Poemas irônicos, venenosos e sarcásticos
Manuel Antônio Alvares de Azecedo
Cuidado, leitor, ao voltar esta página!
Aqui dissipa-se o mundo visionário e platônico. Vamos entrar n'um mundo novo, terra fantástica, verdadeira ilha Barataria de D. Quixote, onde Sancho é rei, e vivem Panúrgio, Sir John Falstaff, Bardolph, Fígaro e o Sganarello de D. João Tenório: -a pátria dos sonhos de Cervantes e Shakespeare.
Quase que depois de Ariel esbarramos em Caliban.
A razão é simples. É que a unidade deste livro se funda n'uma binomia. Duas almas que moram nas cavernas de um cérebro pouco mais ou menos de poeta escreveram este livro, verdadeira medalha de duas faces.
Demais, perdoem-me os poetas do tempo, isto aqui é um tema, senão mais novo, menos esgotado ao menos que o sentimentalismo tão fashionable desde Werther e René.
Por um espírito de contradição, quando os homens se vêem inundados de páginas amorosas, preferem um conto de Boccacio, uma caricatura de Rabelais, uma cena de Falstaff no Henrique IV de Shakespeare, um provérbio fantástico daquele polisson Alfredo de Musset, a todas as ternuras elegíacas dessa poesia de arremedo que anda na moda, e reduz as moedas de oiro sem liga dos grandes poetas ao troco de cobre, divisível até ao extremo, dos liliputianos poetastros. -Antes da Quaresma há o Carnaval.
Há uma crise nos séculos como nos homens. É quando a poesia cegou deslumbrada de fitar-se no misticismo, e caiu do céu sentindo exaustas as suas asas de oiro.
O poeta acorda na terra. Demais, o poeta é homem. Homo sum, como dizia o célebre Romano. Vê, ouve, sente e, o que é mais, sonha de noite as belas visões palpáveis de acordado. Tem nervos, tem fibra e tem artérias -isto é, antes e depois de ser um ente idealista, é um ente que tem corpo. E, digam o que quiserem, sem esses elementos, que sou o primeiro a reconhecer muito prosaicos, não há poesia.
O que acontece? Na exaustão causada pelo sentimentalismo, a alma ainda trêmula e ressoante da febre do sangue, a alma que ama e canta porque sua vida é amor e canto, o que pode senão fazer o poema dos amores da vida real? Poema talvez novo, mas que encerra em si muita verdade e muita natureza, e que sem ser obsceno pode ser erótico sem ser monótono. Digam e creiam o que quiserem. Todo o vaporoso da visão abstrata não interessa tanto como a realidade formosa da bela mulher a quem amamos.
O poema então começa pelos últimos crepúsculos do misticismo, brilhando sobre a vida como a tarde sobre a terra. A poesia puríssima banha com seu reflexo ideal a beleza sensível e nua.
Depois a doença da vida, que não dá ao mundo objetivo cores tão azuladas como o nome britânico de blue devils, descarna e injeta de fel cada vez mais o coração. Nos mesmos lábios onde suspirava a monodia amorosa, vem a sátira que morde.
É assim. Depois dos poemas épicos, Homero escreveu o poema irônico. Goethe depois de Werther criou o Fausto. Depois de Parisina e o Giaour, de Byron, vem o Cain e Don Juan -Don Juan que começa como Cain pelo amor, e acaba como ele pela descrença venenosa e sarcástica.
Agora basta.
Ficarás tão adiantado agora, meu leitor, como se não lesses essas páginas, destinadas a não ser lidas. Deus me perdoe! assim é tudo! até os prefácios!
Levem ao túmulo aquele que parece um cadáver!Tu não pesaste sobre a terra: a terra te seja leve!
L. Uhland
I
II
III
IV
V
VI
VII
Fragmento
La chaise où je m'assieds, la natte où je me couche,la table où je t'écris, [...]mes gros souliers ferrés, mon bâton, mon chapeau,mes livres pêle-mêle entassés sur leur planche.. . . . . . . . . . . . . . . . . .De cet espace étroit sont tout l'ameublement.
Jocelyn Lamartine
I
II
III
IV
V
VI
VII
VIII
IX
X
XI
XII
XIII
XIV
Ato de uma comédia não escrita
Totus mundus agit histrionem.
Provérbio do tempo de Shakespeare
A cena passa-se na Itália no século XVI. Uma rua escura e deserta. Alta noite. N'uma esquina uma imagem de Madona em seu nicho alumiado por uma lâmpada. PUFF dorme no chão abraçando uma garrafa. NÍNI entra tocando guitarra. Dão 5 horas.
(Entra um criado correndo.)
(Sai correndo.)
(Vai à taverna e volta.)
(Quebrando o copo.)
I
II
III
IV
V
VI
VII
VIII
IX
X
XI
XII
XIII
XIV
XV
XVI
XVII
(Um homem da platéia interrompendo.)
(Levanta-se o pano até o meio. -Passa
por debaixo e vem até a rampa o
Prólogo,
velho de
cabeça calva, camisola branca, carapuça frígia coroada de
louros. Tem um ramo de oliveira na mão. Faz as cortesias do estilo e
fala:)
Solidão
Meu anjo
Vagabundo
Eat, drink and love; what can the rest avail us?
Don Juan, Byron
A lagartixa
Luar de verão
O poeta moribundo
Oh! argent! Avec toi on est beau, jeune
adoré; on a considération, honneur,
qualités, vertus. Quand on n'a point d'argent,
on est dans la dépendance de toutes
choses et de tout le monde.
Chateaubriand
Ergue-te daí, velho, -ergue essa fronte onde o passado afundou suas rugas como o vendaval no Oceano, onde a morte assombrou sua palidez como na face do cadáver- onde o simoun do tempo ressicou os anéis louros do mancebo nas cãs alvacentas de ancião?
Por que tão lívido, ó monge taciturno, debruças a cabeça macilenta no peito que é murcho, onde mal bate o coração sobre a cogula negra do asceta?
Escuta: A lua ergueu-se hoje mais prateada nos céus cor-de-rosa do verão -as montanhas se azulam no crepuscular da tarde -e o mar cintila seu manto azul palhetado de aljôfares. A hora da tarde é bela -quem aí na vida lhe não sagrou uma lágrima de saudade?
Tens os olhares turvos, luzem-te baços os olhos negros nas pálpebras roxas, e o beijo frio da doença te azulou nos lábios a tinta do moribundo. -E por que te abismas em fantasias profundas sentado à borda de um fosso aberto, sentado na pedra de um túmulo?
Por que pensá-la -a noite dos mortos, fria e trevosa como os ventos de inverno? Por que antes não banhas tua fronte nas virações da infância, nos sonhos de moço? Sob essa estamenha não arfa um coração que palpitara outrora por uns olhos gázeos de mulher?
Sonha -sonha antes no passado- no passado belo e doirado em seu dossel de escarlate, em seus mares azuis, em suas luas límpidas, e suas estrelas românticas.
O velho ergueu a cabeça. Era uma fronte larga e calva, umas faces contraídas e amarelentas, uns lábios secos, gretados, em que sobreaguava amargo sorriso, uns olhares onde a febre tresnoitava suas insônias...
E quem to disse -que a morte é a noite escura e fria, o leito de terra úmida, a podridão e o lodo? Quem to disse- que a morte não era mais bela que as flores sem cheiro da infância, que os perfumes peregrinos e sem flores da adolescência? Quem to disse -que a vida não é uma mentira- que a morte não é o leito das trêmulas venturas?
Une fille de joie attendait sur la borne.
Théophile Gautier