O devanear do céptico
Bernardo Guimarães
Tout corps traine son ombre et tout esprit son doute.
Victor Hugo
Ai da avezinha, que a tormenta um dia
desgarrara da sombra de seus bosques,
arrojando-a em desertos desabridos
de brônzeo céu, de férvidas areias;
Adeja, voa, paira... nem um ramo,
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nem uma sombra encontra onde repouse,
e voa, e voa ainda, até que o alento
de todo lhe falece; -colhe as asas,
cai na areia de fogo, arqueja, e morre...
Tal é, minh'alma, o fado teu na terra;
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o tufão da descrença desvairou-te
por desertos sem fim, onde em vão buscas
um abrigo onde pouses, uma fonte
onde apagues a sede que te abrasa!
. . . . . . . . . . . . . . . . . . .
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Ó mortal, por que assim teus olhos cravas
na abóbada do céu? -Queres ver nela
decifrado o mistério inescrutável
do teu ser, e dos seres que te cercam?
Em vão teu pensamento audaz procura
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arrancar-se das trevas que o circundam,
e no ardido vôo abalançar-se
À regiões da luz e da verdade;
baldado afã! -no espaço ei-lo perdido,
como astro desgarrado de sua órbita,
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errando às tontas na amplidão do vácuo!
Jamais pretendas estender teus vôos
além do escasso e pálido horizonte
que mão fatal em torno te há traçado...
Com barreira de ferro o espaço e o tempo
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em acanhado círculo fecharam
tua pobre razão: -em vão forcejas
por transpor essa meta inexorável;
os teus domínios entre a terra e os astros,
entre o túmulo e o berço estão
prescritos:
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além, que enxergas tu? -o vácuo e o nada!...
Oh! feliz quadra aquela, em que eu dormia
embalado em meu sono descuidoso
no tranquilo regaço da ignorância;
em que minh'alma, como fonte límpida
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dos ventos resguardada em quieto abrigo,
da fé os raios puros refletia!
Mas num dia fatal encosto à boca
a taça da ciência; -senti sede
inextinguível a crestar-me os lábios;
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traguei-a toda inteira, -mas encontro
por fim travor de fel; -era veneno,
que no fundo continha, -era a incerteza!
Oh! desde então o espírito da dúvida,
como abutre sinistro, de contínuo
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me paira sobre o espírito, e lhe entorna
das turvas asas a funérea sombra!
De eterna maldição era bem digno
quem primeiro tocou com mão sacrílega
da ciência na árvore vedada,
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e nos legou seus venenosos frutos...
Se o verbo criador pairando um dia
sobre a face do abismo, a um só aceno
evocava do nada a natureza,
e do seio do caos surgir fazia
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a harmonia, a beleza, a luz, a ordem,
por que deixou o espírito do homem
sepulto ainda em tão profundas trevas,
a debater-se neste caos sombrio,
onde embriões informes tumultuam,
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Inda aguardando a voz que à luz os chame?
Quando, espancando as sombras sonolentas,
surge a aurora no coche radiante,
inundando de luz o firmamento,
entre o rumor dos vivos que despertam,
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levanto a minha voz, e ao sol, que surge,
pergunto: -Onde está Deus? -ante meus olhos
a noite os véus diáfanos desdobra,
vertendo sobre a terra almo silêncio,
propício ao cismador; -então minha alma
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desprende o vôo nos etéreos páramos,
além dos sóis, dos mundos, dos cometas,
varando afouta a profundez do espaço,
anelando entrever na imensidade
a eterna fonte, donde a luz emana...
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Ó pálidos fanais, trêmulos
círios,
que na esfera guiais da noite o carro,
planetas, que em cadência harmoniosa
no éter cristalino ides boiando,
dizei-me -onde está Deus?- sabeis se existe
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um ente, cuja mão eterna e sábia
vos esparziu pela extensão do vácuo,
ou do seio do caos desbrochastes
por insondável lei do cego acaso?
conheceis esse rei, que rege e guia
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no espaço infindo vosso errante curso?
Eia, dizei-me, em que regiões ignotas
se eleva o trono seu inacessível?
Mas em vão interrogo os céus e os astros,
em vão do espaço a imensidão percorro
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do pensamento as asas fatigando!
Em vão; -todo o universo imóvel, mudo,
sorrir parece de meu vão desejo!
Duvida -eis a palavra que eu encontro
escrita em toda a parte;- ela na terra,
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E no livro dos céus vejo gravada,
é ela que a harmonia das esferas
entoa sem cessar a meus ouvidos!
Vinde, ó sábios, alâmpadas brilhantes,
que ardestes sobre as aras da ciência,
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agora desdobrai ante meus olhos
essas páginas, onde meditando
em profundo cismar cair deixastes
de vosso gênio as vividas centelhas:
dai-me o fio subtil, que me conduza
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pelo vosso intrincado labirinto:
Rasgai-me a venda, que me enubla os olhos,
guiai meus passos, que embrenhar-me quero
do raciocínio nas regiões sombrias,
e surpreender no seio de atras nuvens
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o escondido segredo...
Oh! louco intento!...
em mil vigílias palejou-me a fronte,
e amorteceu-se o lume de meus olhos
a sondar esse abismo tenebroso,
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vasto e profundo, em que as mil hipóteses,
os erros mil, os engenhosos sonhos,
os confusos sistemas se debatem,
se confundem, se roçam, se abalroam,
em um caos sem fim turbilhonando:
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atento a lhe escrutar o seio lôbrego
em vão cansei-me; nesse afã penoso
uma negra vertigem pouco e pouco
me enubla a mente, e a deixa desvairada
no escuro abismo flutuando incerta!
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. . . . . . . . . . . . . . . . . . .
Filosofia, dom mesquinho e frágil,
farol enganador de escasso lume,
tu só geras um pálido crepúsculo,
onde giram fantasmas nebulosos,
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dúbias visões, que o espírito desvairam
num caos de intermináveis conjeturas.
despedaça essas páginas inúteis,
triste apanágio da fraqueza humana,
em vez de luz, amontoando sombras
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no santuário augusto da verdade.
Uma palavra só talvez bastara
p'ra saciar de luz meu pensamento;
essa ninguém a sabe sobre a terra!...
Só tu, meu Deus, só tu dissipar podes
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a, que os olhos me cerca, escura treva!
Ó tu, que és pai de amor e de piedade,
que não negas o orvalho à flor do campo,
nem o tênue sustento ao vil inseto,
que de infinda bondade almos tesouros
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com profusão derramas pela terra,
ó meu Deus, por que negas à minha alma
a luz que é seu alento, e seu conforto?
Por que exilaste a tua criatura
longe do sólio teu, cá neste vale
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de eterna escuridão? -Acaso o homem,
que é pura emanação da essência
tua,
E que se diz criado à tua imagem,
de adorar-te em ti mesmo não é digno,
de contemplar, gozar tua presença,
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de tua glória no esplendor perene?
Oh! meu Deus, por que cinges o teu trono
da impenetrável sombra do mistério?
Quando da esfera os eixos abalando
passa no céu entre abrasadas nuvens
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da tempestade o carro fragoroso,
Senhor, é tua cólera tremenda
que brada no trovão, e chove em raios?
E o íris, essa faixa cambiante,
que cinge o manto azul do firmamento,
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como um laço que prende aos céus a terra,
é de tua clemência anúncio meigo?
É tua imensa glória que resplende
no disco flamejante, que derrama
luz e calor por toda a natureza?
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Dize, ó Senhor, por que a mão ocultas,
que a flux esparge tantas maravilhas?
Dize, ó Senhor, que para mim são mudas
as páginas do livro do universo!...
Mas, ai! que o invoco em vão! ele se esconde
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Nos abismos de sua eternidade.
. . . . . . . . . . . . . . . . . . .
Um eco só da profundez do vácuo
pavoroso retumba, e diz -duvida!...1
Virá a morte com as mãos geladas
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quebrar um dia esse terrível selo,
que a meus olhos esconde tanto arcano?
. . . . . . . . . . . . . . . . . . .
Ó campa! -atra barreira inexorável
entre a vida e a morte levantada!
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Ó campa, que mistérios insondáveis
em teu escuro seio muda encerras?
És tu acaso o pórtico do Elísio,
que nos franqueias as regiões sublimes
onde a luz da verdade eterna brilha?
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Ou és do nada a fauce tenebrosa,
onde a morte p'ra sempre nos arroja
em um sono sem fim adormecidos!
Oh! quem pudera levantar afouto
um canto ao menos desse véu tremendo
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que encobre a eternidade...
Mas debalde
interrogo o sepulcro, -e debruçado
sobre a voragem tétrica e profunda,
onde as extintas gerações baqueiam,
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inclino o ouvido, a ver se um eco ao menos
das margens do infinito me responde!
Mas o silêncio que nas campas reina,
é como o nada, -fúnebre e profundo...
. . . . . . . . . . . . . . . . . . .
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Se ao menos eu soubesse que co'a vida
terminariam tantas incertezas,
embora os olhos meus além da campa,
em vez de abrir-se para a luz perene,
fossem na eterna escuridão do nada
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para sempre apagar-se... -mas quem sabe?
quem sabe se depois desta existência
renascerei -p'ra duvidar ainda?!...