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Suarez em Coimbra

António de Vasconcelos





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(Ao Illmo. e Excmo. Dr. D. Antonio Sánchez Moguel)

Entre os personagens que constituem verdadeiros titulos de gloria commum para a Hespanha e Portugal, occupa um logar proeminente o grande theologo granatense Francisco Suarez.

Accedendo gostosamente ao amavel convite do illustradissimo professor madrilenho, meu mui presado amigo e collega, a quem dedico estas linhas, vou fazer a largos traços um esboço biographico do Suarez, emquanto professor da Universidade de Coimbra. As noticias que dou são baseadas, na maxima parte, em documentos ineditos, existentes no archivo desta Universidade, que para isso explorei com minucioso escrupulo e cuidado.

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Estava prestes a findar o seculo XVI. A faculdade de theologia da Universidade de Coimbra havia decaido muito do grau do esplendor a que subira no segundo quartel desto seculo. Já desde algum tempo se não fazia ouvir nas cathedras a voz auctorizadissima dos professores eximios que se chamáram Alfonso do Prado, Francisco de Monson, Marcos Romeiro, o Payo Rodrigues de Villarinho. A cadeira de prima, a mais importante de todas, achava-se vaga, e a Universidade não encontrava quem tivesse o prestigio necessario para a reger condignamente.

Recorre-se a El-Rei. Em carta a Universidade pede a D. Philippe II que mande procurar por todos os seus reinos um theologo abalisado, que venha continuar na regencia desta cadeira as tradições nobilissimas da faculdade de theologia em tempos bem recentes.

Achava-se então ensinando em Salamanca a sciencia sagrada, com admiração de todos os que o escutavan, um padre jesuita de   —34→   nome Francisco Suarez, que já havia exercido o magisterio con unanime applauso em varias cidades de Hespanha e Italia. Foi este o preferido.

Nomeado lente de prima da faculdade de theologia da Universidade conimbricense por provisão regia de 24 de fevereiro de 1597, Suarez não vem logo tomar posse da sua cadeira. Algumas difficuldades teve D. Philipe de vencer para que a sua nomeação se tornasse effectiva. Sòmente em abril seguinte é que tudo se encontrou aplanado, e Suarez parte de Salamanca para Coimbra, munido de uma carta regia de representação á Universidade, datada de Madrid aos 11 deste mês.

A 8 de maio apresentou-se ao Conselho universitario, sendo recebido com demonstrações de particular consideração, em virtude da fama que o precedia. Nesta occasião prestou juramento e tomou posso da respectiva cadeira, começando logo a preleccionar sobre o sacramento da penitencia.

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Dezenove annos fez Suarez parte do professorado universitario de Coimbra, e foi este o periodo de sua vida em que mais actividade literaria desenvolveu o nosso grande mestre.

Quando veiu de Salamanca apenas tinha publicado, que me conste, os dois primeiros tomos dos seus commentarios in tertiam partem Divi Thomae, e deixou no prélo os dois volumes das Questões metaphysicas, que viram a luz naquella cidade ainda neste anno de 1597. No primeiro anno em que regeu a cadeira conimbricense nada publicou, mas no inmediato de 1599 den a estampa a miscelanea preciosissima Varia opuscula theologica; d'ahi em diante não passou nenhum anno, a não serem os de 1602 e 1611, em que não apparecessem a luz da publicidade alguns dos numerosissimos trabalhos theologicos, philosophicos e canonicos, que formam a opulenta e admiravel bibliotheca soaresiana, ou em que pelo menos se não fizessem edições novas de livros já publicados.

Analyzando essas diversas edições nota-se que o mestre eximio presava muito o titulo de professor primario de theologia na celebre Academia conimbricense, que mandava estampar no frontespicio   —35→   dos seus livros. A Universidade pela sua parte auxiliava pecuniariamente, quanto podia, a impressão destas obras.

Durante a estada de Suarez en Coimbra estreitáram-se mais as relações literarias e scientificas entre Portugal e Hespanha, chegando a estabelecer-se en 1603 um correio especial, que fazia periodicamente a viagem de Salamanca para conduzir a correspondencia dos lentes, e os livros que estes requisitavam.

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As luctas apaixonadas que desde 1555 se haviam travado entre Universidade e os padres de companhia de Jesus não estavam completamente extinctas. A companhia triumphára, e a Universidade, apesar de todos os seus protestos, vira-se forçada a curvar-se. Mas ainda restavam germens do antigo espirito de independencia.

Os lentes pouco afeiçoados aos jesuitas não podiam ver com bons olhos que a cadeira principal da primeira das faculdades estivesse confiada a um padre da companhia, quaesquer que fossem os seus merecimentos. Buscam pois um pretexto para afastarem Suarez de magisterio academico. A'frente desta companha colloca-se o lente de vespera de theologia, fr. Egydio d'Apresentação, homem eruditó, eremita de santo Agostinho, que por muitas vezes exercen as funcções de reitor da Universidade.

A padre Suarez não tinha graus academicos. A carta regia de apresentação a Universidade dispensara-o expressamente da irregularidade; mas apesar disso é con este pretexto que surge a questão. Allega-se a incompetencia del rei para mandar que ensinasse theologia numa Universidade um presbytero que não tinha os graus canonicos requeridos para tal mister.

Achava-se então era Coimbra o padre provincial dos jesuitas, aquem assistia a faculdade apostolica de conferir aos seus subordinados, que o merecessem, o titulo e honras de doutor. Para terminar a questão é Suarez graduado por este professo.

Nem assim conjurara a tempestade, que tende a augmentar. Agora affirma-se que o grau, conferido por esta forma, poderia sim valer para as Universidades pontificias, mas nunca para as regias, qual a conimbricense.

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Suarez estava resolvido a não entrar en polemica com os seus collegas, mas tamben não era homem que abandonasse cobardemente o seu posto. Tendo preleccionado na sua cadeira sete dias apenas, parte em companhia do provincial para Evora; onde a esse tempo florescia uma Universidade. Depois de evidenciar a sua y grande sciencia em actos publicos perante aquelle instituto universitario, recebe alli o grau de doutor a 4 de junho do referido anno de 1597. A carta doutoral, de que veíu munido quanddo regressou a Coimbra, era datada de 5 do mesmo mês.

Apresentou-se novamerte a Universidade conimbricense no principio do anno lectivo immediato, e continnou a reger a sua cadeira no meio do assombro de todos os que o escutavam.

E posterior a esta data a assignatura de Suarez que se reproduz aquí em facsimile

Firma

iniciada pela letra D, abreviatura de Doutor. Até esta epocha assignaba apenas o seu nome Francisco Suarez.

Desde então nenhum attrito lhe levantáram os collegas; todos os que tinham visto mal a nomeação do theologo granatense viéram a tornar-se seus grandes admiradores e amigos.

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Tambem no seio da sua propria companhia Suarez alguns desgostos soffreu em quanto esteve em Coimbra.

Quando D. Philippe contractou com os superiores jesuitas a vinda do padre Suarez para a Universidade, todes intendéram que elle receberia os vencimentos correspondentes ao cargo de lente de prima. Ainda não tinha facto senão sete prelecções, e já o reitor do collegio das artes, que era entre os jesuitas de Coimbra o superior hierarchico do mestre theologo, requisitava da   —37→   mesa da fazedda da Universidade, a 12 de agosto de 1597, a quantia de 200.000 reis á conta do salario que o padre Suarez havía de vencer, allegando a necessidade que tinha de lhe comprar desde já livros, para elle bem reger a sua cadeira. Depois encontramos o doutor Suarez a receber regularmente, até no anno de 1600, por si ou por procurador o seu ordenado, exactamente como todos os outres lentes.

Mas em junho deste ultimo anno é elle prohibido pelos seus prelados de receber salarios, por isto ser contrario ás constituições da companhia.

Que facto determinaria tal medida?

Provavelmente o grande mestre, em vez de entregar o dinheiro recebido nos superiores, gastava-o em livros e impressões: d'ahi o zelo um pouco tardío dos mesmos superiores em fazerem cumplir a legislacão da sua sociedade.

O doutor Francisco Suarez declarou o occorrido á mesa da fazenda da Universidade, e esta encarregou o doutor Sobastião de Sousa de receber todos os vencimentos do lente de prima de theologia, para depois lhe ir entregando particularmente, pouco e pouco, as quantias de que ello precisasse.

De um outro disfarce lançou mão a mesa da fazenda em 1603 para remunerar os inapreciaveis serviços de tão eximio professer, sem que este fosse incommodado pelos seus prelados. Revolveu a 22 de março pagar salario annual a dois escreventes, que Suarez tinha a seu serviço; esta deliberação cumpriu-se pontualmente dahi em diante.

Ainda se recorren por varias vezes a um terceiro expediente; entregarem-se-lhe quantias não pequenas a fim de elle comprar livros para a Universidade, segundo sua escolha o conforme bem lhe parecesse, ficando com tudo usufructuario dos mesmos livros.

Para as suas impressões abonava-se-lhe dinheiro, que mais tarde seria satisfeito, quando pudesse apurá-lo na venda das obras.

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Suarez foi aqui semple muito considerado pelas pessoas importantes de todas as categorias, que nelle reverenciavam o mestre   —38→   eximio e sobre todos auctorizado, e o sacerdote exemplarissimo, revestido de todas as virtudes christãs.

Se o deminuto espaço de que poso dispôr mo permitisse, apontaria alguns factos testemunhados por contemporaneos, e outros referidos pela lenda, que revelara alguns traços bem caracteristicos do seu feitio moral. Suarez não era apenas um sabio; era tambem um sancto.

Bem eloquente é o elogio que, depois da sua morte, lhe escreveram no collegio das artes de Coimbra por debaixo do seu retrato. Aqui o reproduzo:

Franciscus Suarez, Europae, atque adeo orbis universi Magister appellatus; Aristoteles in naturalibus scientiis, Thomas Angelicus in divinis, Hieronymus in scriptione, Ambrosius in cathedra, Augustinus in polemica, Athanasius in fidei explicatione, Bernardus in melliflua pietate, Gregorius in tractatione bibliorum ac verbo, oculus populi christiani; sed suo solius judicio: NIHIL.



Os pontifices romanos encommendavam-le trabalhos de polémica e doutrina, quando se viam em embaraços; os reis escreviam-lhe cartas honrosissimas e consultavam-no sobre varios assumptos de ponderacão; o bispo de Coimbra D. Affonso de Castello Branco, visorei e governador de Portugal, era fanatico por Suarez, cuja modestia varias vezes se revoltou contra os elogios que o benemerito prelado em toda a parte lhe dispensava; o reitor da Universidade D. João Coutinho dedicava-lhe veneração extrema; o proprio fr. Egydio d'Apresentação, que o hostilizára apaixonadamente, consagrou-le, desde que meihor o conheceu, tal admiração e respeito, que publicamente o equiparava, em sciencia e virtudes, aos santos doutores da Igreja.

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Não posso deixar de mencionar ainda um serviço prestado ás duas nações e a toda a Igreja catholica pelo doutor Suarez, quando lente da Universidade de Coimbra.

Foi elle um dos que promovêram nesta cidade, era 1612, o andamento do processo para a canonização da Rainha Santa Isabel, como procurador, que era, del rei D. Philippe III. Na procuração,   —39→   datada de 12 de dezembro de 1611, el rei havia o encarregado e a mais dois lentes seus collegas, de requererem e allegarem por parte delle o da santa Rainha tudo o que conviesse.

Effectivamente Suarez acompanhou todo o processo, requereu, allegou, trabalhou incansavelmente, e teve a dita de assistir, a 26 de março de 1612, á abertura do tumulo que encerrava o santo corpo, que agora era visto pela primeira vez depois que fôra amortalhado tres seculos antes.

*  *  *

Emquanto cathedratico conimbricense, Suarez viu-se envolvido em algumas polemicas vivissimas e muito graves, nas quaes pôs bem era evidencia a firmesa de suas opiniões e a coragem de seu caracter.

Andava accesa a lucia entre thomistas e molinistas sobre a harmonia da graça efficaz com o livre arbitrio. Suarez não podia deixar de emittir opinião sobre o assumpto. Asua sentença foi muito extranhada, e chegou a haver quem a alcunhasse de menos orthodoxa. O grande mestre escreveu uma carta valiosissima a este respeito ao papa Clemente VIII, que criou uma congregação especial (De auxiliis) para examinar a questão. O exame só terminou no pontificado de Paulo V.

Em tempo deste pontifico a republica veneziana, obedecendo ás suggestões do monge Paulo Sarpi, decretára medidas vexatorias e usurpadoras contra a Igreja. Paulo V feriu de anathema aquella republica (17 de abril de 1606). Seguiram-se complicações seriissimas, publicando-se por parte de Veneza doutrinas subversivas contra o poder da Igreja, e até contra o dogma. Os cardiaes Baronio e Bellarmino replicara com energia, e o nosso Suarez intervem com todo o peso de sua incontestavel auctoridade theologica, escrevendo o opusculo De immunitate, que foi elogiado com agradecimento pelo papa era carta especial, dirigida ao professor conimbricense.

O rei de Inglaterra Tiago I obrigava sob penas mui graves os seus subditos e os estrangeiros, que transitavam pelo paiz, a prestar o celebro juramento de fidelidade, cuja fórmula era attentatoria   —40→   da auctoridade da santa só. O cardial Bellarmino attaca essa formula de juramento, e surge questão violenta, em que tomam parte muitos dos homens importantes da epocha. Quando mais viva se achava a contenda, o papa Paulo V escreve a Suarez pedindo-lhe que redija um trabalho defendendo a causa da Igreja. O theologo sapientissimo escreve a Defensio fidei, que o papa lhe agradece em carta laudatoria, datada de 9 de setembro de 1613. E de tal sorte argumenLava Suarez neste trabalho, que ó rei Tiago e seus adeptos uão se atrevêram a refutá-lo, como haviam feito aos escriptos que por parte dos catliolicos tinham apparecido até então. O monarcha inglêz limitou-se a mandá-lo queimar por mão do algoz a porta da igreja de S. Paulo de Londres, e a prohibir aos seus subditos, sob penas mui pesadas, a leitura de tal livro. Escreveu tamben a D. Philippe queixando-se de este haver permittido a impressão d'aquelle opusculo em seus estados, ao que o monarcha hespanhol respondeu fazendo a apologia do livro e do auctor.

Em Lisboa levantou-se grande conflicto entre o colleitor apostolico e o senado da cidade, por uma questão de immunidade do clero, que os vereadores não queriam respeitar. Foi fulminado interdicto sobre a cidade. Suarez escreveu então um trabalho doutrinal, em que demonstrou a isenção a que tinha direito o clero, o que lhe valeu uma ultima carta pontificia, com data de 25 de agosto de 1617, na qual Paulo V em poucas palavras lhe tece os mais rasgados elogios.

Que o Senhor dé a teus trabalhos a recompensa merecida, são as ultimas palavras desta carta. A deprecação final do papa ao que parece, equivaleu a um aprazamento. Decorrido um mês exacto, contado dia a dia, Suarez apresentava-se per ante o tribunal divino a receber o premio de suas hoas obras e virtudes.

*  *  *

Era muito precaria a saude de Francisco Suarez.

Quando el-rei o mandou para Coimbra reger a cadeira da prima, ordenou á Universidade que mudasse a hora da aula para quando mais conviesso á saude do novo lente.

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Em 1611 achava-se muito sobrecarregado de achaques e cançado, mal podendo continuar por mais tempo a supportar os encargos do magisterio, de que desejava ver-se alliviado.

D. Philippe escreve em data de 17 de janeiro de 1612 uma carta ao reitor, outra ao proprio Suarez, recommendando que vá continuando ainda a reger a sua cadeira por mais tres annos. O grande mestre porem insiste pela sua exoneração, allegando a avançada edade e falta de forças. A isto responde el rei noutras duas cartas, dirigidas aos mesmus en data de 4 de setembro de 1613; ensine como puder durante dois anuos ainda, diz o monarcha; preleccione apenas quando lhe fôr possivel, e, decorrido este praso, se jubilará, embora mesmo não tenha para ipso o tempo exigido pelos estatutos da Universidade.

Jubilou-se finalmente a 13 de fevereiro de 1616 com todas as honras, prerogativas e vencimentus declarados nos estatutos; depois retirou-se para a casa professa de Lisboa, onde se entregou ao trabalho de revisão de suas obras.

Os padecimentos foram-se aggravando cada vez mais, até que se extinguiu a luz de lão rutilante sol a 25 de setembro de 1617.

Apesar do interdicto lançado sobre Lisboa, as portas do templo dos jesuitas abriram-se nesta occasião; e os sinos, condemnados a longo silencio, fizeram ouvir a sua bronzea voz, annunciando a morte do grande mestre.

Foram bem eloquentes as demonstrações publicas de dôr, que, em honra de tão benemerito varão, se izeram por este luctuoso motivo em Coimbra, Lisboa e Evora.

Depois da morte do grande Suarez, os prelos continuáram imprimindo muitas de suas obras, que ficáram ineditas, e reproduzindo as já impressas. Umas e outras constituem o mais majestoso de quantos monumentos podessem erguerse em honra de tão extraordinario personagem, e ahi estão a eternizaren o seu glorioso nome, que por egual ennobrece as nossas duas nações.





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