que é francesismo.
RAMOS
Temos um cozinheiro literato!
30
O COZINHEIRO
Literato não sou, mas sou purista;
Embirro com palavras estrangeiras.
Hoje, que tudo se nacionaliza,
Nacionalize-se a cozinha!
RAMOS
Bravo!
O COZINHEIRO
Eu, diante do fogão, diante do forno,
35
Sou até jacobino!
RAMOS
Jacobino?
Lá como cozinheiro pode sê-lo,
Mas tão somente como cozinheiro,
Pois, conquanto eu viesse com dez anos
Para o Brasil, sou português, entende?
40
Jacobinos dispenso em minha casa!
O COZINHEIRO
Sou jacobino apenas cozinhando.
RAMOS
Pois cozinhando não devia sê-lo:
Você é um artista!
O COZINHEIRO
Eu, um artista?
RAMOS
Sim, um artista da arte culinária,
45
E a arte não tem pátria! Porém, vamos...
Diga lá o que temos para o almoço.
O COZINHEIRO
Em primeiro lugar os acepipes.
Hors-d'oeuvres não direi nem que me rachem!
Temos uma salada de lagostas.
50
RAMOS
Muito boa lembrança. Que mais temos?
O COZINHEIRO
Sardinhas, azeitonas, rabanetes,
Manteiga fresca...
RAMOS
E além dos acepipes?
O COZINHEIRO
Um enorme badejo.
ANGÉLICA
Que badejo!
Tão grande nunca vi!
RAMOS
E está bem fresco?
55
ANGÉLICA
Vivo à casa chegou.
O COZINHEIRO
Soltou, coitado,
Nas minhas mãos o derradeiro alento!
De camarões uma fritada temos,
Um primor culinário! Três galinhas
De cabidela. Espargos em manteiga.
60
E, para terminar, um bom churrasco.
Sorvetes de caju, frutas à ufa,
Queijo do reino, requeijão de Minas,
Baba de moça e doce de laranja.
Se não satisfizer este cardápio,
65
Que a espada de Vatel me arranque a vida
À exceção dos espargos e do queijo,
O meu almoço é todo brasileiro!
RAMOS
Mas a vinhaça é toda portuguesa:
Bucelas para acompanhar o peixe,
70
Depois Colares da viúva Gomes,
Vinho do Porto para a sobremesa
E duas garrafinhas de Champanha
Da marca Assis Brasil.
O COZINHEIRO
Estou contente,
Pois vejo que o Brasil também figura
75
Muito embora num rótulo.
ANGÉLICA
E os licores?
RAMOS
Deve ter vindo do armazém do Castro
Uma garrafa de Beneditinos.

(A O COZINHEIRO.)

Bom. Pode retirar-se, e se o almoço
Ao meu gosto estiver, conte comigo.
80
O COZINHEIRO
Nenhuma recompensa mais desejo
Que salvar os meus créditos de artista...
RAMOS
Da arte culinária. Vá s'embora.

(O COZINHEIRO vai se retirando.)

É verdade. Ouça cá. Diga ao copeiro
Que se apresente, pra servir a mesa,
85
Encasacado e de gravata branca.

(O COZINHEIRO sai.)

Cena III

RAMOS, ANGÉLICA.

ANGÉLICA
Espero agora que afinal me contes
A história deste almoço.
RAMOS
É muito simples.
Lembras-te que no baile do Cassino,
O César Santos, moço encaminhado,
90
Com porcentagem numa casa forte,
Namorou nossa filha à rédea solta?
ANGÉLICA
E depois desse baile, muito embora
Nós moremos tão longe da cidade,
Muitas vezes nos passa pela porta,
95
E até parado fica ali na esquina.
RAMOS
Muito bem. Dize mais: não te recordas
Que, quando fomos ao Teatro Lírico,
Ao benefício da Maragliano,
O Benjamin Ferraz, que é moço rico,
100
Estava na platéia e não tirava
Do nosso camarote os olhos lânguidos?
E acabado o espetáculo, correndo
Postou-se à porta pela qual saímos,
E suspirou quando passou por ele
105
Ambrosina?
ANGÉLICA
Um suspiro escandaloso,
De olhos voltados e de mão no peito!
RAMOS
E ele não passa pela nossa porta?
ANGÉLICA
Todas as tardes passa, embora chova.
O outro passa de bonde e este a cavalo.
110
RAMOS
Pois eu, sabendo dessas passeatas,
Embora tu não me dissesses nada,
Como os achei à mão, ambos, anteontem,
Por mero acaso, na confeitaria,
Fi-los sentar-se à mesa em que eu me achava,
115
Paguei-lhes o vermute, apresentei-os
Um ao outro, mostrei-me muito amável,
E lembrei-me afinal de convidá-los
Para almoçar conosco hoje, domingo.
ANGÉLICA
Porém com que intenções os convidaste?
120
RAMOS
Minha amiga, bem sabes que os bons noivos
Dificilmente conquistar-se podem
Vendo-os passar no bonde ou no cavalo;
É preciso atraí-los; casamentos,
É de portas a dentro que se arranjam.
125
Se teu pai não me houvesse convidado
Para jantar na casa dele um dia,
Por sinal que era o dia dos teus anos,
Talvez não nos casássemos tão cedo;
Mas convidou-me e, por cautela, à mesa,
130
Ao lado teu me fez ficar sentado.
Quando veio o peru, éramos noivos;
Tratavas-me por tu à sobremesa;
Um mês depois estávamos casados,
E dez meses depois éramos três!
135
ANGÉLICA
Mas meu pai convidou-te a ti somente.
E tu a dois convidas...
RAMOS
O que abunda
Não prejudica, diz o velho adágio.
Teu pai não era tolo, minha amiga,
Apesar de ter sido sapateiro,
140
E se não estava outro mancebo à mesa,
É que não tinhas outro namorado...
ANGÉLICA

(Rindo.)

Sabes tu lá se o tinha ou se o não tinha!
RAMOS
Com este almoço dois coelhos mato
De uma só cacheirada!
ANGÉLICA
És econômico!
145
Para dois namorados, dois almoços!
RAMOS
Se fossem vinte, vinte almoços? Boas!
Colocada a Ambrosina entre os dois jovens,
Escolher poderá muito à vontade.
ANGÉLICA
Mas é preciso preveni-la disso.
150
RAMOS
Justamente ela aí vem. Vamos falar-lhe.

Cena IV

RAMOS, ANGÉLICA, AMBROSINA.

AMBROSINA
A bênção, papai? Bom dia!
RAMOS
Deus te abençoe, minha filha.
Mas como tu vens casquilha!
Há muito que não te via
155
Tão enfeitada e catita!
AMBROSINA
Oh! Admira-se? Entretanto,
Ontem papai pediu tanto
Que me fizesse bonita!
Vê como estou imponente?
160
Que tal acha o meu vestido?
RAMOS
Muito espantado.
AMBROSINA
Duvido
Que papai diga o que sente.
RAMOS
De modas eu não entendo;
Sou ferragista, e asseguro
165
Que tenho juízo seguro
Sobre o que compro e o que vendo.
Quando alguém conhecer queira
A qualidade de um prego,
As minhas luzes não nego,
170
Posso falar de cadeira;
Mas quanto a farandulagens,
Fitinhas, laços, tetéias,
Sou muito curto de idéias!
Cá comigo é só ferragens!
175
Mas, minha filha, acredita,
Quando o contrário suponhas:
Com qualquer trapo que ponhas,
Acho-te sempre bonita.

(Dá-lhe um beijo.)

Bom. Temos que conversar
180
Sobre outro assunto, faceira.
Senta-te nesta cadeira;
Entre nós dois vais ficar.

(Coloca três cadeiras no proscênio; a do centro para AMBROSINA, a da direita para ANGÉLICA, e da esquerda para si. Sentam-se todos três. Pausa.)

Fala, Angélica!
ANGÉLICA
Ora essa!
Fala tu!
RAMOS
Tu!
ANGÉLICA
Tu!
RAMOS
Mulher,
185
Olha que eu não sei sequer
Por onde é que é que se começa!
AMBROSINA
É coisa grave?
RAMOS
Oh! bem grave!
ANGÉLICA
Anda! É o princípio que custa!
AMBROSINA
Tanta hesitação me assusta!
190
RAMOS
Não é nada que te agrave:
Trata-se de casamento.
AMBROSINA
De casamento?
RAMOS
É verdade!

(Embaraçado e muito comovido.)

Menina, chegaste à idade...
Chegaste ao feliz momento...
195
A felicidade tua
É o nosso constante fito,
E nós...

(Passando os dedos nos olhos.)

Lágrimas?... Bonito!...

(A ANGÉLICA.)

Agora tu continua.
ANGÉLICA
Valha-te Deus! Que maricas!
200
Por qualquer coisa tu choras!
Vamos! Basta de demoras!
RAMOS
Eu... tu... eu...
ANGÉLICA
Vê em que ficas!

(Arremedando-o.)

Eu... tu... eu...
RAMOS
Então que queres?
Nem eu ouso, nem tu ousas!
205
Fala tu: para estas coisas
Têm mais talento as mulheres!
ANGÉLICA
Minha filhinha, teu pai
Convidou para um almoço
Aquele moço...
AMBROSINA
Que moço?
210
RAMOS
Dize-lhe o nome.
ANGÉLICA
Lá vai:
O César Santos?... Aquele
Que toda a tarde passeia
No bonde das cinco e meia?...
AMBROSINA
Sei quem é.
RAMOS
Tu gostas dele?
215
AMBROSINA
Eu não gosto nem desgosto...
ANGÉLICA
E foi também convidado
Aquele outro namorado?...
Quem é já sabes, aposto!
RAMOS
Dize o nome!
ANGÉLICA
Espera lá!
220
Ou falas tu ou eu falo!
RAMOS
Bom.
ANGÉLICA
Aquele do cavalo?
RAMOS

(Fingindo que está montado a cavalo.)

Hein? Patati, patatá!
AMBROSINA
O Benjamin?
ANGÉLICA
Justamente:
O Benjamin.
RAMOS
Desse gostas,
225
Ou não gostas nem desgostas?
AMBROSINA
Sim... não... É-me indiferente!...
Ambos à casa hoje vêm,
Pra que eu escolha?...
RAMOS
Decerto.
Examina-os bem de perto;
230
Vê qual dos dois te convém.
AMBROSINA
Oh! nenhum deles me traz
À vida novos encantos...
RAMOS
Sim?
AMBROSINA
Nem o tal César Santos,
Nem o Benjamin Ferraz.
235
ANGÉLICA
Mas tu gostas de outro?
AMBROSINA
Não.
Não acho quem me cative;
Até hoje nunca tive
Cuidados no coração.
Quando o César Santos passa,
240
E eu estou acaso à janela,
Não fujo... não saio dela...
Ele sorri... Acho graça...
Faz mal que eu também sorria?...
Namoro?... talvez que o seja;
245
Mas nisso amor ninguém veja...
Quando muito é simpatia.
ANGÉLICA
Filha, lá disse o poeta:
«Simpatia é quase amor»...
RAMOS
Pois seja o poeta quem for,
250
Disse uma asneira completa!
Não foi Camões com certeza!
ANGÉLICA
Foi Casimiro de Abreu.
RAMOS
Uma tolice escreveu;
Digo-o com toda a franqueza!
255
AMBROSINA
Quando passa o Benjamin,
Montado no seu cavalo,
E, sem tenção de esperá-lo,
Vejo-o sorrir para mim,
Eu lhe sorrio também...
260
Mas... que exprime este sorriso?
Que com ele simpatizo...
E papai diz muito bem:
Não é este sentimento
Um quase amor. Que esperança!
265
Minhalma livre descansa,
Descansa o meu pensamento!
Não me persegue o desejo
De os ver passar pela porta.
E quando os vejo, que importa?
270
Que importa quando os não vejo?
Se papai julga que devo
Desde já mudar de estado,
Antes que tenha falado
Meu coração, não me atrevo
275
A contrariá-lo, oh! Não!...
Mas entre os dois pretendentes,
Ambos pessoas decentes,
Não faço a menor questão.
RAMOS

(Erguendo-se.)

Bravo!

(AMBROSINA e ANGÉLICA também se erguem.)

AMBROSINA
Papai, se quiser,
280
Estude, examine, escolha;
Mas permita que eu me encolha...
RAMOS
Qualquer te serve?
AMBROSINA
Qualquer.

(LUCAS entra como um raio. Surpresa geral. Alegria.)

Cena V

RAMOS, ANGÉLICA, AMBROSINA, LUCAS.

LUCAS
Que Deus esteja nesta casa!
TODOS

(Contentes.)

O Lucas!
LUCAS
O Lucas, sim, que, sem mandar aviso,
285
Abalou de São Paulo ontem cedinho,
Passou parte da noite num teatro,
Dormiu no Grande Hotel, onde espichado
Na cama, refletiu: de manhã cedo
Tomo o meu banho, faço a minha barba
290
E ao palacete vou do velho Ramos
Causar uma surpresa àquela gente.
Como é domingo, encontro o velho em casa
E chego a tempo de papar-lhe o almoço.
RAMOS
Fizeste bem, rapaz, mas que diabo!
295
Devias começar por abraçar-nos...

(Abraçando LUCAS.)

Assim! Aperta-me estes velhos ossos!
LUCAS
As saudades são tantas, que receio
Esmagá-lo!
RAMOS
Esmagar-me? Então tu julgas
Que assim se esmague um português valente?
300
ANGÉLICA

(Abrindo os braços.)

Eu também quero o meu abraço!
LUCAS
É justo.
ANGÉLICA
Mas vê lá: não me esmagues!
LUCAS
Oh! descanse!
Muito bem sei como se abraçam damas!

(Abraça-a.)

ANGÉLICA
Agora, abraça a tua irmã de leite.
LUCAS
Ambrosina! Meus Deus! nestes três anos
305
Que diferença fez!
RAMOS
Desenvolveu-se...
Deitou corpo... cresceu...
LUCAS
Que diferença!
Deixo um fedelho e encontro uma senhora,
E mais linda que um anjo! Isto é possível...
ANGÉLICA
Bem sabes que ela tem a tua idade!
310
RAMOS
Abraça-a, vamos!
LUCAS
Não! Eu não me atrevo!
Na minha idade já se não abraçam
Moças da minha idade...
ANGÉLICA
Ora que tolo!
LUCAS
Só num jogo de prendas, por sentença!
AMBROSINA
Sou tua irmã.
LUCAS
És minha irmã de leite.
315
Essa irmandade não me impediria
De casar-me contigo...

(Comicamente cerimonioso.)

Enfim, senhora,
Como de Vossa Excelência os pais ordenam,
Venha esse abraço!
AMBROSINA

(Lançando-se nos braços dele.)

E esmaga-me, se queres!
Como está mamãezinha?
LUCAS
Boa e fera;
320
São seu único mal saudades tuas.
Mandou-te umas lembranças de São Paulo.
ANGÉLICA
É sempre a mesma tua mãe!
LUCAS
Coitada!
Não quis que eu viesse ao Rio de Janeiro,
Sem coisinhas trazer para Ambrosina;
325
E durante a viagem vim comprando
Tudo quanto se encontra no caminho:
Queijos de Itatiaia e Campo Belo,
E beijus de Belém. Essas lembranças
Lá estão no Grande Hotel.
RAMOS
Por que motivo
330
Não vieste hospedar-te em nossa casa?
Pois não sabes que é teu tudo que é nosso?
LUCAS
Bem sei, mas receava incomodá-los.
TODOS
Oh!
LUCAS
Demais, moram longe da cidade,
E eu a negócio vim, não a passeio.
335
RAMOS
E a casa como vai!
LUCAS
De vento em popa!
Se a coisa prosseguir como tem ido,
Eu serei, num futuro não remoto,
Quase tão rico como o velho Ramos!

(Dá uma pequena pancada no ventre de RAMOS.)

RAMOS

(Rindo.)

O velho Ramos não é rico.
LUCAS
É rico;
340
Mas tem o sestro de dizer que é pobre,
Porque receia que lhe peçam chelpa.
RAMOS
Que grande malcriado me saíste!
LUCAS
Mas que me importa a mim o velho Ramos?
Bem se me dá que seja rico ou pobre!
345

(Tomando ambas as mãos de AMBROSINA.)

Quem me interessa és tu, és tu somente,
Minha querida irmã, que tanto prezo!

(Com certa hesitação na voz.)

Então? Quando se faz este casório?
Já deves ter um noivo, ou, pelo menos,
Um namorado, ou dois... Com esses olhos,
350
E essa boca de fada, e esta elegância,
E este pai, apesar de não ser rico,
Deves ter pretendentes aos cardumes!
AMBROSINA
Tenho dois namorados.
LUCAS

(Com um sorriso forçado.)

Dois apenas?
AMBROSINA
Pode ser que outros haja, mas ignoro.
355
RAMOS
Não podias chegar mais a propósito:
Hoje vêm ambos almoçar conosco.
AMBROSINA
Convidou-os papai, para que eu possa,
Depois de examiná-los bem de perto,
Escolher o que deva ser meu noivo;
360
Mas eu já disse que nem de um nem de outro
Faço questão, e escolha qualquer deles.
LUCAS
Que singular filosofia a tua!
Mas quem são esses dois rivais famosos?
RAMOS
O Benjamin Ferraz e o César Santos.
365
LUCAS
Não conheço.
RAMOS
Vais vê-los dentro em pouco.
São dois tipos um do outro bem diversos.
O César Santos, guarda-livros hábil,
Interessado está numa das casas
Mais importantes desta praça; é moço
370
Ajuizado, refletido e sério;
Tem feito economias, e de parte
Já pôs alguns vinténs; possui dois prédios.
O Benjamin Ferraz é muito rico:
Herdou dos pais e ainda há de herdar dos tios,
375
Que fazendeiros são. Monta a cavalo,
Veste-se muito bem, e desconfio,
Pela sua maneira de exprimir-se,
Que literato ele é nas horas vagas.
LUCAS
E nas que não são vagas esse moço
380
Em que se ocupa?
RAMOS
Ora essa é boa! Ocupa-se
Em ter muito dinheiro. Eu não conheço
Melhor ocupação.
LUCAS
Prefiro o outro.

(Mudando de tom.)

E por amor do guarda-livros hábil
E do janota que tão bem se exprime,
385
Temos então almoço ajantarado?
RAMOS
Lagostas... um badejo... uma fritada...
Galinhas... um churrasco... espargos, frutas,
Sorvetes, queijos, doces e mais doces,
E Bucelas, Colares e Champanha!
390
LUCAS
Não há que ver: tirei a sorte grande!
Eu vim ao cheiro de uns modestos bifes,
E caio em plenas bodas de Camacho!
Não esperava tanto!
RAMOS
Vai, Angélica,
Dar uma vista de olhos à cozinha,
395
E manda pôr mais um talher à mesa,
E vê lá se o copeiro pôs casaca.
ANGÉLICA
E tu, anda buscar na adega os vinhos.

(Sai.)

RAMOS
Tens razão. Já lá vou. Cá tenho a chave.

(A LUCAS.)

Quando há comes e bebes nesta casa,
400
Ela trata dos comes e eu dos bebes.
Bom. Até logo. Ó minha filha, fica
Fazendo companhia ao nosso Lucas.

(Sai.)

Cena VI

AMBROSINA, LUCAS.

LUCAS
Com que então, vais casar?
AMBROSINA
Mas vê como estou fria...
Oh! pelo gosto meu mais tempo esperaria;
405
Porém papai não pensa infelizmente assim,
E, pelos modos, quer ficar livre de mim.
LUCAS
Não creias que teu pai de ti livrar-te queira:
Tem medo de morrer deixando-te solteira,
É o que é. A intenção é boa; apenas, eu
410
Me parece que o pior processo ele escolheu.
O tal César e o tal Benjamin vão pensar
Que o João Ramos a filha à força quer casar;
Mais prudente seria esperar que viesse
O noivo e não chamá-lo à casa, me parece.
415
AMBROSINA
Tens razão.
LUCAS
Não se mete à cara de ninguém
Noiva que, como tu, tanto atrativo tem.
AMBROSINA
Isso é bondade tua.
LUCAS
E se ao velho não falo
Deste modo, é porque não quero apoquentá-lo.
Tu bem sabes de quanto eu lhe sou devedor:
420
Ele foi para mim um grande protetor,
Tão amigo, tão bom, tão desinteressado,
Que um altar tem cá dentro e é para mim sagrado.
Nas tristes condições em que eu ao mundo vim,
Se não fosse teu pai, que seria de mim?
425
Quando nasci, o meu já estava morto há meses;
Minha mãe a miséria, a fome algumas vezes
Sofreu, mas resistiu. Tu nasceras também;
Adoeceu tua mãe; era preciso alguém
Que as vezes lhe fizesse, e a minha então, coitada,
430
Que era pobre, tão pobre, e pobre envergonhada,
Sozinha neste mundo, ao deus-dará, sem pão,
Precisava de alguém que lhe estendesse a mão...
E foi, como faria uma africana escrava,
Contigo dividir o leite que eu mamava.
435
AMBROSINA
Pobre da mamãezinha!
LUCAS
Eu fui muito feliz,
E ela também: teu pai, meu pai fazer-se quis.
Nem eu nem minha mãe saímos desta casa
Que nos cobriu a nós como de um anjo a asa.
Quando cresci, o velho à escola me enviou
440
E depois no comércio emprego me arranjou.
Para São Paulo fui. Sou quase independente.
E a quem o devo? A ele... a ele unicamente.
AMBROSINA
De nada valeria o muito que te fez,
Se tu não fosse bom.
LUCAS
Não seria, talvez,
445
Tão bom, se ele não fosse a bondade em pessoa.
Isso é o que me fez bom, e isso é o que te fez boa.
Mas falemos dos dois namorados. Teu pai
Quer que escolhas; pois bem: examiná-los vai
Minuciosamente, e um dos dois com certeza
450
Preferirás ao outro ao sairmos da mesa.
Está dito?
AMBROSINA
Pois sim.
LUCAS
Por meu lado, eu também
Verei dos dois qual seja o que mais te convém.

Cena VII

AMBROSINA, LUCAS, RAMOS, ANGÉLICA.

RAMOS
Pronto! Podem chegar os convidados!
No aparador alinham-se as garrafas,
455
E o diabo do copeiro, de casaca,
Parece até um cidadão conspícuo!
ANGÉLICA
Que bonito badejo é o rei da festa!...
RAMOS
Custou-nos vinte e cinco bagarotes
No mercado; não pode ser, portanto,
460
Um peixinho de pouco mais ou menos.

(Esfregando as mãos.)

Não tardam por aí os dois rapazes.
LUCAS
Eles que venham, porque estou com fome!

(Toque de campainha elétrica.)

RAMOS
Falai no mau...

(Indo ao fundo e falando para fora.)

Ó senhor César, entre!

(Entra CÉSAR cerimoniosamente.)

Cena VIII

AMBROSINA, LUCAS, RAMOS, ANGÉLICA, CÉSAR.

CÉSAR
Minhas senhoras... Senhor Ramos... Creio
465
Que esperar não me fiz por muito tempo.
RAMOS
Pontualíssimo foi, foi cavalheiro.

(Apresentando.)

Minha mulher.
CÉSAR
Minha senhora, folgo
De conhecê-la.
ANGÉLICA
E eu igualmente folgo.
Faça favor.

(Toma-lhe o chapéu e a bengala, que vai colocar sobre um móvel, ao fundo.)

RAMOS

(Mostrando AMBROSINA.)

É minha filha. O amigo
470
Há muito que a conhece. Já com ela
Dançou num baile do Cassino.
CÉSAR
É exato.
Foi uma honra que esquecer não pude,
Pois me deixou recordações bem doces.
AMBROSINA

(Cumprimentando.)

Agradecida.
RAMOS
O meu amigo Lucas.
475
Quase meu filho... Um filho malcriado,
Que ao pai não tem o mínimo respeito,
E lhe dá piparotes na barriga!
Mas é um herói! Tem só vinte e dois anos
E é já negociante conceituado
480
Na praça de São Paulo!...
CÉSAR
Cavalheiro.
Consinta que lhe aperte a mão.
LUCAS
Não creia
No que lhe está dizendo o senhor Ramos.
Como lhe devo a posição que ocupo,
É muito exagerado a meu respeito,
485
Para dar mais valor ao seu trabalho.
CÉSAR
As coisas como vão lá por São Paulo?
LUCAS
Que coisas?
CÉSAR
Os negócios. Interessa-me
O comércio, e de nada mais cogito.
LUCAS
Os negócios vão bem.
CÉSAR
Não me parece;
490
A baixa do café tem sido o diabo,
E esperança não há de que tão cedo
Ele suba,

(A ANGÉLICA.)

não acha Vossa Excelência?
ANGÉLICA
Senhor eu não entendo dessas coisas;
Só sei que tudo está bem caro agora,
495
E que um badejo, que custava dantes
Dez mil réis, quando muito, agora custa
Vinte e cinco mil réis!
CÉSAR
A carestia
Faz com que o povo sofra e sofra muito;
Mas o comércio sofre mais que o povo.
500
Na nossa praça a crise está medonha;
Muitas casas estão arrebentadas;
O câmbio esteve a cinco, é bem verdade,
E subiu depois disso a sete e meio,
Mas de novo tem ido para baixo,
505
E não há confiança nos efeitos
Do plano financeiro do governo.
Não acho que endireite a nossa praça,
Enquanto a taxa não subir a doze,
Pelo menos.

(A AMBROSINA.)

Não acha Vossa Excelência?
510
AMBROSINA
Eu nunca pude perceber o câmbio.
CÉSAR
Pois eu lhe explico: o câmbio representa...
RAMOS
E eu que não lhe ofereço uma cadeira?
Faz favor de sentar-se? Então? Sentemo-nos!
Tanto se paga em pé como sentado!
515

(Sentam-se todos.)

Mas sobre outros assuntos conversemos,
E deixemos tranqüilos os negócios.
Estes belos domingos foram feitos
Pra que a gente se esqueça da semana.
CÉSAR
Pois assunto não há que mais me agrade
520
Do que câmbio, café, preços-correntes...
RAMOS
Qual! Isso é bom lá para baixo. Em casa
Gosto de ouvir falar de frioleiras.
LUCAS

(Baixo a AMBROSINA.)

Desconfio que o noivo não te serve.
RAMOS
Eu sou negociante de ferragens,
525
E por meu gosto, não teria em casa
Nem trincos, nem martelos, nem argolas,
Nem pontas de Paris, nem dobradiças,
Nem nada que lembrasse o meu comércio.
Quando aos domingos eu me sento à mesa,
530
Desgostam-me os talheres, acredite,
Porque os tenho na loja; na cozinha
Não entro, só para não ver panelas!
Causam-me horror grelhas e caçarolas!
ANGÉLICA
E a história do canário?
RAMOS
Ah! é verdade!
535
Lembras-te ainda? Estávamos casados
Havia um mês, se tanto. O pai da Angélica
Um canário mandou-lhe de presente.
Ela estimava-o. Muito bem. Pedi-lhe
Um belo dia que o mandasse embora!
540
CÉSAR
O canário não era ferramenta!
RAMOS
Não, mas era preciso dar-lhe alpiste,
E o alpiste naquele tempo -sabe?-
Vendia-se nas lojas de ferragens.

(Novo toque de campainha elétrica.)

ANGÉLICA
Tocaram.
RAMOS

(Erguendo-se.)

Bom! É ele com certeza!
545
É o Benjamin Ferraz!

(Vai ao fundo e fala para fora.)

A casa é sua.

(Erguem-se todos. Entra BENJAMIN.)

Cena IX

AMBROSINA, LUCAS, RAMOS, ANGÉLICA, CÉSAR, BENJAMIN, depois O COPEIRO.

BENJAMIN
Minhas senhoras... cavalheiros... peço
Mil perdões por chegar um pouco tarde.
Foi do meu alfaiate a culpa inteira.
Uma porção de tempo estive à espera
550
De uma sobrecasaca que não veio.
LUCAS

(À parte.)

Começa mal...
BENJAMIN
Esta já tem três meses,
E já não está na moda; os figurinos
Sobrecasacas apresentam hoje
Fechadas mais em cima, e mais compridas,
555
Dando pelo joelho. Quando eu entro
Pela primeira vez em qualquer casa,
Com toda a correção quero ser visto,
Todas as regras sei do savoir-vivre1.

(A ANGÉLICA.)

Depois deste cavaco indispensável,
560
Permita, Excelentíssima Senhora,
Que lhe ofereça a rosa mais bonita
Que esta manhã no meu jardim banhavam
As lágrimas do orvalho matutino.
A rainha das flores simboliza
565
A rainha do lar, a esposa honesta,
A carinhosa mãe!
RAMOS

(À parte.)

Parece um brinde.
ANGÉLICA
Muito obrigada pelo seu presente.
BENJAMIN
Não há de quê minha gentil senhora.

(ANGÉLICA põe a rosa ao peito. BENJAMIN volta-se para AMBROSINA.)

Para Vossa Excelência eu trouxe -e espero
570
Que seja recebido com bondade-
Este raminho de violetas brancas,
Também do meu jardim. Flores modestas,
Que o seu perfume docemente escondem.
Simbolizam a cândida inocência
575
Da bela virgem recatada e pura.
AMBROSINA
Agradecida.
RAMOS
À vista dos discursos.
Desobrigado estou de apresentar-lhe
Mulher e filha.
ANGÉLICA

(Tomando o chapéu e a bengala de BENJAMIN.)

Com licença.
BENJAMIN
Graças.
RAMOS

(Indicando CÉSAR.)

Este já foi por mim apresentado.
580
BENJAMIN
Folgo de vê-lo.
RAMOS
O meu amigo Lucas.
É quase um filho.
LUCAS
Temos um fonógrafo?
RAMOS
Não tem ao pai o mínimo respeito...
LUCAS
E lhe dou piparotes na barriga;
Falta-me o savoir-vivre...
BENJAMIN
Oh, não! não creio!
585
LUCAS
Vim almoçar de jaquetão coçado!
BENJAMIN
Se é quase um filho, está no seu direito.
RAMOS
Mas é um herói! Tem só vinte e dois anos...
LUCAS
Vinte e dois anos e três meses justos.
RAMOS
E é já negociante acreditado
590
Na praça de São Paulo!
BENJAMIN
Então? Já houve
Com essa idade marechais em França!

(Apertando a mão a LUCAS.)

Eu tenho muita honra em conhecê-lo.
LUCAS
A honra é toda minha, cavalheiro.

(ANGÉLICA, que tem saído, volta e diz baixinho a RAMOS.)

ANGÉLICA
O almoço está servido.
RAMOS

(Muito alto.)

Meus senhores...
595
ANGÉLICA

(Tapando-lhe a boca.)

Espera que o copeiro dizer venha.
RAMOS

(Baixo.)

É verdade, o copeiro de casaca...

(Entra O COPEIRO.)

Ei-lo! Faz um vistão! Gosto daquilo!
O COPEIRO
O almoço está na mesa.

(Sai.)

RAMOS
Meus amigos,
Vamos ao nosso almoço, prontamente,
600
Que já temos o estômago a dar horas.

(BENJAMIN e CÉSAR oferecem ambos o braço a AMBROSINA.)

BENJAMIN
O meu braço aqui tem, minha senhora.
CÉSAR
Minha senhora, ofr'eço-lhe o meu braço.
AMBROSINA
E agora? Aceito o que chegou primeiro.

(Dá o braço a BENJAMIN. CÉSAR dá o braço a ANGÉLICA. Saem todos.)

RAMOS

(Saindo, a LUCAS.)

Cada qual no seu gênero, não achas?
605
LUCAS
Acho.
RAMOS
A Ambrosina escolhe... escolhe um deles!

(Sai.)

LUCAS

(Só.)

Escolhe um deles? Pois sim!
Meu velho, pelo que vejo,
Perdes o tempo e o latim,
Pra não dizer o badejo.
610

(Cai o pano.)

Siguiente