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De Cantos e fantasias

I

Lembras-te, Iná, dessas noites

cheias de doce harmonia,

quando a floresta gemia

do vento aos brandos açoites?

Quando as estrelas sorriam,
5

quando as campinas tremiam

nas dobras de úmido véu?

E nossas almas unidas

estreitavam-se, sentidas

ao langor daquele céu?
10

Lembras-te, Iná? Belo e mago,

da névoa por entre o manto,

erguia-se ao longe o canto

dos pescadores do lago.

Os regatos soluçavam,
15

os pinheiros murmuravam

no viso das cordilheiras,

e a brisa lenta e tardia

o chão revolto cobria

de flores das trepadeiras.
20

Lembras-te, Iná? Eras bela,

ainda no albor da vida,

tinhas a fronte cingida

de uma inocente capela.

Teu seio era como a lira
25

que chora, canta e suspira

ao roçar de leve aragem;

teus sonhos eram suaves,

como o gorjeio das aves

por entre a escura folhagem.
30

Do mundo os negros horrores

nem pressentias sequer;

teus almos dias, mulher,

passavam num chão de flores.

Oh! primavera sem termos!
35

Brancos luares dos ermos!

Auroras de amor sem fim!

Fugistes, deixando apenas

por terra esparsas as penas

das asas de um serafim!
40

Ah! Iná! Quanta esperança

eu não vi brilhar nos céus

ao luzir dos olhos teus,

a teu sorrir de criança!

Quanto te amei! Que futuros!
45

Que sonhos gratos e puros!

Que crenças na eternidade!

Quando a furto me falavas,

e meu ser embriagavas

na febre da mocidade!
50

Como nas noites de estio,

ao sopro do vento brando,

rola o selvagem cantando

na correnteza do rio;

Assim passava eu no mundo,
55

nesse descuido profundo

que etérea dita produz!

Tu eras, Iná, minh'alma,

de meu estro a glória e a palma,

de meus caminhos a luz!
60

Que é feito agora de tudo?

de tanta ilusão querida?

A selva não tem mais vida,

o lar é deserto e mudo!

Onde foste, oh! pomba errante?
65

Bela estrela cintilante

que apontavas o porvir?

Dormes acaso no fundo

do abismo tredo e profundo,

minha pérola de Ofir?
70

Ah! Iná! por toda parte

que teu espírito esteja,

minh'alma que te deseja

não cessará de buscar-te!

Irei às nuvens serenas,
75

vestindo as ligeiras penas

do mais ligeiro condor;

irei ao pego espumante,

como da Ásia o possante,

soberto mergulhador!
80

Irei à pátria das fadas

e dos silfos errabundos,

irei aos antros profundos

das montanhas encantadas;

Se depois de imensas dores,
85

no seio ardente de amores

eu não puder apertar-te,

quebrando a dura barreira

deste mundo de poeira,

talvez, Iná, hei de achar-te!
90

II

Era à tardinha. Cismando,

por uma senda arenosa

eu caminhava. Tão brando,

como a voz melodiosa

da menina enamorada,
95

sobre a grama aveludada,

corria o vento a chorar.

Gemia a pomba... no ar

passava grato e sentido

o aroma das maravilhas
100

que cresciam junto às trilhas

do deserto umedecido.

Mais bela que ao meio-dia,

mais carinhosa batia

a luz nos canaviais;
105

e o manso mover das matas,

o barulho das cascatas

tinham notas divinais.

Tudo era tão calmo e lindo,

tão fresco e plácido ali,
110

que minh'alma se expandindo

voou, foi junto de ti,

Nas asas do pensamento,

gozar do contentamento

que noutro tempo fruí.
115

Oh! Como através dos mantos

das saudades e dos prantos

tão meigamente sorrias!

Tinhas o olhar tão profundo

que de minh'alma no fundo
120

fizeste brotar um mundo

de sagradas alegrias.

Uma grinalda de rosas

brancas, virgens, odorosas,

te cingia a fronte triste...
125

Cismavas queda, silente,

mas, ao chegar-me, tremente

te ergueste, e alegre, contente,

sobre meus braços caíste.

Pouco a pouco, entre os palmares
130

da longínqua serrania,

sumia-se a luz do dia

que aclarava esses lugares;

as campânulas pendidas

sobre as fontes adormidas
135

de sereno gotejavam,

e no fundo azul dos céus,

dos vapores entre os véus,

as estrelas despontavam.

Éramos sós, mais ninguém
140

nossas palavras ouvia;

como tremias, meu bem!

Como teu peito batia!...

Pelas janelas abertas

entravam moles, incertas,
145

daquelas plagas desertas

as virações suspirosas,

e cheias de mil desvelos,

cheias de amor e de anelos,

lançavam por teus cabelos
150

o eflúvio das tuberosas!...

Ai! tu não sabes que dores,

que tremendos dissabores

longe de ti eu padeço!

Em teu retiro sozinha,
155

pobre criança mesquinha,

cuidas talvez que te esqueço!

A turba dos insensatos

entre fúteis aparatos

canta e folga pelas ruas,
160

mas triste, sem um amigo,

em meu solitário abrigo

pranteio saudades tuas!

Nem um minuto se passa,

nem um inseto esvoaça,
165

nem uma brisa perpassa

sem uma lembrança aqui;

o céu da aurora risonho,

a luz de um astro tristonho,

os sonhos que à noite sonho,
170

tudo me fala de ti.

III

Tu és a aragem perdida

na espessura do pomar,

eu sou a folha caída

que levas sobre as asas ao passar.
175

Ah! voa, voa, a sina cumprirei:

te seguirei.

Tu és a lenda brilhante

junto do berço cantada;

eu sou o pávido infante
180

que o sono esquece ouvindo-te a toada.

Ah! canta, canta, a sina cumprirei:

te escutarei.

Tu és a onda de prata

do regato transparente;
185

eu a flor que se retrata

no cristal encantado da corrente.

Ah! chora, chora, o fado cumprirei:

Te beijarei.

Tu és o laço enganoso
190

entre rosas estendido;

eu o pássaro descuidoso

por funesto prestígio seduzido.

Ah! não temas, a sina cumprirei:

Me entregarei.
195

Tu és o barquinho errante

no espelho azul da lagoa;

eu sou a espuma alvejante

que agita nágua a cortadora proa.

Ah! voga, voga, o fado cumprirei:
200

Me desfarei.

Tu és a luz da alvorada

que rebenta na amplidão;

eu a gota pendurada

na trepadeira curva do sertão.
205

Ah! brilha, brilha, a sorte cumprirei:

Cintilarei.

Tu és o íris eterno

sobre os desertos pendido;

eu o ribeiro do inverno
210

entre broncos fraguedos escondido.

Ah! fulge, fulge, a sorte cumprirei:

deslizarei.

Tu és a esplêndida imagem

de um romântico sonhar;
215

eu cisne de alva plumagem

que falece de amor a te mirar.

Ah! surge, surge, o fado cumprirei:

Desmaiarei.

Tu és a luz crepitante
220

que em noite trevosa ondeia;

eu mariposa ofegante

que em torno à chama trêmula volteia.

Ah! basta, basta, a sina cumprirei:

Me abrasarei.
225

IV

Teus olhos são negros, negros

como a noite nas florestas...

Infeliz do viajante

se de sombras tão funestas

tanta luz não rebentasse!
230

A aurora desponta e nasce

da noite escura e tardia:

Também da noite sombria

de teus olhos amorosos

partem raios mais formosos
235

que os raios da luz do dia.

Teu cabelo mais cheiroso

que o perfume dos vergéis,

na brancura imaculada

da cútis acetinada
240

rola em profusos anéis:

Eu quisera ter mil almas,

todas ardentes de anelos,

para prendê-la, meu anjo,

à luz de teus olhos belos,
245

nos grilhões de teus olhares,

nos anéis de teus cabelos!

V

Não vês quantos passarinhos

se cruzam no azul do céu?

Pois olha, pomba querida,
250

mais vezes,

mais vezes te adoro eu.

Não vês quantas rosas belas

o sereno umedeceu?

Pois olha, flor de minh'alma,
255

mais vezes,

mais vezes te adoro eu.

Não vês quantos grãos de areia

na praia o rio estendeu?

Pois olha, cândida pérola,
260

mais vezes,

mais vezes te adoro eu.

Ave, flor, perfume, canto,

rainha do gênio meu,

além da glória e dos anjos,
265

mil vezes,

mil vezes te adoro eu.

VI

És a sultana das brasílias terras,

a rosa mais balsâmica das serras,

a mais bela palmeira dos desertos;
270

tens nos olhares do infinito as festas

e a mocidade eterna das florestas

na frescura dos lábios entreabertos.

Por que Deus fez-te assim? Que brilho é esse

que ora incendeia-se, ora desfalece
275

nessas pupilas doidas de paixão?...

Quando as enxergo julgo nos silvados

ver palpitar nos lírios debruçados

as borboletas negras do sertão.

O rochedo luzido, onde a torrente
280

bate alta noite rápida e fremente,

de teu preto cabelo inveja a cor...

E que aroma, meu Deus! o estio inteiro

parece que levanta-se fagueiro,

cheio de sombra e cânticos de amor!
285

Quando tu falas lembro-me da infância,

dos vergéis de dulcíssima fragrância

onde cantava à tarde o sabiá!...

Ai! deixa-me chorar e fala ainda,

não, não dissipes a saudade infinda
290

que nesta fronte bafejando está!

Eu tenho nalma um pensamento escuro,

tão tredo e fundo que o farol mais puro

que Deus há feito espancará jamais

debalde alívio hei procurado aflito,
295

mas quando falas, teu falar bendito

abranda-lhe os martírios infernais!

Dizem que a essência dos mortais há vindo

de um outro mundo mais formoso e lindo

que um santo amor as bases alimenta;
300

talvez nesse outro mundo um laço estreito

a teu peito prendesse o triste peito

que hoje sem ti nas trevas se lamenta!

És a princesa das brasílias terras,

a rosa mais balsâmica das serras,
305

do céu azul a estrela mais dileta...

Vem, não te afastes, teu sorrir divino

é belo como a aurora, e a voz um hino

que o gênio inspira do infeliz poeta.

VII

Ah! quando face a face te contemplo,
310

e me queimo na luz de teu olhar,

e no mar de tu'alma afogo a minha,

e escuto-te falar;

quando bebo teu hálito mais puro

que o bafejo inefável das esferas.
315

E miro os róseos lábios que aviventam

imortais primaveras,

tenho medo de ti!... Sim, tenho medo

porque pressinto as garras da loucura,

e me arrefeço aos gelos do ateísmo,
320

soberba criatura!

Oh! Eu te adoro como adoro a noite

por alto-mar, sem luz, sem claridade,

entre as refregas do tufão bravio

vingando a imensidade!
325

Como adoro as florestas primitivas

que aos céus levantam perenais folhagens,

onde se embalam nos coqueiros presas

as redes dos selvagens!

Como adoro os desertos e as tormentas,
330

o mistério do abismo e a paz dos ermos,

e a poeira de mundos que prateia

a abóbada sem termos!...

Como tudo o que é vasto, eterno e belo,

tudo o que traz de Deus o nome escrito!
335

Como a vida sem fim que além me espera

no seio do infinito!

VIII

Saudades! tenho saudades

daqueles serros azuis,

que à tarde o sol inundava
340

de louros toques de luz!

Tenho saudades dos prados,

dos coqueiros debruçados

à margem do ribeirão,

e o dobre de Ave-Maria
345

que o sino da freguesia

lançava pela amplidão!

Oh! minha infância querida!

Oh! doce quartel da vida!

Como passaste depressa!
350

Se tinhas de abandonar-me,

por que, falsária, enganar-me

com tanta meiga promessa?

Ingrata, por que te foste?

Por que te foste, infiel?
355

E a taça de etéreas ditas,

as ilusões tão bonitas

cobriste de lama e fel?

Eu era vivo e travesso,

tinha seis anos então,
360

amava os contos de fadas

contados junto ao fogão;

e as cantigas compassadas,

e as legendas encantadas

das eras que lá se vão.
365

De minha mãe era o mimo,

de meu pai era a esperança;

um tinha o céu, outro a glória

em meu sorrir de criança,

ambos das luzes viviam
370

que de meus olhos partiam.

Junto do alpendre sentado

brincava com minha irmã,

chamando o grupo de anjinhos

que tiritavam sozinhos
375

na cerração da manhã;

depois, por ínvios caminhos,

por campinas orvalhadas,

ao som de ledas risadas

nos lançávamos correndo...
380

O viandante parava

tão descuidosos nos vendo,

o camponês nos saudava,

a serrana nos beijava

ternas palavras dizendo.
385

À tarde eram brincos, festas,

carreiras entre as giestas,

folguedos sobre a verdura;

nossos pais nos contemplavam,

e seus seios palpitavam
390

de uma indizível ventura.

Mas ai! os anos passaram,

e com eles se apagaram

tão lindos sonhos sonhados!

E a primavera tardia,
395

que tanta flor prometia,

só trouxe acerbos cuidados!

Inda revejo esse dia,

cheio de dores e prantos,

em que tão puros encantos
400

oh! sem saber os perdia!

Lembra-me ainda: era à tarde.

morria o sol entre os montes,

casava-se a voz das rolas

ao burburinho das fontes;
405

o espaço era todo aromas,

da mata-virgem nas comas

pairava um grato frescor;

as criancinhas brincavam,

e as violas ressoavam
410

na cabana do pastor.

Parti, parti, mas minh'alma

partida ficou também,

metade ali, outra em penas

que mais consolo não tem!
415

Oh! como é diverso o mundo

daquelas serras azuis,

daqueles vales que riem

do sol à dourada luz!

Como diferem os homens
420

daqueles rudes pastores

que o rebanho apascentavam,

cantando idílios de amores!

Subi aos paços dos nobres,

fui aos casebres dos pobres,
425

Riqueza e miséria vi;

mas tudo é morno e cansado,

tem um gesto refalsado,

nestes lugares daqui!

Oh! Então chorei por ti,
430

minha adorada mansão;

chamei-te de meu desterro,

os braços alcei-te em vão!

Não mais! Os anos passaram,

e com eles desbotaram!
435

Tantas rosas de esperança!

Do tempo nas cinzas frias

repousam pra sempre os dias

de meu sonhar de criança!

IX

Um dia o sol poente dourava a serrania,
440

as ondas suspiravam na praia mansamente,

e além nas solidões morria o som plangente

dos sinos da cidade dobrando Ave-Maria.

Estávamos sozinhos sentados no terraço

que a trepadeira em flor cobria de perfumes:
445

tu escutavas muda das auras os queixumes,

eu tinha os olhos fitos na vastidão do espaço.

Então me perguntaste com essa voz divina

que a teu suave mando trazia-me cativo:

-Por que todo o poeta é triste e pensativo?
450

Por que dos outros homens não segue a mesma sina?

Era tão lindo o céu, a tarde era tão calma...

E teu olhar brilhava tão cheio de candura,

criança! que não viste a tempestade escura

que estas palavras tuas me despertaram nalma!
455

Pois bem, hoje que o tempo partiu de um golpe só

sonhos da mocidade e crenças do futuro,

na fronte do poeta não vês o selo escuro

que faz amar as tumbas e afeiçoar-se ao pó?

X

À luz da aurora, nos jardins da Itália
460

floresce a dália de sentida cor,

conta-lhe o vento divinais desejos

e geme aos beijos da mimosa flor.

O céu é lindo, a fulgurante estrela

ergue-se bela na amplidão do sul,
465

pálidas nuvens do arrebol se coram,

as auras choram na lagoa azul.

Tu és a dália dos jardins da vida,

a estrela erguida no cerúleo véu,

tens nalma um mundo de virtudes santas,
470

e a terra encantas num sonhar do céu.

Basta um bafejo na inspirada fibra

que o seio vibra divinais encantos,

como no templo do senhor vendado

o órgão sagrado se desfaz em cantos.
475

Pomba inocente, nem sequer o indício

do escuro vício pressentiste apenas!

Nunca manchaste na charneca impura

a doce alvura das formosas penas.


Cismas à noite

Doce brisa da noite, aura mais frouxa

que o débil sopro de adormido infante,

tu és, quem sabe? a perfumada aragem

das asas de ouro algum gênio errante.

Tu és, quem sabe? a gemedora endecha
5

de um ente amigo que afastado chora,

e ao som das fibras do saltério ebúrneo

conta-me as dores que padece agora!

Ai! não te arredes, viração tardia,

zéfiro pleno da estival fragrância!
10

Sinto a teus beijos ressurgir-me nalma

o drama inteiro da rosada infância!

Bem com a aurora faz brotar as clícias,

chama das selvas os festivais cantores,

assim dos tempos na penumbra elevas
15

todos os quadros da estação das flores.

Sim, vejo ao longe os matagais extensos,

o lago azul, os palmeirais airosos,

a grei sem conta de ovelhinhas brancas

balindo alegre nos sarçais viçosos;
20

Diviso a choça paternal no outeiro,

alva, gentil, dos laranjais no seio,

como a gaivota descuidosa e calma

das verdes ondas a boiar no meio;

Sinto o perfume das roçadas frescas,
25

ouço a canção do lenhador sombrio,

sigo o barqueiro que tranqüilo fende

a lisa face do profundo rio...

Oh! minhas noites de ilusões celestes!

Visões brilhantes da primeira idade!
30

Como de novo reviveis tão lindas

por entre as balsas da nativa herdade!

Como no espaço derramais, suaves,

tão langue aroma, vibração tão grata!

Como das sombras do passado, mesmo,
35

tantas promessas o porvir desata!

Exalte embora o insensato as trevas,

chame o descrido a solidão e a morte,

não quero ainda fenecer, é cedo!

creio na sina, tenho fé na sorte!
40

Creio que as dores que suporto alcancem

um prêmio ainda da justiça eterna!

Oh! Basta um sonho!... o respirar de um silfo,

o amor duma alma compassiva e terna!

Basta uma noite de luar nos campos,
45

o brando eflúvio dos vergéis do sul,

dois olhos belos, como a crença belos,

fitos do espaço no fulgente azul!

Ah! não te afastes, viração amiga!

Além não passes com teu mole adejo!
50

Tens nas delícias que as torrentes vertes

toda a doçura de um materno beijo!

Fala-me ainda desses tempos idos,

rasga-me a tela da sazão que vem,

foge depois, e mais sutil, mais tênue,
55

vai meus suspiros repetir além.


Amo o cantor solitário

que chora no campanário

do mosteiro abandonado,

e a trepadeira espinhosa

que se abraça caprichosa
5

à forca do condenado.

Amo os noturnos lampírios

que giram, errantes círios,

sobre o chão dos cemitérios,

e ao clarão de tredas luzes
10

fazem destacar as cruzes

de seu fundo de mistérios.

Amo as tímidas aranhas

que, lacerando as entranhas,

fabricam dourados fios,
15

e com seus leves tecidos

dos tugúrios esquecidos

cobrem os muros sombrios.

Amo a lagarta que dorme,

nojenta, lânguida, informe,
20

por entre as ervas rasteiras,

e as rãs que os pauis habitam,

e os moluscos que palpitam

sob as vagas altaneiras!

Amo-os, porque todo o mundo
25

lhes vota um ódio profundo,

despreza-os sem compaixão!

Porque todos desconhecem

as dores que eles padecem

no meio da criação!
30


Cântico do Calvário

À memória de meu filho

morto a 11 de dezembro de 1863

eras na vida a pomba predileta

que sobre um mar de angústias conduzia

o ramo da esperança!... eras a estrela
5

que entre as névoas do inverno cintilava

apontando o caminho ao pegureiro!...

Eras a messe de um dourado estio!...

Eras o idílio de um amor sublime!...

Eras a glória, a inspiração, a pátria,
10

o porvir de teu pai! -Ah! no entanto,

Pomba -varou-te a flecha do destino!

Astro -engoliu-te o temporal do norte!

Teto, caíste! Crença, já não vives!

Correi, correi, oh! lágrimas saudosas,
15

legado acerbo da ventura extinta,

dúbios archotes que a tremer clareiam

a lousa fria de um sonhar que é morto!

Correi! Um dia vos verei mais belas

que os diamantes de Ofir e de Golconda
20

fulgurar na coroa de martírios

que me circunda a fronte cismadora!

São mortos para mim da noite os fachos,

mas Deus vos faz brilhar, lágrimas santas,

e à vossa luz caminharei nos ermos!
25

Estrelas do sofrer, gotas de mágoa,

brando orvalho do céu! sede benditas!

Oh! filho de minh'alma! Última rosa

que neste solo ingrato vicejava!

Minha esperança amargamente doce!
30

quando as garças vierem do ocidente,

Buscando um novo clima onde pousarem,

não mais te embalarei sobre os joelhos,

nem de teus olhos no cerúleo brilho

acharei um consolo a meus tormentos!
35

Não mais invocarei a musa errante

nesses retiros onde cada folha

era um polido espelho de esmeralda

que refletia os fugitivos quadros

dos suspirados tempos que se foram!
40

Não mais perdido em vaporosas cismas

escutarei ao pôr-do-sol, nas serras,

vibrar a trompa sonorosa e leda

do caçador que aos lares se recolhe!

Não mais! A areia tem corrido, e o livro
45

de minha infanda história está completo.

Pouco tenho de andar! Um passo ainda,

e o fruto de meus dias, negro, podre,

do galho eivado rolará por terra!

Ainda um treno! e o vendaval sem freio
50

ao soprar quebrará a última fibra

da lira infausta que nas mãos sustenho!

Tornei-me o eco das tristezas todas

que entre os homens achei! o lago escuro

onde ao clarão dos fogos da tormenta
55

miram-se as larvas fúnebres do estrago!

Por toda a parte em que arrastei meu manto

deixei um traço fundo de agonias!...

Oh! Quantas horas não gastei, sentado

sobre as costas bravias do Oceano,
60

esperando que a vida se esvaísse

como um floco de espuma, ou como o friso

que deixa nágua o lenho do barqueiro!

Quantos momentos de loucura e febre

não consumi perdido nos desertos,
65

escutando os rumores das florestas,

e procurando nessas vozes torvas

distinguir o meu cântico de morte!

Quantas noites de angústias e delírios

não velei, entre as sombras espreitando
70

a passagem veloz do gênio horrendo

que o mundo abate ao galopar infrene

do selvagem corcel?... E tudo embalde!

A vida parecia ardente e doida

agarrar-se a meu ser!... E tu tão jovem,
75

tão puro ainda, ainda na alvorada,

ave banhada em mares de esperança,

Rosa em botão, crisálida entre luzes,

foste o escolhido na tremenda ceifa!

Ah! quando a vez primeira em meus cabelos
80

senti bater teu hálito suave;

quando em meus braços te cerrei, ouvindo

pulsar-te o coração divino ainda;

quando fitei teus olhos sossegados,

abismos de inocência e de candura,
85

e baixo e a medo murmurei: meu filho!

Meu filho! frase imensa, inexplicável,

grata como o chorar de Madalena

aos pés do Redentor... ah! pelas fibras

senti rugir o vento incendiado
90

desse amor infinito que eterniza

o consórcio dos orbes que se enredam

dos mistérios do ser na teia augusta

que prende o céu à terra e a terra aos anjos!

Que se expande em torrentes inefáveis
95

do seio imaculado de Maria!

Cegou-me tanta luz! Errei, fui homem!

E de meu erro a punição cruenta

na mesma glória que elevou-me aos astros,

chorando aos pés da cruz, hoje padeço!
100

O som da orquestra, o retumbar dos bronzes,

a voz mentida de rafeiros bardos,

torpe alegria que circunda os berços

quando a opulência doura-lhes as bordas,

não te saudaram ao sorrir primeiro,
105

clícia mimosa rebentada à sombra!

Mas ah! se pompas, esplendor faltaram-te,

tiveste mais que os príncipes da terra...

Templos, altares de afeição sem termos!

Mundos de sentimento e de magia!
110

Cantos ditados pelo próprio Deus!

Oh! Quantos reis que a humanidade aviltam

e o gênio esmagam dos soberbos tronos,

trocariam a púrpura romana

por um verso, uma nota, um som apenas
115

dos fecundos poemas que inspiraste!

Que belos sonhos! Que ilusões benditas!

do cantor infeliz lançaste à vida,

arco-íris de amor! luz da aliança,

calma e fulgente em meio da tormenta!
120

De exílio escuro a cítara chorosa

surgiu de novo e às virações errantes

lançou dilúvios de harmonia! O gozo

ao pranto sucedeu, as férreas horas

em desejos alados se mudaram...
125

Noites fulgiam, madrugadas vinham,

mas sepultados num prazer profundo

não te deixava o berço descuidoso,

nem de teu rosto meu olhar tirava,

nem de outros sonhos que dos teus vivia!
130

Como eras lindo! Nas rosadas faces

tinhas ainda o tépido vestígio

dos beijos divinais! nos olhos langues

brilhava o brando raio que acendera

a bênção do Senhor quando o deixaste!
135

Sobre o teu corpo a chusma dos anjinhos,

filhos do éter e da luz, voavam,

riam-se alegres, das caçoilas níveas,

celeste aroma te vertendo ao corpo!

E eu dizia comigo: -teu destino
140

será mais belo que o cantar das fadas

que dançam no arrebol, mais triunfante

que o sol nascente derribando ao nada

muralhas de negrume!... Irás tão alto

como o pássaro-rei do Novo Mundo!
145

Ai! doido sonho!... Uma estação passou-se,

e tantas glórias, tão risonhos planos

desfizeram-se em pó! O gênio escuro

abrasou com seu facho ensangüentado

meus soberbos castelos. A desgraça
150

sentou-se em meu solar, e a soberana

dos sinistros impérios de além-mundo

com seus dedos reais selou-te a fronte!

Inda te vejo pelas noites minhas,

em meus dias sem luz vejo-te ainda,
155

creio-te vivo, e morto te pranteio!...

Ouço o tanger monótono dos sinos,

e cada vibração contar parece

as ilusões que murcham-se contigo!

Escuto em meio de confusas vozes,
160

cheias de frases pueris, estultas,

o linho mortuário que retalham

para envolver teu corpo! Vejo esparsas

saudades e perpétuas, sinto o aroma

do incenso das igrejas, ouço os cantos
165

dos ministros de Deus que me repetem

que não és mais da terra!... E choro embalde!...

Mas não! Tu dormes no infinito seio

do criador dos seres! Tu me falas

na voz dos ventos, no chorar das aves,
170

talvez das ondas no respiro flébil!

Tu me contemplas lá do céu, quem sabe?

No vulto solitário de uma estrela...

E são teus raios que meu estro aquecem!

Pois bem! Mostra-me as voltas do caminho!
175

Brilha e fulgura no azulado manto!

Mas não te arrojes, lágrima da noite,

nas ondas nebulosas do ocidente!

Brilha e fulgura! Quando a morte fria,

sobre mim sacudir o pó das asas,
180

escada de Jacó serão teus raios

por onde azinha subirá minh'alma.


Queixas do poeta

Ao cedro majestoso que o firmamento espana

ligou a mão de Deus a úmida liana,

às amplas soledades arroios amorosos,

às selvas passarinhos de cantos sonorosos,

neblinas às montanhas, aos mares virações,
5

ao céu mundos e mundos de fúlgidos clarões,

mas presa de uma dor tantálica e secreta

sozinho fez brotar o gênio do poeta!...

A aurora tem cantigas e a mocidade rosas,

o sono do opulento visões deliciosas,
10

nas ondas cristalinas espelham-se as estrelas,

e as noites desta terra têm seduções tão belas,

que as plantas, os rochedos e os homens eletrizam,

e os mais dourados sonhos na vida realizam.

Mas triste, do martírio ferido pela seta,
15

soluça no silêncio o mísero poeta!...

As auras do verão, nas regiões formosas

do mundo americano, as virações cheirosas

parecem confundidas rolar por sobre as flores

aue exalam da corola balsâmicos odores;
20

as leves borboletas em bandos esvoaçam,

os reptis na sombra às árvores se enlaçam;

mas só, sem o consolo de uma alma predileta,

descora no desterro a fronte do poeta!...

O viajor que à tarde sobre os outeiros passa
25

divisa junto às selvas um fio de fumaça

erguer-se preguiçoso da choça hospitaleira

pousada alegremente de um ribeirão à beira;

ali junto dos seus descansa o lavrador,

dos homens afastado e longe do rumor;
30

mas no recinto escuro que o desalento infecta

sucumbe lentamente o gênio do poeta!...

No rio caudaloso que a solidão retalha,

da funda correnteza na límpida toalha,

deslizam mansamente as garças alvejantes;
35

nos trêmulos cipós de orvalho gotejantes

embalam-se avezinhas de penas multicores

pejando a mata virgem de cânticos de amores;

mas presa de uma dor tantálica e secreta

de dia em dia murcha o louro do poeta!...
40


Resignação

Sozinho no descampado,

sozinho sem companheiro,

sou como o cedro altaneiro

pela tormenta açoitado.

Rugi, tufão desabrido!
5

Passai, temporais de pó!

Deixai o cedro esquecido,

deixai o cedro estar só!

Em meu orgulho embuçado,

do tempo zombo da lei...
10

Oh! venha o raio abrasado,

-Sem me vergar... tombarei!

Gigante da soledade,

tenho na vida um consolo:

Se enterro as plantas no solo,
15

chego a fronte à imensidade!

Nada a meu fado se prende,

nada enxergo junto a mim;

só o deserto se estende

a meus pés, fiel mastim.
20

À dor o orgulho sagrado

Deus ligou num grande nó...

quero viver isolado,

quero viver sempre só!

E quando o raio incendido
25

roçar-me, então cairei

em meu orgulho envolvido,

como em um manto de rei.


Esquecer-me de ti? Pobre insensata!

posso acaso o fazer quando em minh'alma

a cada instante a tua se retrata?

Quando és de minha vida o louro e a palma,

o faro amigo que anuncia o porto,
5

a luz bendita que a tormenta acalma?

Quando na angústia fúnebre do horto

és a sócia fiel que azinha instila

na taça da amargura algum conforto?

Esquecer-me de ti, pomba tranqüila,
10

em cujo peito, erário de esperança,

entre promessa meu porvir se asila!

Esquecer-me de ti, frágil criança,

ave medrosa que esvoaça e chora

temendo o raio em dias de bonança!
15

Bane o pesar que a fronte te descora,

seca as inúteis lágrimas no rosto...

Que, pois, receias se inda brilha a aurora?

Ermo arvoredo aos temporais exposto,

tudo pode aluir, tudo apagar
20

em minha vida a sombra do desgosto;

Ah! mas nunca teu nome há de riscar

de um coração que te idolatra, enquanto

uma gota de sangue lhe restar!

É teu, e sempre teu, meu triste canto,
25

de ti rebenta a inspiração que tenho,

sem ti me afogo num contínuo pranto;

Teu riso alenta meu cansado engenho,

e ao meigo auxílio de teus doces braços

carrego aos ombros o funesto lenho.
30

de mais a mais se apertam nossos laços,

a ausência... oh! Que me importa! estás presente

em toda a parte onde dirijo os passos.

Na brisa da manhã que molemente

junca de flores do deserto as trilhas
35

ouço-te a fala trêmula e plangente.

Do céu carmíneo nas douradas ilhas

vejo-te, ao pôr-do-sol, a grata imagem,

cercada de esplendor e maravilhas.

Da luz, do mar, da névoa e da folhagem
40

uma outra tu mesma eu hei formado,

outra que és tu, não pálida miragem.

E coloquei-te num altar sagrado

do templo imenso que elevou talvez

meu gênio pelos anjos inspirado!
45

Não posso te esquecer, tu bem o vês!

Abre-me d'alma o livro tão vendado,

vê se te adoro ou não: por que descrês?


Oh! não me fales da glória,

não me fales da esperança!

Eu bem sei que são mentiras

que se dissipam, criança!

Assim como a luz profliga
5

as sombras da imensidade,

o tempo desfaz em cinzas

os sonhos da mocidade.

Tudo descora e se apaga:

É esta do mundo a lei,
10

desde a choça do mendigo

até aos paços do rei!

A poesia é um sopro,

a ciência uma ilusão,

ambas tateiam nas trevas
15

a luz procurando em vão.

Caminham doidas, sem rumo,

na senda que à dor conduz,

e vão cair soluçando

aos pés de sangrenta cruz.
20

Oh! Não me fales da glória,

não me fales da esperança!

Eu bem sei que são mentiras

que se dissipam, criança!

Que me importa um nome impresso
25

no templo da humanidade,

e as coroas de poeta,

e o selo da eternidade,

se para escrever os cantos

que a multidão admira
30

é mister quebrar as penas

de minh'alma que suspira?

Se nos desertos da vida,

romeiro da maldição,

tenho de andar sem descanso
35

como o Hebreu da tradição?...

Buscar das selvas o abrigo,

a sombra que a paz aninha,

e ouvir a selva bradar-me:

Ergue-te, doido, e caminha!
40

Caminha! dizer-me o mante!

Caminha! dizer-me o prado.

Oh! Mais não posso! -Caminha!

Responder-me o descampado?...

Ah! não me fales da glória,
45

não me fales da esperança!

Eu bem sei que são mentiras

que se dissipam, criança!


Em toda a parte

Quando alta noite as florestas,

ao soprar das ventanias,

tenebrosas agonias

traem nas vozes funestas,

quando as torrentes bravejam,
5

quando os coriscos rastejam

na espuma dos escarcéus...

Então a passos incertos

procuro os amplos desertos

para escutar-te, meu Deus!
10

Quando na face dos mares

espelha-se o rei dos astros,

cobrindo de ardentes rastros

os cerúleos alcaçares;

e a luz domina os espaços
15

partindo da névoa os laços,

rasgando da sombra os véus...

Então resoluto, ufano,

corro às praias do oceano

para mirar-te, meu Deus!
20

Quando às bafagens do estio

tremem os pomos dourados,

sobre os galhos pendurados

do pomar fresco e sombrio;

quando à flor d'água os peixinhos
25

saltitam, e os passarinhos

se cruzam no azul dos céus,

então procuro as savanas,

me atiro entre as verdes canas

para sentir-te, meu Deus!
30

Quando a tristeza desdobra

seu manto escuro em minh'alma,

e vejo que nem a calma

desfruto que aos outros sobra,

e do passado no templo
35

letra por letra contemplo

a nênia dos sonhos meus...

Então me afundo na essência

de minha própria existência

para entender-te, meu Deus!
40


Salve! erguidas cordilheiras,

brenhas, rochas altaneiras,

donde as alvas cachoeiras

se arrojam troando os ares!

Folhas que rangem caindo,
5

feras que passam rugindo,

gênios que dormem sorrindo

no fresco chão dos palmares!

Salve! florestas sombrias,

onde as rijas ventanias
10

acordam mil harmonias

na doce quadra estival!

Rolas gentis que suspiram,

louras abelhas que giram

sobre as flores que transpiram
15

no seio do taquaral!

Salve! esplêndida espessura,

mares de sombra e verdura

donde a brisa etérea e pura

faz brotar a inspiração,
20

quando à luz dos vaga-lumes,

da mariposa aos cardumes

se casam moles queixumes

dos filhos da solidão!

Ah! que eu não possa me afastar das turbas,
25

curar a febre que meu ser consome,

e entre alegrias me atirar cantando

nas secas folhas do sertão sem nome...

Ah! que eu não possa desprender aos ermos

o fogo ardente que meu crânio encerra,
30

gastar os dias entre Deus e os gênios

nas matas virgens da cabrália terra!

Eu não detesto nem maldigo a vida,

nem do despeito me remorde a chaga;

mas ai! sou pobre, pequenino e débil,
35

e sobre a estrada o viajor me esmaga!

Fere-me os olhos o clarão do mundo,

rasgam-me o seio prematuras dores,

e à mágoa insana que me enluta as noites

declino à campa na estação das flores!
40

E há tanto encanto nos desertos vastos,

tanta beleza do sertão na sombra,

tanta harmonia no correr do rio,

tanta doçura na campestre alfombra,

Que inda pudera se alentar de novo
45

e entre delícias flutuar minh'alma,

fanada planta que mendiga apenas

o orvalho, a noite, a viração e a calma!

Abre-me os braços, ó fada,

fada do ermo profundo,
50

onde o bulício do mundo

não ousa sequer bater!

Oh! quero tudo esquecer,

Tudo o que aos homens seduz,

beber uma nova vida
55

e a fronte elevar ungida

de santas crenças à luz!

Glória, futuro... o que valem

futuro e glórias de pó...

Sem gratos sonhos que embalem
60

o triste descrido e só?

De que serve o ouro, a fama,

um nome -pálida chama!

Quando à noite junto à cama

só há martírios e dores?
65

Quando a aurora é sem belezas,

cheias de espinhos as devesas,

e a tarde só tem tristezas

em vez de cantos e flores!


Versos soltos

Ao General Juarez

Juarez! Juarez! Quando as idades,

fachos de luz que a tirania espancam,

passarem desvendando sobre a terra

as verdades que a sombra escurecia;
5

quando soar no firmamento esplêndido

o julgamento eterno;

então banhado do prestígio santo

das tradições que as epopéias criam,

grande como um mistério do passado,
10

será teu nome a mágica palavra

que o mundo falará lembrando as glórias

da raça mexicana!

Quem se atreve a medir-te face a face?

Quem teu vôo acompanha nas alturas,
15

condor soberbo que da luz nas ondas

sacode o orvalho das possantes asas,

e lança um grito de desprezo infindo

aos milhafres rasteiros?

Que destemido caçador dos ermos
20

irá te cativar, ave sublime,

nessas costas bravias e tremendas

onde o Grande Oceano atira as vagas

e os vendavais sem peias atordoam

o espaço de rugidos?
25

Que sicário real, nas matas virgens,

amplas, sem marcos, sem batismo e data,

te apanhará, jaguar das soledades?...

Ah! tu espreitas os vulcões que dormem!

Quando a cratera encher-se, à luz vermelha
30

rebentarás nas praças!

Trarás contigo os raios da tormenta!

Da tormenta serás o sopro ardente!

Mas a tormenta passará de novo

e o golfo mexicano iluminado
35

refletirá teu vulto gigantesco.

O'águia do porvir!

Teu nome está gravado nos desertos

onde pés de mortal jamais pisaram!

Quando pudessem deslembrá-lo os homens,
40

as selvas despiriam-se de folhas,

para arrojá-las do tufão nas asas

as multidões ingratas!

Como as de um livro imenso elas compõem

teu poema sublime, a pluma eterna
45

do invisível destino, e não rasteira,

mísera pena de mundano bardo,

nelas traçou as indeléveis cifras

de teu nome imortal!

Os pastores de Puebla e de Xalisco,
50

as morenas donzelas de Bergara

cantam teus feitos junto ao lar tranqüilo

nas noites perfumadas e risonhas

da terra americana. Os viajantes,

que os desertos percorrem, pensativos
55

param no cimo das erguidas serras,

medem com a vista o descampado imenso,

e murmuram fitando os horizontes

vastos, perdidos num lençol de névoas:

Juarez! Juarez! em toda a parte
60

teu espírito vaga!...

Falam de ti as fontes e as montanhas,

as ervinhas do campo e os passarinhos

que, abrindo as asas no azulado céu,

como um bando de sonhos esvoaçam.
65

Mas esse nome que ameniza o canto

do torvo montanhês, e mais suave

que um suspiro de amor, parte dos lábios

da virgem sonhadora das campinas,

faz tremer o tirano que repousa
70

nos macios coxins do leito de ouro,

como o brado do arcanjo no infinito

ao fenecer dos mundos!

Deixa que as turbas de terror escravas

junto de falso trono se ajoelhem!
75

Os brindes e os folguedos continuam...

Mas a mão invisível do destino

na sala do banquete austera escreve

o aresto irrevogável!


Sete de setembro

Quando o gênio de Deus em santo arrojo

batendo as sombras atirou no espaço

a hipérbole da luz,

e a matéria disforme que boiava

sem destino e sem rumo, abriu a senda
5

que à perfeição conduz;

Os querubins calaram-se escutando

a ode universal que retumbava

aos pés do Criador;

e a natureza virgem dilatou-se,
10

e os mundos abalaram-se rugindo:

-Somos livres, Senhor!

As gerações ergueram-se no tempo:

De cada idéia levantou-se um povo,

de cada povo a lei!...
15

As eras sucederam-se confusas;

mas o canto divino orientava

das multidões a grei.

E ora entre névoas, ora entre fulgores,

como a lua formosa em céu nublado,
20

a liberdade andava,

e a cada passo a trânsfuga celeste

um rasto imenso de grilhões partidos

como o raio deixava!...

Mas tu, risonha plaga americana,
25

ilha de amor nos mares do mistério,

dormias a sorrir,

tão linda como o cisne de alvas penas,

tão pura como a virgem balouçada

nos sonhos do porvir!
30

Do vulto horrendo do voraz abutre

a sombra intensa não toldou-te as faces,

nem manchou-te, é mentira!

Anjo de asas de luz! não foste escrava!

Criança! inda era cedo, o canto eterno
35

dormia-te na lira!

Dormia! mas o hábito de Deus

rugia-te nas fibras, inflamado

como o vulcão no mar!

as nações esperavam-te ansiosas,
40

e no forum dos povos avultava

vazio o teu lugar!

Apareceste enfim, mas não liberta,

que nunca foste escrava, apenas débil,

sem forças, vacilante;
45

se assim não é, onde estarão teus ferros?

Onde o pó das prisões que derribaste?

Onde o jugo infamante?

É neste altar de esplêndido futuro,

berço de outrora, trono do presente,
50

que beijamos-te as plantas,

e ao perfume do incenso, ao som dos hinos,

adoramos em ti, da liberdade

as glórias sacrossantas.

Filha augusta de Deus! Rosa banhada
55

da Redenção nas lágrimas ardentes!

mãe das raças opressas!

Pomba sagrada que rompendo as nuvens

trazes ao lenho errante o verde ramo

ungido de promessas;
60

Liberdade gentil, mil vezes salve!

Salve! sem peias devassando os ares,

espancando os bulcões!

Salve! nos paços de opulentos sátrapas!

Salve! na choça humilde do operário!
65

Salve até nas prisões!