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Petrarca em Portugal. Ad eorum littus irem1

Rita Marnoto

No início da epístola Posteritati, Petrarca recorda as deambulações que caracterizaram os primeiros anos da sua vida como marca prístina de um percurso existencial que, «vel fortuna, vel voluntas», o havia de levar a repartir o seu tempo, por toda uma vida, «nunc usque», escreve o poeta no mesmo passo, pelos mais diversos lugares2. Nascido em Arezzo, já que a sua família tinha sido exilada de Florença, dali passa a Incisa e depois a Pisa, até que o núcleo familiar se restabelece em Avinhão. A idade madura, repartiu-a entre a Itália e a Provença, com viagens que o levaram desde a Gasconha e a Garona até ao Norte da Eurora continental e a Praga. Nunca se aventurou, que haja notícia, pelos trilhos da Península Ibérica.

Se o acaso o levou pelos mais inesperados caminhos, não raro surpreendentes, a vontade fez dele um peregrino empenhado em causas nobres. Nem quando o peso dos anos o impede de empreender longas viagens se dá por vencido e acrescenta a palavra fim à sua hodepórica3. Como explica ao amigo Francesco Bruno, na Senile 9.2, as suas viagens continuam:

«[...] itaque consilium coepi, ad eas terras non navigio, non equo pedibusve per longissimumque iter, semel tantum, sed per brevissimam chartam, saepe libris ac ingenio proficisci, ita ut quotiens vellem, horae spatio, ad eorum littus irem, ac reverterer, non illaesus modo, sed etiam indefessus, neque tantum corpore integro, sed calceo insuper inattrito, et veprium prorsus, et lapidum et luti et pulveris inscio»4.


Os manuscritos e as edições petrarqueseas existentes nos fundos das lusitana5. Da Biblioteca de Alcobaça, o mosteiro cisterciense cujos fundos se encontram actualmente depositados na Biblioteca Nacional, resistiu às intemperies dos séculos um códice de finais do século XV, o item 387/CCLXI, que contém os Psalmi6. Trata-se de um pergamináceo onde foram compilados, numa secção inicial, escritos de S. João Clímaco e de S. João, abade de Raytu, e, numa segunda parte, o De vita solitaria de Isac, o Speculum monachorum e a Summa de meditationibus de S. Bernardo, e à qual foram acrescentados, por finais do século XV, enquanto testo proemial, os Psalmi de Petrarca, e nas últimas folhas, fragmentos de S. Bernardo e de Pedro de Βlois7.

Recorde-se, além disso, que no ano de 2004 foi divulgada a existência de um outro códice petrarquesco, um manuscrito decorado com iluminuras proveniente da célebre bottega florentina de Francesco d'Antonio del Chierico, que contém o Canzoniere e os Triumphi. Pertence à «Fundação Calouste Gulbenkian»8.

Por sua vez, as impressões quinhentistas dos Opera encontram-se representadas, nas suas diversas edições, em todas as grandes bibliotecas portuguesas que possuem fundos históricos. Também o incunábulo de 1496 assinala presença, embora em termos mais discretos. Paralelamente, as edições das obras vulgares de Petrarca tendem a avançar na cronologia do século. À exiguidade de comentários da primeira idade, serve de contraponto o significativo número de comentários de Andrea Gesualdo e de Vellutello preservados pelas bibliotecas portuguesas, conquanto, mesmo assim, em edições mais tardias. É a mesma a situação dos Triumphi. A colecção possuída pela Biblioteca Nacional, onde se incluem também vários exemplares de traduções castelhanas, ilustra bem o apreço por esta obra merecido ao público-leitor.

Se o nome de Petrarca integrava o elenco dos livros de Pedro Condestável9, aquele «messer Velasco di Portogallo», estudante em Bolonha na segunda metade de Quatrocentos, que segundo Vespasiano da Bisticci dispensava maiores desvelos aos sonetos de Petrarca do que às lições, foi recentemente identificado com Vasco Rodrigues10. Ao longo de todo o século XVI, os sinais da sua presença diversificam-se, nos mais diversos contextos bibliófilos. No tempo do rei D. Manuel (se não anteriormente) figura na biblioteca real11. Mediante o processo que a Inquisição instaurou contra João Costa, em 1550, por suspeitas de luteranismo, sabemos que o acusado possuía um Petrarca em vulgar12.

Quanto se pode deduzir dos cotejos sinteticamente apresentados assume um valor emblemático, relativamente a uma primeira caracterização do petrarquísmo português. Acaso, vontade («vel fortuna, vel voluntas», aplicando a este contexto a formulação petrarquesca), estendem por territórios alargados, que em muito transcendem as fronteiras do reino, o dinamismo que lhe é próprio, conferindo extraordinária vitalidade a este fenómeno literário, artístico e cultural: hodepórica que o liga, desde a sua génese, a uma circulação europeia que tem por grandes protagonistas a expansão de correntes de ideias de grande impacto e a movimentação de pessoas, correlativamente à difusão, em termos materiais, de manuscritos e livros impressos. No âmbito dos processos de intercâmbio assim travejados, há que pôr em relevo dois percursos axiais, um, que diz respeito à proximidade das relações estabelecidas com os vários pólos culturais da vizinha Espanha; outro, que se estende além-mar, pelas novas terras onde as embarcações portuguesas vão aportando.

Pela Índia, se no inventário dos bens do juiz da alfândega de Diu, Baltazar Jorge de Valdez, figura um Petrarca13. No colóquio com os chefes indígenas, se o poeta italiano era objecto de amena leitura, como o testemunha o cronista Diogo do Couto:

«[...] e ficaram correndo em tanta amizade, que nascendo um filho ao Chinguican, foi o Caracém festejá-lo a Baroche, onde o eu visitei, por me achar então naquela cidade, e por ser muito seu amigo, por lermos o italiano, e lhe eu mostrar Dante, Petrarca e Bembo, e outros poetas, que ele folgou de ver»14.


Este é o Petrarca que, de «attore e spettatore insieme dei suo tempo», como o caracteriza Michele Feo15, se torna actor e espectador de tantos outros tempos, «ad eorum littus», conforme escreve, premonitoriamente, na Senile 9.2.

Já Fernão Lopes, na Crónica dei rei D. João I, que remonta à primeira metade do século XV, evoca a sua autoridade para pôr em relevo os excepcionais dotes de todos os filhos do fundador da dinastia de Avis. Uma tal conformidade, segundo o cronista, é verdadeiramente rara em famílias de prole numerosa, mesmo de alta estirpe, como o mostra Petrarca, quando recorda a desobediência de um dos filhos de Stefano Colonna16. Tratar-se-á, com toda a probabilidade, de uma referência à Familiare 8.1, a dolente consolatoria dirigida a Stefano Colonna, «il Vecchio».

É do ambiente de Alcobaça que provêm os mais claros sinais de uma assimilação, bastante livre, de Petrarca, com os dois tratados em prosa, Bosco deleitoso e Horto do esposo, escritos por mão anónima (que poderá ser, eventualmente, a mesma) no século XV, se não em finais da centúria anterior. «Francisco» é uma personagem de relevo na visão do pecador que, no primeiro daqueles tratados, transpõe a entrada de um deleitoso jardim e faz a apologia da vida retirada. No segundo, são apresentados numerosos exempla tomados de empréstimo à obra daquele que é habitualmente denominado como «Francisco Patriarca». Os dois tratados seguem as vias de um estoicismo senequizado, plataforma comum às páginas petrarquescas que os inspiraram, para trilharem, a partir daí, vias diversificadas, na medida em que o seu texto se desenvolve, à margem de um socratismo introspectivo, numa direcção ascética que afunda raízes em fontes medievais, correlativamente às reflexões contidas no terceiro livro do Horto do esposo, em cujas páginas se defende a superioridade das sagradas escrituras em comparação com os clássicos.

Nessas prosas, os tratados e os diálogos de Petrarca são objecto de amplas paráfrases, com relevo para o De vita solitaria. Uma tal focalização encontra o seu perfeito correspondente no campo da poesia, se se considerar que o sentimento da natureza é um dos primeiros temas a ser assimilado. É quanto resulta das páginas do Cancioneiro geral, a portentosa compilação de poesia de corte onde Garcia de Resende reúne a produção cronologicamente compreendida entre meados do século XV e a data da sua edição, 1516. Para interpretar esta receptividade, devem-se considerar fenómenos de substrato com raízes antropológicas profundas, tendo em linha de conta que os elementos da natureza e o sentimento da «saudade» eram componentes muito específicas da lírica galego-portuguesa medieval. O valor introspectivo do universo literário de Petrarca continua a ser estranho ao magistério destes poetas. O mundo interior do amante é representado através de sentimentos, atributos anímicos ou partes do corpo envolvidos num jogo dramatizado que cria efeitos de cisão e despersonalização, obstáculo a uma verdadeira análise da intimidade. A esses mesmos anos remonta a novela sentimental Menina e moça, cujo autor, Bernardim Ribeiro, conhecia Petrarca, pois retoma fragmentos textuais da sua obra. Mas o relato dos casos amorosos não supera, do mesmo modo, uma perspectiva de exterioridade emocional.

A viagem é um efectivo elo de aproximação entre Petrarca e a cultura portuguesa. Viagem de Itália até Portugal quando, em 1485, data que assinala a introdução do Humanismo, Cataldo Parísio Sículo chega à corte de D. João II a fim de educar os jovens membros das famílias nobres17. Traz na bagagem, enquanto oferta para o Rei das Descobertas, o poema épico Arcitinge, sobre a conquista de Arzila e Tânger, onde se podem ler ecos da Africa petrarquesca. Viagem de Portugal até Itália, donde regressa, em torno de 1525, Francisco de Sá de Miranda, o primeiro poeta do Renascimento português, e, em 1540, Francisco de Holanda, arquitecto, pintor e teorizador de arte18. No seu itinerário de regresso, Holanda introduz um desvio na rota da travessia alpina, para fazer uma peregrinatio a Vaucluse, cuja paisagem fixa num fabuloso desenho aguardado. Ambos se encontravam ligados ao bispo português, que depois veio a ser cardeal, D. Miguel da Silva, destinatário de Il cortegiano.

Na obra de Miranda, o amor pode ser considerado um sentimento ideal, fonte de harmonia, susceptível de afastar o homem dos vícios. Todavia, quando é apresentado como rede de contradições, logo se toma objecto de peremptória condenação, por pôr em risco uma integridade dotada de valor absoluto. Assim sendo, a análise da intimidade do amante é refreada pela tensão moral. Nesse quadro, intersectam-se elementos literários de proveniência bastante diversa, que conferem à sua poesia um carácter experimentalista. Introdutor do verso senario e decassílábico, primeiro cultor do soneto, da canção petrarquista, da epístola versificada, da comédia em prosa e, a par de Bernardim Ribeiro, um dos primeiros cultores da écloga e da sextina, trabalha as formas petrarquistas com liberdade, por contaminatio com a tradição da redondilha19. Na sextina, à semelhança de Bernardim Ribeiro, usa o verso de redondilha maior. Ao cantar a Virgem, recorre não só ao modelo de«Vergine bella, che di sol vestita» (RVF 366), mas também ao da canção, «Chiare, fresche et do Ici acque» (RVF 126). A variedade das suas escolhas, apesar de não ser coadunável com os padrões de um petrarquismo canónico, leva-o a uma constante interrogação dos sinais que maneja, o que terá repercussões fundamentais na desagregação da cadeia do simbolismo medieval, que se processa sem rupturas bruscas.

É com uma nova geração de poetas, profundamente influenciada pela lição de Horácio, à qual pertencem António Ferreira e Pero de Andrade Caminha, que o modelo de Petrarca passa a ocupar uma posição de centralidade, no contexto do lirismo português do século XVI. Na sua base, encontra-se a assimilação de um conjunto de princípios de carácter normativo, intimamente ligado à questão do horacianismo. Ferreira, Caminha, Diogo Bernardes e outros autores que deles são contemporâneos, trocam entre si epístolas versificadas onde fazem a apologia de uma poética de cariz formalizante. Ferreira, que é, de entre eles, o poeta que defende com maior tenacidade os princípios da imitatio, recusa terminantemente a redondilha, em nome do novo lume que chega da Toscana20. Mas a profunda renovação da literatura portuguesa deste período é indissociável de um alargamento de horizontes que, de Petrarca, e muitas vezes através de Petrarca, se estende quer até aos autores da antiguidade e aos poetas neolatinos, quer até aos petrarquistas italianos e aos poetas da vizinha Espanha, em particular, Boscán, Garcilaso e Herrera21. O exemplo petrarquesco chega a interferir na imitação de autores antigos ou neolatinos, funcionando como plano mediador na recriação de conceitos ou estilemas próprios da sua obra, que é revisitada em função do uso que dela fez o seu primeiro «descobridor» moderno.

As diversas situações amorosas das páginas do Petrarca vulgar são recriadas através de um aparato estilístico que revela a consciente assimilação dos novos preceitos e que se processa em paralelo não só com a introdução das novas formas italianizantes, como também com uma crescente familiaridade com técnicas compositivas em vias de assimilação. Do modo vago e distante à luz do qual a figura feminina era apresentada no Cancioneiro geral, passa-se à descrição pormenorizada dos seus dotes e dos efeitos da sua presença.

Em Ferreira, é bastante habitual a integração conjunta de empréstimos petrarquescos de vária proveniência com elementos de outra origem. Por sua vez, Caminha retoma frequentemente, em versão portuguesa, alguns incipit dos Fragmenta, para depois os desenvolver de forma pessoal, através de um procedimento que mantém algumas semelhanças com a técnica da glosa. Pelo que diz respeito à forma cancioneiro22, Ferreira é autor do único cancioneiro petrarquista narrativamente organizado da literatura portuguesa do século XVI, os sonetos dos Poemas lusitanos, que se dividem em dois livros. As composições proemiais retomam, respectivamente, Horácio, Petrarca e Bembo23. Segue-se um conjunto de sonetos dedicado às vivências amorosas do poeta, que ocupa o resto do primeiro livro. O segundo livro compreende uma série de composições in mortem, sendo completado por um conjunto de sonetos de circunstância dedicado a personalidades civis e a figuras religiosas. Já o cancioneiro que Pero de Andrade Caminha dedica a D. Francisca de Aragão, dama de corte de sangue real, famosa pela sua beleza, cantada por todos os grandes poetas da época, obedece a um critério de estruturação serial. Divide-se em secções organizadas em torno de formas poéticas, algumas italianizantes, outras ligadas à tradição peninsular ibérica. O modo como é apresentada a experiência amorosa, que se inspira numa mulher perfeita, envolvida por uma aura celestial, cuja descrição se encontra estritamente ligada ao campo semântico da clareza e da luminosidade, e que o amante não aspira senão a contemplar, anda associado a um neoplatonismo rarefeito, plataforma a partir da qual se implanta o modelo tendencialmente homologante do cancioneiro serial.

Entretanto, no âmbito das formas e dos géneros literários, a lição de Petrarca alarga-se a muitas outras áreas que superam o território restrito da lírica. Ferreira é autor da primeira tragédia clássica regular escrita em português, a Castro, que retoma um tema da história nacional de Trezentos, os amores do príncipe Pedro, herdeiro da coroa, e de Inês de Castro, que será assassinada por razões de Estado. Trata-se de uma das mais intensas representações do tema amoroso, no teatro português do século XVI. A rede de contradições através das quais Petrarca enunciara a dramaticidade da paixão é como que engrandecida pelo conflito trágico que envolve personagens de alta estirpe, numa natural e inelutável atracção24. Aquela que será, muito provavelmente, a primeira sextina vazada em decassílabo das letras portuguesas, é recitada pelo coro para anunciar a morte da Castro, instrumento literário através do qual é traduzida a irredutível circularidade do fatum.

À medida que o século XVI se aproxima do fim, adensam-se os efeitos de uma modelização mais livre, mas também mais inquieta, do exemplo de Petrarca, em estrita correlação com a cosmovisão maneirista, de forma a pôr em evidência as tantas perplexidades suscitadas por um universo em fragmentação, à luz de uma aguda sensibilidade ao desconcerto do mundo. Os poetas mais representativos desse filão são Diogo Bernardes e Luís de Camões.

Com os seus versos, Petrarca supera a fronteira da redondilha, contribuindo quer para o aprofundamento dos temas do sentimento do tempo e da natureza, quer para a renovação do tema da figura feminina e da análise do estado de enamoramento. Da contaminatio entre o modelo petrarquesco, o andamento saltitante do verso curto e um jogo de agudezas altamente refinado, resulta um corpus poético que a pleno título poderia ilustrar a leggerezza calviniana. Será em virtude da liberdade compositiva com que são trabalhados e fundidos componentes literários de origem tão diversa que poderemos compreender que os primeiros sinais da interrogação do modelo petrarquista, com a exaltação da mulher morena, ou mesmo preta, provenham desse domínio. Assim Camões, quando, nas trovas que dedica «A uma escrava com quem andava d'amores na Índia, chamada Bárbora», postula a superioridade da beleza da mulher preta, relativamente a uma Laura25.

Na obra destes poetas, os raros momentos de harmonia fazem-se devedores do neoplatonismo, ou de eventuais reminiscências do dolce stil novo. Todavia, predomina, no desenvolvimento da temática amorosa, a enfatização do estado de ruptura interior, de tal forma que o dissídio se faz charneira em torno da qual volteia todo o processo de análise íntima. O carácter fluido e inatingível da figura feminina tem por consequência a contínua e incansável tentativa de preencher o espaço que medeia entre sujeito e objecto de desejo através da proliferação da palavra, colocada ao serviço de uma análise interior tão lúcida quanto límpida. Apesar de se encontrar ciente de que aquele centro que procura com ânsia não está ao seu alcance, o amante persiste no esforço de desvelar os meândricos percursos desses fragmenta. Mas, nesse universo, não é apenas a figura feminina a ser representada de modo dispersivo e intenso. Tudo se reparte por experiências, tempos e lugares fragmentários. Como tal, os grandes motivos do universo sentimental de Petrarca são recriados à luz de um desengano e de uma dramaticidade que em muito superam os termos em que o sentimento de dissídio era experienciado no Canzoniere. A lucidez e o esforço de racionalização do poeta coincidem, a cada passo, com a dissonância e com a desilusão do mundo, entre anseios espirituais e desejos corporais, entre aceitação do destino e determinação heróica.

Com Diogo Bernardes, esse espaço enche-se de notas de delicada melancolia. A intensificação dos efeitos do dissídio dá lugar a uma atitude de introversão, de matriz mais passiva, comparativamente a Camões. Camões é o genial intérprete daquele sentido de dispersão que evoca os fragmenta de Petrarca em escala engrandecida26. Protagonista de uma «[...] vida / pelo mundo em pedaços repartida»27, dispersa por «[...] terras e mares apartados»28, perseguido por «males em pedaços»29, o seu destino é o do peregrino de amor que, «antes agora livre, agora atado, / em várias flamas variamente ardia»30. Quando o peso do fado sobre si recai, entrega-se às mãos do destino, que «não se pode co Fado ter cautela; / nem pode haver nenhum contentamento / que não seja trocado em dura estrela»31. O que não o impede de, noutras ocasiões, se indignar perante «[...] o Céu severo, / as Estrelas e o Fado sempre fero, /» [que] «com meu perpétuo dano se recreiam, / mostrando-se potentes e indignados / contra um corpo terreno, / bicho da terra vil e tão pequeno»32. Ε ao retomar a lição do Petrarca que, no De remediis, pela voz de Ratio, adverte, «est enim amor latens ignis, gratum vulnus, sapidum venerium, dulcis amaritudo, delectabilis morbus, iucundum supplicium, blanda mors»33, será para exprimir, no soneto, «Amor é um fogo que arde sem se ver»34, as suas perplexidades, confrontado com um sentimento que, apesar de lacerante, é, afinal, lastro humano:

   Amor é um fogo que arde sem se ver,

é ferida que dói, e não se sente;

é um contentamento descontente,

é dor que desatina sem doer.

   É um não querer mais que bem querer;

é um andar solitário entre a gente;

é nunca contentar-se de contente;

é um cuidar que ganha em se perder.

   É querer estar preso por vontade;

é servir a quem vence, o vencedor;

é ter com quem nos mata, lealdade.

   Mas como causar pode seu favor

nos corações humanos amizade,

se tão contrário a si é o mesmo Amor?



Com Camões, a presença de Petrarca na literatura portuguesa atinge o seu ápice. De facto, se Camões é o poeta nacional, cujas celebrações, a 10 de Junho, integram igualmente as comunidades portuguesas no mundo, é também porque, no século das Descobertas, soube fazer de Petrarca suprema via de exploração lírica.

Até à última década da centúria, a difusão da produção poética efectuou-se unicamente por via manuscrita, através dos designados cancioneiros de mão, que são miscelâneos. Cada um deles é, pois, um unicum que corresponde aos gostos do seu possuidor, do amanuense, ou de outras entidades que intervenham na sua organização e feitura, no quadro de uma situação pragmática específica. Será necessário esperar pelos últimos anos do século para que a obra dos poetas portugueses de Quinhentos possa ser lida em letra de forma35.

Uma análise do petrarquismo português, pelo que diz respeito às modalidades materiais de transmissão textual que lhe são próprias, atenta à metodologia de Amedeo Quondam36, confronta-nos, à transparência, com uma marca essencial da sua especificidade. Na literatura portuguesa do século XVI, Petrarca sempre foi uma presença viva que nunca se cristalizou em formulários repetitivos. Intervém nesse processo factores de diversa ordem, com relevo quer para a vitalidade de fenómenos de substrato, quer para o carácter tardio da circulação do livro tipográfico de poesia lírica, em prol da via manuscrita. O apreço merecido pela tradição peninsular ibérica, juntamente com o interesse suscitado pelos Padres da Igreja e pelos autores da Antiguidade, fazem do código petrarquista um modelo recriado através de complexos processos de contaminatio e em constante evolução. Esse dinamismo, ao mesmo tempo que marginaliza reusos mecanicistas, erige-se em motivo propulsor equilibrante, fruto do qual substrato e inovação se desenvolvem em simbiose. O que tem por correspondente, no plano da transmissão material, não só a ausência do recurso a uma estratégia de edição que bate centenas de exemplares homólogos, como também, no campo bibliográfico, a escassa representação, nos fundos portugueses, daqueles instrumentos-chave da «massificação» petrarquista, imagem de marca dos prelos venezianos, que são o rimário, a antologia de textos ou o repertório de imagens37. Será também no âmbito do mesmo quadro metodológico que melhor poderemos compreender a incidência tardia, no panorama musical português, do madrigal, tendo em linha de conta que a sua fortuna tem por precedente, em termos prototípicos, uma estação literária caracterizada pela intensidade dos processos de circulação e reus o que andam associados à afirmação da imprensa38.

Na passagem do século XVI para o século XVII, o petrarquismo oferece-se como modelo da poesia religiosa, uma das vias através das quais já Camões e Diogo Bernardes procuravam combater o dissídio. Mas a adaptação do modelo lírico de Petrarca ao divino faz-se mais intensa num círculo de poetas de entre os quais se destacam D. Manuel de Portugal, frei Agostinho da Cruz, Baltazar Estaço, Martim Castro do Rio, e tantos outros, cuja actividade se estende por Seiscentos. Alguns deles também trataram temas profanos. As contingências do plano material são superadas por via espiritual e o dissídio é aplacado pela fé em Deus. As figuras femininas enaltecidas são santas ou a própria Virgem, louvada em composições vazadas nas mais diversas formas métricas, apesar de o exemplo da última composição do Canzoniere assumir particular simbolismo.

A poesia ao divino cruza-se com uma linha prosástica de tema ético e moral inspirada em Petrarca, que se desenvolve ao longo de todo o século XVI, para inflectir mais claramente, por finais da centúria, em direcção religiosa. O autor do Espelho de casados, o Doutor João de Barros (primeira edição, Porto, 1540), retoma vários episódios do De remedas utriusque fortunae e dos Triumphi para ilustrar os princípios morais que defende. Sucessivamente, na Imagem da vida cristã ordenada por diálogos, frei Heitor Pinto (primeira edição, primeira parte, Coimbra, 1563; segunda parte, Lisboa, 1572) desenvolve conceitos neoplatónicos de diversa proveniência, que desembocam num ecletismo conceptual em cujo âmbito Petrarca se erige em frequente motivo de reflexão. Ademais, o quinto diálogo, «Diálogo da vida solitária», segue de perto os seus trilhos. Também Cristóvão da Costa, célebre médico e botânico, é autor de um Tratado en contra y pro la vida solitaria, con otros dos tratados uno de la religion y religioso, otro contra hombros que malviven (primeira edição, Venezia, 1592, na qual o seu autor é denominado Christoval Acosta Affricano), em cujas páginas repropõe os ensinamentos de Petrarca sobre a vida apartada. Por sua vez, nos Diálogos de frei Amador Arrais (primeira edição, Coimbra, 1589, segunda edição refundida e acrescentada, Coimbra, 1604), a sua lição de austeridade é interpretada em sentido claramente ascético. À medida que o século se aproxima do fim, fazem-se mais densas as referências, implícitas ou explícitas, ao De remediis utriusque fortunae. Dele faz amplo recurso D. Jerónimo Osório, que estudou em Bolonha.

O século XVI foi, para as letras portuguesas, a época em que a presença de Petrarca se mostrou mais viva e fecunda, ocupando um lugar central no polissistema da época. Na verdade, se toda a renovação do lirismo quinhentista passa pela sua lição modelar, não é possível estudar fenómenos como o classicismo ou o italianismo à margem da sua sombra. Mas o seu exemplo continua vivo, sem dúvida, ao longo dos períodos subsequentes, até hoje. No Barroco, o lirismo desfrutará largamente a tópica petrarquista, embora se afirme, da mesma feita, um filão antipetrarquista, veículo de propósitos satíricos e extravagantes39. Também os membros da Arcádia o citam frequentemente, enquanto exemplo do equilíbrio da arte clássica. Afirmando-se o Neoclassicismo português através de um diálogo histórico com a cultura nacional que privilegia o século XVI, o seu Petrarca é, em boa parte, o dos poetas de Quinhentos, em particular o de Camões.

Se a literatura portuguesa contemporânea é transversalmente percorrida por fenómenos de tematização quer petrarquesca, quer petrarquista, a presença desses filões oferece-se, não raro, de modo extremamente subtil, por via poética. Mostra-o, de forma emblemática, o mais recente livro de poemas de Vasco Graça Moura, Laocoonte, rimas várias, andamentos graves, em particular pelo que diz respeito à secção intitulada, «Oito canções de Outono», onde a metaliterariedade existencial se traduz no recurso a esquemas métricos de matriz petrarquista40. Finura bem representativa de um tecido literário e cultural onde Petrarca nunca ditou formulários de circunstância.

Apesar de ser motivo literário contínuo e persistente, ao longo dos séculos, não foi um autor muito traduzido, constatação só aparentemente paradoxal. Foi necessário esperar até ao ano de 2003 para que fosse dada aos prelos, em Portugal, a primeira versão integral do Canzoniere. O seu autor, Vasco Graça Moura, traduziu também os Triumphi, que saíram no ano seguinte41. Pelo que diz respeito a épocas mais remotas, apenas há a assinalar uma versão comentada dos Triumphi, que se interrompe, contudo, no 33.º verso do terceiro capítulo do Triumphus famae. É obra de mão anónima elaborada posteriormente ao Concílio de Trento. Uma tal ausência, quando confrontada com a ampla ressonância do nome e da obra de Petrarca, de modo algum poderá ser assimilada a um vacuum, correspondendo antes à outra face de um convívio íntimo, diuturno, com os seus escritos. Aliás, também nesse domínio a cultura portuguesa desempenhou uma função propulsora, com relocações a Este e a Oeste, em sentido verdadeiramente transcultural. Ε de origem portuguesa o autor da primeira tradução castelhana do Canzoniere, que é parcial e foi impressa em Veneza no ano de 1567. O tradutor, Salusque Lusitano, alias Salomon Usque, era um hebreu refugiado em Itália42. Por sua vez, a outra versão do Canzoniere leva-nos pelo Atlântico, até ao mundus novus. É a primeira integral numa língua ibérica, também o castelhano, tendo sido editada em Madrid em 159143. O seu autor, o português Henrique Garcês, depois de ter vivido em Espanha durante um certo período de tempo, partiu para a América, onde trabalhou como mineiro no Perú, alternando o trabalho na mina com o labor em torno dos versos do poeta de Arezzo.

O vigor dos trilhos abertos por Petrarca na literatura e na cultura portuguesas é sustido, pois, por uma malha cuja coerência é posta em relevo pelo direccionamento convergente dos resultados das várias metodologias a que recorremos, entre o levantamento de fundos bibliográficos manuscritos e impressos, as formas de transmissão material, o elenco de fontes e a contaminatio, a crítica hermenêutica, locações no espaço e locações no tempo.

Como diria Petrarca, retomando o texto da Senile 2.9, «ad eorum littus irem, ac reverterer, non illassus modo, sed etiam indefessus, neque tantum corpore integro, sed calceo insuper inattrito, et vepríum pror-sus, et lapidum et luti et pulveris inscio».