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Terceira parte

Posse

- I -

Chegando a seu aposento Seixas nem teve tempo de sentar-se.

Arrimou-se como um ébrio à cômoda que estava próxima ao corredor, e ali ficou no estupor da alma, violentamente subvertida pela crise tremenda. Parecia uma criatura fulminada, na qual arqueja apenas um último sopro. Sua respiração angustiada sibilava-lhe nos lábios, como as vascas do moribundo. E era este o único sinal de vida, nessa organização jovem e rica de seiva.

De repente saiu daquele torpor, mas foi preciso um esforço supremo para arrancar-se à insânia que o invadia. Em seu rosto desenhou-se o pavor que dele se havia apoderado com a idéia de que a vida o abandonava, ou pelo menos de que a luz da alma ia apagar-se.

-Deus! Não me tires a vida neste momento. Agora mais do que nunca preciso de minha razão.

Seixas arrojou-se pelo aposento a passos precípites, esbarrando-se nos trastes, batendo de encontro às paredes; alucinado e ao mesmo tempo impelido pelo desejo de arrebatar-se à obsessão que o aniquilara.

Correu pela casa um olhar ansiado, buscando algum objeto a que seu espírito se agarrasse, como o náufrago que trava do menor fragmento no meio das ondas em que se debate. O rico toucador, esclarecido por duas arandelas de cristal com velas cor-de-rosa, ostentava os primores do luxo.

Então nessa alma sucumbida, luziu uma centelha. Foi o instinto da elegância, por certo a corda mais vivaz dessa índole poética e fidalga.

Seixas aproximou-se do toucador, levado por indefinível impulso; e entrou a contemplar minuciosamente os objetos colocados em cima da mesa de mármore; lavores de marfim, vasos e grupos de porcelana fosca, taças de cristal lapidado, jóias do mais apurado gosto.

À proporção que se absorvia nesse exame, ia como ressurgindo à sua existência anterior, a que vivera até o momento do cataclismo que o submergira. Sentia-se renascer para esse fino e delicado materialismo, que tinha para seu espírito aristocrático tão poderosa sedução e tão meiga voluptuosidade.

Todos esses mimos da arte pareciam-lhe estranhos, e despertavam nele ignotas emoções; tal era o abismo que o separava do recente passado. Era com uma sofreguidão pueril que os examinava um por um, não sabendo em qual se fixar. Fazia cintilar os brilhantes aos raios de luz; e aspirava a fragrância que se exalava dos frascos de perfumaria com um inefável prazer.

Nessa fútil ocupação demorou-se tempo esquecido. Porventura sua memória, atraída pelas reminiscências que suscitavam objetos idênticos a esses, remontava o curso de sua existência, e descendo-o, depois o trazia àquela noite fatal em que se achava, e à pungente realidade desse momento.

Recuou com um gesto de repulsão. Esses primores de arte que pouco antes lhe acariciavam a imaginação, agora inspiravam-lhe nojo. Apartou-se do toucador, e chegou à janela.

A noite estava plácida e serena. No céu recamado de estrelas, a brisa cariciava uns frocos de nuvens alvas como a penugem das garças. Uma onda trépida garrulava na bacia de mármore coberta de nenúfares, que alçavam os grandes e níveos cálices, aljofrados de orvalhos. O arvoredo, que recortava-se bizarramente no horizonte luminoso como um relevo gótico, estremecia com o doce arrepio da aragem, que esparzia os aromas das rosas e das magnólias.

Seixas parou um instante a contemplar a doce placidez da natureza. Essa calma suave da noite penetrou-o. Relaxaram-se-lhe as fibras da alma.

Apoiando a fronte à ombreira da janela deixou cair as lágrimas que lhe assoberbavam o seio.

Depois desse pranto que o desafogou, Seixas aproximou-se da elegante escrivaninha de mirapininga, e a abriu. Ainda chegou a puxar a pasta de chamalote escarlate. Na aba superior, dentro de um florão branco, aparecia bordado em debuxo de ouro o seu monograma, F.R.S., entrelaçados.

Esteve a olhar maquinalmente essas letras que se lhe afiguravam um enigma. Como na fábula antiga, a esfinge o estupidificava. Que significação tinha isso depois do desenlace que momentos antes o havia arremessado à maior abjeção?

Afinal tomou a resolução que o levara à mesa. Estendeu sobre a pasta uma folha de papel e preparou-se para escrever uma carta.

Mas a pena estacou ao penetrar no bocal do tinteiro. Seixas retirou-a com vivacidade e examinou inquieto os bicos. Vendo-os intactos, ergueu-se precipitadamente e percorreu o aposento.

Ao cabo de algum tempo voltou ao toucador, com um modo decidido. Mudara de resolução.

Abriu as gavetas, e guardou nelas cuidadosamente todos os objetos de preço que ali havia. Concluída a tarefa, trancou o móvel e o mesmo fez a todos os outros de que poucas horas antes o Lemos lhe fizera exibição.

Apesar da recomendação do tutor de Aurélia, Seixas tinha pela manhã enviado uma secretária em cujas gavetas inferiores acomodara a melhor roupa de seu uso, branca e exterior.

Procurou esse traste e achando-o em um quarto próximo onde o tinham colocado, verificou se com efeito ali estava a roupa; e teve ao achá-la grande satisfação. Tirou de si o rico chambre de seda, as chinelas de veludo; e vestiu-se com um trajo mais modesto, dos que trouxera.

Na secretária havia charutos. Acendeu um e sentou-se à janela. Sentiu-se com forças de encarar a situação a que fora arrastado, e a crise em que se achava sua existência.

No meio das reflexões acerbas que lhe despertara a recordação da cena recente, das revoltas por muito tempo contidas de sua dignidade contra o orgulho da mulher que o humilhava, flutuava um sentimento que afinal desprendeu-se do turbilhão de seus pensamentos e o dominou.

Esse sentimento era a intensa admiração que lhe inspirava a energia e veemência do amor de Aurélia. Havia nessa paixão que o acabava de insultar uma beleza fera, que incutia-lhe entusiasmo cheio de espanto.

-Não compreendi esse amor... E como podia eu compreendê-lo?... Se alguém me referisse o que se acaba de passar comigo, eu receberia semelhante conto com um sorriso de incredulidade. Que outrora, quando a família seqüestrava a mulher da sociedade, a paixão subisse a esse auge, e absorvesse uma existência inteira...

»Então não havia tempo de amar-se mais de uma vez, e o amor deixava a alma exausta. Mas atualmente que a mulher vive cercada de adoradores, e que todas as distinções se ajoelham ante sua beleza, o amor não é mais do que um capricho, uma doce preferência, um terno devaneio, até que se transforme na amizade conjugal. Assim o imaginei sempre, assim o senti e me foi retribuído. Quando Aurélia me falava de sua afeição, estava bem longe de pensar que ela nutrisse uma paixão capaz de tais ímpetos. Pensava que eram romantismos. Não os tinha eu também? Não jurei tantas vezes um amor eterno, que no dia seguinte desfolhava no turbilhão de uma valsa? Esse amor que eu supunha uma ilusão de poeta, um sonho da imaginação, aí está em sua realidade esplêndida. Suas asas de fogo roçaram por minha alma e a crestaram para sempre!...

Seixas ficou um momento como extático ante a imagem que se lhe debuxava no pensamento representando a figura de Aurélia, quando soberba de cólera e indignação, o cobria de acerbas exprobrações.

-Uma paixão como a sua tinha direito de ser implacável!... E essa mulher que se deu a mim com a mais sublime abnegação, essa mulher a quem a sorte ligou-me eternamente, essa mulher única, eu a admiro, e não posso amá-la nunca mais! Encontrei-a em meu caminho, e perdi-a para sempre! Também não amarei outra. Depois de a ter conhecido, não profanarei minha alma com a afeição de mulher alguma.

Os arrebóis da manhã já se arraiavam no horizonte. Uma brisa mais fresca derramava-se no espaço, e os primeiros atitos das aves misturavam-se com os rumores confusos da cidade, que ia acordando por detrás dos muros da chácara.

Seixas desceu ao jardim, e percorreu os passeios sinuosos do prado artificial coberto de fina grama, e recortado à inglesa. Os tabuleiros de margaridas e boninas, abertas ao primeiro raio de sol, recamavam com suas coroas matizadas a verde alcatifa de relva. Fúcsias e begônias lastravam pelas grades das latadas compondo graciosos bambolins com os tirsos de flores caprichosas.

Os botões das camélias e magnólias cheios de seiva haurida com a frescura da noite, esperavam o calor do dia para desabrochar, enquanto as flores da véspera que tinham cerrado o seio à tarde, abriam-no de novo, mais pálido e langue, para despedir-se do sol, que lhe tinha dado a vida, e a crestara, como o caprichoso artista.

Seixas, como homem de sociedade que era, conhecia a natureza de tradição apenas, ou quando muito de vista. As árvores, as flores, as perspectivas, eram para ele ornatos, que se confundiam com os tapetes, cortinas, trastes, dourados e toda a casta de adereços inventados pelo luxo.

À força de viverem em um mundo de convenção, esses homens de sociedade tornam-se artificiais. A natureza para eles não é a verdadeira, mas essa fictícia, que o hábito lhes embutiu, e que alguns trazem do berço, pois aí os espera a moda para fazer neles presa, transformando-lhes a mãe, em uma simples produtora de filhos.

Freqüentemente, em seus versos, Seixas falava de estrelas, flores e brisas, de que tirava imagens para exprimir a graça da mulher, e as emoções do amor. Pura imitação: como em geral os poetas da civilização, ele não recebia da realidade essas impressões, e sim de uma variada leitura. Originais somente são aqueles engenhos que se infundem na natureza, musa inexaurível porque é divina. Para isso é preciso, ou nascer nas idades primitivas, ou desprezar a sociedade e refugiar-se na solidão.

Naquele momento porém, assistindo ao romper do dia, ali no meio do jardim, Seixas sentia que além das cores brilhantes, das formas graciosas e dos perfumes agrestes, havia alguma cousa de imaterial que palpitava no seio desse ermo, e que infundia-se em seu ser. Era a alma da criação que o envolvia, e comungava com sua alma a inefável serenidade da límpida e fresca manhã.

Com a calma que derramou-se em seu espírito, ainda mais robusteceu-se a resolução tomada pouco antes. Encheu-se dessa fria resignação, que imprime à alma uma têmpera inflexível.

Tirou-o de suas cogitações um rumor, que levantava-se ali perto. Voltou-se, e reconheceu que estava próximo à grade exterior, oculta nesse lugar pela folhagem do arvoredo. Afastou os ramos e aproximou-se para conhecer a causa do ruído. Talvez receasse que o estivessem espreitando, e talvez fosse movido por essa curiosidade fútil que se apodera do homem, a quem um abalo violento arrancou às preocupações habituais.

Um mascate de quinquilharias arreara na calçada a caixa que trazia a tiracolo, e sentado no chão, com as costas apoiadas ao muro, fazia suas contas e dava balanço à mercadoria. Ou madrugara com intenção de estender o giro, ou apanhado pela noite longe da casa, a passara em alguma estalagem, e ia agora recolhendo-se, o que parecia mais provável.

Na tampa emborcada da caixa, viam-se presos de cadarços, pregados vários objetos, que atraíram especialmente a atenção de Seixas.

Fez ele um movimento para diante, como se quisesse chamar o mascate. Retraiu-se porém com certo vexame; dir-se-ia que estivera a praticar uma leviandade, da qual o advertira em tempo sua razão.

Como quer que fosse, ao cabo de alguma hesitação, venceu a primeira repugnância, mas não ao pejo do ato que ia praticar. Lançou pelos arredores um olhar perscrutador e verificando que a rua estava deserta, estendeu o braço fora da grade e bateu no ombro do mascate:

-Chi va... exclamou o mascate voltando-se.

Não viu as feições de Seixas que se afastara da grade, e escondia-se por trás da folhagem; mas percebeu uma nota de dois mil-réis que flutuava acima da cabeça, e tinha para ele decerto mais encanto do que a fisionomia do freguês.

-Um pente e uma escova de dentes, disse Seixas em tom rápido. Depressa!

-Questo? perguntou o mascate tirando da tampa um pente de búfalo.

-Sim, qualquer. Não posso esperar.

O mascate passou os objetos, arrecadou a nota e querendo apresentar o troco percebeu que o freguês havia desaparecido.

-Che birbone!

Entendeu o mascate que um dinheiro assim atirado fora com tanto desamor, era furtado; e por cautela foi arrumando a trouxa e fazendo-se ao largo, antes que lhe surgisse alguma complicação.

Entretanto Seixas ganhava seus aposentos com receio de que o descobrissem no jardim àquela hora matinal, e suspeitassem do que ocorrera. A casa porém não dava o menor sinal da labutação diária. Todos decerto dormiam ainda sob a influência da festa nupcial.

Fazendo esta observação, lembrou-se Fernando da posição em que deixara Aurélia na véspera, e de si mesmo inquiriu que teria ela feito nessa longa noite de agonia. Naturalmente passara-a, extasiando-se no júbilo da humilhação que lhe infligira, e afinal saciada dessa vingança brutal, adormecera na febre de seu orgulho.

Se ao atravessar o jardim ele examinasse disfarçadamente as janelas desse lado de casa, talvez satisfizesse em parte sua curiosidade. Uma das alvas e diáfanas cortinas de cassa estendidas por detrás da vidraça, tinha-se esfumado de uma sombra interior que desenhava o contorno delicado de um busto.

Já era sol alto quando Seixas ouviu mexer na maçaneta da porta, que de seus aposentos comunicava para o interior da casa. Era sem dúvida o criado que vinha preparar-lhe o toucador para o asseio da manhã. Achando a porta fechada e pensando que era escusado bater àquela hora, retirou-se.

Havia água no jarro de porcelana de Sèvres, que ornava o rico lavatório de pau-cetim. Seixas esteve em dúvida algum tempo; mas pensando que a louça não perdia o seu verniz de novidade por ser molhada uma vez, resolveu-se a lavar o rosto no serviço luxuoso. Usou porém no resto de seu adereço, do pente e escova que havia comprado.

Terminando, enxugou com uma toalha de seu próprio enxoval a bacia e o lavatório; trancou em sua secretária os objetos que o podiam denunciar; e abrindo a porta de comunicação, sentou-se, já vestido e pronto com seu costumado apuro, na otomana, à espera... Nem ele sabia de quê. Depois da decepção que o precipitara do cúmulo da felicidade àquela incrível situação, podia ele conhecer que peripécias ainda lhe reservava o drama em que se agitava sua existência?

Com pouco apareceu o criado.

-O senhor já está pronto? Eu vim preparar o toucador, mas achei a porta fechada.

-Nada faltou, respondeu Seixas.

-O senhor ordena que lhe traga os jornais a seu gabinete, para os ler logo ao acordar, ou quer que fiquem na saleta?

-Onde ficavam até agora?

-Na saleta...

-É melhor assim.

-É como o senhor mandar. Foi a ordem que recebi.

O criado lançava um olhar pelo aposento, muito admirado da ordem em que encontrava todo os objetos, inclusive os adereços do lavatório.

-O cocheiro pergunta se o senhor quer sair antes do almoço? De carro ou a cavalo?

-Não, obrigado.

-A Diana já está selada. Mas em um momento pode-se mudar a sela para o Nélson, ou aprontar-se a vitória.

-É escusado.

-A que horas o senhor deseja almoçar?

-À hora do costume. Não há necessidade de alterar.

-Então às dez.

O criado retirou-se para voltar uma hora depois:

-O almoço está na mesa.

-Quem mandou chamar?

-A senhora.

Seixas fez um aceno de cabeça, e deixou-se conduzir pelo criado.

- II -

No centro da sala estava a mesa onde os mais finos cristais irisavam-se aos raios da luz, cambiando o esmalte da fina porcelana e as cores das frutas apinhadas em corbelhas de prata.

O almoço era um banquete, não pela quantidade, o que seria de mau gosto; mas pela variedade e delicadeza das iguarias.

Pelas janelas abertas sobre o jardim entravam, com a brisa da manhã e a claridade de um formoso dia de verão, a fragrância das flores e o trinado dos canários de um elegante viveiro.

Achavam-se na sala Aurélia e D. Firmina.

A moça recostara-se em uma cadeira de balanço no claro de uma janela, de modo que seu gracioso vulto imergia-se na plena luz. Ao vê-la radiante de beleza e risos, se acreditava que ela de propósito afrontava o esplendor do dia, para ostentar a pureza imaculada de seu rosto, e sua graça inalterável.

Trajava um roupão de linho de alvura deslumbrante; eram azuis as fitas do cabelo e do cinto, bem como o cetim de um sapato raso, que lhe calçava o pé como o engaste de uma pérola.

Fernando parou um instante ao entrar na sala; depois do que, firmando-se na resolução tomada, dirigiu-se a sua mulher para saudá-la. Todavia não calculava ele de que modo se desempenharia desse dever.

Aurélia viu o movimento. A saudação matinal do marido ia despertar suspeitas em D. Firmina.

Seixas adiantava-se. A moça ergueu-se estendendo-lhe a mão, e inclinando a cabeça sobre a espádua com uma ligeira inflexão, apresentou-lhe a face, para receber o casto beijo da esposa.

Aquela mão porém estava gelada e hirta, como se fora de jaspe. A face, pouco antes risonha e faceira, contraíra-se de repente em uma expressão indefinível de indignação e desprezo.

Fernando só reparou nessa mutação quando seus lábios roçavam a fria cútis, cuja pubescência erriçava-se como o pêlo áspero do feltro. Retraiu-se involuntariamente, embora naquela circunstância a carícia dessa mulher, de quem era marido, o humilhasse mais do que sua repulsa.

-Vamos almoçar! disse a moça dirigindo-se à mesa e acenando ao marido e a D. Firmina que se aproximassem.

Já não se via em seu belo semblante o menor traço do sarcasmo que o demudara; nem se conceberia que essa esplêndida formosura pudesse transformar-se na satânica imagem que Fernando vira pouco antes.

Aurélia tomou a cabeceira da mesa. Fernando ficou à sua direita, em frente a D. Firmina.

A princípio a moça ocupou-se unicamente em servir, depois trincando nos alvos dentes a polpa vermelha de uma lagosta, animou a conversação com uma palavra viva e cintilante.

Nunca ela tinha revelado como nessa manhã, a graça de seu espírito e o brilho de sua imaginação. Também nunca o sorriso borbulhara de seus lábios tão florido; nem sua beleza se repassara daquelas efusões de contentamento.

Seixas se distraíra a ouvi-la. Por tal modo embebeu-se ele no enlevo da gentil garrulice, que chegou a esquecer por momentos a triste posição em que o colocara a fatalidade junto dessa mulher.

Nas folgas que o apetite deixava à reflexão, D. Firmina admirava-se do desembaraço que mostrava a noiva da véspera, na qual melhor diria um casto enleio.

Mas já habituada à inversão que têm sofrido nossos costumes com a invasão das modas estrangeiras, assentou a viúva que o último chique de Paris devia ser esse de trocarem os noivos o papel, ficando ao fraque o recato feminino, enquanto a saia alardeava o desplante do leão.

-Efeitos da emancipação das mulheres! pensava consigo.

-Quer que lhe sirva desta salada, ou daquela empada de caça? perguntou Aurélia notando que Seixas estava parado.

-Nada mais, obrigado.

Seixas tinha comido um bife com uma naca de pão; e bebera meio cálice do vinho que lhe ficava mais próximo, sem olhar o rótulo.

-Não almoçou! tornou a moça.

-A felicidade tira o apetite, observou Fernando a sorrir.

-Nesse caso eu devia jejuar, retorquiu Aurélia gracejando. É que em mim produz o efeito contrário; estava com uma fome devoradora.

-Nem por isso tem comido muito, acudiu D. Firmina.

-Prove desta lagosta. Está deliciosa, insistiu Aurélia.

-Ordena? perguntou Fernando prazenteiro, mas com uma inflexão particular na voz.

Aurélia trinou uma risada.

-Não sabia que as mulheres tinham direito de dar ordens aos maridos. Em todo o caso eu não usaria do meu poder para cousas tão insignificantes.

-Mostra que é generosa.

-As aparências enganam.

O torneio deste diálogo não desdizia do tom de nascente familiaridade, próprio de dois noivos felizes; haviam entonações e relances d'olhos, que os estranhos não percebiam, e que eles sentiam pungir como alfinetes escondidos entre os rofos de cetim.

Da sala de jantar Fernando, acabado o almoço, passou à saleta de conversa, onde com pouca demora o acompanhou Aurélia. D. Firmina para não perturbar o mavioso a sós dos noivos, saiu a pretexto de encomendas.

Seixas tinha aberto maquinalmente um dos jornais do dia, que estavam em uma bandeja de charão com pés de bronze dourado, junto ao sofá. Quando Aurélia entrou, ele ofereceu-lhe a folha que tinha em mão e as outras, à escolha.

-Agradeço, disse Aurélia sentando-se no sofá.

O criado apresentava a Seixas com um porta-charutos de araribá-rosa tauxiado de prata e guarnecido de legítimos havanas, uma lâmpada também de prata, em cujo bico cintilava a flama azulada do espírito de vinho.

-Obrigado, tenho os meus, disse Fernando recusando com um gesto os charutos oferecidos, e tirando a carteira do bolso.

-E estes de quem são? perguntou vivamente Aurélia, designando os havanas apresentados pelo criado.

Seixas fez um movimento para responder; lembrando-se que não estavam sós, retraiu-se:

-Referia-me aos que trouxe comigo, disse frisando as últimas palavras.

-São melhores talvez.

-Ao contrário; mas estou habituado com eles. Não lhe incomoda a fumaça?

-Faria prova de mau gosto a senhora que atualmente mostrasse repugnâncias dessa ordem; além de que preciso de conformar-me aos hábitos de meu marido.

-Por este motivo, não. Como seu marido não tenho hábitos, e somente deveres.

Aurélia cortou o fio a este diálogo, perguntando com indiferença:

-Que trazem de novo os jornais?

-Ainda não os li. Que mais lhe interessa? Naturalmente a parte noticiosa, o folhetim...

Ao mesmo tempo abria Seixas as folhas uma após outra, e percorrendo-as com os olhos, lia em voz alta para Aurélia, o que encontrava de mais interessante. A moça fingia ouvi-lo; mas seu espírito repassava interiormente os últimos acontecimentos de sua vida, e interrogava as incertezas do futuro, que ela mesma em parte se havia traçado.

Todavia a presença do criado fez-lhe reparar que Seixas ainda tinha por acender o charuto.

-Não fuma? perguntou ao marido.

-Permite?

-Já lhe disse que não me incomoda! retorquiu a moça com um assomo de impaciência.

-Desculpe-me; não tendo recebido um consentimento formal, receei contrariá-la.

-Há receios que mais parecem desejos! observou a moça com ironia.

-O tempo a convencerá de minha sinceridade.

-O tempo!... Ah! se realizasse tudo quanto dele se espera! exclamou Aurélia com acerba irrisão.

Subtraindo-se a esse ímpeto de sarcasmo, que sublevou-lhe a alma dorida, a moça refugiou-se numa banalidade.

-O melhor é não confiar nele e viver do presente. O verdadeiro livro é o jornal com a crônica da véspera e os anúncios do dia.

Seixas continuou a percorrer os jornais, como se acedesse ao gosto de Aurélia. Nesse rápido exame ia lendo as epígrafes, a ver se alguma tinha a virtude de excitar a curiosidade da moça.

-Como são interessantes estas folhas! disse Aurélia que buscava um pretexto para expandir a irritação íntima. Quando me lembro de abri-las, o que faço raras vezes porque não tenho braços que cheguem para essa difícil empresa, sucede-me sempre julgar que estou lendo um jornal do ano anterior.

-A culpa não é do jornal, mas da cidade em que se publica, e da qual deve ser, como disse há pouco, o livro diário, ou a história da véspera.

-Perdão, não me lembrava que também foi jornalista.

Como Aurélia se calasse, e as folhas não fornecessem mais assunto à conversação, Seixas aproveitou a censura freqüentemente dirigida à imprensa periódica em nosso país, para fazer sobre o tema algumas variações, com que enchesse o tempo.

Está entendido que tratou a questão sob um ponto de vista ameno, que pudesse conciliar a atenção de uma senhora; Aurélia escutou-o alguns momentos com atenção; mas observando que o marido falava com o tom monófono e a pausa calculada de quem desempenha uma tarefa, e longe de dar franca expansão ao pensamento, ao contrário solicita o espírito rebelde, a moça interrompeu essa dissertação erguendo-se do sofá.

Deu algumas voltas pela saleta; percorreu com os olhos o aposento, reparando no papel, nos móveis e adereços, como se nunca os tivesse examinado, ou indagasse se nada faltava. Passou depois a observar atentamente as figurinhas de porcelana e outras quinquilharias que havia sobre os consolos, tirando-as de seu lugar e mudando-lhes a posição.

Daí encaminhou-se ao piano, que é para as senhoras como o charuto para os homens, um amigo de todas as horas, um companheiro dócil, e um confidente sempre atento. Ao abrir o instrumento, lembrou-se que não era próprio a uma noiva de véspera entregar-se a esse passatempo, quando vizinhos e criados, todos deviam supô-la àquela hora engolfada na felicidade de amar e ser amada.

Ah! ela não conhecia essa aurora mística do amor conjugal, que se lhe transformara em vigília de angústia e desespero. Mas adivinhava qual devia ser a transfusão mútua de duas almas, e compreendia que, ávidas uma da outra, não se podiam alhear em estranho passatempo.

Abandonando o piano, disfarçou em percorrer os livros de música, arrumados sobre o móvel apropriado, uma espécie de estante baixa de prateleiras verticais. Aí esteve a folhear apenas, solfejando à meia voz os trechos favoritos, e quiçá buscando um que respondesse aos recônditos pensamentos, ou antes que traduzisse o indefinível sentimento de sua alma naquele instante.

Parece que achou afinal essa nota simpática, pois sua voz desprendia-se num alegro de bravura, quando lembrou-se que não estava só. Volveu um olhar para o sofá, onde havia deixado o marido, que porventura a estaria observando, surpreso de sua mímica.

Seixas, ao apartar-se a moça, tomara de cima da mesa um álbum de fotografias, e entretinha-se em ver as figuras.

-Está vendo celebridades? perguntou a moça, que viera de novo sentar-se ao sofá.

Fernando compreendeu que a pergunta não era senão malha para travar a conversa, e dispôs-se a satisfazer o desejo da mulher.

-É verdade, celebridades européias, pois ainda não as temos brasileiras; isto é, em fotografia, que no mais sobram. Admira que nesta terra tão propensa à especulação e ao charlatanismo, ainda ninguém se lembrasse de arranjar uns álbuns de celebridades nacionais. Pois havia de ganhar muito dinheiro; não só na venda de álbuns, mas sobretudo na admissão dos pretendentes à lista das celebridades.

-Diga antes ao rol.

-É com efeito mais expressivo.

-O que isso prova, observou Aurélia, é que a literatura tem feito maiores progressos em nosso país do que a arte; pois se não me engano já há por aí, dentro e fora do país, empresas montadas para exploração da biografia.

-Tem razão.

-Escapou de casar-se com uma contemporânea ilustre, acrescentou Aurélia grifando as últimas palavras com o mais fino sorriso.

-Ah! não sabia! Lamento profundamente não ter de acumular essas tantas honras que recebi.

-Pois estivesse ameaçada de andar por aí em não sei que revista ou gazeta, na qualidade de brasileira notável. Creio eu que o meu título à celebridade era a herança de meu avô. Foi-me preciso tomar umas dez assinaturas para defender-me da conspiração armada contra a minha obscuridade, e livrar-me da glória que esses senhores pretendiam infligir-me.

Nesta conversa e na revista dos retratos consumiram os dous muito tempo.

A pêndula acabava de soar uma hora. O criado abriu com estrépito a porta da sala da jantar, como para advertir de sua entrada; e disse aportuguesando o termo inglês luncheon segundo o costume geral:

-O lanche está pronto.

-Vamos? perguntou a moça erguendo-se.

Seixas fechou o álbum e acompanhou a mulher.

O criado, que vira os dous noivos inclinados sobre o álbum, sorriu com ar brejeiro.

Fernando percebeu o sorriso e corou.

- III -

Frutas da estação: abacaxis, figos e laranjas seletas, rivalizando com as maçãs, peras e uvas de importação, ornavam principalmente a refeição meridiana que os costumes estrangeiros substituíram à nossa brasileira merenda da tarde, usada pelos bons avós.

Havia também profusão de massas ligeiras, como empadinhas, camarões e ostras recheadas; além de queijos de vários países e doces de calda ou cristalizados. Os melhores vinhos de sobremesa desde o Xerez até o Moscatel de Setúbal, desde o Champanhe até o Constança, estavam ali tentando o paladar, uns com seu rótulo eloqüente, outros com o topázio que brilhava através das facetas do cristal lapidado.

-Não tenho a menor disposição! disse Fernando obedecendo ao gesto de Aurélia e sentando-se à mesa.

-Ora! disse a moça com volubilidade. Para provar frutas e doces não é preciso ter fome; faça como os passarinhos. O que prefere? Um figo, uma pêra, ou o abacaxi?

-É preciso que eu tome alguma cousa? perguntou Fernando com seriedade.

-É indispensável.

-Nesse caso tomarei um figo.

-Aqui tem; um figo e uma pêra; é apenas um casal.

Seixas inclinou a cabeça; colocou o prato diante de si, e comeu as duas frutas, pausada e friamente, como um homem que exerce uma ação mecânica. Nada em sua fisionomia revelava a sensação agradável do paladar.

Aurélia que esmagava entre os lábios purpurinos bagos de uva moscatel, seguia com os olhos os movimentos automáticos de Fernando, e se não adivinhava, confusamente pressentia o motivo que atuava sobre seu marido.

Ergueu-se então da mesa, e saindo fora, à beirada da casa, onde já fazia sombra, divertiu-se em dar de comer aos canários e sabiás, que festejaram sua chegada com uma brilhante abertura de trinados e gorjeios.

Pensava Aurélia que sua presença porventura acanhava ao marido; e buscava aquele pretexto para arredar-se um instante e deixá-lo mais livre de cerimônias. Desvaneceu-se porém essa idéia do seu espírito, quando espiando pela fresta da janela, viu Seixas imóvel, com os olhos fitos na parede fronteira, e completamente absorto.

Depois do lanche, Aurélia convidou o marido para darem uma volta pelo jardim; mas havia senhoras nas janelas da vizinhança, e a moça não quis expor-se aos olhares curiosos. Ela não era a noiva feliz e amada; mas as outras a supunham, e tanto bastava para que seu pudor a recatasse às vistas dos estranhos.

Voltaram pois à saleta.

Aí andaram a borboletear de um a outro assunto, mas apesar do desejo que tinham, de prolongar a conversação, ou talvez por essa mesma preocupação que os distraía, não encontraram tema para divagar.

Afinal recaíram nas fotografias. Desta vez foi o álbum dos conhecidos que forneceu matéria. Em um dos primeiros cartões figurava o Lemos, cuja aparição coincidiu com esta observação de Aurélia:

-O álbum das pessoas de minha amizade, eu o guardo comigo. Estes são álbuns de sala, tabuletas semelhantes às que têm os fotógrafos na porta.

-Mas não apresentam de certo as antíteses curiosas das tabuletas. Os tais senhores parece que o fazem de propósito; não há mais perfeita democracia.

Seixas, emérito conhecedor da Rua do Ouvidor, começou a especificar alguns dos contrastes de que se recordava; abstemo-nos porém de reproduzir suas observações, que ressentiam-se de singular mordacidade.

Esse tom cáustico não era natural ao mancebo, cuja índole benévola e afável nunca passava de uns toques de fria ironia. Ele próprio já notara em si essa alteração de seu caráter, e achava um sainete especial em saturar-se do fel que tinha no coração.

Ao cabo de algum tempo notou Fernando que Aurélia erguia freqüentemente os olhos para a pêndula, e disfarçou, porque ele também interrogava a miúdo e furtivamente o mostrador, ansioso de ver escoar-se o dia.

Uma vez os olhos de ambos encontraram-se, quando buscavam a pêndula. Aurélia corou de leve:

-Cuidei que fosse mais cedo! disse ela.

-Como passa rapidamente o tempo! exclamou Fernando. Quase três horas.

-Ainda falta muito. São apenas duas e um quarto.

-Ah! É verdade.

-Talvez esteja atrasado! observou Aurélia. Consulte seu relógio.

Havia uma diferença de minuto e meio entre o relógio de Seixas e a pêndula da sala. Foi o pretexto para consumir o resto do tempo. Aurélia quis acertar a pêndula; aproveitou a ocasião para dar-lhe corda; depois do que veio uma discussão cerca da conveniência de mudá-la para outro consolo.

-Já três horas! exclamou afinal a moça. É tempo de vestir-nos para o jantar. Até logo!

Aurélia fez um gracioso aceno de fronte ao marido e desapareceu pela porta, que dava para o seu toucador.

Quando ela entrou nesse aposento e fechou a porta sobre si, não teve tempo de desatacar o corpinho do vestido; meteu as mãos pelos ilhoses e magoando os dedos mimosos nos colchetes, despedaçou a ourela para não sufocar. O coração que ela recalcara por tanto tempo sublevava-se afinal, e estalava nos soluços que lhe dilaceravam o seio.

De seu lado Fernando, ao ficar só, respirava, como um homem que repousa de uma tarefa laboriosa e fatigante. Ele desejaria sair daquele teto, perder de vista a casa, ir bem longe daí para gozar desses momentos de solidão e recuperar durante uma hora sua liberdade. Mas um passeio, e ainda mais solitário, não era conveniente no dia seguinte ao de um casamento de amor.

O criado pediu licença para entrar.

-O senhor não precisa de mim?

-Não, obrigado. A que horas janta-se?

-Às cinco, se o senhor não der outra ordem.

-Bem.

-O senhor sai a passeio depois de jantar? De carro ou a cavalo?

-Não.

-Sei que não é próprio logo nos primeiros dias do casamento, mas foram as ordens que recebi; que nada faltasse ao senhor.

-Quem as deu?

-A senhora.

Este cuidado que em outra circunstância lhe causaria íntimo prazer, em sua posição humilhava-o. Sentia a influência da tutela que pesava sobre ele, e o reduzia à condição de um pupilo nupcial, se não cousa pior. Mas estava resignado às duras provações da situação, a que seu erro o submetera.

Ainda nessa ocasião, Seixas revelou uma nova alteração em sua índole, ou pelo menos em seus hábitos.

Ele tinha essa flor da ingênua elegância, que não se alimenta da vaidade de ser admirada, mas da satisfação íntima. Vestir-se era para ele outrora um prazer; o contato de um novo trajo causava-lhe uma sensação deliciosa, como a de um banho frio em hora de calma.

Nesse dia, porém, quando os guarda-roupas e cômodas regurgitavam, limitou-se ele apenas a reparar algum leve desarranjo; e dar ao trajo da manhã uma feição de novidade pela mudança de uma gravata. Quando entrou na saleta de conversa, já ali estava D. Firmina, e Aurélia não se demorou.

A moça trajava de verde. Ela tinha dessas audácias só permitidas às mulheres realmente belas, de afrontar a monotonia de uma cor. Seu lindo rosto, o colo harmonioso e os braços torneados, desabrochavam dessa folhagem de seda, como lírios d'água levemente rosados pelos rubores da manhã.

Quando a porta abriu-se para dar-lhe passagem, Seixas cuidou que assistia à metamorfose da ninfa transformada em loto. Mas logo depois admirando a graça que se desprendia dessa peregrina gentileza como a irradiação de um astro, pareceu-lhe antes que a flor tomava as formas da mulher e animava-se ao sopro divino.

D. Firmina trouxera da rua muitas novidades.

Recomendações de umas amigas de Aurélia; mil inquirições de outras acerca do casamento; elogios dos noivos; e toda a outra bagagem de agradáveis banalidades, que na máxima parte compõem a vida nas grandes cidades.

Com esta provisão encarregou-se ela de preencher a meia hora que faltava para o jantar.

-É voz geral, que não se podia escolher um par mais perfeito, disse a viúva a modo de resumo.

-Já vê que nos casamos por unânime aclamação dos povos, observou Aurélia sorrindo-se para o marido. Nada nos falta para sermos felizes.

-Mais do que eu sou, não é possível, tornou Seixas.

-Esta primazia me pertence, e não lhe cederei!

D. Firmina aplaudiu essa contestação que revelava os extremos de amor dos noivos um pelo outro.

O jantar correu como o almoço. Aurélia, isenta do enleio, ou antes opressão, que a tolhia quando se achava só com o marido, recobrava na presença de D. Firmina e dos criados a sua feiticeira volubilidade, na qual um observador calmo notaria certa irritabilidade nervosa, habilmente encoberta com a galanteria do gesto e a graça do sorriso.

Seixas não se demoveu da sobriedade que havia guardado pela manhã, senão para aceder aos desejos da mulher, a qual por mais de uma vez exerceu essa tirania feminina, que à semelhança de certas realezas, compraz-se com as minúcias.

Ao levantarem-se da mesa, Fernando dirigiu-se à porta do jardim, e esperava divagando os olhos pelo arvoredo, que dessem destino ao resto da tarde. Aurélia aproximou-se enquanto D. Firmina estava ocupada em arranjar a cauda de seu vestido nesgado, moda a que ainda se não pudera habituar.

-Que bela tarde! exclamou a moça ao lado do marido.

Logo sombreando a voz disse-lhe quase ao ouvido, com tom rápido e incisivo:

-Ofereça-me o braço!

Depois prolongando a exclamação, continuou mostrando no horizonte uns arrebóis encantadores, em que os mais finos matizes se cambiavam sobre a nívea polpa de um grande cirro que de repente incendiou-se como um rosicler de fogo.

-Veja; até o céu está festejando a nossa ventura. Quem já teve desses fogos de artifícios, que o sol preparou para obsequiar-nos?

-É pena que não possamos... que eu não possa gozar da festa mais de perto, para melhor apreciá-la.

Aurélia voltou-se rapidamente para fitar no semblante do marido um frio olhar de interrogação; mas Fernando contemplava as gradações da luz no ocaso, e só voltou-se para oferecer o braço à mulher, conforme a recomendação que recebera.

Fê-lo porém, mais com o gesto, pois as palavras apenas murmuradas, mal se ouviram.

-Acenda seu charuto, disse a moça vendo que ele esquecia-se desse pormenor, apesar de lhe ter o criado oferecido fogo.

Aurélia conduziu o marido a um caramanchão que havia no meio da chácara, e cuja espessa ramada os escondia às vistas de D. Firmina, e do jardineiro e hortelão que andavam na lida costumada.

Seixas tinha umas tinturas de orquídeas e parasitas que havia colhido um verão em Petrópolis, no tempo em que a cultura e o estudo desses dois gêneros de plantas esteve na moda, e para alguns degenerou em mania. Como um dos leões fluminenses, estava ele na obrigação de sujeitar-se a esse novo capricho da soberana; e cumpria-lhe habilitar-se para em uma reunião nomear por sua designação científica a flor da moda que ornava uma gruta de jardim ou um vaso de sala.

Justamente embaixo do caramanchão havia uma bela coleção de orquídeas, que o jardineiro ali guardava do sol. Fernando aproveitou-se do tema, para fazer mostra dos seus conhecimentos botânicos.

Aurélia ouviu-o com atenção; só quando o marido parecia ter esgotado o assunto, foi que ela encartou uma reflexão.

-Como todo o mundo, eu sempre fui muito apaixonada de flores; mas houve um tempo em que não as pude suportar. Foi quando se lembraram de ensinar-me botânica.

-Quer isto dizer que tive a infelicidade de aborrecê-la com a minha conversa?

-Eis o que é a prevenção! Conseguiu reconciliar-me com a botânica. Não há melhor calmante.

Já estava escuro quando Aurélia se recolheu do jardim pelo braço do marido. D. Firmina os esperava da saleta já esclarecida com um doce crepúsculo artificial coado pelo cristal fosco dos globos.

A viúva sentara-se à mesa do centro para devorar os folhetins dos jornais; e teve a discrição de voltar as costas para o sofá onde se tinham acomodado os noivos.

Aurélia, fatigada da comédia que representara durante o dia, recostara-se à almofada, e cerrando as pálpebras engolfou-se em seus pensamentos. Fernando respeitou essa meditação: tanto mais quanto seu espírito cedia também a uma irresistível preocupação.

A noite causara-lhe um indefinível desassossego, que mais crescia agora com a aproximação da hora de recolher. Não sabia de que se receava; era uma cousa vaga, informe, ignota, que o enchia de pavor.

Assim, cada um em seu canto de sofá, separados ainda mais pela completa alheação do que pelo espaço que entre ambos medeava, ela absorta, ele agitado, passaram esse primeiro serão de sua vida conjugal.

D. Firmina, às vezes, nalgum ponto menos interessante do folhetim, aplicava o ouvido; e aquele silêncio suspeito a fazia sorrir pensando nos abraços e beijos furtivos que surpreenderia, se de repente se voltasse para o sofá.

Com discreta malícia, a pretexto de procurar o lenço fazia menção de voltar-se para gozar do prazer de assustar os dois pombinhos. Então percebia um leve rumor; cuidando que eles se afastavam, quando ao contrário fingiam ocupar-se um do outro, para não traírem sua mútua indiferença.

Pelo meio da noite Aurélia saiu da sala. Depois de uma pequena ausência durante a qual ouviu-se dentro algum rumor, ela voltou a ocupar seu lugar no canto do sofá.

Afinal a pêndula marcou dez horas. D. Firmina dobrou seus jornais e despediu-se.

Aurélia acompanhou-a lentamente como para certificar-se de que se afastava; depois do que cerrou a porta, deu duas voltas pela sala, e caminhou para o marido.

Seixas viu-a aproximar-se assombrado pela estranha expressão que animava o rosto da moça.

Era um sarcasmo cruel e lascivo o que transluzia com fulgor satânico da fisionomia e gesto dessa mulher.

Só faltava-lhe a coroa de pâmpanos sobre as tranças esparsas, e o tirso na destra.

Em face do marido porém essa febre aplacou-se como por encanto; e surgiu outra vez do corpo da bacante em delírio a virgem casta e melindrosa.

Aurélia tinha na mão dois objetos semelhantes, envoltos um em papel branco, outro em papel de cor. Ofereceu o primeiro a Seixas; mas retraiu-se substituindo aquele pelo outro.

-Esta é minha, disse guardando o invólucro de papel branco.

Enquanto Seixas olhava o objeto que recebera, sem compreender o que isto significava, Aurélia fez-lhe com a cabeça uma saudação:

-Boa noite.

E retirou-se.

- IV -

Fernando dirigiu-se a seu aposento com tanta precipitação, que esqueceu-lhe o objeto fechado em sua mão; só deu por ele no toucador, ao cair-lhe no chão.

Abriu então o papel. Havia dentro uma chave; e presa à argola uma tira de papel com as seguintes palavras escritas por Aurélia: chave de seu quarto de dormir.

Ao ler estas palavras Seixas tornou-se lívido; e lançou um olhar esvairado para o reposteiro da câmara, e em que ele que entrara na véspera palpitante de amor e que não poderia nunca mais penetrar, senão ébrio de vergonha e marcado com o ferrete da infâmia.

Com o movimento que fez descobriu uma modificação que sofrera o aposento. Fora arredado o guarda-roupa, que ocultava uma porta agora patente, e apenas coberta por uma cortina também de seda azul.

A chave servia nessa porta que dava para uma alcova elegante, mobiliada com uma cama estreita de érable e outros acessórios. Era o mais casquilho dormitório de rapaz solteiro que se podia imaginar.

Seixas adivinhou pela onda de fragrância derramada no aposento, que Aurélia ali estivera pouco antes. Talvez saíra ao ouvir o rumor da chave na fechadura.

-Meu Deus! exclamou o mancebo comprimindo o crânio entre as palmas das mãos. Que me quer esta mulher? Não me acha ainda bastante humilhado e abatido? Está se saciando de vingança! Oh! ela tem o instinto da perversidade. Sabe que a ofensa grosseira ou caleja a alma, se é infame, ou a indigna se ainda resta algum brio. Mas esse insulto cortês cheio de atenção e delicadezas, que são outros tantos escárnios; essa ostentação de generosidade com que a todo o momento se está cevando o mais soberano desprezo; flagelação cruel infligida no meio dos sorrisos e com distinção que o mundo inveja; como este, é que não há outro suplício para a alma que se não perdeu de todo. Por que não sou eu o que ela pensa, um mísero abandonado da honra, e dos nobres estímulos do homem de bem? Acharia então com quem lutar!

Seixas vergou a cabeça ao peso dessa reflexão.

-A força da resignação, essa porém hei de tê-la. Não me abandonará, por mais cruel que seja a provação.

Os dias seguintes, essa fase nascente da lua-de-mel, passaram como o primeiro. Entraram então os noivos na outra fase, em que o enlevo de se possuírem já permite, sobretudo ao homem, tornar às ocupações habituais.

No quinto dia Seixas apresentou-se na repartição, onde foi muito festejado por suas prosperidades. Tomaram os companheiros aquele pronto comparecimento por mera visita. Se quando pobre, sua freqüência somente se fazia sentir no livro do ponto, agora que estava rico ou quase milionário, com certeza deixaria o emprego ou quando muito o conservaria honorariamente, como certos enxertos das secretarias.

Grande foi pois a surpresa que produziu a assiduidade de Seixas na repartição. Entrava pontualmente às 9 horas da manhã e saía às 3 da tarde; todo esse tempo dedicava-o ao trabalho: apesar das contínuas tentações dos companheiros, não consumia como costumava outrora a maior parte dele na palestra e no fumatório.

-Olha, Seixas, que isto é meio de vida e não de morte! dizia-lhe um camarada repetindo pela vigésima vez esta banalidade.

-Vivi muitos anos à custa do Estado, meu amigo; é justo que também ele viva um tanto à minha custa.

Outra mudança notava-se em Seixas. Era a gravidade que sem desvanecer a afabilidade de suas maneiras sempre distintas, imprimia-lhes mais nobreza e elevação. Ainda seus lábios se ornavam de um sorriso freqüente; mas esse trazia o reflexo da meditação e não era como dantes um sestro de galanteria.

O casamento é geralmente considerado como a iniciação do mancebo na realidade da vida. Ele prepara a família, a maior e mais séria de todas as responsabilidades. Atualmente esse ato solene tem perdido muito de sua importância; indivíduo há que se casa com a mesma consciência e serenidade, com que o viajante aposenta-se em uma hospedaria.

Por isso estranhavam os colegas de Seixas aqueles modos tão diversos dos que tinha antes, em solteiro; e não concebendo que o casamento mudasse repentinamente a natureza do homem, atribuíam a transformação à riqueza; e à modéstia chamaram impostura.

Para chegar em tempo à repartição, tinha Seixas de almoçar mais cedo e só, o que poupava-lhe, e também a Aurélia, cerca de meia hora de suplício, que ambos se infligiam um ao outro com sua presença.

-Está muito assíduo agora à repartição! disse um dia a moça ao marido. Pretende algum acesso?

Seixas deixou cair o remoque e respondeu francamente:

-É verdade, há uma vaga, e desejo obter a preferência.

-Que ordenado tem esse emprego?

-Quatro contos e oitocentos.

-E precisa disso?

-Preciso.

Aurélia soltou uma risada argentina, quanto má e venenosa.

-Pois então seja antes meu empregado; asseguro-lhe o acesso.

-Já sou seu marido, respondeu Seixas com uma calma heróica.

A moça continuou a gorjear o seu riso sarcástico; mas voltou as costas ao marido e afastou-se.

Seixas ia a pé tomar em caminho a gôndola, cujo ponto ficava distante da repartição. Uma vez a mulher o interpelou acerca disso:

-Por que não serve-se do carro, quando sai?

-Prefiro o exercício a pé. É mais higiênico; faz-me bem ao corpo e ao espírito.

-É pena que não tivesse feito seus estudos de higiene quando solteiro.

-Não imagina quanto o lamento. Mas sempre é tempo de aprender, e nestes poucos dias tenho aproveitado muito.

-A mim me parece que desaprendeu. Naquele tempo sabia que eu era rica, muito rica; hoje tem-me na conta de uma mulher, cujo marido anda de gôndola.

Fernando mordeu os beiços.

-A riqueza também tem sua decência. Casou-se com uma milionária, é preciso sujeitar-se aos ônus da posição. Os pobres pensam que só temos gozos e delícias; e mal sabem a servidão que nos impõe esta gleba dourada. Incomoda-lhe andar de carro? E a mim não me tortura este luxo que me cerca? Há cilício de crina que se compare a estes cíclicos de tule e seda que eu sou obrigada a trazer sobre as carnes, e que me estão rebaixando a todo o instante, porque me lembra que aos olhos deste mundo, eu, a minha pessoa, a minha alma, vale menos do que esses trapos?

As últimas palavras pareciam escapar-se dos lábios da moça rorejadas de lágrimas. Seixas esquecendo a pungente alusão que sofrera pouco antes, fitou-a com olhos compassivos; mas ela recobrara já o tom de agressiva ironia:

-Assim o mundo achará em mim a sua criatura; a mulher, que festeja e enche de adorações. Eu serei para ele o que ele me fez.

Esse mundo, Fernando compreendeu que era o pronome de sua infelicidade e ambição. Restituído à realidade de sua posição de que o ia arrancando súbita comoção, disse:

-Pensa então que a decência de sua casa exige que seu marido ande de carro?

-Penso que me casei com um cavalheiro distinto, que sabe usar de sua fortuna, e não com um homem vulgar.

-Tem razão. Reclama o que lhe pertence, e eu seria um velhaco se lhe recusasse o que adquiriu com tão bom direito.

A chegada de D. Firmina interrompeu este diálogo.

De volta da repartição, encontrava Seixas a mulher na saleta; se ela estava só, cortejavam-se apenas, trocavam algumas palavras a esmo, depois do que recolhiam-se cada um a seu aposento e preparavam-se para o jantar. Se havia alguém com Aurélia, Seixas passava-lhe a mão pela cintura e roçava um beijo hirto por aquela face aveludada que se crispava ao seu hálito frio. Depois do jantar vinha o passeio ao jardim. Era nessa ocasião, quando escondidos pela folhagem, os supunham na troca de ternuras, que Aurélia crivava o marido de epigramas e motejos. De ordinário Seixas opunha a esse fogo rolante uma paciente indiferença que acabava por fatigar a moça.

Alguma vez, porém, acontecia retribuir Seixas o sarcasmo, o que irritava o ânimo já acerbo de Aurélia, cuja palavra tornava-se então de uma causticidade implacável.

À noite havendo visitas passavam no salão; quando estavam sós, ficavam na saleta; Seixas abria um livro; Aurélia fingia escutar os trechos que o marido lia em voz alta. Outras noites improvisava-se um jogo, em que tomava parte D. Firmina, e cuja fútil monotonia matava as horas.

Tinham perto de um mês de casados; durante esse tempo, vendo-se e falando-se todos os dias, não acontecera uma só vez pronunciarem o nome um do outro. Usavam do verbo na terceira pessoa; respeitavam entre si esse anônimo tácito, sublinhando a palavra com o gesto.

Uma ocasião, estava a sala cheia de gente. Aurélia dirigiu-se ao marido quando este de pé, a pequena distância, conversava com várias pessoas. Não respondeu Seixas; ela quis aproximar-se para chamar-lhe a atenção, mas cercavam-no os amigos.

-Fernando! disse então, fazendo um supremo esforço.

Seixas voltou-se atônito; encontrou nos lábios da mulher um sorriso que saturava de fel a doçura daquela voz.

-Chamou-me?

-Para acompanhar D. Margarida que se retira.

A mudança que se havia operado na pessoa de Seixas depois de seu casamento, fez-se igualmente sentir em sua elegância. Não mareou-se a fina distinção de suas maneiras e o apuro do trajo; mas a faceirice que outrora cintilava nele, essa desvanecera-se.

Sua roupa tinha o mesmo corte irrepreensível, mas já não afetava os requintes da moda; a fazenda era superior, porém de cores modestas. Já não se viam em seu vestuário os vivos matizes e a artística combinação de cores.

Aurélia notou não só essa alteração que dava um tom varonil à elegância de Seixas, como outra particularidade, que ainda mais excitou-lhe a observação. Dos objetos que faziam parte do enxoval por ela oferecido, não se lembrava de ter visto um só usado pelo marido.

Ao mesmo tempo a chocalhice dos escravos a advertiu de uma circunstância ignorada por ela e que se prendia à outra.

Ordenava ela à mucama que distribuísse pelas outras uns enfeites e vestidos já usados.

-Sinhá é muito esperdiçada! observou a mucama com a liberdade que as escravas prediletas costumam tomar. Não sabe poupar como senhor que traz tudo fechado, até o sabonete!

-Não tens que ver, nem tu nem as outras, com o que faz teu senhor! atalhou Aurélia com severidade.

Bem ímpetos sentiu a moça de interrogar a mucama; mas resistiu a esse desejo veemente para conservar o decoro de sua posição e não abaixar-se até à familiaridade com a criadagem.

Despediu a rapariga; mas resolveu verificar por si o que teria valido a Seixas essa reputação de avaro, que lhe conferia a opinião pública da cozinha e da cocheira.

- V -

No dia seguinte, depois do almoço, lembrou-se Aurélia de sua resolução da véspera.

Àquela hora o marido estava na repartição, e já o criado devia ter acabado de fazer o serviço dos quartos; por conseguinte podia sem despertar a atenção realizar seu intento.

Deu volta à chave da porta que um mês antes fechara-se entre ela e seu marido; abriu de leve o reposteiro de seda azul para certificar-se de que ninguém havia no aposento; e trêmula, agitada por uma comoção que lhe parecia infantil, entrou naquela parte da casa, onde não tornara depois de seu casamento.

Que horas encantadoras passara ela ali nos dias que precederam a cerimônia, quando ocupava-se com o preparo e adereço desses aposentos, destinados ao homem a quem ia unir-se para sempre, embora para dele separar-se por um divórcio moral, que talvez fosse eterno!

O sentimento que possuía Aurélia e a dominava naquele tempo, ela própria não o poderia definir, tão singulares eram os afetos que se produziam em sua alma.

Ao passo que ela acariciava com um acerbo requinte a desafronta de seu amor ludibriado, e prelibava o cáustico prazer da humilhação desse homem, que a traficava, vinham momentos em que alheava-se completamente dessa preocupação da vingança, para entregar-se às fagueiras ilusões.

Tinha sede de amor; e como não o encontrava na realidade, ia bebê-lo a longos haustos na taça de ouro, que lhe apresentava a fantasia. Essas horas via-as com seu ideal; e eram horas inebriantes e deliciosas.

Nelas foi que a jovem mulher se esmerou em ornar estas salas e gabinetes. Sonhava que iam ser habitados pelo único homem a quem amara, e que lhe retribuía com igual paixão. Queria que esse ente querido achasse como que entranhada na elegância dos aposentos, sua alma palpitante, que o envolvesse e encerrasse dentro em si.

Ao rever o lugar e objetos, que tinham sido companheiros daquelas cismas e ardentes emoções, Aurélia cedeu um instante à mágica influência de recordos, os quais se desdobravam como as névoas aljofradas, que empanam a luz do sol e mitigam-lhe a calma.

Arrancando-se afinal a esse enlevo de um passado, que nem ao menos era real, e só existira como uma doce quimera, a moça percorreu então o aposento, e volveu um olhar perscrutador.

Notou o que aliás era bem visível. O toucador estava completamente despido de todas as galanterias, de que ela o havia adornado com sua própria mão. Parecia um móvel chegado naquele instante da loja. Os guarda-roupas, cômodas, secretárias, tudo fechado, e na mesma nudez, que denunciava falta de uso.

-É por isso!... murmurou a moça consigo. O criado não suspeita o motivo, e atribui à mesquinheza.

Uma das mais tocantes puerilidades de Aurélia, quando sonhava o casamento com o homem amado, fora a igualdade das fechaduras de todas as partes e móveis do uso especial de cada um. Duas almas que se unem, pensava ela em sua terna abnegação, não têm segredos e devem possuir-se uma à outra completamente.

Quando reuniu em argolas de ouro, as duas séries de chaves ao todo iguais, sorriu-se e imaginou que na noite do casamento, quando seu marido se lhe ajoelhasse aos pés, ela o ergueria em seus braços para dizer-lhe:

-Aqui estão as chaves de minha alma e de minha vida. Eu te pertenço; fiz-te meu senhor; e só te peço a felicidade de ser tua sempre!

Em que abismo de dor e vergonha se tinham submergido essas visões maviosas, já o sabemos. Ninguém suspeitou jamais nem ela revelou nunca, a voragem de desespero oculta sob aquele formoso colo, que parecia arfar unicamente com as brandas emoções do amor e do prazer.

Aurélia abriu com suas chaves os móveis; e confirmou-se em uma conjetura. Tudo, jóias, perfumarias, utensílios de toucador, roupa, tudo ali estava guardado em folha, como viera da loja.

-Que significação tem isto? murmurou a moça interrogando atentamente seu espírito. Parece desinteresse... Mas não! Não pode ser. Em todo caso há um plano, uma idéia fixa. Outro dia o carro; agora isto!...

Refletiu algum tempo mais, e concluiu:

-Não compreendo.

Aurélia tinha razão. Se com essa obstinação, Seixas queria mostrar desapego à riqueza adquirida pelo casamento, fazia um ridículo papel; pois o enxoval não era senão um insignificante acessório do dote em troca do qual tinha negociado sua liberdade.

A porta do quarto de dormir estava fechada. Aurélia abriu-a com a chave parelha que havia em sua argola.

Ali achou a escrivaninha, que servia de toucador provisório a Seixas, e uns pentes e escovas de ínfimo preço.

-Agora entendo. Quer mortificar-me.

Depois do jantar, passeavam no jardim; Aurélia tendo colhido uma rosa, afagava com as pétalas macias o cetim de suas faces, mais puro que o matiz da flor.

-Hoje estive em seu toucador, disse ela com simulada indiferença.

-Ah! fez-me esta honra?

-Uma dona-de-casa, bem sabe, tem obrigação de ver tudo.

-A obrigação e o direito.

-O direito aqui seria da mulher, e não só este como outros mais.

-Eu os reconheço, disse Fernando.

-Ainda bem. Vejo que nos havemos de entender.

Este diálogo, quem o ouvisse de parte, não lhe descobriria a menor expressão hostil ou agressiva. Os dois atores deste drama singular já se tinham por tal forma habituado a vestir sua ironia de afabilidade e galanteria, que vendavam completamente a intenção.

Muitas vezes D. Firmina aproximava-se no meio de uma dessas escaramuças de espírito e supunha ao ouvi-los que estavam arrulando finezas e ternuras, quando eles se crivavam de alusões pungentes.

A moça hesitou um instante; mas fitando de chofre o olhar no semblante do marido, perguntou-lhe:

-Que fez dos objetos que estavam no toucador?

Seixas conteve um assomo de nobre ressentimento e sorriu-se com desdém:

-Não tenha susto; estão fechados nas gavetas, intactos como os deixou. Pensava talvez que parassem em alguma casa de penhor?

-Estes objetos lhe pertencem, pode dispor deles como lhe aprouver, sem dar contas disso a ninguém. Era a resposta que supunha receber e eu não teria que replicar-lhe, pois reconheço o seu direito e o respeito.

-Penhora-me com tamanha generosidade, disse Seixas sentindo o dardo da alusão.

-Não se apresse em agradecer. Se respeito o seu direito de dispor livremente do que é seu, também por minha parte reclamo a garantia do que adquiri com o sacrifício de minha felicidade. Casei-me com o Sr. Fernando Rodrigues de Seixas, cavalheiro distinto, franco e liberal; e não com um avarento, pois é este o conceito em que o têm os criados, e brevemente toda a vizinhança, se não for a cidade inteira.

Seixas escutara com uma calma forçada estas palavras da mulher, e replicou-lhe vivamente:

-Há dias, a propósito do carro, agitou-se entre nós esta questão; volta agora o caso do toucador; e pode renovar-se a cada momento. O melhor pois é liquidá-la de uma vez.

-Liquidemos.

-Dê-me o braço, que ali vem D. Firmina.

Aurélia passou a mão pelo braço de Seixas. Passeando ao longo de uns painéis de fúcsias de várias espécies e admirando as flores, tiveram eles esta conferência, que de certo nunca houve entre marido e mulher.

-A senhora comprou um marido; tem pois o direito de exigir dele o respeito, a fidelidade, a convivência, todas as atenções e homenagens, que um homem deve à sua esposa. Até hoje...

-Faltou-lhe mencionar uma, talvez por insignificante, o amor, atalhou Aurélia brincando com um cacho de fúcsias.

-Estava subentendido. Há apenas uma reserva a fazer acerca da espécie desse produto. Suponha que a senhora não possuísse esta bela e opulenta madeixa, suntuoso diadema como não o tem nenhuma rainha, e que fizesse como as outras moças, que compram os coques, as tranças e os cachos. Não teria de certo a pretensão de que esses cabelos comprados lhe nascessem na cabeça, nem exigiria razoavelmente senão uns postiços. O amor que se vende é da mesma natureza desses postiços: frocos de lã, ou despojo alheio.

-Oh! ninguém o sabe melhor do que eu, que espécie de amor é esse, que se usa na sociedade e que se compra e vende por uma transação mercantil, chamada casamento!.. O outro, aquele que eu sonhei outrora, esse bem sei que não o dá todo o ouro do mundo! Por ele, por um dia, por uma hora dessa bem-aventurança, sacrificaria não só a riqueza, que nada vale, porém minha vida, e creio que minha alma!

Aurélia, no afogo destas palavras que lhe brotavam do seio agitado, retirara a mão do braço de Seixas; ao terminar voltara-se rapidamente para esconder a veemência do afeto que lhe incendiara o olhar e as faces.

Seixas acompanhou este movimento com um gesto de profunda mágoa, que um instante confrangeu-lhe o semblante, mas logo passou; já ele estava ocupado em entrançar nos losangos do gradil verde alguns pâmpanos mais longos de madressilva, quando Aurélia aproximou-se.

-Não faça caso destas puerilidades. São os últimos arrancos do passado. Cuidei que já estava morto de todo; ainda respira; mas em poucos dias nós o teremos enterrado. Talvez que então eu consiga ser a mulher que lhe convinha, uma de tantas que o mundo festeja e admira.

-A senhora será o que lhe aprouver; de qualquer modo deve convir-me desde que não empobreça.

Este sarcasmo chamou Aurélia à realidade de sua posição.

-É verdade, esqueci-me que entre nós só há um vínculo.

-Posso continuar?

-Estou ouvindo-o.

-As obrigações e respeitos que lhe devo como seu marido, ainda não me eximi de cumpri-los; e não me eximirei, qualquer que seja a humilhação, que eles me imponham.

Aurélia sentiu uma estranha repulsão ao ouvir estas palavras; o rubor queimou-lhe as faces.

-A senhora pretende também que não comprou um marido qualquer, e sim um marido elegante, de boa sociedade e maneiras distintas. Fazendo violência à minha modéstia, concordo. Tudo quanto for preciso para pavonear essa vaidade de mulher rica, eu o farei e o tenho feito. Salvas algumas modificações ligeiras, que a idade vai trazendo, sou o mesmo que era quando recebi sua proposta por intermédio de Lemos. Estarei enganado?

Aurélia respondeu com um gesto de suprema indiferença.

-Já vê que sou exato e escrupuloso na execução do contrato. Conceda-me ao menos este mérito. Vendi-lhe um marido; tem-no à sua disposição, como dona e senhora que é. O que porém não lhe vendi foi minha alma, meu caráter, a minha individualidade; porque essa não é dado ao homem alheá-la de si, e a senhora sabia perfeitamente que não podia jamais adquiri-la a preço d'ouro.

-A preço de que então?

-A nenhum preço, está visto, desde que o dinheiro não bastava. Se me der o capricho para fingir-me sóbrio, econômico, trabalhador, estou em meu pleno direito; ninguém pode proibir-me esta hipocrisia, nem impor-me certas prendas sociais, e obrigar-me a ser à força um glutão, um dissipador e um indolente.

-Prendas que possuía quando solteiro.

-Justamente, e que me granjearam a honra de ser distinguido pela senhora.

-É por isso que desejo revivê-las.

-Neste ponto sou livre, e a senhora não tem sobre mim o menor poder. O fausto de sua casa exige que tenha um palácio, mesa lauta, carros e cavalos de preço, que viva no meio do luxo e da grandeza. Não a contrario no mínimo detalhe; moro nessa casa, sento-me a essa mesa, entrarei nesses carros para acompanhá-la; não serei nos esplêndidos salões um traste indigno de emparelhar com os outros móveis. Quanto ao mais, ter por exemplo, apetite para suas iguarias e prazer para suas festas, eis ao que não me obriguei. E porventura será defeito que rebaixe o homem de sua posição social, de seus méritos, o fastio ou o hábito de andar a pé?

-Porventura, pergunto-lhe eu, será agradável a alguma senhora ter um marido que serve de tema à risota dos criados, e passa por trancar o sabonete? E veja quanto se desmandam, que já chegaram a meus ouvidos os chascos dessa gente.

-Compreendo que se ofenda com isso o seu orgulho. Mas há um remédio; deixar que roubem esses objetos, ou dá-los sob qualquer pretexto, contanto que eu não me sirva deles.

Aurélia fez um gesto de impaciência.

-Não contesto-lhe o direito que pretende haver sobre o que chama sua alma e seu caráter. Ideou este meio engenhoso de contrariar-me; não lhe roubarei o prazer; mas se deseja saber o que penso...

-Tenho até o maior empenho. Sua opinião é para mim como um farol; indica-me o parcel.

-O que não impediu seu naufrágio. Mas não gastemos o tempo em epigramas. Que necessidades temos nós destes trocadilhos de palavras, quando somos a sátira viva um do outro? Há neste mundo certos pecadores que depois de obtidos os meios de gozar da vida, arranjam umas duas virtudes de aparato, com que negociam a absolvição e se dispensam assim de restituir a alma de Deus.

O aspecto de Seixas denunciava a cólera que sublevava-se em sua alma e não tardava a prorromper. Mas desta vez ainda conseguiu domar a revolta de seus brios.

-Acabe.

-Já tinha acabado. Mas, para satisfazê-lo, aí vai o ponto do i; sua economia e sobriedade são do número daquelas virtudes oficiais dos pecadores timoratos.

-A senhora tem uma sagacidade prodigiosa! Bem mostra que é sobrinha do Sr. Lemos.

Aurélia que seguira adiante voltou-se como se uma víbora a tivesse picado no calcanhar. Tão eloqüente foi o assomo de dignidade ofendida que vibrou a fronte da formosa moça, e tal o império de seu olhar de rainha, que Seixas arrependeu-se.

-Desculpe!... disse ele com brandura. Sua ironia às vezes é implacável!

Aurélia não respondeu. Adiantando-se, entrou em casa e recolheu-se ao toucador.

Era a primeira noite depois de casados, que ela não voltava do jardim na companhia e pelo braço do marido.

- VI -

Fazia um luar magnífico.

Seixas conversava com D. Firmina na calçada de mármore de frente, que a folhagem das árvores cobria de sombra.

À direita do marido estava Aurélia reclinada em uma cadeira mais baixa de encosto derreado, cômodo preguiceiro para o corpo e o espírito que deseja cismar.

Desde a tarde da explicação relativa ao toucador, as relações dos dous companheiros dessa grilheta matrimonial se tinham modificado.

Como se houvessem naquela ocasião exaurido toda a dose de fel e acrimônia, acumulada nesse primeiro mês de casados; desde o dia seguinte suas palavras correspondendo à amenidade e apuro das maneiras, perderam a ponta de ironia, de que anteriormente vinham sempre armadas, como as vespas de seu dardo sutil e virulento.

Conversaram menos de si, falando sobre cousas indiferentes ou banais, acontecia-lhes durante muitas horas esquecerem-se da fatalidade que os tinha unido em uma eterna colisão para se dilacerarem mutuamente a alma.

Seixas descrevia naquele momento a D. Firmina o lindo poema de Byron, Parisina. O tema da conversa fora trazido por um trecho da ópera que Aurélia tocara antes de vir sentar-se na calçada.

Depois do poema ocupou-se Fernando com o poeta. Ele tinha saudade dessas brilhantes fantasias, que outrora haviam embalado os sonhos mais queridos de sua juventude. A imaginação, como a borboleta que o frio entorpeceu e desfralda as asas ao primeiro raio do Sol, doudejava por essas flores d'alma.

Não falava para D. Firmina, que talvez não o compreendia, nem para Aurélia que certamente não o escutava. Era para si mesmo que expandia as abundâncias do espírito; o ouvinte não passava de um pretexto para esse monólogo.

Às vezes repetia as traduções que havia feito das poesias soltas do bardo inglês; essas jóias literárias, vestidas com esmero, tomavam maior realce na doce língua fluminense, e nos lábios de Seixas que as recitava como um trovador.

Aurélia a princípio entregara-se ao encanto daquela noite brasileira, que lhe parecia um sonho de sua alma pintado no azul diáfano do céu.

Umas vezes ela refugiava-se no mais espesso da sombra, como se receasse que os raios indiscretos da Lua viessem espiar em seus olhos os recônditos pensamentos. Daí, da escuridão em que se embuçava, entretinha-se a ver as árvores e os edifícios flutuando na claridade que os inundava como um lago sereno.

Outras vezes inclinava a medo e lentamente a cabeça até encontrar a faixa de luar que passava entre duas folhas de palmeira, e vinha esbater-se na parede. Então essa veia de luz caía-lhe sobre a fronte e banhava-a de um cândido esplendor.

Ficava um instante nessa posição com os olhos engolfados no luar, e os lábios entreabertos para beberem os eflúvios celestes. Depois, saciada de luz, recolhia-se outra vez à sombra; e como a árvore que desabrocha em flores aos raios de sol, sua alma transformava os fulgores da noite em sonhos.

Ali perto recendiam os corimbos de resedá, balouçados pela brisa, e foi através desse enlevo de luz e fragrância, que a voz sonora de Seixas penetrou nas cismas de Aurélia e enleou-se nelas, de modo que a moça imaginava escutar não a conversa do marido, mas uma fala de seu sonho.

Para ouvir apoiara-se ao braço da cadeira e insensivelmente a cabeça descaindo reclinou sobre a espádua de Seixas com um movimento de graciosa languidez.

-Um dos mais lindos poemetos de Byron é O Corsário; dizia Seixas.

-Conte! murmurou-lhe ao ouvido a moça com a voz que teriam sílfides se falassem.

Fernando cedia nesse instante a uma suavíssima influência, contra a qual desejava reagir, mas faltava-lhe o ânimo. A pressão dessa formosa cabeça produzia nele o efeito do toque mágico de uma fada; presa do encanto não se lembrou mais quem era e onde estava.

A palavra fluía-lhe dos lábios trêmula de emoção, mas rica, inspirada, colorida. Não contou o poema do bardo inglês; bordou outro poema sobre a mesma teia, e quem o ouvisse naquele instante, acharia frio e pálido o original, ante o plágio eloqüente. É que neste havia uma alma a palpitar, enquanto que no outro apenas restam os cantos mudos do gênio que passou.

-O senhor deve traduzir este poema. É tão bonito! disse D. Firmina.

-Já não tenho tempo, respondeu Seixas; nem gosto. Sou empregado público e nada mais.

-Agora não precisa do emprego; está rico.

-Nem tanto como pensa.

Aurélia levantou-se tão arrebatadamente, que pareceu repelir o braço do marido, no qual pouco antes se apoiava.

-Tem razão; não traduza Byron, não. O poeta da dúvida e do cepticismo, só o podem compreender aqueles que sofrem dessa enfermidade cruel, verdadeiro marasmo do coração. Para nós, os felizes, é um insípido visionário.

Depois de ter lançado envoltas em um riso sardônico estas palavras a Seixas, a moça afastou-se da calçada. Mal entrou na zona de luz que prateava a fina areia, teve um calafrio. Esse esplêndido luar, onda suave, em que ela banhava-se voluptuosamente momentos antes, a transpassara como um lençol de gelo.

Voltou precipitadamente e entrou na sala, onde apenas havia a frouxa claridade de dois bicos de gás em lamparina. Fora ela mesma quem dispusera assim, para que a luz artificial não perturbasse a festa da natureza. Agora batia o tímpano, chamando o criado para fazer inteiramente o contrário. Os lustres acesos entornaram as torrentes deslumbrantes do gás, que expeliram da sala os níveos reflexos do luar.

-Pretendem ficar aí toda noite? perguntou Aurélia.

-Estávamos gozando do luar, disse D. Firmina entrando com Seixas.

-Há quem admire as noites de luar! Eu acho-as insuportáveis. O espírito afoga-se nesse mar de azul, como o infeliz que se debate no oceano. Para mim não há céu, nem campo, que valha estas noites de sala, cheias de conforto, de calor e de luz em que nos sentimos viver. Aqui não há risco de afogar-se o pensamento.

-Não; mas asfixia-se! observou Fernando.

-Antes isso.

Aurélia sentou-se à mesa de mosaico, voltando as costas ao jardim para não ver a formosa noite que lhe caíra no desagrado. Como porém no espelho fronteiro reproduzia-se com a cintilação do cristal uma nesga do jardim, onde a claridade argentina da Lua parecia coalhar-se nos lírios e cactos, a moça chamou novamente o criado e ordenou-lhe que fechasse a janela pela qual entrava aquele importuno bosquejo do soberbo painel da noite.

Havia em cima da mesa uma caixa de jogo, donde Aurélia tirou um baralho, com que se entreteve a fazer sortes.

-Vamos jogar? disse dirigindo-se ao marido.

Este tomou lugar na mesa em frente a Aurélia, que entregou-lhe o baralho e tirou outro da caixa.

-O écarté.

Seixas fez um gesto de assentimento ou obediência, preparadas as cartas para o jogo e tocando-lhe começar deu o baralho a partir.

-Dez mil-réis a partida! disse Aurélia vibrando o tímpano.

Seixas procurou com os olhos D. Firmina, que se recostara à janela e não prestava atenção ao jogo. A esse tempo entrou o criado.

-Luísa que traga minha carteira. Podemos continuar.

-Perdão, contestou Seixas a meia voz. Eu não jogo a dinheiro.

-Por quê?

-Não gosto.

-Tem medo de perder?

-É uma das razões.

-Eu lhe empresto.

-Também já perdi este mau costume de contar com o dinheiro alheio, tornou Seixas sorrindo e frisando as palavras. Depois que sou rico, só gasto do meu.

-Não lhe mereço esta fineza? retorquiu Aurélia acerando também o sorriso. Seja ao menos esta noite jogador e perdulário para satisfazer o meu capricho.

A moça recebeu a carteira da mucama; e tirou dela uma libra esterlina, que deitou sobre a mesa.

-Não se tenta?

-É muito pouco! tornou Seixas com um riso amargurado.

Este riso incomodou Aurélia, que ocultou a moeda e a carteira. Ainda esteve algum tempo baralhando as cartas distraída; então escaparam-lhe palavras soltas que pareciam de um monólogo.

-Dizem que a água no vinho faz de duas bebidas excelentes uma péssima. O mesmo acontece à mistura da virtude com o vício. Torna o homem um ente híbrido. Nem bom, nem mau. Nem digno de ser amado; nem tão vil, que se lhe evite o contágio. Compreendo o que deve sentir uma mulher... o que sentiu uma amiga minha, quando conheceu que amava um desses homens equívocos, produtos da sociedade moderna.

-Essa amiga sua, que suponho conhecer, talvez preferisse que o marido fosse em vez de algum desses equívocos, pura e simplesmente um galé? perguntou Seixas.

-De certo. Se o marido fosse um galé, ela quebraria imediatamente a grilheta que a prendesse a ele, e se afastaria com a morte n'alma. Mas eu...

-A senhora? Interrompeu o marido vendo-a hesitar.

As pálpebras franjadas de Aurélia ergueram-se desvendando os grandes olhos pardos que deslumbraram Seixas. Seu colo se distendera com o movimento que fez para aproximar-se, e a voz soou vibrante e profunda.

-Eu?... Não me importaria que ele fosse Lúcifer, contanto que tivesse o poder de iludir-me até o fim, e convencer-me de sua paixão e inebriar-me dela. Mas adorar um ídolo para vê-lo a todo o instante transformar-se em uma cousa que nos escarnece e nos repele... É um suplício de Tântalo, mais cruel do que o da sede e da fome.

Aurélia, proferidas estas palavras, ergueu-se e atravessando a sala entrou em seu aposento.

-Onde está Aurélia? perguntou D. Firmina quando saiu da janela.

-Já recolheu-se. A noite estava fresca. O sereno fez-lhe mal. Boa noite.

O outro dia foi um domingo.

Ao jantar Aurélia disse ao marido:

-Há mais de um mês que estamos casados. Carecemos pagar nossas visitas.

-Quando quiser.

-Começaremos amanhã. Ao meio-dia: não é boa hora?

-Não seria melhor à tarde? consultou o marido.

-Causa-lhe transtorno de manhã?

-Não desejo faltar à repartição.

-Pois então há de ser mesmo de manhã; retorquiu a moça a sorrir. Não consinto nessa falta de galanteria. Não acha, D. Firmina? Preferir o emprego à minha companhia?

-Decerto! confirmou a viúva.

Seixas nada opôs. Era seu dever acompanhar a mulher quando esta quisesse sair, e ele estava resolvido a cumprir escrupulosamente todas as obrigações.

- VII -

Seixas escreveu a seu chefe uma carta justificando sua ausência com um motivo grave, e remetendo-lhe alguns papéis que havia despachado na véspera.

Ao entrar na saleta, encontrou Aurélia que examinava o tempo.

-Está um dia tão quente!... O melhor talvez fosse adiar nossas visitas. Que diz?

-Decida, porque ainda tenho tempo de ir à secretaria.

-Vamos almoçar. Resolverei depois.

Quando se ergueram da mesa, ainda Aurélia não tinha decidido. Seixas compreendeu que a intenção da mulher era contrariá-lo, no que ela achava um prazer especial, e resignou-se a perder o dia.

À uma hora, a moça chegou-se a ele:

-Jantaremos hoje mais cedo e sairemos às cinco horas. Não lhe convém assim?

-Convém-me qualquer hora que escolher; respondeu Seixas.

-Talvez não goste de sair de tarde. Então ficará para amanhã às onze horas.

-Pois seja amanhã.

-Faltará outra vez à repartição?

-Sendo preciso.

-Não; sairemos esta tarde.

Aurélia chamou o criado e deu suas ordens. Como havia determinado, apressou-se o jantar; e às cinco horas descia ela a escadaria de seu palacete em cujo pórtico a esperava a elegante vitória tirada por uma parelha de cavalos do Cabo.

A moça trajava um vestido de gorgorão azul entretecido de fios de prata, que dava à sua tez pura tons suaves e diáfanos. O movimento com que, apoiando sutilmente a ponta da botina no estribo, ergueu-se do chão para reclinar-se no acolchoado amarelo da carruagem, lembrava o surto da borboleta, que agita as grandes asas e se aninha no cálix de uma flor.

O vestido de Aurélia encheu a carruagem e submergiu o marido; o que ainda lhe aparecia do semblante e do busto ficava inteiramente ofuscado pela deslumbrante beleza da moça. Ninguém o via; todos os cumprimentos, todos os olhares, eram para a rainha, que surgia depois de seu passageiro retiro.

O carro parou em diversas casas, indicadas na nota que o cocheiro recebera. Seixas oferecia a mão à mulher para ajudá-la a apear-se, e a conduzia pelo braço à escada, que ela subia só, pois precisava de ambas as mãos para nadar nesse dilúvio de sedas, rendas e jóias, que atualmente compõe o mundus da mulher.

Aí como na rua, todas as atenções eram para Aurélia, que as senhoras rodeavam pressurosas, e os homens fascinados por sua graça. Seixas apenas recebia um pálido reflexo dessa consideração, quanto exigia a estrita urbanidade. Houve casa, onde no afã de acolher a mulher, o deixaram atrás, desapercebido como um criado.

Em outras circunstâncias, aquela anulação de sua individualidade, bem pode ser que não o incomodasse. Talvez se reparasse nela, fosse para desvanecer-se de ser o preferido dessa formosa mulher, cercada da admiração geral e disputada por tantos admiradores. Todo esse culto que lhe prestava a sociedade, não seriam a seus olhos senão o tributo a ele oferecido pelo amor de sua mulher.

Mas as condições em que se achava, deviam mudar completamente a disposição de seu ânimo. Quanto mais se elevava a mulher, a quem não o prendia o amor e somente uma obrigação pecuniária, mais rebaixado sentia-se ele. Exagerava sua posição; chegava a comparar-se a um acessório ou adereço da senhora.

Não tinha dito Aurélia naquela noite cruel, que o marido era um traste indispensável à mulher honesta e que o comprara para esse fim? Ela tinha razão. Ali, naquele carro, ou nas salas onde entravam, parecia-lhe que sua posição e sua importância eram a mesma, senão menor, do que tinha o leque, a peliça, as jóias, o carro, no trajo e luxo de Aurélia.

Quando ele oferecia a mão à mulher para apear-se, ou levava no braço a manta de caxemira, considerava-se a igual do cocheiro que dirigia o carro e do lacaio que abria o estribo. A única diferença era serem aqueles serviços dos que os cavalheiros geralmente prestam às senhoras, e que só em falta desses recebem elas de um criado mais graduado.

Uma das últimas visitas foi à família de Lísia Soares, que se dizia a amiga mais íntima de Aurélia, quando solteira.

Depois dos cumprimentos e felicitações, quando a conversa vacilava à espera de um tema, a Lísia que era maliciosa lembrou-se de soprar uma faísca. Não podia haver para ela maior prazer do que o de picar Aurélia cujo espírito muitas vezes a tinha beliscado.

-Lembra-se, Aurélia, quando você fazia a cotação de seus pretendentes? Disse a maligna alteando a voz para ser bem ouvida.

-Se me lembro! Perfeitamente! respondeu Aurélia sorrindo.

-E o que me disse uma noite a respeito do Alfredo Moreira? Que valia quando muito cem contos de réis; mas que você era muito rica para pagar um marido de maior preço.

-E não disse a verdade?

-Então o Sr. Seixas?... interrompeu Lísia com uma reticência impertinente que estancou-lhe a palavra nos lábios, para borrifar a malícia no sorriso e no olhar.

-Pergunte-lhe! disse Aurélia voltando-se para o marido.

Nunca, depois que se achava sob o jugo dessa mulher, ou antes da fatalidade que o submetia a seus caprichos, nunca Seixas precisou tanto da resignação de que se revestira para não sucumbir à vergonha de semelhante degradação. O primeiro abalo produzido pelo diálogo das duas amigas foi terrível; e não o perceberam, porque a atenção geral convergia para Aurélia nesse instante.

Dominou-se porém; quando os olhares acompanhando o gesto da mulher voltaram-se para ele, encontraram-no calmo, naturalmente grave e cortês, embora ainda lhe restasse uma ligeira palidez em que ninguém reparou.

-Então, Sr. Seixas, é certo? insistiu Lísia.

-O quê, minha senhora? perguntou o moço por sua vez e com a maior polidez.

-O que disse Aurélia.

-Não vês que é um gracejo! observou a mãe de Lísia.

-Ela foi sempre assim, amiga de brincar! disse uma prima.

-Não querem acreditar!... tornou Aurélia com um modo indiferente.

-É sério, Sr. Seixas? perguntou Lísia novamente.

-Responda! disse Aurélia ao marido, sorrindo-se.

-Da parte de minha mulher não sei, e só ela poderá dizer-lhe, D. Lísia. Quanto a mim asseguro-lhe que me casei unicamente pelo dote de cem contos de réis que recebi. Devo crer que minha mulher mudou da idéia em que estava de pagar um marido de maior preço.

A sisudez com que Seixas pronunciou estas palavras, e porventura também certa aspereza do timbre que percebia-se-lhe na fala harmoniosa, como sente-se a aspa de ferro sob o estofo de cetim, deixaram as pessoas presentes perplexas acerca do sentido e crédito que deviam dar a semelhante asseveração.

Nisto ressoaram os trilos cristalinos da risada de Aurélia.

-Eis o que você queria, Lísia, era fazer desconfiar Fernando. Quer saber se eu o comprei, e por que preço? Não faço mistério disso; comprei-o, e muito caro; custou-me mais, muito mais de um milhão; e paguei-o, não em ouro, mas em outra moeda de maior valia. Custou-me o coração; por isso já não o tenho!

Estas palavras e a expressão que palpitava nelas convenceram a todos que Aurélia estivera efetivamente a gracejar acerca de seu casamento. A resposta à Lísia não fora senão um disfarce para provocar aquela confissão inconveniente da paixão com que se estremeciam ela e o marido.

Assim, quando retiraram-se as visitas, o tema da conversa foi o desfrute dos dois noivos, que depois de um mês de casados andavam pela rua requebrando-se como dois pombinhos namorados. Lísia asseverava ter visto Aurélia de tal modo enleada ao braço do marido, que este não podia andar.

Entretanto rodava o carro pelo Catete, e Aurélia balançando-se ao brando movimento das almofadas, parecia ter completamente esquecido Seixas sentado a seu lado, quando este dirigiu-lhe a palavra.

-Desde que estamos casados, uma só vez não inquiri de suas intenções. Respeito-as, como é meu dever, e conformo-me com elas quanto posso, por mais estranhas que me pareçam. Mas para satisfazer suas vontades é preciso pelo menos conhecê-las, embora não as compreenda.

Aurélia voltara o rosto para o marido. Como já não receava ser vista por causa do lusco-fusco, deixou que seu semblante tomasse a expressão de soberba desdenhosa, que o vestia nesses momentos de surda irritação.

-Que pretende com este prólogo?

-A princípio quis-me parecer que desejava ocultar dos estranhos a realidade de nossa posição. Confesso que nunca pude atinar com o motivo dessa singularidade. Criar deliberadamente uma situação, para ter o gosto de a negar a todo instante...

-É absurdo?... Não é?... Também me parece a mim.

-Não perscruto seu pensamento. A senhora devia ter uma razão, que ignoro.

-Como eu.

-Importa-me, porém, saber se mudou de propósito, como indica a cena que acaba de representar, e se resolveu dora em diante fazer escândalo, do que ontem fazia mistério.

-E para que deseja saber isso?

-Já o disse, para conformar-me à sua vontade e afinar-me pela mesma clave. O dueto será mais aplaudido.

-Não duvido; mas eu é que não me casei para fazer de minha vida uma solfa de música. Serei leviana e inconseqüente; terei estes defeitos; mas o que não tenho, pode estar certo, é o talento do cálculo. Deixe-me com o meu gênio excêntrico. Agora, neste momento, sei eu porventura o que farei esta noite? Que extravagância me virá tentar? Como pois havia de formular um programa conjugal para nosso uso? Eu posso fazer de nossa união um mistério ou um escândalo, conforme o capricho. O senhor é que não tem esse direito.

-Tanto como a senhora!

Aurélia contestou com fria impassibilidade:

-Engana-se. O Sr. Seixas não pode desacreditar meu marido e expô-lo à irrisão pública.

-Mas a mulher do infeliz pode; tem esse direito.

-O senhor deu-lho.

-Não; use do termo: Vendi-lho!

Aurélia não respondeu. Derreando o corpo nas almofadas, e voltando o rosto para ver o recorte das árvores e chácaras na tela iluminada do ocaso, deixou cair a conversa.

Ainda fizeram algumas visitas. Eram mais de oito horas quando parou o carro à porta de casa. D. Firmina tinha saído. Aurélia queixou-se de fadiga, cortejou o marido e recolheu-se.

Em seu quarto lembrou-se Seixas de algumas palavras que haviam escapado a Aurélia na conversação da tarde. -Sei eu acaso o que farei esta noite? Que extravagância me virá tentar? dissera a mulher; e ele sabia que valor tinham em seus lábios essas frases enigmáticas.

Desde a noite de luar e os devaneios poéticos sobre Byron que Aurélia mostrava uma irritabilidade contínua. Qual devia ser a resolução inspirada por essa febre de sua alma, já tão propensa aos caprichos e excentricidades?

Esteve Seixas cogitando um momento sobre este ponto a fazer conjeturas. Fatigou-se, porém, da tarefa, e abandonou-a, pensando que não havia piores na posição intolerável em que se achava.

Já não pensava naquilo, quando súbito atravessou-lhe o espírito uma idéia que o fez estremecer.

Um impulso de curiosidade o dominou. Correu à porta que o separava da câmara nupcial e dos aposentos da mulher. Ergueu a mão para bater; começou o nome de Aurélia; mas não se animou a realizar o primeiro intento. Aplicou o ouvido a escutar. Reinava naquela parte da casa o mais profundo silêncio. Que fazer?

Agitado pela idéia terrível que o assaltava, deu a esmo algumas voltas pelo aposento, numa perplexidade cruel. Seu olhar que não deixava a porta, notou um esguicho de luz no fundo do corredor escuro, e conheceu que saía pela greta da fechadura.

Aproximou-se cautelosamente e sem rumor. Pelo recorte da chave, pôde ver na parede fronteira um quadro iluminado que se destacava no crepúsculo da câmara nupcial. Era o espelho colocado sobre a jardineira de mármore, que refletia obliquamente pela porta aberta uma faixa de outro gabinete.

Essa zona abrangia um divã onde nesse instante destacava-se do brocado verde a estátua de Aurélia, deitada como o alto-relevo que outrora ornava as campas dos nobres. Envolvia o corpo da moça um roupão de cambraia, cujas pregas caíam sobre o tapete semelhantes aos borbotões da nívea espuma de uma cascata, e deixavam-lhe o talho debuxado sob a fina teia de linho.

Estava muito pálida e imóvel. Um dos braços descaía desfalecido pela borda do divã; tinha o outro suspenso até à moldura do recorte onde a mão se crispava, talvez no esforço de erguer o corpo. Havia na imobilidade dessa posição e em seu perfil alguma cousa de hirto que assustava.

- VIII -

Sucedem-se no procedimento de Aurélia atos inexplicáveis e tão contraditórios, que derrotam a perspicácia do mais profundo fisiologista.

Convencido de que também o coração tem uma lógica, embora diferente da que rege o espírito, bem desejara o narrador deste episódio perscrutar a razão dos singulares movimentos que se produzem n'alma de Aurélia.

Como porém não foi dotado com a lucidez precisa para o estudo dos fenômenos psicológicos, limita-se a referir o que sabe, deixando à sagacidade de cada um atinar com a verdadeira causa de impulsos tão encontrados.

Remontemos pois o curso dessa nova existência de Aurélia até à noite de seu casamento, quando a exaltação que a animava durante a cena passada com Seixas, abatendo de repente, a deixou prostrada no tapete da câmara nupcial.

Não foi propriamente um desmaio que a tomou, ou este não passou de breve síncope. Mas o resto da noite, ela o passou ali, sem forças nem resolução de erguer-se, em um torpor intenso, que se não lhe apagava de todo os espíritos, os sopitava em uma modorra pesada.

Tinha a consciência de sua dor; sofria acerbamente; porém faltava-lhe naquele instante a lucidez para discriminar a causa de seu desespero e avaliar da situação que ela própria havia criado.

Pela madrugada o sono, embora agitado, trouxe um breve repouso à sua angústia. Dormiu cerca de uma hora, tendo por leito o chão, e com a cabeça apoiada nesse mesmo estrado, que devia servir de degrau à sua felicidade.

A claridade da manhã que filtrava pela cassa das cortinas, despertou-a. Ergueu-se arrebatadamente e ao impulso de uma idéia terrível, que atravessara como um raio de luz a sombra confusa de suas reminiscências.

Correu à porta por onde saíra Seixas, e escutou presa de viva inquietação. Por vezes levou a mão à chave, e retirou-a assustada. Volveu a esmo os passos rápidos pela casa; afinal aproximou-se da janela, sem intenção, automaticamente.

Foi nessa ocasião que viu Seixas atravessar o jardim furtivamente e entrar em casa. Ainda reinava o silêncio por toda essa parte da habitação, de modo que ela pôde ouvir o leve rumor dos passos do marido no próximo aposento.

Um riso de acre desprezo crispou-lhe os lábios.

-É um cobarde!

Depois do que se havia passado entre ambos, na noite de seu casamento, pensava Aurélia, que só havia para Seixas dous meios de quebrar o jugo humilhante a que o tinha submetido. Não lhe restava senão matá-la a ela, ou matar-se a si.

Para uma dessas duas soluções se tinha a moça preparado. É certo que às vezes seu coração afagava uma esperança impossível. Se o homem a quem amava, se ajoelhasse a seus pés e lhe suplicasse o perdão, teria ela forças para resistir e salvar a dignidade de seu amor?

Por este lance não teve ela de passar. Às suas primeiras palavras, Seixas retraíra-se, para ostentar depois uma imprudência, que ela jamais podia esperar, e que produziu em sua alma indizível horror. O laço que a unia àquele homem tornou-se uma abjeção, quase uma infâmia.

Entretanto, ao expeli-lo de sua presença, ainda esperava que as palavras proferidas pelo marido fossem apenas uma ironia amarga. Não concebia que tivesse amado um ente tão depravado e vil. O cinismo que pouco antes a indignara, devia ter uma reação.

Foi quando viu Seixas pela manhã que de todo acabou de convencer-se da miséria do indivíduo. Então operou-se em sua alma uma revolução, na qual soçobraram todos os sentimentos bons e afetuosos, ficando à tona unicamente os instintos agressivos e malignos que formam a lia do coração.

Quando Aurélia deliberara o casamento que veio a realizar, não se inspirou em um cálculo de vingança. Sua idéia, a que afagava e lhe sorria, era patentear a Seixas a imensidade da paixão que ele não soubera compreender, sacrificando sua liberdade e todas as esperanças para unir-se a um homem a quem não amava e nem podia amar, desnudava a seus olhos o ermo sáfaro em que lhe ficara a alma, depois da perda desse amor, que era toda sua existência. Esse casamento póstumo de um amor extinto não era senão esplêndido funeral, em face do qual Seixas devia sentir-se mesquinho e ridículo, como em face da essa o soberbo compenetra-se da miséria humana.

O sentimento que animava Aurélia podia chamar-se orgulho, mas não vingança. Era antes pela exaltação de seu amor que ela ansiava, do que pela humilhação de Seixas, embora essa fosse indispensável ao efeito desejado. Não sentia ódio pelo homem que a iludira; revoltava-se contra a decepção, e queria vencê-la, subjugá-la, obrigando esse coração frio que não lhe retribuía o afeto, a admirá-la no esplendor de sua paixão.

Mas naquele instante, recordando as palavras que Seixas proferira poucas horas antes; vendo-o tranqüilo e disposto a aceitar como natural a terrível situação; pensando no desbrio com que esse homem sujeitava-se a uma degradação de todos os instantes, Aurélia tivera um verdadeiro ímpeto de vingança.

Seixas queria afrontá-la com seu desgarro impudente. Pois bem; ela aceitava o desafio; se esse infeliz não estava completamente desamparado dos últimos resquícios do amor-próprio e da vergonha, ela propunha-se a pungi-lo com o seu mais virulento sarcasmo. A menos que a alma não estivesse morta, sentiria o estigma do ferro em brasa.

Foi nestas disposições que Aurélia vestiu-se para o almoço; e nessas disposições conservava-se ainda na tarde em que saíra com o marido às visitas.

Todavia, quando no dia seguinte ao casamento, sentada na cadeira de balanço, viu entrar Seixas na sala de jantar, sua resolução vacilou. O aspecto nobre e distinto do mancebo, a elegância natural de seu gesto, recobraram o prestígio que esses dotes nunca deixam de exercer em espíritos elevados, e a que o dela estava já afeito.

Não a abandonou o pensamento da vingança; mas o desabrimento e a ira excitados pela indignação da véspera, revestiram a forma cortês e o tom delicado, que raro e só em um instante de violento abalo desamparam as pessoas de fina educação.

Nas alternativas desse desejo de vingança a miúdo contrariado pelos generosos impulsos de sua alma, se escoara o primeiro mês depois do casamento.

Se abandonando-se à irritação íntima que exacerbava-lhe o espírito, deleitava-se em flagelar com o seu implacável sarcasmo a dignidade do marido; quando recolhia-se depois de uma cena destas, era para desafogar o pranto e soluços que intumesciam-lhe o seio. Então reconhecia que a vítima de sua ira não fora o homem a quem detestava, mas seu próprio coração, que havia adorado esse ente, indigno de tão santo afeto.

Se fatigada desse constante orgasmo d'alma, sempre crispada pelo escárnio, restituía-se insensivelmente à sua índole meiga, as relações com o marido tomavam uma expressão afetuosa; de repente a invadia um gelo mortal, e ela estremecia espavorida com a idéia de pertencer a semelhante homem.

Assim chegou Aurélia àquela noite de luar, em que Seixas falava de poesia, e ela escutava reclinada a seu braço no enlevo de que a arrancara dolorosamente uma palavra do marido.

Quando a sós consigo pensou neste incidente, encheu-se de terror. Houve um instante, rápido embora, no qual chegou a lamentar que Seixas não tivesse conseguido enganá-la nessa ocasião adormecendo ou antes cegando-lhe os brios. Quando se dissipasse essa ilusão, seria tarde, e ela pertenceria irrevogavelmente ao marido.

Este sentimento, que apenas pronunciado ela repeliu com todas as forças de sua alma, deixou-lhe contudo um desgosto profundo, acompanhado do pânico de semelhantes alucinações. Daí a irritabilidade que desde então a possuía, e que tocara ao auge nessa tarde das visitas.

Entretanto em seu toucador, Aurélia tinha febre: febre da paixão que a abrasara. Abriu todas as portas e janelas, atirou-se vestida como estava sobre o divã, e ali ficou imóvel, como a vira Seixas pela broca da fechadura.

Assustado com essa imobilidade, o marido ia bater, quando a mucama atravessou por diante do quadro iluminado, o qual apagou-se de repente. Fechara-se a porta do toucador, refletida pelo espelho.

No dia seguinte Aurélia deixou-se ficar em seu aposento toda a manhã. Voltando da repartição, Seixas encontrou-a pálida e abatida.

Ao jantar foi D. Firmina quem fez os gastos da conversação. Na véspera a viúva passara a noite em uma casa da vizinhança, onde havia reunião semanal. Acertou falar-se no Abreu, que diziam ter caído na miséria. Por essa ocasião recordaram-se todas as extravagâncias e prodigalidades, com que o rapaz havia esbanjado em pouco mais de ano, a avultada herança deixada pelo pai.

D. Firmina repetindo o que ouvira lamentava a sorte do Abreu que sacrificara tão bonito futuro. Revestindo-se dessa moral severa, que em geral se cultiva para uso alheio e não para o próprio gasto, acusava o rapaz com excessivo rigor.

-A culpa não é dele, D. Firmina, observou Aurélia voltando de sua distração.

-De quem mais pode ser? perguntou a viúva.

-De quem o fez rico, não o tendo educado para a riqueza. O ouro desprende de si não sei que miasmas que produzem febre, e causam vertigens e delírios. É necessário ter um espírito muito forte, para resistir a essa infecção; ou então possuir algum santo afeto, que o preserve do veneno, sem o que sucumbe-se infalivelmente.

-Quer dizer que a riqueza é um mal, Aurélia?

-Não é um mal; muitas vezes torna-se um bem; mas em todo o caso é um perigo. Aqueles que se exercitam em jogar as armas, pensam que tudo se decide pela força. O mesmo acontece com o dinheiro. Quem o possui em abundância, persuade-se que tudo se compra.

Tinham acabado de jantar. Aurélia ergueu-se da mesa e entretinha-se em dar aos canários as migalhas de pão, que esfarelava na palma da mão.

Entretanto, Seixas acendera o charuto e seguia distraído pela rua que serpeando entre os tabuleiros de margaridas e os tapetes de relva, ia sumir-se em um bosque de palmeiras. O mancebo recordava-se das cenas da véspera, cotejava-as com as palavras que pouco antes haviam escapado a Aurélia, e buscava a explicação do enigma.

Interrompeu-o a voz da moça que achava-se a seu lado.

-Este passeio todas as tardes já deve aborrecê-lo. Por que não sai a cavalo? Deve distrair-se.

Aurélia falava brincando com as flores para evitar que seu olhar encontrasse o de Seixas.

-Sua companhia não me pode aborrecer nunca.

-Sempre, torna-se monótona.

-Demais é o meu dever, tornou Seixas frisando a palavra.

Aurélia afastou-se; deu alguns passos, esteve reparando nas flores escarlates de uma trepadeira a que chamam brincos-de-dama, e tendo-se firmado na resolução que a preocupava, tornou para o marido.

-Nossos destinos estão ligados para sempre. A sorte recusou-me a felicidade que sonhei. Tive este capricho que nenhuma outra o possuiria, enquanto eu viva. Mas não pretendo condená-lo ao suplício desta existência, que vivemos há mais de um mês. Não o retenho; é livre; disponha de seu tempo como lhe aprouver, não tem que dar-me contas.

A moça calou-se esperando uma resposta.

-A senhora deseja ficar só? perguntou Seixas. Ordene, que eu me retiro, agora como em qualquer outra ocasião.

-Não me compreendeu. Há um meio de aliviar-lhe o peso dessa cadeia que nos prende fatalmente e de poupar-lhe as constantes explosões de meu gênio excêntrico. É o divórcio que lhe ofereço.

-O divórcio? exclamou Seixas com vivacidade.

-Pode tratar dele quando quiser, respondeu Aurélia com um tom firme e afastou-se.

- IX -

Seixas surpreso e agitado pela proposição da moça, refletiu um momento.

O resultado dessa reflexão foi aproximar-se da mulher, ocupada nesse momento a ver os peixinhos vermelhos do tanque fervilharem à tona d'água para devorar os bocados de um jambo com que ela os tentava.

-Estes peixes agora a divertem; disse Fernando. Se amanhã a aborrecerem, mandará que os deitem fora, e que os deixem morrer à fome?

A moça ergueu para o marido os olhos cheios de surpresa.

-Talvez nunca lhe acontecesse refletir sobre este problema social, continuou Fernando. O senhor tem o direito de despedir o cativo, quando lhe aprouver?

-Creio que ninguém porá isso em dúvida, respondeu Aurélia.

-Então entende que depois de privar-se um homem de sua liberdade, de o rebaixar ante a própria consciência, de o haver transformado em um instrumento, é lícito, a pretexto de alforria, abandonar essa criatura a quem seqüestraram da sociedade? Eu penso o contrário.

-Mas que relação tem isso?...

-Toda. A senhora fez-me seu marido; não me resta outra missão neste mundo; desde que impôs-me esse destino sacrificou meu futuro, não tem o direito de negar-me o que paguei tão caro, pois o paguei a preço de minha liberdade.

-Essa liberdade, eu a restituo.

-E pode restituir-me com ela o que perdi alienando-a?

-Receia talvez o escândalo que produzirá o divórcio. Não há necessidade de publicarmos nossa resolução; podemos viver inteiramente estranhos um ao outro na mesma cidade, e até na mesma casa. Se for preciso, temos o pretexto das viagens por moléstia, da mudança de clima, do passeio à Europa.

-A senhora fará o que for de sua vontade. A minha obrigação é obedecer-lhe, como seu servo, contanto que não lhe falte com o marido que a senhora comprou.

Aurélia fitou no semblante de Seixas um olhar soberano:

-Acredita que eu possa mudar de sentimentos para com o senhor?

-Não tenha esse receio. Se eu não estivesse convencido que o amor entre nós é impossível, não estaria aqui neste momento.

Estranho sorriso iluminou a fronte de Aurélia, que vibrou com um gesto de sublime altivez.

-Qual é então o motivo por que não aceita o que lhe ofereço?

-O que a senhora me oferece custou-lhe cem contos de réis, e receber esmolas desse valor é roubar ao pródigo que as deita fora.

-Como quiser! disse Aurélia desdenhosamente. O senhor pensa decerto que sua presença me incomoda, e por isso lhe sorri a idéia de impô-la como uma contrariedade. Engana-se; pode ficar; não era por mim, mas por si mesmo que oferecia-lhe a separação. Rejeita-a? Melhor; não poderá queixar-se pelo que venha a acontecer.

Apesar da recusa de Seixas, suas relações com Aurélia tornaram-se desde aquela tarde mais esquivas. A moça já não caprichava como nas primeiras semanas em passar a maior parte do tempo na companhia do marido. Este de seu lado, receando tornar-se importuno, conservava-se arredio enquanto a mulher não manifestava o desejo de tê-lo perto de si.

Dias houve em que não se viram. Seixas saía muito cedo para a repartição; Aurélia ia jantar com alguma amiga; só no outro dia às 4 horas da tarde se encontravam de novo.

Essas tardes em que Fernando ficava sozinho em casa, pois D. Firmina acompanhava Aurélia, ele as aproveitava para ir ver a mãe, que ainda habitava na mesma casa da Rua do Hospício.

Excitava reparo entre os conhecidos de D. Camila, que o filho a deixasse na vida obscura e necessitada, em vez de chamá-la para sua companhia, ou pelo menos de ajudá-la a passar com outra decência e abastança.

D. Camila não se queixava; mas apesar de seus extremos por aquele filho, e da abnegação de sua ternura, tinha estranhado consigo, que Fernando depois de casado, não pensasse em dar às irmãs uma lembrança qualquer.

Mui raras vezes aparecia Fernando em casa da mãe, e de passagem. Nisso não reparava D. Camila; embora lamentasse que a posição do filho e seus deveres sociais não lhe permitissem possuí-lo por mais tempo.

Mariquinhas a princípio excitava a mãe para irem à casa de Seixas nas Laranjeiras e até para lá passarem um dia. A mãe desabituada à sociedade receava-se da crítica de Aurélia. Todavia essa razão não a demoveria se Fernando insistisse; porém ele ao contrário fez-se desentendido e desconversou aos primeiros rodeios da irmã.

Não passou desapercebida a Aurélia essa esquivança da família do marido. Uma tarde em que Seixas recebeu à sua vista um bilhete de Nicota, ela o interpelou:

-Sua família depois da noite de nosso casamento nunca mais voltou a esta casa? Será por meu respeito?

-Não; o culpado sou eu que nunca lhes falei nisso.

-E por quê?

-Julgam-me feliz. Não quero roubar-lhes essa doce ilusão.

-Aqueles que nos visitam e que freqüentamos não andam iludidos?

-São indiferentes. Olhos de mãe lêem n'alma do filho como em livro aberto; aquilo o que não vêem, adivinham.

-Quer fazer uma aposta?

-Sobre?

-Sou capaz de enganá-la como tenho enganado a todos.

-É possível; ela não é sua mãe.

O bilhete de Nicota comunicava a Fernando o dia que fora marcado para seu casamento, o qual celebrou-se na seguinte semana, em um sábado conforme o uso geral.

Seixas ocultou da mulher essa particularidade. Na tarde em que devia ter lugar o casamento, saiu de casa a pretexto de fazer uma visita a um ministro, e assistiu à cerimônia. Levara à irmã uma jóia; mas de valor insignificante para sua riqueza.

Essa mesquinheza junta à circunstância de apresentar-se a pé, fizeram suspeitar às pessoas presentes que a imprevista opulência abalara o caráter de Seixas a ponto de transformá-lo de perdulário que era, em refinado avarento.

Outro casamento efetuou-se por esse tempo! Foi o do Dr. Torquato Ribeiro com Adelaide Amaral.

Dias antes, o noivo recebeu por intermédio de Lemos um recado de Aurélia, que pedia-lhe o seu recibo de cinqüenta mil-réis, pois chegara a ocasião de pagá-lo. Foi Ribeiro às Laranjeiras, cogitando na surpresa que a moça lhe preparava.

-Aqui tem o que lhe devo; as três cifras são o presente de Adelaide.

Ribeiro abriu o papel; era uma letra ao portador de cinqüenta contos passada pelo Banco do Brasil. Ele fez um gesto de recusa; a moça atalhou-o.

-Não tem o direito de rejeitar. Foi o preço da minha felicidade. Meu tio garantiu ao Amaral que o senhor possuía este dinheiro, sem o que ele não consentiria em desfazer o casamento da filha com Fernando, e este não seria meu marido.

-Como lhe havemos de pagar nunca tamanho benefício? disse o moço comovido.

-Sendo feliz, respondeu Aurélia.

-Basta-me ser tanto como a senhora.

-Como eu?

-Sim; não é tão feliz?

-Muito; como não pode imaginar!

Aurélia serviu de madrinha a Adelaide, e Seixas foi obrigado a assistir a esse casamento, que desdobrava-lhe por assim dizer diante dos olhos um passado a que ele em vão tentava subtrair-se. Ali estavam juntas, diante do altar, duas mulheres a quem ele traíra sucessivamente, e não arrebatado da paixão, mas seduzido pelo interesse.

Quando absorto em suas cogitações, abandonava-se à melancolia daquelas reminiscências, Aurélia que se aproximara, murmurou-lhe ao ouvido:

-Mostre-se alegre. Quero que todos, mas principalmente esta mulher, acreditem que sou feliz e muito. O senhor deve-me ao menos esta ridícula satisfação em troca do que roubou-me.

Tomando o braço de Seixas, e reclinando-se com esse voluptuoso orgulho da mulher que se rende a um imenso amor, dirigiu-se à porta da igreja onde a esperava o seu carro.

Nesse momento, como durante a noite em casa do Amaral, não houve quem não invejasse a felicidade do par formoso que Deus havia acumulado de todos os dons, de formosura, de graça, de mocidade, de amor, de saúde e de riqueza.

Tinham tudo isto, e não passavam de dois infelizes! Essa festa alegre e aparatosa, ninguém imaginava que suplício era para essas duas almas, que estavam queimando-se nas luzes da sala e dilacerando-se nos sorrisos que desfolhavam dos lábios.

No dia seguinte, domingo, Aurélia deixou-se ficar em seu aposento, e até quarta-feira não viu o marido.

Nem D. Firmina, nem os fâmulos, desconfiaram do fato, embora suspeitassem de algum estremecimento entre os noivos.

Como nessas ocasiões, o marido e a mulher encerravam-se cada um de seu lado; as pessoas da casa, ignorantes do interdito a que fora condenada a câmara nupcial, presumiam que eles se correspondessem por essa comunicação interior.

Estas esquivanças de Aurélia repetiram-se muitas vezes daí em diante: Seixas percebeu que ela o evitava, e desconfiou que sua presença começasse a importuná-la. Não se enganava. Desde que a moça não achava mais em si a irritação e o sarcasmo, em que a princípio se deleitava seu coração, a aproximação do marido a oprimia.

Seixas não a contrariava. Conservando-se em casa ao alcance da voz e ao aceno da mulher, poupava-lhe o desgosto de o ver.

Entrava isso na resolução que havia tomado, mas não era sem grande esforço e luta acérrima, que obtinha de si permanecer ao lado dessa mulher para a qual se havia tornado, ele o sentia, verdadeiro flagelo.

Uma razão poderosa o retinha, devemos supor, e tão forte que subjugava a todo o instante a revolta de seus brios, magoados pela aversão cheia de desdém da qual era alvo.

Desse tempo data a agitação em que laborou ele à busca de um recurso para subtraí-lo à terrível colisão. Todas as idéias que lhe sugeria seu espírito alvoroçado, ele as aceitava com sofreguidão, para logo as rejeitar com desânimo.

Afinal decidiu-se. Antes de ir à repartição procurou Lemos, com quem só de passagem se encontrara depois do casamento. O velho recebeu-o com o seu modo folgazão:

-Que honraria, meu amigo! Esta pobre casa não o merecia!

-Tinha necessidade de falar-lhe! respondeu Seixas.

O velhinho piscou os olhos. Ele adivinhava que o moço não o tinha procurado àquela hora, para fazer-lhe uma visita de cortesia.

-Desejava consultá-lo, continuou Seixas hesitando. Consta-me que as apólices vão baixar consideravelmente, e que seria um bom negócio vendê-las neste momento para comprá-las mais tarde, talvez daqui a dous meses.

-Não é mau; porém há outro melhor neste momento, disse Lemos.

-Qual?

-Vender libras esterlinas.

-Não as possuo.

-Isso não impede.

-Não entendo.

-Venda a entregar no fim do mês, pelo preço de 12$. Nesse tempo elas baixam a 10$ com certeza, e o senhor ganha em quinze dias sem despender um real, uns contos de réis que não fazem mal a ninguém.

-Agora compreendo. Dez mil libras deixariam...

-Vinte contos.

-E se ao contrário subirem?

-Perde a diferença.

-Aí está o risco.

-Só há um meio de ganhar sem risco; é o de não pagar.

Seixas despediu-se, apesar das instâncias de Lemos, que desejava levá-lo à Praça do Comércio.

Nesse mesmo dia encontrou Abreu que depois de ter esbanjado a herança, dera em jogador, e vivia segundo era fama, da banca. Pela conversa que tiveram os dous ficou o marido de Aurélia sabendo a rua e número de uma casa onde todas as noites havia reunião plena dos amantes da roleta.

Nessa noite Seixas saiu furtivamente de casa, e chamando um tílburi dirigiu-se para a cidade. Quando porém transpunha o limiar da porta, por onde se penetrava na Cova do Caco, tomou tal horror, que deitou a fugir pela rua, e não parou senão em casa.

- X -

No pavimento térreo, ao lado esquerdo, havia na casa das Laranjeiras uma varanda de estilo campestre, decorada com palmeiras vivas e corbelhas de parasitas.

Servia de sala de bilhar, e aí costumava Aurélia e o marido passarem a tarde, quando o tempo não convidava ao passeio no jardim.

Aí foi Seixas encontrar dous grandes quadros, colocados nos respectivos cavaletes. Na tela viam-se os esboços de dous retratos, o de Aurélia, e o seu, que um pintor notável, êmulo de Vítor Meireles e Pedro Américo, havia delineado à vista de alguma fotografia, para retocá-lo em face dos modelos.

Ao olhar interrogador do marido, Aurélia respondeu:

-É um ornato indispensável à sala.

-Julga que seja indispensável? Parecia-me ao contrário inconveniente reproduzir ainda que seja por esse modo, uma presença que tanto lhe deve importunar.

-Não se tira retrato d'alma. Felizmente!... observou Aurélia com o misterioso sorriso que desde certo tempo acompanhava essas palavras de sentido recôndito.

Seixas prestou-se passivamente ao papel de modelo. As sessões à tarde tinham ficado reservadas para ele a fim de não estorvar-lhe o trabalho da repartição.

Aurélia retirou-se, deixando-o em plena liberdade.

No dia seguinte, pela manhã, quando o pintor voltou para trabalhar em seu retrato, a moça antes de tomar posição fez-lhe suas observações acerca da expressão fria e seca da fisionomia de Seixas.

-Pintei o que vi. Se deseja um retrato de fantasia, é outra cousa, respondeu o artista.

-Tem razão; meu marido não anda bom. É melhor interromper seu trabalho por alguns dias; eu lhe mandarei aviso quando for ocasião.

Essa tarde Seixas achou Aurélia inteiramente outra da que era nos últimos tempos. Sua expressão meiga, e sobretudo a candura e singeleza de seu modo, restauraram em sua memória a imagem da formosa menina de Santa Teresa, a quem amara outrora.

Deixou-se aliciar por essa ilusão, embora estivesse bem convencido de que a veria dissipar-se de repente, e dolorosamente como as outras. Mas sua alma tinha necessidade de repouso e ainda mais do conforto de uma crença consoladora; abandonou-se àquela doce quimera e quis persuadir-se de que revivia um idílio de seu passado.

Aurélia trouxe a conversa para os assuntos que mais podiam seduzir um espírito poético e elegante como o de Seixas.

Falou de música, de versos, de flores e de artes. Quando a ironia não lhe acerava a palavra, ela tinha uma exuberância de afeto e ternura que manava de seus lábios e derramava em torno de si uma atmosfera de amor.

À noite tocou piano e cantou os trechos prediletos do marido.

Não era ela decerto, apesar dos elogios de D. Firmina, uma mestra, nem mesmo uma discípula exímia e correta. Mas poucas teriam seu gênio artístico; ela tocava por inspiração, e o canto eram as emoções de sua alma que ressoavam espontaneamente como os harpejos da brisa no seio da floresta.

Os dias seguintes correram na mesma doce intimidade. À tarde no jardim, ou admiravam juntos as flores, ou liam no mesmo livro algum romance menos interessante do que o seu próprio.

Seixas incumbia-se da leitura, e Aurélia escutava sentada a seu lado. Às vezes, ou porque se distraísse um momento, ou por sofreguidão de antecipar a narração, reclinava-se para correr os olhos pela página, onde ia brincar um anel de seus cabelos castanhos.

Foi no meio de uma dessas cenas que o pintor apareceu de novo. Seixas deu sinal de contrariedade, que a gentileza de Aurélia conseguiu desvanecer. Conservou durante a sessão a mesma expressão afável e graciosa, que pouco antes iluminava seu nobre semblante, e que fora a sua fisionomia de outrora, quando a subversão da existência ainda não o tinha revestido de gravidade melancólica.

Na manhã seguinte, Aurélia examinando o trabalho do pintor, viu palpitante de emoção a sorrir-lhe o homem que ela havia amado. Ele aí estava em face dela, destacando-se da tela, onde o pincel do artista o havia fixado com admirável felicidade. Era um desses retratos em que o modelo, em vez de impor-se, inspira o artista; e que deixam de ser cópias e tornam-se criações.

Ainda Aurélia estava enlevada em sua contemplação, quando chegou o artista, que recebeu seus elogios acompanhados de sinceros agradecimentos. O pintor supunha ter feito apenas uma obra de arte. Como podia ele suspeitar o segredo dessa mulher, viúva daquele marido vivo?

-O senhor há de tirar uma cópia desse retrato, para ficar na sala com o meu. Quanto a este, desejo que tenha o trajo com que me lembro de ter visto meu marido, quando o conheci. É uma surpresa que pretendo fazer-lhe. Compreende?

-Perfeitamente.

-Peço-lhe, porém, que não toque no rosto.

-Fique descansada.

Aurélia explicou ao pintor o trajo que devia figurar no retrato do marido e tomou posição para concluir o seu.

Ao voltar da repartição, notou Seixas que sua mulher não conservava a mesma disposição de ânimo em que a deixara na véspera. Não tornou à primitiva irritação, mas foi a pouco e pouco retraindo-se, e acabou por isolar-se de todo.

Passava os dias encerrada em seu toucador. Quando aparecia, era sempre distraída e tinha o aspecto dessas pessoas que se habituam a viver no mundo da fantasia, e que sentindo-se como aturdidas quando descem à realidade, refugiam-se em suas quimeras.

A casa das Laranjeiras tornara-se uma verdadeira solidão, habitada por dois cenobitas, que não se viam, nem tratavam, a não ser na hora de jantar.

Ao levantarem-se da mesa, Aurélia escondia-se no fundo de algum espesso caramanchão, de onde seguia de longe com os olhos o vulto do marido, que passeava pelo jardim.

À noite cada um tomava seu livro; Seixas lia; Aurélia aproveitava esses instantes de liberdade para tornar aos seus pensamentos, e aos suaves devaneios que abandonava ao sair do toucador.

D. Firmina a princípio estranhara os modos de Aurélia; mas era uma senhora de muito juízo, e bastante prática da vida. Atinou logo com a causa dessa alteração, e aproveitou a primeira oportunidade para dar mostra da sua perspicácia.

-Não acha Aurélia tão diferente do que era, Sr. Seixas?

Fernando surpreendido pela pergunta volveu os olhos para a mulher, cujo pálido semblante iluminado nesse momento por um reflexo do Sol no ocaso, tinha a diáfana aparência da cera.

-Algum incômodo passageiro. Precisa sair da cidade, passar algum tempo fora, na Tijuca ou em Petrópolis.

-Não tenho moléstia, respondeu Aurélia com indiferença.

-Moléstia não tem, Aurélia; mas é cousa que se parece, tornou a viúva. E os passeios no campo são excelentes para essas melancolias e desmaios que você anda sofrendo.

-Engana-se, não sofro cousa alguma.

-Ora, não disfarce! Quem não vê que aí anda volta de...

-De quê? insistiu Aurélia completamente alheia à intenção da viúva.

-De um neném!

Soltou a moça uma gargalhada; mas tão descompassada e ríspida que D. Firmina mais confirmou-se em sua convicção. Fernando erguera-se a pretexto de regar os tabuleiros de violetas de Parma, que rodeavam os pedestais das estátuas de bronze.

Decorreram meses. De repente, sem causa conhecida, com o constraste e o improviso que tinham as resoluções dessa mulher singular, operou-se uma revolução na casa das Laranjeiras, e na existência de seus moradores. Saiu Aurélia do isolamento a que se condenara durante tanto tempo, mas para lançar-se no outro extremo. Mostrava pelos divertimentos uma sofreguidão que nunca tivera, nem mesmo em solteira. Entrou a freqüentar de novo a sociedade, mas com furor e sem repouso.

Os teatros e os bailes não lhe bastavam; as noites em que não tinha convite, ou não havia espetáculo, improvisava uma partida que em animação e alegria, não invejava as mais lindas funções da Corte. Tinha a arte de reunir em sua casa as formosuras fluminenses. Gostava de rodear-se dessa corte de belezas.

Os dias destinava-os para as visitas da Rua do Ouvidor, e os piqueniques no Jardim ou Tijuca. Lembrou-se de fazer da praia de Botafogo um passeio, à semelhança dos Bois de Boulogne em Paris, do Prater em Viena, e do Hyde Park em Londres. Durante alguns dias ela e algumas amigas percorriam de carro aberto, por volta de quatro horas, a extensa curva da pitoresca enseada, espairecendo a vista pelo panorama encantador, e respirando a fresca viração do mar.

Os passantes olhavam-nas surpresos, e com um aspecto que traduzia a malignidade de suas conjeturas. Aurélia não fazia o mínimo caso dessas caras mexeriqueiras; mas as amigas incomodaram-se; e ela foi obrigada a abandonar o lindo passeio às aves de arribação.

Esta ânsia de festa e distrações sucedendo a uma inexplicável apatia e recolhimento, faria desconfiar que Aurélia buscava na sociedade, não o prazer, mas talvez o esquecimento. Porventura tentava aturdir o espírito, e arrancá-lo por este modo às cismas e enlevos em que se engolfara por tantos dias?

-Deve estranhar esta febre de divertimentos? disse ela ao marido. É uma febre, é; mas não tem perigo. Quero que o mundo me julgue feliz. O orgulho de ser invejada, talvez me console da humilhação de nunca ter sido amada. Ao menos gozarei de um aparato de ventura. No fim de contas, o que é tudo neste mundo senão uma ilusão, para não dizer uma mentira? Assim desculpe se incomodo, tirando-o de seus hábitos para acompanhar-me. Há de reconhecer que mereço esta compensação.

-É minha obrigação acompanhá-la, e me achará sempre disposto a cumpri-la. Moça, formosa e rica, deve gozar da vida que lhe sorri. O mundo tem esta virtude; o que não absorve, gasta. Daqui a algum tempo a senhora verá a existência por um prisma bem diverso, e do passado não lhe ficará senão a lembrança de um pesadelo de criança.

-É o que eu procuro justamente. Que não dera eu para apagar estas crenças, ou antes essas incômodas ilusões de minha infância, com que educou-se minha alma, e conformar-me à realidade da vida. Oh! se eu o conseguisse!...

A reticência desfez-se nos lábios da moça em um sorriso sardônico.

-Então nos havíamos de entender!