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Esta semana resumiu um reinado, e, não obstante, desdobrou-se tranqüila, sem que ninguém desse pela sua fisionomia retrospectiva.

O Segundo Reinado chegou a ser o que é -máquina pneumática a fazer o vácuo no espírito e no coração de um povo- por este processo tantas vezes denunciado para nunca ser revogado; fazendo do parlamento comissão do ministério, do ministério comissão do imperador, do imperador comissário da escravidão. Em torno desses poderes, como sombras, o eleitor, o soldado e o escravo, toldando o pensamento nacional, guardando como as negras nuvens tropicais o raio e a tempestade improvisa e como essas nuvens, condenando-se ao aniquilamento pela própria força, que em si contém.

Nestes poucos dias, o observador pôde ver sem esforço toda a engrenagem desse mecanismo, com que as circunstâncias especiais da gestação da nossa nacionalidade dotaram o imperador e que Sua Majestade com uma perspicácia invejável emprega no serviço da sua dinastia.

Em ambas as casas do parlamento firmou-se a convicção de que é impossível suportar por mais tempo o atual estado de coisas.

Os conservadores desesperam por ver a sorte do partido dependente de um ministério que só dispõe do prestígio do cargo e serve-se dele, não para fortalecer o sentimento de solidariedade partidária, mas exclusivamente para apadrinhar da opinião e do veredicto dos seus contemporâneos o nome e as pessoas dos que o exercem.

A cada momento surge um conflito moral, quando se tratam pontos vitais de prestígio governamental.

O gabinete, pela voz do imperador, declara que executou fielmente a Lei Saraiva-Cotegipe; os srs. Vieira da Silva e Cruz Machado desmentem-no.

O ministro da Justiça pede ao Senado uma prova de confiança ao zelo com que o ministério despende os dinheiros públicos: os srs. Correia e Diogo Velho negam-na.

E quando estes fatos se dão, os dous chefes que completam com o sr. barão de Cotegipe a trindade ortodoxa da igreja conservadora, o sr. Paulino cala-se e o sr. João Alfredo não desmente a asseveração de um seu honrado colega, tornada pública pela imprensa -de que S. Ex.ª votaria na resposta à fala do trono de acordo com os srs. Vieira da Silva e Cruz Machado.

Em todo o Partido Conservador, nas duas casas do parlamento, só o temor do desconhecido e o egoísmo de não contribuir para a salientação de poucos mantêm as aparências de solidariedade. Tomados, cada um de per si, todos coram do apoio que dão: todos anelam pelo momento em que tirem de sobre a consciência o peso de uma responsabilidade tão gravosa, quanto inglória.

Os liberais debatem-se, por sua vez, dentro do leito de Procusto das teorias de expediente. O Senado não faz política, sem se lembrarem de que é a política que faz o Senado e uma corporação de origem essencialmente política não pode deixar de exercer tal função.

Vítimas dos costumes eleitorais do Império, em vez de se garantirem com uma força parlamentar estável -o Senado, os liberais, desanimando de constituir maioria na Câmara vitalícia, quiseram inutilizá-la, como força política e vêem-se, hoje, vítimas do próprio esforço, desperdiçado.

Não faz política o Senado e, não obstante, a escolha do senador é um ato essencialmente político e, tanto assim, que das listas tríplices o imperador ou escolhe os eleitos da parcialidade dominante, ou motiva crise, salvo o caso da unanimidade da lista.

Teoria que regula para os senados de nomeação e de herança e que pode quando muito estender-se aos países de sistema eleitoral, mais ou menos moralizado, foi aplicada ao nosso país onde os capangas e joões manuéis têm sido sempre os incumbidos de eleger a Câmara dos Deputados.

O resultado desta teoria aí está patente. De um lado, uma câmara temporária que se não dirige, nem é dirigida, nem tampouco dirige o gabinete; que não tem missão nenhuma, porque não tem nem opinião, nem caráter; que se limita a empregar o escrutínio secreto e a fazer orçamentos com a mesma independência que têm as câmaras municipais; do outro lado, a câmara vitalícia, órgão de uma aspiração nacional, votando com ela, discutindo por ela e no entanto impossibilitada de levar ao governo o pensamento vitorioso, o sentimento iniludível da nação.

Esta situação anormal tirou o Governo do Gabinete, porque este não tem prestígio, tirou-o da Câmara, porque não tem opinião; tirou-o do Senado, porque não tem ação.

Tanto se contrariaram todas essas forças, que se neutralizaram e fizeram visivelmente do imperador o equilíbrio do Governo.

Se a paz se mantém, se a vida do cidadão ainda é garantida, se o imposto ainda é pago, é somente porque o espírito do imperador flutua sobre este caos, onde as forças não têm o poder de organizar e regularizar; onde tudo espera e depende absolutamente do fiat imperial.

Tudo está agora nas mãos do imperador. A oposição constrange-se empolgada, porque duas listas tríplices têm de subir à escolha; numa está o sr. Silveira de Sousa -um liberal, noutra ou virão três liberais, dous dos quais estão na Câmara e um é o leader e o outro o mais valente debater da oposição, ou entrará um conservador, e sendo faculdade exclusiva do imperador a escolha, os liberais querem lisonjear Sua Majestade para ver se deste modo a conseguem.

E é preciso dizer que há neste procedimento uma intuição profundamente patriótica, porque, dependendo do Senado a idéia capital do verdadeiro Partido Liberal -a abolição da escravidão, muito bem procede a oposição, empregando esforços para se organizar em ordem a poder levar a cabo a reforma.

Quanto à maioria, nem é preciso demonstrar que ela está sob o guante imperial. O seu primeiro ministério constituiu-se com os piores elementos do partido. Foi um balão de ensaio, dentro do qual, porém, está uma bomba de metralha, que não explodirá, enquanto estiver nos ares, porém que, ao tocar em terra, espalhará a morte, não entre os adversários, porque lá não vai cair, mas entre os próprios correligionários que é o ponto natural da queda.

Esse ministério, sem capacidade para fazer o bem do país, procurou substituir o prestígio, que não lhe viria dos serviços, pela responsabilidade do partido nos seus atos os mais criminosos e por isso mesmo converteu as eleições em uma bacanal de sangue e lama.

Dessas eleições nasceu esta Câmara, onde se assentam o sr. Teodoro Machado e o padre João Manuel e uma tal maioria não tem força moral para fazer nem desfazer ministérios, criar ou matar situações.

Se a maioria se quisesse revoltar agora, quando toda a gente sabe que ela é usufrutuária somente, proprietária nominal da Câmara dos Deputados, o imperador tinha o direito de fazer calar do mesmo modo que o sr. Joaquim Nabuco fez calar o padre João Fera, lembrando-lhe que ele vendeu uma tipografia que lhe foi dada em confiança, e meteu o dinheiro no bolso, como economias de missas.

O imperador é, portanto, clara, visivelmente poder pessoal. O Governo é ele, ele só, no isolamento da sua irresponsabilidade legal, mas da tremenda responsabilidade histórica.

E o que há de ele fazer?

Apelar para o eleitor? Mas o eleitor é o que nós sabemos, um indivíduo que, no máximo, faz uma estrondosa manifestação ao deputado roubado pela Câmara, mas não vai além. Sem consciência da força que lhe deu a Constituição, que não admite poder nenhum que não seja delegação sua, o eleitor teme o Governo, porque a sangue-frio é a demissão, é o processo e a difamação; enraivecido é o espaldeiramento e a descarga, o emprego da força armada.

A esta organização é o Exército chamado a conservar.

Parece que o Governo lhe devia as maiores deferências e a maior estima; que ao menos a ele, sua única força, afora a escravidão, devia fazer justiça e respeitar o mérito e o direito.

Mas nem ao Exército o Governo finge sequer acatar.

É de ontem o exemplo do sr. coronel Cunha Matos. Prisioneiro na guerra, S. Ex.ª foi o triste estuário, onde desembocaram o ódio e a sanha de Lopes contra o Brasil. De volta à pátria com essa eterna condecoração do martírio, o ilustre militar conquistou pelo talento, pelo estudo e pela honradez um dos primeiros lugares no nosso Exército. Onde quer que ele passou deixou uma pegada indelével a brilhar nas trevas da nossa administração, como um corpo fosforescente.

Enviado em comissão ao Piauí depara com um fato que lhe parece criminoso e coloca-o sob o domínio da lei.

A sua justiça fere um protegido do sr. Simplício de Resende, que não tem nenhum serviço, cujo nome não passaria à memória pública, se se não prendesse como parasita, ao do sr. coronel Cunha Matos, mas que é deputado do sr. barão de Cotegipe.

Este sr. Simplício, emergindo da maioria anônima, como enorme rã de um brejo, coaxa umas insolências contra o sr. Cunha Matos, e, ainda que o brioso coronel tivesse uma comissão do Governo e fosse por ela acusado, o sr. ministro da Guerra dispensou-se do trabalho de dar explicações por ele, porque se tratava de um liberal, de um abolicionista. O delegado do Governo descobre prevaricações e pede que elas sejam punidas; é por isso injuriado, e, porque vem rebater a acusação que sofre nesse caráter, o Governo eleva o sr. Simplício à categoria de superior ao coronel, e não só inflige ao servidor do Estado a pena de repreensão, como a de prisão!

Que lei deu aos deputados e ao próprio ministro da Guerra hierarquia no Exército? Onde ter honras militares foi título de superioridade, em organização regular e legal?

Mas era preciso castigar o audacioso soldado, que não se curvou diante da situação, que continuou a ser o que era do mesmo modo que serão transferidos desta guarnição todos os oficiais conhecidos como liberais e abolicionistas.

Em nenhuma parte do mundo se admite que o soldado barateie a sua honra. A lei para o militar, escreveu-a Francisco I: perdeu-se tudo, menos a honra.

E o coronel Cunha Matos, por vir à imprensa defender a sua honra, que não levou à tribuna o sr. ministro da Guerra, como lhe impunha o dever do cargo, é repreendido e em seguida preso.

Nem ao menos coerência afetada. Ao passo que o sr. ministro da Guerra manda humilhar legalmente o coronel brioso, que vem à imprensa salvar não só a sua honra individual, mas a de uma classe, nada faz, nem fez, ao capitão que veio à imprensa agredir a esse mesmo coronel.

E o fato provavelmente ficará impune.

O sr. Simplício mandará dizer para o Piauí que é forte bastante para proteger quanta patota lá se faça e o Gabinete continuará a contar com a passividade do Exército, não só para conter as impaciências dos que se envergonharam pelo país, como também para esmagar os soldados que entenderam que acima da honra do militar só há uma coisa: a honra de todo o Exército.

Quanto ao escravo, ele só serve para pretexto da opressão que se exerce pelo eleitor e pela força pública.

Serve para falsificar a organização de ministérios como o do sr. barão de Cotegipe, e câmaras como a dos padres Kelés do 3º escrutínio.

No mais, o seu destino é morrer, como os desgraçados da Paraíba do Sul, surrados barbaramente pela justiça pública, num país cuja Constituição aboliu terminantemente os açoites, e em seguida vitimados pelo arrocho das cordas que lhes privavam a circulação, ao passo que a marcha forçada a acelerava.

O escravo serve para engordar na piscina do Império as moréias da oligarquia, para desentediar com os seus gritos na surra a alma atribulada dos senhores, e finalmente para dar força governamental aos gabinetes-cadáveres.

E eis aqui a semana -resumo de um reinado!

Mostrando o gabinete e as câmaras, ela justificou o pensamento do imperador: o Governo sou eu; mostrando a Câmara dos Deputados, o Exército e a escravidão, e neles o sr. Teodoro Machado, João Manuel, o sr. coronel Cunha Matos e os escravos da Paraíba do Sul, demonstra que a missão do Império é corromper, humilhar e matar.

31 jul. 1886

21-VIII-1886

O dia amanheceu sacudido por uma ventania rija. Temos, pois, certeza de que por nenhum modo chegarão ao trono imperial as nossas palavras.

O imperador está deliberado a não ouvir-nos; nós somos para Sua Majestade a anarquia audaciosa, que lhe causa até arrependimento da própria magnanimidade.

A ordem e o patriotismo circunscrevem-se ao ministério e aos seus sustentadores. Só para estes volta suas vistas e põe-se à escuta.

O oriente monárquico está lá e os reis não se importam muito com o saber onde o sol se esconde; querem somente conhecer-lhe o nascente.

Demais, o horizonte conserva-se invariavelmente vermelho. Primeiro pintou-o o sangue derramado pelos capoeiras nas ruas desta cidade; depois o sangue derramado durante o pleito eleitoral; agora torna-o mais rubro ainda o sangue das vítimas da Paraíba do Sul.

Os reis têm a paixão do vermelho, e, se não a mostram claramente, é por simples modéstia.

Schiller explica por esta paixão o uso da púrpura: pode-se embeber do sangue, sem que ninguém dê por isso.

É perder tempo e palavras discutir o que vemos.

Há da parte do imperador propósito feito de arrostar a opinião.

Desgostou profundamente a Sua Majestade a certeza de que se havia criado neste país uma força, a propaganda abolicionista, paralela à força do poder pessoal.

Era preciso lutar com ela, até vencê-la; demonstrar que só há um pensamento e uma vontade, um coração e uma atividade reais entre nós -o imperador.

E Sua Majestade meteu ombros a esta árdua tarefa.

Em outro qualquer país do mundo os atentados praticados pelo sr. d. Pedro II, contra a nossa honra de povo civilizado, já teriam chamado a atenção do mundo inteiro e sublevado a indignação popular.

Sua Majestade arma de toda a força o ministério da escravidão, para constituir uma câmara, que é um resíduo de fraude e um coágulo de sangue.

Entretanto, Sua Majestade regateava a menor parcela de benevolência ao Gabinete 6 de Junho, que devia presidir as eleições de uma câmara em favor dos escravos.

Triste paralelo é este.

No tempo do sr. Dantas só o jornal conservador O Brazil fazia reclamações, e o imperador, ouvindo-as logo, criava milhares de embaraços ao ministério, às vezes por queixas imaginárias.

Hoje toda a imprensa limpa do país protesta uníssona contra os abusos, desmandos e crimes do Gabinete e o imperador responde-lhe, dando cada vez mais força ao sr. barão de Cotegipe, que à semelhança dos antigos déspotas governa, tendo à cabeceira o médico, o padre e o carrasco.

O imperador, em vez de revoltar-se contra este sistema de governar, o acoroçoa.

Na posição de Luís XI, quando prisioneiro de Carlos, o temerário, Sua Majestade subscreve tudo quanto lhe exigem; aceita como bom tudo quanto fazem ou autorizam os seus ministros.

O plano imperial é fundar sobre a suserania da escravidão o absolutismo do soberano; e fazer do rei de aclamação, o rei divino, o rei -sou eu o Estado.

Para chegar a este resultado, Sua Majestade não olha os meios. Ora, a propaganda abolicionista era uma tremenda ameaça a este plano; mais natural do que empregar todos os recursos da corrupção e da pressão para invalidá-la.

Vem daí esta impassibilidade revoltante com que o imperador assiste à consumação de crimes os mais infamantes, contra os escravos e contra a civilização de nossa pátria.

O imperador diz que os seus sentimentos são conhecidos, com relação aos escravos, e nesta frase Sua Majestade faz lembrar os 30 contos que de vez em quando tira dos 800 contos de réis, que os escravos lhe dão.

Não temos razão nenhuma para não acreditar que seja sincera essa generosidade do imperador e filha dos seus sentimentos de humanidade.

Mas, admitindo esta premissa, é preciso admitir a conclusão que acabamos de externar, de que o fim do imperador é suprimir a nação em proveito da sua dinastia.

Abolicionista, não pode o imperador admitir, como prestigioso para o seu governo, roubar ano e meio ao prazo da libertação; roubar o produto do imposto de 5% ao fundo de emancipação durante longos meses; criar mercados novos de escravos; e foi isto o que fez o monstruoso e repelente regulamento de 11 de junho.

Abolicionista, não pode o imperador considerar decoroso e legal o crime do sr. Antônio Prado, mandando aceitar como escravos, à matrícula, os africanos libertados pela lei de 1831, por isso que Sua Majestade sabe que a lei de 28 de setembro de 1871 tornou irrevogável a liberdade concedida.

Abolicionista, não pode ainda o imperador apadrinhar com a sua confiança o ministro da Justiça, que procura sepultar na sua insensibilidade os assassinatos da Paraíba do Sul, e amortalhar a justiça pública com a mesma toga dos magistrados que já fizeram dela mortalha para os dous infelizes escravos.

Se o imperador tolera tudo isso, e se parece deliciar-se em revolver, como um verme dentro da podridão desses cadáveres, a sua política, é porque resulta-lhe daí o proveito eficacíssimo da ameaça sobre todas as cabeças, a melhor de todas as escolas de cobardia.

O Ministério atual não tem um ato bom em toda a sua administração e é constituído por homens que, na frase do sr. Vieira da Silva, demonstram a pobreza do Partido Conservador.

Dizem que ele tranqüilizou o país, porém nunca a propaganda abolicionista foi tão violenta, nunca os interesses dos proprietários de escravos estiveram tão ameaçados, por isso que só resta ao Governo o caminho da violência e este é também o caminho da revolta, e que revolta! a das classes educadas fora da liberdade.

Por que sustenta o imperador este Ministério?

O sr. barão de Cotegipe dá prestígio ao Governo?

Sustentar Santos, no Estado Oriental, o sr. barão de Mamoré e os Domicianos da Paraíba do Sul, no interior, é título para alguém se conservar no Governo?

Qual é o homem superior que o imperador teme desgostar, desgostando o sr. barão de Cotegipe e quais são os interesses, além dos da escravidão, efetuados pela demissão desse Gabinete, cujos ministros não sabem nem ao menos falar corretamente a língua maternal?

A verdade é esta: o imperador quer manter por longos anos inimigos em face um do outro, o senhor e o escravo, matar um pelo outro.

Ao escravo, ilude a esperança afetando simpatia pela sua sorte. Custa-lhe barato isto, menos de 5% dos 800 contos de réis com que a escravidão o subsidia.

Ao senhor, ele contenta nomeando ministérios que, não tendo força para reprimir a propaganda da abolição, tem-na, entretanto, para incitar os proprietários à violência e ao crime contra seus escravizados, e as populações à comunhão pacífica da barbaria.

O resultado é fácil de prever: a desorganização geral do trabalho, a morte absoluta da iniciativa política, o desmantelo completo da administração, a ruína, finalmente, do país, e portanto a consolidação da dinastia, como elemento essencial de reconstrução pacífica, servindo de anteparo às ondas revolucionárias.

Porque os reis são como as ortigas, só se tornam salientes e notáveis sobre ruínas.

Tal é o plano do sr. d. Pedro II.

O Ministério de 20 de Agosto ficará, pois, apesar de todos os protestos da opinião.

Quando crescer a impaciência, ele aumentará a corrupção.

Apoiado no interesse do senhor, na cobardia do povo, na miséria do escravo; convertendo, pelas transferências, pelas prisões, pelas disponibilidades, o Exército e a Marinha em um rebanho dócil para o poder, o Gabinete 20 de Agosto se conservará no poder até quando o imperador quiser.

Não vale a pena combatê-lo, por isso que ele tem carta branca para fazer tudo quanto lhe der na cabeça, contanto que daí resulte sempre um lucro para a dinastia.

O país fique certo que não conseguirá nada com o seu clamor. O trono é surdo.

Demais, o imperador serve-se do Ministério 20 de Agosto, como de um gato morto.

Ele quer provar-nos que a abolição, como tudo neste país, é ele, e por isso emprega os srs. Cotegipe e companheiros, o ministério mais fraco que temos tido, como simples instrumento.

21 ago. 1886

Começou a orgia de sangue e de sânie que o sr. barão de Cotegipe havia prometido aos seus cúmplices do Governo para a pirataria e pela pirataria.

Já não há mais garantias para quem não se ajoelha perante o chaveco do tráfico, encalhado sobre o Ararat da corrupção e convertido pelo Governo do imperador em arca santa dos direitos da escravidão.

A cidade de Campos foi convertida em matadouro de abolicionistas.

A polícia, conivente com os assassinos, esconde-se, até que estes tenham consumado os seus crimes, e em seguida aparece para denunciar à magistratura as vítimas como algozes.

A magistratura, por sua vez, denuncia ao Governo esses imaginários autores de atentados, louvando a solicitude e o zelo com que a polícia os entrega à sanha do esclavagismo assassino.

O presidente do Conselho havia dito: na guerra, como na guerra e cumpre, pela primeira vez na sua vida, a palavra dada.

Nesta guerra, porém, as forças são desiguais. De um lado estão os abolicionistas, que não têm como armas senão a sua fé na santa causa que defendem e pela qual estão prontos a dar a vida; uma raça acobardada por longos séculos de sofrimento; o terror do povo acostumado a ver subir ao cadafalso, ou ser espingardeado na praça pública, o Direito, ficando o despotismo jubiloso a tripudiar impune sobre o seu cadáver.

De outro lado está o Governo, armado com a venalidade da maior parte, com o desespero da cobiça dos senhores de escravizados, com a falta de escrúpulo de quem se hipotecou ao interesse de uma instituição, que é a nossa vergonha perante o mundo.

Governo da escravidão, o Ministério é a encarnação da barbaria; não trepida em assalariar delatores, como não hesita em proteger assassinos.

As cenas selvagens de Campos não são senão o primeiro ensaio da tragédia, que vai ser representada em todo o país.

Aos assassinatos de Luís Fernandes e do imortal Adolfo Porto, seguir-se-á o de Carlos de Lacerda e ao deste o de todos os abolicionistas, cuja palavra o Governo sabe que não emudecerá senão pela morte.

Um cadáver de mais ou de menos não faz mover a balança de consciências que se servem de três séculos de crime como peso para os seus atos.

O Governo já não se julga obrigado sequer a recatar-se. Apraz-lhe a nudez da saturnal. Põe cabeças a prêmio; aponta os réus que quer punir.

Não tem mais em atenção as simples formalidades da lei: suspende os direitos constitucionais e veste a morte com a toga do magistrado.

Na embriaguez do crime, não repara que deixa pegadas indeléveis na história, apesar da astúcia que emprega para ocultar a sua mão traiçoeira e ensangüentada.

A polícia de Campos ainda não descobriu quais os assassinos do dia 30, mas sabe quem foi que esfaqueou um dos capangas de Raimundo Moreira.

Não consta que nenhum desses assassinos haja sido farejado pela perspicácia do delegado de polícia ou do juiz de direito; mas estas autoridades já sabem, descobriram de pronto, que são as conferências abolicionistas o facho incendiário que ateou fogo aos canaviais.

Cada palavra do Governo e dos seus agentes denuncia a premeditação de sufocar, seja como for, a propaganda que pretende lavar a desonra da pátria, seja com o próprio sangue dos propagandistas.

O imperador, que é proclamado soberano magnânimo, não dá sinais de vida.

Outrora, quando O Brazil, órgão do sr. Belisário, atroou os ares com ameaças, recurso de matreiro para atordoar o povo e não deixar ouvir o fracasso do sindicato, o imperador alarmou-se ao ponto de converter o pacto de honra com o sr. Dantas nesta situação criminosa -pântano onde bóiam cadáveres.

Hoje, que um ministério que não se pode fortalecer senão pelo terror, que lembra no poder um desses monstros do sertão, que se fazem temer pelo número dos seus crimes, cobre de vítimas o país e põe em perigo as instituições, o imperador cruza indiferentemente os braços.

Pensa acaso o imperador que o meio de consolidar o seu trono é dar-lhe como alicerce no presente a ossada dos abolicionistas, como lhe deram outrora a ossada das vítimas do tráfico?

Julga acaso o imperador que não basta que a sua lista civil seja o preço das lágrimas de um milhão de espoliados, e quer que se lhe ajunte o sangue dos que têm a coragem precisa para repetir, diante do César americano, a frase dos gladiadores malferidos -os que vão morrer te saúdam?

Não vê Sua Majestade que, de par com o vácuo que o assassinato e o processo foram incumbidos de fazer nas fileiras abolicionistas, o ministério mandou o desgosto fazer o vácuo em torno do trono imperial?

Quem leu hoje o Jornal do Commercio, que tanto pesa desde o tesouro até os Conselhos da Coroa, viu com espanto que o ministério está provocando insensatamente o Exército e incitando-o a que saia da calma patriótica, em que ele se tem mantido.

O marechal Deodoro, que não ganhou as dragonas de general nas antecâmaras dos ministros, mas no campo de batalha -a antecâmara da morte é, por ordem do Governo e a peso de dinheiro usurpado a ele mesmo e a todos os contribuintes, tratado como se fosse uma ordenança do sr. ministro da Guerra.

Gente que se ocupa em vender a pena, porque é a última cousa que lhe resta para vender, salpica de tinta assalariada a farda veneranda, que a coragem salpicou de bordados e condecorações.

Percebe-se o plano vergonhoso de assanhar a população contra o brio da classe militar, não porque a autonomia civil corra perigo, mas unicamente porque o Ministério deseja campear ovante sobre os últimos destroços da sobranceria de um povo.

O Governo, encarregando aos seus declamadores pagos de repetir alto o recado que lhes deu no Gabinete e mandou decorar no segredo da verba secreta, grita que é preciso resistir à indisciplina, capitaneada pelo marechal Deodoro.

Qual é esta indisciplina? pergunta-se em vão, procurando fatos, e só se encontram avisos julgados inconstitucionais pelo Poder Moderador e que, entretanto, o Ministério quer que produzam efeito sobre a fé de ofício e a carreira militar de oficiais briosos.

Pode a classe militar recuar hoje da atitude nobre e digna que tomou?

O que ela pediu foi simplesmente justiça: não se negou a submeter-se à lei; mas quer que o Ministério se submeta também.

Entre o Governo na legalidade, e todos entrarão com ele.

Mas o Governo quer ficar fora da lei e, para conseguir os seus fins criminosos, lança mão de todos os meios.

Ninguém pode presumir que o brioso marechal Deodoro, se receber como resposta à honrosa comissão que lhe confiaram os seus camaradas, a demissão do alto cargo que tem no Exército, continue a acreditar na justiça imperial e na garantia das Instituições.

Manda a lei da honra prover que o ilustre marechal, como todos os seus companheiros, perderá a esperança de que, no segundo reinado, o direito possa obter do Governo a segurança que a lei lhe prometeu.

Se o amor da disciplina contiver os assomos da dignidade ofendida, o amor da pátria aconselhará a classe militar a cruzar os braços, deixando que o Governo imperial conjure pela corrupção a tempestade de indignação por ele mesmo desencadeada.

Sua Majestade não mediu ainda, ao que parece, a extensão do vácuo, que fará em derredor do seu trono o afastamento dos heróis.

Retirados os Deodoros, pensa acaso Sua Majestade que os Cotegipes e seus asseclas bastarão para defendê-lo dos golpes que a civilização inteira e com ela a memória das vítimas do esclavagismo desfecharão contra o seu reinado?

E os reis são em geral cegos e surdos. É a pena que lhes comina previamente a História, quando os tem de arrastar perante o júri dos povos para responder pelo crime de lesa-justiça.

Entre os gemidos dos escravizados e o clamor altaneiro do esclavagismo, o imperador escolheu o apoio do segundo e mandou sacrificar os primeiros.

Sua Majestade vê que o Ministério é escandalosamente conivente com os violadores da lei, que continuam a empregar a gargalheira, o tronco, o açoite, o cárcere privado, os maus tratamentos de todo o gênero contra os escravizados, apesar de determinações positivas da lei; e Sua Majestade sustenta esse Ministério, que no seu próprio partido perdeu a confiança de todos os homens de bem.

Entre a dignidade do Exército e a insensatez do Gabinete 20 de Agosto, o imperador parece querer preferir a segunda à primeira.

Sua Majestade vê que o Ministério socorre-se de tudo quanto é meio indigno para difamar os militares, que protestam, e para angariar simpatias na parte tímida do Exército. Que o Ministério vai desde os Romões dos interlinhados até o champagne falsificado do ministro da Guerra. E Sua Majestade sustenta este ministério cuja tradição é a popeline, o sindicato, o Rio Verde, a empresa Gary, contra militares cuja tradição é a integridade da pátria e o brilho da nossa bandeira no campo de batalha.

Dizem que o imperador tem levado toda a sua vida a vingar seu pai.

Tudo quanto foi pelos nossos maiores considerado crime do primeiro imperador, o segundo tem praticado para justificá-lo.

Tudo quanto foi instituição popular, que concorreu para a ruína do primeiro imperador, o segundo tem desmantelado.

O abolicionismo foi o primeiro tropeço que o primeiro imperador encontrou em seu caminho. As instruções a Brant denunciam o amigo de José Clemente Pereira.

Por isso mesmo, o sr. d. Pedro II, depois de aproveitar-se do abolicionismo para recomendar-se ao mundo, entrega os abolicionistas ao sr. barão de Cotegipe, carrasco impassível da sua própria raça.

O Exército forçou a abdicação de d. Pedro I, abandonando-o ao destino do seu despotismo. O sr. d. Pedro II adiou a vingança até o momento aprazado e, sem escolher vítimas, não reconhecendo os que há poucos anos lhe salvaram de novo o trono, condena-os a serem o joguete de ministros tresloucados, de forateiros políticos irresponsáveis.

Nós nada pedimos ao imperador.

Do seu Império não aspiramos senão aos palmos de terra que a corrupção do Império é bem capaz de negar àqueles que não trepidaram atirar-lhe à face a vergonha e os crimes.

O que podemos garantir a Sua Majestade é que morreremos tranqüilo; sorrindo à certeza de que cumprimos com o nosso dever de patriotas, e que, mais tarde ou mais cedo, a nossa morte será vingada.

5 fev. 1887

Os fetichistas do parlamentarismo devem de estar maravilhados com os estupendos resultados que ele tem dado entre nós.

Devemos render esta justiça ao parlamentarismo: só ele, com os seus inexauríveis recursos de equilíbrio, podia sustentar esta situação política especial, que ninguém sustenta e que se impõe a todos; que não se apóia em nenhum elemento estável da sociedade e que, entretanto, é apoiada por todos e por tudo.

O parlamento conseguiu ser mais que uma delegação do exercício da soberania política do povo, ser a abdicação absoluta do poder, do brio, da honra nacional.

Ninguém tem o direito de ser ouvido neste país senão dentro do parlamento e por isso mesmo os membros desse poder se julgam no dever de não se fazerem ouvir.

Tomados individualmente os deputados e senadores, raros são os que não entendem que o atual Ministério não é a humilhação de um partido e uma vergonha para o país.

Quando reunidos, porém, quando formam maioria parlamentar, esses mesmos homens curvam-se servilmente e repetem tantos votos de confiança quantos lhes sejam exigidos pelo capricho dos ministros.

Reproduz-se diariamente na Câmara e no Senado aquela cena felicíssima da taberna, no Nero de Pietro Cossa.

Os circunstantes se revoltam diante da devassidão audaciosa do César lascivo, um deles deita-lhe a mão no pescoço e está disposto a estrangulá-lo, quando sabem todos que o homem que está por terra é Nero, o imperador de Roma. Muda-se de súbito a atitude de todos e os indignados de minutos antes são os escravos que se deitam de bruços diante do senhor.

Há uma espécie de orgulho em ostentar servilismo parlamentar. A maioria se julga tanto mais honrada, quanto mais irracional é o sacrifício por ela feito.

O sr. barão de Cotegipe conhece-a tão bem que procede com ela como Hamlet com os cortesãos da Dinamarca.

Quando a maioria quer mostrar-se mais servil do que é necessário, o presidente do Conselho dá-lhe uma lição de altivez, em termos que vamos pedir emprestados a Shakespeare.

(Entra OSRIC, descobrindo-se.)

OSRIC.-Meu senhor, se Vossa Alteza não está agora ocupado, permita que lhe dê um recado da parte de Sua Majestade.

HAMLET.-Ouvi-lo-ei com a maior ansiedade, mas olhe... Dê ao seu chapéu o destino que ele tem: cobrir a cabeça.

OSRIC.-Muito obrigado a Vossa Alteza; mas está fazendo muito calor.

HAMLET.-Calor? Quer dizer muito frio: o vento é do norte.

OSRIC.-E isso, é isso, meu senhor: está sofrivelmente frio.

HAMLET.-Entretanto para mim, em virtude de meu temperamento, está fazendo calor de sufocar.

OSRIC.-É isso mesmo, meu senhor, está excessivo o calor, sufocante... um calor inaudito.


Esse calor-frio e frio-calor, excessivo, sufocante, que serve para justificar o servilismo de Osric, que se descobre quando podia estar coberto, é a desculpa da maioria que é sempre da opinião do Governo e que não quer guardar a dignidade do seu cargo nem mesmo quando o senhor lho permite.

É que o parlamentarismo aniquilou o caráter dos homens políticos desta terra e os converteu em simples serviçais da escravidão, representada pelo Ministério e pela Coroa.

O parlamentarismo justificou o poder pessoal e tornou urgente a proclamação de uma ditadura inteligente e patriótica, a favor da qual, mesmo com o sacrifício provisório de alguns direitos, todos nós, homens de coração e de patriotismo, devemos trabalhar.

A nossa responsabilidade de povo na História será tremenda quando as gerações futuras virem que nos submetemos ao voto parlamentar de umas dúzias de interessados que se antepunham à vontade expressa da maioria dos seus compatriotas.

No momento atual, a propaganda abolicionista deixou de ser um choque revolucionário, para ser o acordo consciencioso dos próprios senhores de escravizados na reorganização do trabalho agrícola.

Não obstante, a Câmara dos Deputados entende que deve sugerir aos convertidos à boa causa do trabalho livre a esperança falaz da durabilidade de escravidão.

Tudo indica que a maldita instituição fez o seu tempo; que ela entra na fase da decomposição rápida e inconjurável.

Além da própria confissão dos mais interessados na sua conservação e que dela abrem mão espontaneamente há o sufrágio geral de todas as classes.

No Senado assina o projeto Dantas o visconde de Pelotas; na reunião militar o general Deodoro declara-se francamente pela abolição. E de recente data a manifestação da Armada e do Exército, quando se deram as festas pela libertação do Ceará. Em todas as suas reuniões os militares deixam firmada a adesão coletiva à causa dos escravizados.

Se um movimento, embora pacífico, mas decisivo, com o cunho de uma imposição do povo e da civilização, for organizado, o Governo teria de ceder do mesmo modo que cedeu, humilhado e humilhando o Senado, na Questão Militar.

Os abolicionistas têm demonstrado, como por ocasião dos incêndios dos canaviais em Santos, e agora mesmo pela fuga coletiva dos escravizados em S. Paulo; têm demonstrado, repetimos, que podem na hora que lhes aprouver dispor de elementos os mais poderosos de perturbação.

No entanto, em vez de incitar a rebeldia, eles se colocam do lado da ordem e dos interesses gerais do país.

Como resposta a essas provas repetidas de patriotismo, o Governo manda trancar a discussão dos projetos mais anódinos que se apresentem às câmaras!

E a maioria parlamentar, que devia representar, não o partido, mas a nação, apóia sem protesto semelhante cegueira.

Pensa a Câmara dos Deputados que realmente bastam para deter a marcha da propaganda abolicionista a carranca do sr. Andrade Figueira e os arreganhos clownianos do sr. barão de Cotegipe.

Mas supondo mesmo que o Ministério pudesse empregar contra o abolicionismo força, de que não dispõe, acredita a maioria que teria meio de vencer um combate que se dará em todo o país e cujos soldados estão entricheirados dentro do próprio acampamento do inimigo?

É simplesmente demasiado exagerada e que, entretanto, pode ter as mais funestas conseqüências.

Perde-se a paciência, muitas vezes por uma insignificância, apesar de se haver jurado prudência à própria honra.

Nunca contestamos a força parlamentar da escravidão; o que lhe negamos é a força popular, que é nossa e de que não temos querido dispor simplesmente por patriotismo.

Se temos hesitado, é porque vemos de um lado a matrícula e de outro lado as libertações espontâneas por milhares, e não devemos condenar os que são vítimas, tanto como os escravos de um governo, que para salvar os interesses dos ministros enlameia o bom nome da pátria.

Cumpre-nos, porém, fazer sentir que não cedemos nem um dia, nem uma hora, nem um minuto do prazo que marcamos à instituição negra, nem mesmo sendo necessário empregar meios extremos.

O sr. presidente do Conselho declarou que o atual ministério não proporá nenhuma alteração à lei reescravizadora, votada há dois anos. A maioria acaba de declarar na Câmara dos Deputados que não considera urgente a reforma dessa lei.

Nós, por nossa parte, declaramos que queremos a abolição da escravidão até 1889 e que se não no-la derem, fá-la-emos.

Em 14 de julho de 1889, centenário da revolução que produziu o homem moderno, há de estar decretada a abolição total da escravidão.

Empregue o Governo os meios de que puder dispor, e todos, desde a calúnia assalariada até os patíbulos clandestinos na casa dos abolicionistas; aconselhe aos seus agentes secretos todos os recursos os mais desumanos, desde a traição até o assassinato, e não conseguirá fazer recuar a onda que a propaganda abolicionista sublevou com a força de séculos de angústias.

Os reptis (sic), na expressão de Bismark, falavam ontem nos entrelinhados no plenilúnio de 1889.

Foram profetas sem o saber.

De feito: a 14 de julho de 1889 haverá maré cheia para a abolição; um preia-mar de liberdade, de igualdade e de fraternidade há de inundar a nossa pátria, afogando o escravismo nos mangues ensangüentados da pirataria.

16 jul. 1887

Se fosse permitido esperar alguma influência do parlamento sobre a vida do Governo, podíamos repetir hoje, com inteira segurança, a frase do sr. Miranda Ribeiro: o Ministério está morto.

Não se compõe da soma das opiniões individuais dos ministros, mas do acordo partidário destes com o presidente do Conselho, a política ministerial. É esta a teoria do governo parlamentar, expendida pelo sr. barão de Cotegipe.

Os gabinetes não se modificam pela saída ou entrada de ministros; o apoio parlamentar ao ministério o dispensa de explicações sobre o seu programa.

É assim que o Ministério 20 de Agosto, tendo perdido já a maioria dos seus membros primitivos: o ministro da Guerra, o ministro da Marinha, o ministro da Agricultura, o ministro do Império, os srs. Junqueira, Alfredo Chaves, Antônio Prado e barão de Mamoré, continua a ser o mesmo que era anteriormente.

A sua política não variou absolutamente, porque o depositário e principal responsável dos seus intuitos e dos seus fins é o presidente do Conselho.

Sempre que se deu qualquer das quatro modificações ministeriais, a oposição inquiriu do sr. presidente do Conselho se havia sido alterada a política do Ministério e S. Ex.ª respondeu sempre: não.

Os ministros demissionários confirmaram pelo seu subseqüente apoio ao Gabinete que se retiraram por dificuldades extraministeriais.

O sr. barão de Cotegipe ficou sendo, até agora, o único presidente do Conselho que nunca teve divergências, capazes de provocar crises, no seu Ministério.

A retirada do sr. Antônio Prado, por exemplo, foi explicada do seguinte modo: havendo sido nomeado senador, S. Ex.ª retirou-se para que o Ministério não ficasse composto por maior número de senadores que de deputados.

Continuaram entre S. Ex.ª e o Ministério as boas relações de apoio e de confiança recíprocas. Nenhum ato parlamentar, nem administrativo, fez suspeitar o mais leve estremecimento entre o sr. presidente do Conselho, o Ministério e o sr. ex-ministro da Agricultura.

Força, portanto, é concluir que houve sempre, senão concordância absoluta de vistas, tendências e fins entre o Ministério e o ministro da Agricultura, e ao menos o primeiro foi em tudo solidário com o segundo nos atos por este praticados.

Entretanto, com surpresa do país inteiro, o sr. Rodrigo Silva expede um aviso, a respeito de matéria especialmente ministerial -a escravidão, e esse aviso é a revogação terminante de um outro expedido pelo sr. Antônio Prado.

O Ministério é apanhado em flagrante delito de contradição e esta não fere assunto de pouca importância, mas o direito de mais de 13 mil pessoas.

O parlamento, se ele existisse, ou quisesse existir, não podia deixar de dar a maior importância ao episódio, que vem desmascarar a especulação do Governo.

Foi o próprio presidente do Conselho quem declarou que não houve, nem haverá modificação no pensamento ministerial com relação à Lei 3.270, e no entanto esse pensamento se modifica rasgando a lei, censurando um ex-ministro e reescravizando milhares de pessoas.

O Gabinete 20 de Agosto foi quem decretou a lei, que capitulou de roubo a hospitalidade ao foragido; foi ele também quem afirmou que a sua lei não era de reescravização, mas de emancipação gradual.

Grande parte no acordo sinistro, que adiou por mais treze anos a reabilitação moral de nossa pátria, foi o ex-ministro da Agricultura; mas, apesar disso, o sr. Antônio Prado entendeu que ele não podia consentir na rematrícula dos escravizados, senão nos termos precisos da Lei 3.270, que neste ponto não alterou o § 1º do art. 3º do Decreto 4.835, de 1º de dezembro de 1871.

O ministro adventício à pasta da Agricultura carece por isso mesmo de idoneidade para ser o intérprete da lei. Não foi ele quem a estudou na gestação, quem lhe acompanhou a gênese laboriosa, que precisou dos esforços combinados das duas metades negras do Partido Liberal e Conservador, do sr. Saraiva e do barão de Cotegipe para poder chegar ao nascedouro.

De duas, uma: ou o sr. barão de Cotegipe cedeu ao sr. Antônio Prado, quando S. Ex.ª expediu o aviso de 22 de abril deste ano, ou S. Ex.ª cede agora.

Não se tratava de matéria somenos, nem de ponto de pequeno alcance, nem houve surpresa por parte do ex-ministro da Agricultura. O encerramento das matrículas a 30 de março tinha sido feito com a maior superexcitação escravista. O Ministério estava alerta.

Demais, a lei negra no seu § 8º do art. 1º havia cominado pena ao procurador omisso e desidioso, o que prova a prevalência de futuras reclamações.

Parlamento, que se prezasse, não poderia deixar de ter na maior consideração esses fatos, e deveria levantar-se para protestar.

Felizmente para o Ministério, porém, bastará que ele converta esta questão de simples probidade do Governo em questão de confiança política, para escapar à punição parlamentar.

Salta aos olhos que semelhante questão nada tem de política, que ela é de natureza inteiramente social, ou melhor, nada tem com o partido, mas unicamente com a inteireza moral do Ministério, ou seu presidente do Conselho.

Em 1883, o Partido Conservador aplaudiu o Governo por haver tirado do exclusivo domínio popular a questão servil.

Os abolicionistas, que não têm por fim revolucionar o país, mas reconstruí-lo pela liberdade e reabilitá-lo pelo trabalho moralizado, aplaudiram francamente o Governo por haver dito, pela voz do sr. Paranaguá, que a questão da escravidão podia ser tratada pelo Governo.

Todos sabem, e nos condenam por isso, que tudo quanto havia na propaganda abolicionista de força e de patriotismo agregou-se ao Ministério Dantas e que os propagandistas abdicaram na honra e na lealdade desse Gabinete as suas esperanças e iniciativa. Impusemo-nos o mais desinteressado e patriótico armistício para deixar ao parlamento a independência e a serenidade necessárias para resolver o problema conforme ao bem geral.

Depois de havermos libertado províncias, comarcas, municípios; de havermos levado pelas nossas milícias impávidas o terror ao âmago do acampamento inimigo; quando, sob a bandeira da libertação que flutuava no poder, fácil nos fora, por um golpe de mão, conseguir vitória fácil, o patriotismo nos aconselhou caminho diverso e, confiados na palavra do Governo e no pode, quer e deve da perfídia negreira, tivemos a nobreza de entregar aos meios regulares a solução do problema.

O Ministério Dantas, atraiçoado, caiu, e liberais e conservadores, fundindo-se num só interesse, fizeram uma lei de reescravização; regulamentaram-na de um modo iníquo e atroz.

Mas, ainda assim, o espírito do abolicionista sobreviveu ao corpo de podridão que lhe haviam imposto, e os mesmos que fizeram a lei monstruosa e seus bárbaros regulamentos, acham agora que eles não bastam e entregam-se à pirataria contra homens livres, como em plena Costa d'África.

Não somos, pois, nós quem exige de mais: é o parlamento que falta com o seu compromisso. Ele queria solver a questão; deixamo-lo trabalhar sem perturbá-lo, e agora consente que a escravidão invada até os domínios já conquistados pela liberdade.

Se o parlamento pode quebrar o seu compromisso de imparcialidade, dando à escravidão o que lhe não pertence mais, estamos no nosso direito de arrancar à escravidão tudo quanto ela tem roubado à pátria.

O Governo põe-se fora da lei e o parlamento lho permite; acompanhá-lo-emos.

Os deveres sociais acabam onde acaba a lei. Daí por diante começa o direito natural, mesmo no que ele tenha de mais selvagem.

Aos infelizes reescravizados de Campos, se o parlamento lhes não restituir a liberdade, roubada pelo aviso do sr. Rodrigo Silva, aconselharemos que eles procurem reconquistar a sua liberdade por todos os meios.

Onde cessa a justiça começa a força.

A oligarquia negra avassalou o Império. Esperar por justiça da sua parte é tão ridículo, na frase de Castelar, como esperar pelos deputados cubanos, proprietários de escravos, para decretar a liberdade de Cuba.

Cada um tem o direito de defender a sua vida, e a liberdade é mais que a vida, mesmo dentro do nosso código.

O parlamento que cumpra com o seu dever para nos apressar a cumprir já e já com o nosso.

30 jul. 1887

20-VIII-1887

Hoje há festa no palácio Cotegipe. O nobre presidente do Conselho convida os seus parentes e amigos, bem como aos parentes e amigos da situação para a prática solene do terceiro mandamento da sua religião governamental: convida-os a cear.

O que há de mais extraordinário no convite do sr. presidente do Conselho é a escolha da refeição. S. Ex.ª preferiu a ceia apesar de ter de meter a mão no prato com mais doze companheiros: a meia dúzia de ministros, os dous candidatos à senatoria pelo Rio de Janeiro, os srs. Tomás Coelho e Andrade Figueira; os dous candidatos por Minas Gerais, os srs. Soares e Veiga; os srs. Paulino e João Alfredo.

Não sabemos em que forças misteriosas e arquidivinais o Messias conservador confia para assim afrontar a refeição biblicamente fatídica e com ela o número treze, mas o critério e sabedoria de S. Ex.ª são tamanhos que esperamos não saia da mesa para o monte das Oliveiras.

Por isso mesmo, associamo-nos de todo o coração ao rega-bofe pantagruélico de tinta e papel de impressão dos entrelinhados e damo-nos os parabéns por mais este auspicioso segundo dos muitos que a felicidade e a honra deste país hão de contar, graças à administração do sr. barão de Cotegipe.

Há homens que fazem crer na predestinação histórica.

Quem conhece a história da Monarquia de julho, em França, não pode deixar de considerar Mr. Guizot um dos fatores predestinados da democracia universal.

Em política, como em geometria, demonstra-se a verdade pelo absurdo.

Os governos de resistência sugere-os a onisciência da liberdade humana aos reis fracos e presunçosos para confundi-los no malogro das suas ambições de autoridade pela força bruta das baionetas e das maiorias parlamentares servis.

Comentando a queda da Monarquia de julho, a velha árvore da realeza, oca e carunchosa por dentro, mas reenvernizada por fora, Alphonse Karr diz:

«Ninguém estava preparado para a República; os seus partidários mais ardentes adiavam-na para depois da morte do rei. O que aconteceu não teve nenhum concurso expresso, a não ser talvez o de Luís Filipe.»


Nada mais verdadeiro do que esta observação. Pelo estado dos espíritos, nenhum estadista podia esperar a convergência brusca dos espíritos, que deu em resultado a queda instantânea da realeza.

Foi resistindo, insensatamente a França e antepondo aos seus reclamos os caprichos de Guizot; circunscrevendo a nação ao país oficial que apoiava o Gabinete, que o bonachão do rei do chapéu de Chile cavou o leito para que se reunisse em torrente a inundação de resistência democrática, que alagava o espírito francês.

Não é preciso contar aos luminares que nos dirigem, uma vez que está proibido atualmente falar ao povo, esta história de ontem.

O que talvez não pareça a propósito, mas que apesar disto não é demais fazer sentir, é que o sr. barão de Cotegipe não pode aspirar à comparação do prestígio do seu com o nome de Guizot, se bem S. Ex.ª tenha de representar na história do nosso progresso papel em tudo semelhante.

O nobre barão de Cotegipe gaba-se de que há de ser Governo, enquanto quiser, embora sirva-se parlamentarmente da modesta expressão, enquanto puder.

A razão é muito simples.

Sua Alteza, a Regente, não quer tocar no que o seu augusto pai deixou. À sua piedade filial parece pecaminosa irreverência alterar a ordem de cousas estabelecida, tanto mais quanto espera que brevemente o enfermo de Baden-Baden volte aos seus domínios.

É muito natural nos reis contarem pelas suas as pulsações do povo. Acreditam que o povo não pode ter necessidades diferentes das suas.

Um rei é acometido de diabetes, que lhe vai a pouco e pouco desmemoriando, roubando-lhe a consciência da sua missão. O rei, os membros da sua família, os seus ministros, os seus senadores, os seus deputados, os seus empregados, todo o mundo oficial, finalmente, acredita que o povo está também doente de diabetes e que perde tudo quanto o rei perdeu.

Os médicos estão obrigados a exigir do augusto enfermo repouso. Os governos exigem-no igualmente do povo, ainda que seja necessário para consegui-lo a camisa-de-força dos quartéis, quando não bastar o anestésico das subvenções clandestinas.

Quando muito, ao rei doente é tolerada a liberdade de fazer charadas e sonetos; ao povo é no máximo permitido ouvir os discursos do seu parlamento e ler a prosa dos escritores mansos e de períodos enovelados à semelhança de cobras adormecidas.

Sua Alteza, a Regente, não acredita que possa fazer nenhum mal ao país a conservação do barão de Cotegipe. Deve parecer mesmo a Sua Alteza desrespeitosa impaciência o reclamo dos que entendem que um dia de permanência deste gabinete da escravidão, pela escravidão e para a escravidão é uma vergonha imposta à nação e de que ela mais tarde ou mais cedo se há de desafrontar, não sobre o sr. barão de Cotegipe, que é um licenciado da sepultura, com hora certa de volta, como as almas penadas, mas sobre aqueles que o sustentam.

A balança que pesa os acontecimentos em palácio não tem o fiel girando sobre o quadrante do futuro, mas sobre o do presente.

O que Sua Alteza, a Regente, vê é uma subordinação patriarcal de todo o país.

Duas foram as grandes agitações deste ano: a militar e a do Senado. O Exército submeteu-se, pelo menos nas suas grandes patentes; o Senado está trabalhando submissamente sob o mesmo Ministério, que o exautorou.

O Governo, para responder à propaganda abolicionista, emprega meio simplíssimo; declara que ele se apóia na população que tem que perder e que o abolicionismo é o grito dos vadios, sem eira nem beira.

Prevost Paradol disse: «a timidez política do cidadão se aumenta com a sua fortuna; e a riqueza, em vez de ser um tônico à independência cívica e um apelo às nobres ambições políticas, é mais uma cadeia que o torna dócil a todos os caprichos do poder.»

Mas semelhantes palavras não podem pesar no espírito daqueles que vivem justamente dessa influência deletéria da riqueza sobre o aperfeiçoamento social.

Por agora, pensa Sua Alteza, a Regente, tudo vai bem, e portanto não é conveniente mudar.

Na estreiteza do horizonte político da Regência, não há portanto lugar senão para o sr. barão de Cotegipe.

S. Ex.ª tem, pois, inteira razão para garantir que só há de cair quando quiser.

O melhor sustentáculo do Ministério é a oposição d'O Paiz dizem os escritores ministeriais, ou por outra; enquanto a opinião protestar contra a conservação, ele será conservado.

É a política de Luís Filipe completa.

Querem Mr. Thiers? Muito bem: sirvam-se de Mr. Guizot.

Querem a abolição; entendem que sem ela o país não poderá marchar, que dia a dia o seu caráter como as suas finanças se arruinarão mais e mais até chegar ao completo aniquilamento? perfeitamente, diz o imperador, em Baden-Baden: continue o Gabinete da escravidão.

Eis por que aplaudimos a permanência do Gabinete do sr. barão de Cotegipe.

O sr. conde d'Eu sabe, melhor do que nós, quanto é impopular. Sua Alteza nem ao menos tem o apoio do imperador, segundo se diz.

É uma infelicidade, mas Sua Alteza sabe que até nos palácios entra a má estrela.

O momento para dar combate a essa impopularidade, até certo ponto injusta, era este, em que com o apoio da maioria da nação, Sua Alteza podia se fazer o herói da libertação de centenas de milhares de brasileiros.

Mas o constrangimento ilegal, em que se acha a Regência, que não pode exercer livremente as funções do Poder Moderador, faz também com que o príncipe consorte não possa sequer continuar no Brasil a tradição abolicionista da sua família, aconselhando sua augusta esposa a aproveitar-se da oportunidade que lhe vai fugindo de converter a mançanilheira da escravidão no loureiro do novo reinado.

Quando vier o habeas corpus de Baden-Baden será tarde.

O sr. barão de Cotegipe só não ensangüentou agora a propaganda abolicionista, porque teve medo do Senado.

Já mandou, porém, começar os processos por açoutamento de escravos, e para servir ao sr. Paulino de Sousa já está na penitenciária de Niterói um homem de boa sociedade metido numa enxovia promiscuamente com facínoras condenados.

O sinal de reação está dado e fechadas as câmaras, a Regência será a época da mais infrene e vergonhosa perseguição dos abolicionistas.

Se não for a escravidão redimida quem tenha de abençoar ao reinado, que assim se estréia, quem o abençoará?

Quererá viver da força o futuro reinado?

Talvez, mas é bom refletir nesta observação de Kepler: «machado com que se quis cortar ferro, serve depois para cortar madeira».

20 ago. 1887

Cidade do Rio

O Ministério não quer que a propaganda abolicionista continue sobre uma estrada de flores, ao som das fanfarras e bênçãos aos convertidos.

Essa propaganda da persuasão foi posta fora da lei e condenada como revolucionária. Distribuiu-se por todo o mundo oficial a senha: silêncio ou perseguição. Proibiu-se o coração abolicionista de bater.

Durante mais de seis anos, sob ministérios como o de Martinho Campos, foi respeitada a mais ampla liberdade de tribuna popular e de imprensa, e por esta válvula descarregou-se a pressão de três séculos de martírio da raça desprotegida e sacrificada.

O Ministério 20 de Agosto quebrou esse molde democrático de luta por uma idéia grande e generosa. Pelo seu comportamento reacionário autorizou a violação acintosa de direito de reunião, da liberdade de manifestação do pensamento pela palavra e pela escrita, aprovando de um lado a perturbação dos meetings e proibindo-os, em seguida; por outro lado, aceitando, como serviço relevante, a invasão e destruição de tipografias.

Onde quer que a propaganda abolicionista é servida por fortes e incorruptíveis caracteres, os defensores dos escravizados têm a vida em perigo.

O Governo manda atacar moral e fisicamente os propagandistas; abre devassas; enlameia-lhes a vida privada, as afeições mais caras, ainda mesmo que sobre elas já esteja colocada uma lápide mortuária; decreta a excomunhão de todos eles das relações com o Estado ou qualquer outro poder; em uma palavra, pela difamação, pela ameaça, ou pelo ataque à mão armada, provoca-os até o desespero.

Quem reler hoje, fria e refletidamente, o passado da propaganda abolicionista não terá uma única censura a infligir a esse punhado de heróis, que exumou do sarcófago legislativo a questão abolicionista, a reviveu e a restituiu à meditação do espírito e à sanção da consciência de todos os brasileiros.

Demonstra, à luz da evidência, qual a orientação dada pela propaganda abolicionista à alma do escravizado, essa heróica mas serena atitude dos vencedores de Itu, passando pacificamente por entre uma cidade aterrorizada, e isto quando lhes sangravam ainda as feridas de um combate de que saíram triunfantes.

Mais tarde, surpreendidos pela fome em meio ao seu êxodo, fustigados pela caçada desumana, que os farejava como a bestas feras, esses homens, em vez de lançarem mão do roubo em nome do direito à vida, confiam lealmente o seu destino à generalidade social. Não há uma violência, por mais insignificante, manchando essa página branca do êxodo de Capivari.

Os heróis dessa tragédia só derramaram sangue com altivez e lealdade, batendo-se como beligerantes pela própria liberdade. Não cometem o mais leve crime; defendem-se.

A essa nobreza de procedimento, a situação sanguinária responde pela destruição do Vinte e Cinco de Março, pelo espancamento de presos, pelo insulto a senhoras, pelo saqueio, pela ameaça à vida de um benemérito, pelo processo monstruoso nascido de uma provocação infame e baseado numa calúnia vil.

Os foragidos de Capivari passam por uma cidade como uma nuvem negra, é certo, mas que nem trovejou, nem despediu raio; a polícia, os agentes oficiais, depois de um dia de tropelias, aproveitam-se da noite com a perversidade dos... (ilegível) jurados de Carlos IX para espalhar terror, ferimentos e assassinatos... (ilegível) na dolorosa colisão de ser vítima, ou defender-se, o que há de fazer a propaganda abolicionista? Deixar-se sacrificar, como um cordeiro, ou reagir?

No caso de optar pelo sacrifício, a quem aproveitaria ele? À pátria?

O sacrifício aproveitaria à pátria, se, de feito, a abolição da escravidão fosse para ela um mal, ainda que de efêmeras conseqüências.

O consenso unânime hoje, de interessados e imparciais, demonstra o contrário.

Não há, fora do mundo político, um homem de reflexão que queira resistir à abolição; todos procuram meio de extinguir a escravidão com a maior brevidade.

Os contratos de serviços criando o statu liber, como medianeiro do trabalhador reumanizado, patenteiam a predisposição dos fazendeiros para uma conciliação razoável.

A manifestação patriótica do Exército em prol dos cativos, aos quais reconhece o direito de haverem a sua liberdade por meios dignos, como a greve e a retirada ordeira dos estabelecimentos em que são torturados, dá o pensamento da classe, por excelência conservadora das instituições.

O Direito, pela voz do Instituto dos Advogados, a religião, pela voz dos prelados, o comércio não enfeudado a escravidão, na sua despreocupação pelo conflito servil; todas as classes e com elas o ramo vitalício do Poder Legislativo, todos, finalmente, testemunham que a escravidão já não pode ter presente, quanto mais futuro.

Neste momento decisivo do combate da humanidade contra a barbaria, da honra nacional contra o roubo ao trabalho e à personalidade, seria, mais que um erro, um crime, cruzar os braços e oferecer resignadamente a cabeça ao cutelo do egoísmo negreiro.

O Gabinete pode exigir tudo dos abolicionistas, exceto a vida, ou melhor, a honra.

A continuação dos atentados monstruosos como o do Vinte e Cinco de Março, agravado pelo manejo imoral do flagrante de delito lavrado em prisões, que, uma população inteira atesta, foram efetuadas estando os pacientes tranqüilamente em suas casas; a continuação dessa tresloucada reação, que vai enchendo a nossa história de mártires, não pode deixar de turbar a calma abolicionista.

A violência provoca o desespero, que não reflete, que não sabe escolher meios para a desafronta.

Não fosse a magnanimidade da propaganda maior que a insensatez do Governo, a esta hora, ao grito de guerra da pirataria, em Campos, teria respondido a justa indignação dos abolicionistas em todo o Império por meios iguais ao empregado oficialmente.

Em todo caso, não é demais recorrer ao próprio interesse de Sua Alteza, a Regente, pedindo-lhe que faça cessar a reação desvairada de seu Governo.

O sr. Afonso Celso disse um dia no Senado que era prudente impedir que na questão servil viessem a falar os interessados.

A imprudência do Gabinete, que julgou ganhar, por uma evasiva -o pedido de tempo para estudo-, forças para dar batalha campal ao abolicionismo, deu a palavra a esses interessados, que até bem pouco pareciam completamente indiferentes ao pleito parlamentar da sua causa.

Suponho mesmo que o Ministério consiga exterminar todos os que defendem, na imprensa, na tribuna, nos tribunais, na convivência das famílias, os escravizados, o que poderá ele, o Ministério, contra os escravizados? O que há de fazer: exterminá-los também?

Sua Alteza, a Regente, tem um conselheiro permanente, o sr. conde d'Eu, e deve consultá-lo sobre se é ou não possível arrancar da alma do escravo a esperança da liberdade, desde que ele sabe que tem em si mesmo, na sua coragem, o meio de tornar realidade essa esperança.

Agora que ninguém discute mais por que é impossível contestar o direito que tem o escravo de resistir à escravidão, é um desvario forçar a mão para sufocar os apóstolos que evangelizavam o dogma da abolição.

A escravidão hoje serve apenas para eleger senadores e deputados, dar acesso a juízes, empregar bem a parentela das influências políticas. Fora desse mercado oficial de posições, a escravidão perdeu toda a sua força. Se ela ainda absolve criminosos confessos no júri, o que parece provar que ela ainda não perdeu todas as suas raízes populares, o fato explica-se pela organização do pessoal dessa instituição. Os jurados são os mesmos eleitores, que a dependência, a miséria deste país sem trabalho, ajoujou à canga da oligarquia.

A vida da escravidão atualmente é toda e exclusivamente oficial.

Sua Alteza não achará senão mercenários para defender a instituição maldita. A petição do Exército preveniu-a dessa verdade.

O caminho a seguir, portanto, é bem diverso do que está sendo aconselhado pelo Ministério. Se Sua Alteza, a Regente, não quer condenar os exploradores de homens à morte pela fome, deve obrigar seu Ministério a recorrer a instrumento diverso do punhal do sicário. Já o dissemos uma vez: dentro do pântano da escravidão não cabe o cadáver de um benemérito da abolição. Esse corpo deslocará um volume de lama ensangüentada, em que se afogara, não só a escravidão, mas todos os seus cúmplices.

31 out. 1887

Quem há cinqüenta e seis anos, vendo cair malferida no parlamento brasileiro a escravidão, poderia prever que a instituição maldita havia de sobreviver mais de meio século à maioria dos heróis dessa primeira campanha de Direito contra a barbaria, da honestidade nacional contra o roubo?!

Dizia-se que a lei de 7 de novembro de 1831 bastava para resolver o problema e que dentro em vinte anos estaria de todo seca a árvore fatal, que esteriliza o solo e sufoca a alma nacional.

Dizia-se, mas imediatamente depois, como acontece sempre nas revoluções incompletas, os vencidos da véspera apossaram-se do poder; a reação a mais sanhuda e antipatriótica se fez sentir, e todas as esperanças de pátria livre dissiparam-se como sonhos.

Já em 1835 era possível adivinhar o sr. barão de Cotegipe a fazer tilintar a bolsa da polícia secreta para comprar os mercenários das milícias da pirataria e assalariar delatores e testemunhas falsas. Desde então sente-se na terra esse cruor fratricida que empesta a atmosfera nacional, e ainda agora acaba de ser renovado em S. Paulo e em Campos.

A escravidão foi desde então o único pensamento governamental do Império.

A resistência ao Bill Aberdeen, dez anos depois, demonstrou-o cabalmente.

Durante quarenta anos, de 1831 a 1871, houve um pedacinho de horizonte iluminado para os escravizados: aquele em que se destacou a figura de Eusébio de Queirós deportando os negreiros.

De 1871 até estes últimos anos, ainda a escravidão pode considerar-se e agir como a primeira força do Império.

Todas as preocupações do país se resumiam na conservação desse hediondo regime que exauria insensivelmente a riqueza e a alma nacional, parecendo entretanto civilizar uma e desenvolver a outra.

Hoje, porém, se ainda no poder está acampado o sr. barão de Cotegipe, se o Governo é ainda um sobejo do tráfico, a opinião nacional viril e enérgica condenou sem recurso, como último tribunal, a instituição ominosa.

Já podemos de alguma sorte contemplar de cabeça erguida e com olhar sereno os heróis de 7 de novembro de 1831 e, se não depositamos sobre a memória deles a Coroa já entretecida com as bênçãos de todos os escravizados redimidos, deixamos sobre ela as nossas esperanças de que em breve eles serão os contemporâneos eternos da pátria livre que sonharam.

Quem julga superficialmente os acontecimentos pode desanimar, vendo a série de tropelias praticadas pela situação negra.

Em Campos, com uma perversidade que faria inveja aos patrões dos navios do tráfico, a polícia assassina prende, processa, espaldeira, ameaça, insulta senhoras, mente, e parece esgotar o arsenal do despotismo e da barbaria.

A população acobardada não reage; pelo contrário, não querendo sacrificar no altar das suas idéias a paz da terra natal, procura meios de conciliar com os interesses da ordem o direito da propaganda abolicionista.

Os clamores da imprensa, quer desta capital, quer da cidade oprimida, não bastaram para fazer cessar essa perseguição, que sem força para desarraigar uma idéia, serve apenas para flanquear de espectros de mártires a entrada do terceiro reinado.

Parece, pois, que pelo menos o Governo ainda tem força bastante para contrapor, a seu capricho, o seu programa de reação à propaganda abolicionista.

A província de S. Paulo vem, porém, destruir essa falsa idéia do poder do Governo.

Desde que o sr. Antônio Prado, ligado ao sr. João Alfredo pela mais estreita solidariedade, se colocou diante da sua província para impedir lá a invasão negra do Ministério, ficou demonstrado que este não representa senão as circunstâncias momentâneas da organização da contra-reação.

Não há muito vimos o Governo capitular diante das declarações categóricas e radicalmente opostas à sua política; vimo-lo recuar no caminho do extermínio, porque ele sabia que em São Paulo teria de encontrar-se com o sr. Antônio Prado e seus amigos, que dispõem de bastante força moral e material mesmo, não só para repelir os ataques do Governo, quer no terreno político, quer em outro qualquer que as circunstâncias os levassem.

Deu-se, entretanto, em S. Paulo um acontecimento gravíssimo: pela primeira vez, depois da gloriosa República dos Palmares, os escravizados deram prova cabal de que tinham consciência do seu direito, e deram batalha na defesa dele.

A força policial agindo, em nome da autoridade e do Governo, foi batida; a escravatura declarou-se beligerante aceitando dois combates.

Seria empenho de honra do Governo, se ele fosse lealmente um Governo, e não uma facção para explorar empréstimos, créditos e rendas de estrada de ferro, punir severamente os abolicionistas, porque sobre eles recai a responsabilidade dessa gloriosa conversão do rebanho secular de bestas de carga em exército regular para defesa do Direito.

Vimos, porém, que o Ministério procurou imediatamente fazer silêncio sobre o acontecimento e limitou-se a enterrar os mortos e curar os feridos.

Não mandou quebrar nenhuma tipografia em S. Paulo, não mandou efetuar prisões em massa, não ordenou que se espancassem senhoras.

Em Campos, porém, tratando-se de um brasileiro ilustre, mas pobre, de um grupo de abolicionistas glorioso, mas desprotegido, o crime, desde o atentado contra a propriedade até o assassinato, desde as prisões ilegais até o processo monstruoso, foi empregado como prova da força moral do Governo e do poder do escravismo.

Estas duas políticas, porém, praticadas no mesmo momento e sob a pressão de acontecimentos; um dos quais menos grave e mais brutalmente punido, evidenciou a fraqueza, senão material, a fraqueza moral do Ministério e da situação da pirataria.

Para que nós outros abolicionistas possamos dentro em pouco celebrar o dia 7 de novembro, basta que deixemos bem assinalado que a propaganda abolicionista pode, quer e deve proteger a vida e os bens dos seus adeptos.

Cônscios da grande responsabilidade que temos perante a história do nosso país, temos querido somente caminhar dentro da legalidade, quando já devíamos ter empregado os meios de que se servem os nossos inimigos, e podíamos tê-lo feito, se antes de tudo não fosse o nosso intuito salvar a honra de nossa pátria sem recorrer a meios revolucionários.

Para que se saiba bem qual a influência moral da propaganda abolicionista, mesa de comunhão do patriotismo a que hoje se sentam todos os partidos, não é preciso que nos demoremos a dizer quanto valemos.

Estão patentes as adesões, que de toda a parte nos chegam, desde a cadeira mais elevada da religião até ao movimento mais heróico do escravizado.

Na imprensa servem à causa da redenção os primeiros talentos; na política as mais fortes organizações de homens de Estado.

Voltamo-nos para o Partido Liberal e lá está firme junto à sua bandeira o sr. Dantas. Além disso sente-se que tudo que é viril nesse partido é pela abolição, como prova a circular do sr. Otaviano.

No Partido Conservador, encontramos o sr. João Alfredo, que na campanha de 1871 ganhou o bastão do comando, arrostando pela primeira vez, frente a frente, peito a peito, as legiões desumanas da pirataria.

O Ministério, portanto, nada pode. É um moribundo de moléstia infecciosa, que, de propósito, se aproveita do seu mal para ver se infecciona os seus semelhantes.

Hoje comemoramos ainda a lei de 7 de novembro, tendo sobre o espírito o luto e a dor pela sorte dos nossos irmãos de Campos.

No próximo aniversário, porém, quer o sr. barão de Cotegipe queira, quer não, a bandeira da abolição tremulará no poder, honrando a memória dos heróis que escreveram na lei o nome, que cabe ao Gabinete presidido por S. Ex.ª ministério da pirataria.

7 nov. 1887

A Sua Alteza, a Regente

Senhora.- Enquanto ontem Vossa Alteza Imperial assistia contente e radiante, cercada das atenções da corte e do bem-querer dos dilettanti e dos artistas, à matinée musical do cassino, o povo campista era violentado no seu direito de reunião e logo após perseguido a pata de cavalo, a carga de baioneta e de sabre, a bala, nas ruas da cidade, convertida agora em aquartelamento de assassinos, por ordem do Governo de Vossa Alteza Imperial.

Quando começou a luta desigual entre os mercenários da pirataria e o povo campista; aqueles armados e embalados pelo tesouro e pela caixa secreta do Clube da Lavoura, o povo inerme, e apenas aguerrido pelo seu direito; os abolicionistas recorreram a Vossa Alteza Imperial pedindo que justiça fosse feita e que Vossa Alteza Imperial ordenasse ao Governo a vigência das garantias constitucionais devidas ao cidadão.

Houve quem acreditasse (não quem escreve estas linhas) que Vossa Alteza Imperial ia de fato providenciar; os acontecimentos se incumbiram de demonstrar que a razão estava do lado do incrédulo.

O recurso para Vossa Alteza Imperial, em vez de melhorar, agravou a situação dos abolicionistas de Campos.

Ontem a soldadesca desenfreada, sob o comando de dois assalariados dos senhores de escravos de Campos, cometeu toda a espécie de crimes, continuando assim os atentados do dia 25 de outubro. Desde os representantes do povo até as mulheres, todos foram desacatados.

Cegos pela impunidade dos crimes anteriores, os dois bandidos, encarregados da polícia de Campos, feriram e atentaram contra a vida dos cidadãos, sem distinção de sexos.

A noite, todos estes fatos eram já conhecidos nesta capital, e, não obstante, Vossa Alteza Imperial era vista num teatro, muito tranqüila, a divertir-se gozando da lista civil amassada com as lágrimas dos escravizados e salpicada do sangue dos nossos compatriotas.

Facilmente expliquei-me a mim mesmo essa indiferença de Vossa Alteza Imperial pela sorte dos míseros campistas.

Os telegramas que noticiaram mais crimes ensangüentando a vossa regência, em nome da escravidão, concluíram noticiando que o povo foi vencido.

A tropa conseguiu mais uma vitória cobarde e miserável, vitória ganha depois que ela, apalpando os cidadãos na entrada do teatro, certificou-se de que eles estavam desarmados.

Vossa Alteza viu que nada havia a recear: enquanto os povos são vencidos, os reis podem continuar a divertir-se.

O nosso século diz, por fatos, que a cabeça dos príncipes não valem mais e muitas vezes valem menos que a cabeça dos populares; mas nenhum príncipe se convenceu ainda desta grande verdade, por isso que sem dificuldade eles sacrificam os povos e estes dificilmente se vingam.

Daí, esse desdém augusto pelo desrespeito às senhoras campistas, esse menosprezo pela vida de uma população, vil e infamemente sacrificada.

Os ministros de Vossa Alteza Imperial nos têm convencido de que é necessário um Governo violento, para dominar o espírito de revolta que eles, só eles, descobriram nesse cordeiro submisso, que tem na história universal o nome de povo brasileiro.

Fizeram crer a Vossa Alteza Imperial que foi a magnanimidade de vosso augusto pai a fonte dos protestos, que se levantam contra o Império, na tribuna popular e na imprensa.

Vossa Alteza acreditou na explicação fraudulenta e autorizou, por isso mesmo, a política de reação que vai ensangüentando o país e que deixa o cidadão sem garantias para usar dos seus direitos.

Sempre que alguém protesta, os ministros de Vossa Alteza dizem que o fim do protesto é abalar a autoridade da regência e solapar o trono de Bragança.

E Vossa Alteza, para firmar a autoridade regencial e consolidar o trono que vos deve pertencer, sanciona os crimes que o Governo manda praticar.

Vossa Alteza está convencida de que matando abolicionistas, os revolucionários oficiais, ganha muito mais em força e prestígio do que favorecendo a causa dos escravizados, tomando a honrosa responsabilidade de continuadora da política de 1871.

Na ingênua simplicidade feminina, Vossa Alteza pensa que para reinar basta dispor de dinheiro, de tropa, de ministros, de câmaras e de magistratura. Faz do Governo uma questão de forma e não de substância.

Quem são os abolicionistas da rua? pergunta Vossa Alteza. Responde-vos o sr. barão de Cotegipe: uns anarquistas, sem eira nem beira, e sem prestígio. E para confirmar a afirmação, o sr. presidente do Conselho mostra o dr. Davino, acusado de haver assassinado quatro homens, cercado das atenções da nobreza, e Carlos de Lacerda, roubado pela força policial, obrigado a viver foragido para não pagar com a vida o que seus companheiros estão pagando em processo monstruoso.

A evidência dos fatos confrontados convence Vossa Alteza Imperial de que o sr. presidente do Conselho fala a verdade.

No momento atual, a força está com os que matam, ou mandam matar escravizados e libertos. Quando eles acabam de praticar o crime, acham logo quem os vitorie, porque são proclamados heróis do escravismo, o que pretendem vencer pelo terror.

Devo, porém, ponderar a Vossa Alteza que o estado atento da evolução abolicionista no país desmente o sr. barão de Cotegipe, o que não é para admirar.

O escravismo não está fazendo senão uma reprise das suas antigas tragédias.

Nessa mesma Santa Maria Madalena já se deu o processo Lemgruber. A diferença única foi estar no Governo o sr. d. Pedro II e não Vossa Alteza Imperial, pelo que a autoridade, em vez de se ver obrigada a recuar diante dos assassinos e seus protetores, arrostou-os energicamente.

O abolicionismo, esse abolicionismo da rua, foi combatido desde o primeiro dia com as mesmas armas de hoje, com a diferença de que o imperador não aceitava a cumplicidade dos miseráveis.

Não obstante, o abolicionismo, vencendo o sr. Saraiva, o sr. Sinimbu, o sr. Martinho Campos, o sr. Lafaiete, chegou a libertar províncias, a revolver a consciência nacional, decantando as fezes da pirataria.

Cada violência contra ele praticada aumentava-lhe a força, duplicava-lhe o prestígio. Acontecia com ele o mesmo que se dá com a poda das árvores, em vez de enfraquecê-lo, robustecia-o.

Vossa Alteza esteve quase sempre fora do país, durante a segunda fase da propaganda abolicionista e por isso não lhe conhece a história. É esta a razão que vos leva a dar crédito aos vossos ministros, prepostos desumanos da pirataria triunfante.

Não para suplicar, mas para esclarecer, cumpre aos abolicionistas dizer a Vossa Alteza Imperial que eles não querem a anarquia.

Para saber qual o autor de um crime desconhecido, é preciso, antes de tudo, saber a quem ele pode aproveitar.

Não é aos abolicionistas que aproveita a anarquia, nesta última hora da escravidão.

Quando por toda a parte, no Senado, na Câmara dos Deputados, nas Assembléias Provinciais, nas Câmaras Municipais, se trabalha para extinguir a escravidão, que lucro poderiam ter os abolicionistas em apelar para a anarquia, com risco de perder os próprios adeptos que fizeram?

Quem é que pode pensar que a cidade de Campos abolicionista respondesse ao sacrifício do sr. Antônio Prado pela desordem?

Demais, se nós fôssemos anarquistas, se nós quiséssemos, antes de tudo, abalar as instituições, não nos comprometeríamos a sustentar ministérios como os dos srs. João Alfredo e Dantas, ambos monarquistas e muito mais dedicados à Monarquia que os fazendeiros hipotecados, que se servem do Governo para acomodarem-se com os seus credores.

Os anarquistas, os revolucionários estão nascendo agora da sementeira de violências e de crimes, feitos pelo Gabinete, em nome de Vossa Alteza Imperial.

Cada campista, ao lembrar-se de que a sua cidade tem sido o campo do extermínio de seus concidadãos, se converterá necessariamente numa força concentrada à espera do momento da desafronta.

O povo brasileiro, ao ver a vida dos seus compatriotas menosprezada pelo seu Governo, começará a julgar que a vida pouco vale e que não se deve cogitar dela, quando se trata de questões que entendem com a honra da pátria.

Quem, finalmente, está ensinando ao povo, aos abolicionistas, principalmente, a cartilha revolucionária é o Gabinete de Vossa Alteza Imperial, que pretende governar em nome de uma facciosa minoria, que emprega a corrupção e a morte como elemento de seu poder.

Senhora.- Os concertos clássicos, os teatros e os ministros sanguinários podem ser mais gratos a Vossa Alteza do que a vida de um povo; mas o que vos posso afirmar é que na balança da História pesam muito mais o sangue e as lágrimas das vítimas, que os bemóis da música cortesã e a adulação dos favoritos e válidos.

21 nov. 1887

Sua Alteza Imperial Regente deve estar assombrada de quanto se tem dado nas suas relações oficiais com o Ministério.

Para a sua delicadeza e susceptibilidade de senhora, a posição em que a falta de pundonor do Gabinete a tem colocado, é, com certeza, das mais aflitivas.

Sabemos que Sua Alteza tem procurado todos os meios de demonstrar ao sr. barão de Cotegipe que lhe retirou a confiança, de que S. Ex.ª tanto abusava em prejuízo da dinastia e da pátria.

E, por exemplo, eloqüentíssimo o procedimento regencial com relação à aposentadoria do magistrado pernambucano.

Ficou estabelecida a praxe de, antes do despacho, o soberano entender-se com o presidente do Conselho para combinarem as deliberações que têm de ser tomadas pelo Poder Executivo.

Sua Alteza, porém, no despacho em que a aposentadoria do desembargador Tertuliano tinha de ser resolvida, nada disse ao sr. presidente do Conselho; aguardou para apresentar o telegrama desmentindo o ministro da Justiça a hora em que as pastas são solenemente esvaziadas.

Não pode haver prova mais significativa de que Sua Alteza já não acredita no que lhe dizem os seus ministros e de que igualmente evita as discussões com eles, por temor de ver mascarados pelas suas palavras injustiças e arbítrios.

Está no domínio público que o sr. Mac-Dowell, susceptibilizado pela prova de desconfiança regencial, pelo desmentido seco de superior para o subordinado, apresentou ao sr. presidente do Conselho a sua demissão.

O sr. barão de Cotegipe, porém, não a aceitou e constrangeu em nome do Gabinete e da amizade a permanência do ministro da Justiça.

-Não somos Ministério de confiança, mas de resistência. Esperemos pela Câmara, que é de fato o soberano que hoje existe. Não se esqueçam de que somos Ministério da Regência, em nome do Imperador.

Já outra ocasião, molestado por uma das primeiras provas de divergência, um ministro quis retirar-se e o sr. presidente do Conselho disse-lhe:

-É preciso olhar para o futuro, não nos demitamos, esperemos que nos demitam.

Melhor do que nós, Sua Alteza há de saber que há da parte do sr. barão de Cotegipe o maior empenho em conservar-se no poder à custa de tudo.

Asseguramos como cavalheiros que, pelas versões que correm, todos os pequenos desgostos que têm magoado Sua Alteza partem do sr. barão de Cotegipe.

É assim que a propósito da batalha das flores, S. Ex.ª disse que tinha destacado para Petrópolis os seus dois colegas da Fazenda e da Agricultura -para evitar certas inconveniências.

Vem aqui de molde estudar um fenômeno que se está dando em Petrópolis. Sua Alteza, a Regente, desembuçando o seu coração de senhora, colocou-se à frente da meritória obra da redenção dos cativos naquela cidade.

Era de esperar que ao sacrifício da princesa correspondesse a generosidade geral.

Pois bem, no Correio Imperial de 21 de fevereiro, lêem-se estes expressivos períodos, editados pelo príncipe do Grão-Pará:

«Para coroar esta bela obra (a emancipação de Petrópolis) falta somente que os senhores de escravos, inspirando-se em sentimentos generosos, facilitem por seu lado a emancipação diminuindo, ao menos, o valor dos libertandos desta cidade.

Que muito que façam um pequeno sacrifício, quando todos nós pagamos mais ou menos, diretamente, o tributo imposto pela resolução do magno problema?

Penso que não apelaremos em vão para a alma generosa dos senhores de escravos, e que o próprio município não tardará muito em seguir a trilha luminosa.»


O que se depreende desses períodos é que mesmo Sua Alteza, a Regente, encontra dificuldade na difusão dos seus sentimentos humanitários, e isto em uma cidade que, pelo seu adiantamento e pelas suas condições, pode perpetuamente associar-se à libertação.

A causa desse fenômeno é a notoriedade da resistência do Gabinete à aspiração abolicionista do país.

Não comentaríamos o fato, se ele não tivesse conseqüências funestas para Sua Alteza Imperial.

Quem lê os jornaizinhos dos príncipes, tão puros e tão patrióticos, com uns períodos louros como os cabelos de Suas Altezas, jornaizinhos mansos como pombas, que não sabem senão arrulhar, mesmo quando feridas, e compara à política essa expansão d'almas brancas, perfumosas, almas de arminho guardadas em estufa de violeta, sente dentro de si um sentimento espontâneo de revolta contra a Regente.

Sua Alteza é mãe, não pode consentir que o espírito de seus filhos se embeba de doutrinas falsas e sature-se de exemplos maus.

Ou o abolicionismo é a anarquia, é a falta de patriotismo e a subversão da fortuna pública, e neste caso Sua Alteza faz mal, consentindo que seus inocentes filhinhos sejam educados sob a influência de semelhante doutrina; ou o abolicionismo é o primeiro sentimento patriótico de um coração brasileiro bem formado, e neste caso é tristíssimo que Sua Alteza, mãe, consentindo educação abolicionista de seus filhos, dê-lhes o espetáculo de sua fraqueza, simulando-se vencida pelo país, quando não faz senão condescender com a falácia dos ministros, que chamam aos seus interesses privados -opinião nacional.

Duas coisas não podem continuar com o consentimento de Sua Alteza: o Ministério e os jornaizinhos dos príncipes.

Ou o abolicionismo é um sentimento unânime do país, e neste caso o Ministério da escravidão não pode continuar sem ofensa do país; ou o abolicionismo não é um ideal nacional, e nesse caso Sua Alteza procede irregularmente permitindo a seus filhinhos, um dos quais é herdeiro da coroa, manifestar-se contra a vontade popular.

A lógica impõe-se à política, do mesmo modo que a nobreza de sentimentos ao coração de Sua Alteza.

Que dirá a história da Regente, quando a vir, senhora delicada e mãe carinhosa, ensinando a fraternidade no paço a seus filhos e consentindo no Governo os co-réus dos assassinos que matam mulheres em Campos, espostejam cidadãos no Rio do Peixe, e levam a sanha a esporear cadáveres e a dar pontapés em crianças?

Como esconder a responsabilidade nestes atos, quando é vítima deles uma autoridade?

Sua Alteza passará à História como a imagem viva da hipocrisia, quando aliás é sabido que o seu coração está limpo dessa culpa.

Quem lhe cria esta situação dúbia? O Ministério, que obriga a alma da senhora a irromper do sítio posto à liberdade da soberana.

Nos palácios é raro encontrar quem fale a verdade aos príncipes: daí o Ministério ter podido condenar Sua Alteza à impopularidade, que dia a dia cresce, sem que o palácio dela se aperceba talvez.

Sua Alteza não sente em derredor de si a hostilidade pública, pela razão simples de que o colchão de incenso, em que os familiares do paço balouçam o seu espírito, amortece-lhe o choque.

Mas a verdade é que ao ver este Ministério, que não tem sequer prestígio para guardar o lar regencial, aparentando a mais completa onipotência política, o povo não acredita que Sua Alteza tenha sequer consciência da responsabilidade de sua posição.

O palácio não mede o efeito que produz a notícia de que um primo irmão de Sua Alteza, a Regente, foi condenado como gatuno; mas o Ministério tem o dever de evitar que tais fatos cheguem a impor-se à publicidade.

Ninguém dirá que não havia meio de evitar esse escândalo universal.

Outro ministério qualquer teria tomado providências no sentido de, pelo menos, deixar o espírito público em dúvida.

Os reis, mais do que os outros homens, precisam de reputação pura; as dinastias, como a mulher de César, não podem ser suspeitadas.

Com relação ao príncipe d. Pedro Augusto ainda é maior a responsabilidade do Ministério.

Em todo o país sabe-se hoje que há desconfiança da parte dos herdeiros presuntivos contra o príncipe d. Pedro.

Pode ser isso exato, pode não o ser. Cumpria ao Ministério vir ao encontro do boato e dissipar a impressão causada, tanto mais que é notória a existência do Partido Republicano, solidamente organizado em duas províncias que têm a hegemonia do Sul -o Rio Grande e São Paulo.

Dando como latente a idéia da formação de um Partido Constituinte, de que é pródromo o sério movimento das câmaras municipais, é claro que a notícia da falta de solidariedade de vistas da família imperial acoroçoará a indiferença pela sorte das instituições monárquicas.

Entretanto, o Ministério todo voltado para o Val de Palmas, abandona Sua Alteza à corrente dos acontecimentos e acoberta-se com a liberdade do Poder Moderador, para não assumir a responsabilidade de sua ominosa conspiração.

Sua Alteza não tinha ainda visto nada do que lhe deixamos aqui revelado e entretanto é preciso que veja e medite.

O Ministério está deliberado a cometer todos os desatinos imagináveis para conservar-se no poder.

Provoca a indignação popular por todos os meios para forçar Sua Alteza a sustentá-lo por brio diante de uma capitulação.

A respeito do abolicionismo é preciso que nós outros declaremos: não estamos resolvidos a tolerar mais a impunidade de crimes como os de Campos, Santa Maria Madalena, Rio do Peixe e os que se projetam em Pindamonhangaba.

Alguém nos há de pagar esse sangue derramado acintosamente, ou o nosso sangue se irá misturar com o das vítimas.

É preciso, por bem de si mesma, que Sua Alteza apresente ao Ministério o seu ultimatum.

Por meio de estímulo à dignidade dos ministros, o Gabinete não se retirará.

Um ministério que, desmentido secamente por uma senhora que lhe exibe sem exórdio um telegrama, onde se diz que não é exato o que um decreto diz; um ministério que se atreve a ser negreiro sem rebuço diante de uma soberana, que educa seus filhos ostensivamente em opiniões contrárias, e mais: pratica pessoalmente a caridade abolicionista; um ministério que tem consciência do abandono de seus correligionários e entretanto vende a dignidade pessoal, o pundonor das funções, por mais dois meses de poder; não pode ser tratado fidalgamente.

É preciso que Sua Alteza seja realmente soberana e diga francamente ao sr. barão de Cotegipe que precisa de chamar um ministério que possa ocupar-se francamente da questão mais momentosa do país.

O meio é simples; o sr. barão de Cotegipe disse: a lei ou o sr. Dantas; por outra: escravidão franca, ou abolicionismo sem máscara.

Lembre Sua Alteza a S. Ex.ª as suas próprias palavras, e salve-se com a honra da pátria.

27 fev. 1888

Senhora

Vossa Alteza deve estar contentíssima com a brusca mudança que se operou no espírito público.

A tempestade que se abobadava sobre o vosso futuro, sinistra e ameaçadora, desfez-se como por encanto. O mar das paixões, que desobedeceu heroicamente ao quos ego do arbítrio, abonançou-se ao vosso sorriso de estima pela opinião.

Vistes, Senhora, qual a eficácia do Governo de acordo com a vontade nacional.

Se os reis soubessem como o povo é bom, sacrificá-lo-iam muito menos; prefeririam o apoio leal, desinteressado das massas ao sufrágio interesseiro de certas classes, sufrágio que exige sempre como preço o holocausto dos direitos populares e que não raras vezes comprometem as dinastias.

Os empreiteiros de tirania hão de dizer que fizestes mal entregando ao clamor público os homens que a vergonha nacional acusava de haverem imolado aos seus interesses a dignidade do Governo e do povo.

Sabemos que não é dos estilos, principalmente entre nós, atender ao povo, mas nem por isso deixa de ser verdade que num sistema representativo, em que todos os poderes são simplesmente delegações da nação, o soberano só é verdadeiramente constitucional, quando reconhece a existência ativa e real da soberania popular.

Atender ao povo, longe de desmerecer, prestigia o Governo.

Querer antepor à opinião os caprichos pessoais ou de uma facção; decidir arbitrariamente que não há razão, senão nos que estão no poder; que só os ministros falam a verdade e respeitam a lei; que fora do mundo oficial está a anarquia, a conspiração contra as instituições; é mil vezes mais perigoso do que respeitar a vontade manifesta da nação, mesmo quando, já cansada de pedir, ela começa a exigir.

Observai através da História, Senhora, que o povo só se impacienta depois de sofrer resignadamente longos anos. Nunca se viu formar-se instantaneamente uma opinião, que ameace instituições.

Demais, há no povo uma força, que por isso mesmo que lhe garante a vitória, preserva-o da sofreguidão injusta: -é o bom senso.

Sempre que o povo combate uma instituição, é que ela é realmente má e deve desaparecer.

O Ministério Cotegipe foi violentamente combatido, porque ele representava uma instituição degradante: -a escravidão.

A ousadia de propor-se um ministério a resistir a mais acentuada aspiração de um povo, demonstrava que ele só podia fazer um Governo de facção.

Obcecado pela idéia fixa de vencer o abolicionismo, o Gabinete comprometeu sua política e a sua administração.

Quanto ele fez devia fatalmente praticar.

Que classe podia respeitar um ministério, organizado expressamente para desacreditar os sentimentos humanitários de um povo?

Vossa Alteza viu que o Ministério desrespeitou desde o Senado até ao último cidadão brasileiro.

Disse ao Senado: não faço caso dos teus votos.

Disse à Câmara: é para mim a mais fútil das burlas o teu direito de interpelação.

Disse ao seu partido: tu para mim representas a vontade do sr. Paulino e o interesse dos meus parentes e afilhados.

Disse ao Exército: cala-te ou persigo-te.

Disse à Marinha: prefiro a onipotência da minha polícia ao rubor do teu brio.

Disse à imprensa: eu só quero de ti a circulação da calúnia, a tiragem da difamação.

Disse ao povo: eu só quero de ti a obediência canina; silêncio ou espingardeio-te.

Aos que acusarem Vossa Alteza de haver obedecido à intimação da praça pública, respondei que estáveis numa contingência dificílima: ou receber a intimação do direito, ou a intimação do despotismo; e preferistes a primeira.

Se o soberano devesse fechar sistematicamente os ouvidos ao povo, este deveria considerá-lo sempre um inimigo, e estaria fraudado o princípio constitucional do Poder Moderador.

A praça pública não é o caminho regular, concordamos, porém, o voto do parlamento não é o caminho único, tanto assim que ficou ao Poder Moderador liberdade inteira para nomear e demitir ministério.

O direito de dissolução é o reconhecimento da opinião extraparlamentar.

Vossa Alteza inaugurou um sistema que parece dar maior responsabilidade à Coroa, mas que na realidade a diminui.

O povo, Senhora, não é o insensato, o leviano pintado pelos exploradores do poder. É o bom senso em grande, é a justiça em massa.

Os parlamentos podem derrubar Gambetta, o povo o adora e o sustenta, e mesmo depois da sua morte, deixa-se dirigir pelo seu pensamento.

Lá está na Espanha o exemplo mais vivo do que é a alma popular.

Essa bela e meiga viúva, que ficou ameaçada pela herança de Afonso XII, porque ouviu de preferência o povo, consolidou o seu trono.

O povo quer sentir nos atos do Governo a solidariedade do seu soberano com os direitos populares.

Se houvésseis, Senhora, adiado a demissão do Ministério Cotegipe, o povo não agradeceria; ao contrário, guardaria contra Vossa Alteza ressentimento, por entender que pesa mais nos conselhos da Coroa uma aposentadoria, ou qualquer outro pretexto, que o sangue e o sacrifício dos cidadãos.

Depois de saber que Vossa Alteza havia demitido, heróica, digna, patrioticamente esse Ministério maldito, que emoldurou em dois anos de Governo todas as violências de três séculos de escravidão, continuei a ler a Legenda dos Séculos e reli com o espírito e o coração essas páginas triunfais do Eviradnus.

Estremeci, Senhora, diante daquele descuido de Mahand, adormecida entre os dois conspiradores; lamentei o terror que a fez permitir que entrassem no castelo misterioso da sagração do soberano esses intrusos sem alma, que a bajulavam para imolarem-na, mais comodamente, nos seus interesses e apoderarem-se da coroa que ela não tinha tido coragem de colocar sozinha na sua cabeça, mediante algumas horas de sacrifício.

Vossa Alteza conhece o final dessa tragédia.

Os dois conspiradores têm desdobrado os corações e posto pelo avesso as almas torpes e miseráveis.

Sente-se um rumor: um frêmito das armaduras das estátuas dos antigos guerreiros.

Os bandidos atemorizam-se, mas volvem a confiança no êxito do crime. Quem podia ressuscitar aqueles bronzes? Quem poderia chamar à vida aquela morte dupla dos heróis, representada pela decomposição do corpo e pela fusão brônzea das formas!

Mas o silêncio, a solidão povoam-se de súbito com o aparecimento de um homem. É um velho guerreiro, é Eviradnus, que, tendo percebido a conspiração, veio guardar com a sua lealdade a princesa e a pátria, igualmente ameaçadas.

Que indescritível, fora dos versos do poeta divino, essa luta de dois contra um, luta em que dois soberanos jogam a vida por um crime e um herói resgata a pátria pela vida.

Ao primeiro assalto, cai um dos celerados. Mas o outro, sente-se agora forte, está armado, vai varar o coração do herói, que não dispõe já da espada.

Passa pelo espírito de Eviradnus um relâmpago divino. Jaz a seus pés o cadáver do rei. Agarra-o pelas pernas, maneja-o, converte-o numa formidável massa e consegue fulminar o adversário e sepultar na torrente que passa os dois reis justiçados.

No dia seguinte, Mahand, que devia ser recebida pela maldição eterna da pátria, é aclamada a soberana altiva e heróica, a esperança nacional.

Ao terminar a leitura do Eviradnus, eu perguntei a mim mesmo, porque, nesse momento, sentia impressão mais viva do que outrora.

E a reflexão disse-me:

É que há semelhança entre os perigos da marquesa de Lurácia e da princesa herdeira da coroa do Brasil.

Ela devia entrar só nesse castelo secular onde o povo exige que ela se coroe rainha -a abolição.

Teve receio e chamou para seus companheiros os srs. Cotegipe e Paulino -os dois reis do escravismo.

Uma vez senhores de confiança de Vossa Alteza, eles conspiravam para arrebatar-lhe a coroa, e o teriam feito se o sr. João Alfredo, o Eviradnus parlamentar, não tivesse a tempo percebido o jogo sinistro e não se tivesse a tempo armado com o cadáver do sr. barão de Cotegipe para fulminar o rei sobrevivente do escravismo, o sr. Paulino de Sousa.

Vossa Alteza está salva; pode reinar utilmente sobre este povo, digno de um governo honesto e patriótico.

Nunca nenhuma rainha teve diante de si mais glorioso trono. O que espera Vossa Alteza é feito com os corações do que vos construiu a pátria com o seu suor e com o seu sangue.

12 mar. 1888

Depois das grandes enchentes, os rios costumam carregar no seu dorso abundante espumarada.

É o resíduo das inundações, a vaza dos enxurros das montanhas, condensados nos pântanos e brejais.

Essa espumarada não quer dizer que a enchente continua; que a agitação tempestuosa perdura.

Igual fenômeno se está dando agora no rio da opinião. Ainda bóiam á tona da opinião as espumas produzidas pelo embate das paixões violentas, fustigadas pelos desmandos e arbítrios do Ministério passado; mas, dentro em pouco, esperamos, veremos correr límpida e tranqüila, transparente e risonha, a corrente das aspirações nacionais.

O Ministério 10 de Março é felizmente composto de homens já experimentados no Governo; saberá dissipar pelos seus atos as dúvidas e apreensões que sobreviveram à gloriosa satisfação dada pela Regência à soberania da vontade nacional.

Não há espírito sério que se deixe convencer de que a boa política seria provocar uma crise política para chegar por ela à resolução do problema servil.

Os que têm estudado a história parlamentar de nosso país sabem que nunca nenhum partido tomou à sua conta intransigentemente a extinção da escravidão.

Nenhum partido fez da abolição o seu programa de ação, o dogma fundamental da sua igreja política.

A reforma do elemento servil foi sempre um capítulo de programa de oposição, mas nunca absorveu os espíritos de modo a se impor como primeira das suas obrigações governamentais.

O Partido Liberal duas vezes, em 1868 e 1869, inscreveu na sua bandeira uma esperança para os escravizados; mas, subindo ao poder em 1878, considerou questão resolvida pela lei de 1871 o problema servil e capitulou como anarquia a propaganda em favor dos escravizados.

Os dois chefes mais eminentes então, os srs. Sinimbu e Saraiva, deixaram bem claro que o Partido Liberal não tinha nenhum compromisso urgente e imperioso para com os escravizados, e acentuaram que não passariam nunca dos meios indiretos para chegar a essa reforma.

Não se entendeu no Partido Liberal que a reforma servil merecesse sacrifício, e a prova é que, tendo aquela situação devorado vários ministérios, nunca fez crise para impor o trabalho em prol daquela reforma.

Pelo contrário: não só demitiu o sr. Dantas, combinando-se para esse fim com os negreiros conservadores e os partidários pessoalmente infensos a S. Ex.ª, como sustentaram depois o sr. Saraiva, resignando-se a guardar o poder e assumindo nele a responsabilidade da realização de alheias idéias.

No passado, como no presente, o Partido Liberal nunca se serviu do escravo senão para arma de oposição.

É assim que Nunes Machado, discutindo a lei de repressão do tráfico, declarava-se coacto, e o sr. Joaquim Nabuco, apesar dos seus grandes talentos e prestígio, nunca recebeu da situação passada nenhuma prova de solidariedade partidária. O moço deputado foi sempre considerado adiantado demais, ainda mesmo quando apresentava, como o fez na sessão legislativa de 1880, o projeto de abolição no prazo de dez anos.

O Partido Liberal teve três dissoluções, e, não obstante, nunca conseguiu maioria abolicionista, nem mesmo quando foi conhecido o pacto do sr. Dantas.

Arrogar-se um partido o direito à realização de uma idéia, a favor da qual não trabalhou nunca no Governo e, quando se viu forçado a convertê-la em projeto, vazou-a sempre nos moldes os mais acanhados, é pretensão demasiadamente aventurosa.

Se os programas dos partidos se discriminam por atos e não por palavras, é mais razoável confiar ao Partido Conservador a solução do problema servil. Foi ele que cortou os dois istmos que prendiam nossa pátria ao continente da pirataria -o tráfico e a maternidade escrava; é justo que seja ele que rasgue a franca navegação da nau do Estado pelo oceano da igualdade civil.

Sua Alteza, a Regente, deu a maior prova de bom senso governamental ouvindo os clamores populares e confiando ao atual presidente do Conselho a missão de os fazer ouvir pela lei.

Quem conhece a história da extinção do tráfico entre nós sabe qual o perigo de consentir que se torne política a sagrada questão social da extinção da escravidão.

Todas as humilhações com que fomos justiçados durante o conflito Aberdeen são o resultado desse grave erro político.

As lutas de partido foram a causa de se haver prolongado por tantos anos a agonia da pirataria, que, morrendo afinal ao ar livre, infeccionou ainda por mais de trinta anos a nossa existência de povo civilizado.

Se não houvesse uma grande série de considerações históricas para justificar o ato do Poder Moderador chamando o sr. João Alfredo, bastaria uma simples consideração de ordem moral: seria um atentado contra a própria consciência augusta, convencida de que a escravidão é uma monstruosidade, e mais, de que a sua permanência estava perturbando o país em todas as suas relações políticas, econômicas e morais, adiar por mera questão de fórmula a reparação devida à vítima e a segurança devida ao povo e às instituições.

O que nós outros sabemos historicamente é que a morte da escravidão no país se operou como a destruição do feudalismo em França, como a decretação do sistema representativo em Inglaterra, e subseqüentemente em todo o mundo, pela aliança do soberano com o povo.

É uma revolução de cima para baixo.

O povo não teria força por si só para realizar a abolição da escravidão; encontrava, contrariando as suas aspirações, a facção essencialmente despótica dos proprietários de escravizados.

Republicanos, liberais, conservadores são igualmente réus do crime do roubo de almas, como o Canning chamou à escravidão.

Nenhuma legislatura sentiu-se espontaneamente forte para propor o problema.

Foi extraparlamentar a força de Eusébio de Queirós, a força de Rio Branco, a força de Dantas, a força de João Alfredo. O povo pela propaganda, o imperador pela escolha dos homens; eis os beneméritos da abolição da escravidão. Só depois que esses dois poderes se manifestam, até abusivamente, é que o parlamento se move.

O Partido Liberal não pode reclamar o poder em nome da Abolição, ainda por outra razão: a sua incapacidade absoluta para reformar democraticamente. Aí está, para não ir muito longe, a sua lei de 1885, contra a escravidão, e a sua lei eleitoral de 1881, contra o cidadão.

Infelizmente, apesar de todos os seus sacrifícios, o Partido Liberal, por isso mesmo que é uma excrescência política, só sabe fazer democracia de oposição. Ele há de ser eternamente o revolucionário contra a lei de 3 de dezembro, que mais tarde dá toda a expansão tirânica a essa mesma lei.

Para apreciar bem qual a timidez democrática do Partido Liberal, quando legisla, basta confrontar os projetos liberais da sessão legislativa com os conservadores, o ano passado; a atitude dos chefes liberais com a dos conservadores.

Os conservadores intimam o sr. barão de Cotegipe a dar uma solução ao problema servil, na sessão deste ano; os liberais negam urgência ao projeto do sr. Dantas. Mais ainda: na questão dos avisos reescravizadores, em vez de votar unido, houve liberais eminentes, que, por mera questão de fórmula, negaram o seu voto, condenando assim milhares de homens ao cativeiro por um novo tráfico: a pirataria da praxe.

Mas, dir-se-á que também os conservadores, que nós hoje aplaudimos, cometeram, alguns deles, o mesmo erro.

Não é lógica a alegação. O Partido Conservador estava no poder e alguns de seus chefes sentiam-se com força para realizar, mais depressa que os liberais, a reforma. Era, pois, natural que não abrissem mão da situação em favor dos seus adversários, tanto mais que era palmar a certeza de que, não se julgando em perigo de perder na História o primeiro lugar, os liberais ainda se conservaram desunidos.

Ninguém diria que o sr. Saraiva queria confessar-se apto para resolver o problema servil instantaneamente, quando declarava que só votaria, sobre esse assunto, projeto vindo da Câmara dos Deputados, até então dedicada ao Governo Cotegipe.

É verdade que, à primeira vista, a manobra dos conservadores abolicionistas não foi compreendida, e nós mesmos os combatemos. Desde, porém, que entraram as férias parlamentares, todos os que sabiam do acordo Prado-João Alfredo convenceram-se de que houve a mais sábia estratégia nas retiradas desses estadistas.

Para nós outros que entendemos que o bastão de marechal ganha-se no campo da batalha e não escrevendo proclamações e recolhendo-se a quartéis na hora do combate, o ato de Sua Alteza, a Regente, é o mais correto.

Sua Alteza deu a única solução positiva, que se compadecia com a situação do problema servil.

Se tivéssemos direito a aconselhar o Partido Liberal, nós lhe diríamos que só lhe resta um caminho a seguir -o que lhe foi apontado pelo sr. Dantas: apoiar francamente o Ministério 10 de Março, dar-lhe todo o prestígio para resolver o problema servil.

É preciso não fazer questão da pessoa, mesmo porque todo o país duvida que os liberais encarregassem de resolver o problema ao único liberal indicado para essa grande obra, o sr. Dantas.

Não é de hoje que a democracia se irrita por ver destacar-se demais da massa um dos seus concidadãos e na sua susceptibilidade condena o justo ao ostracismo.

Os liberais sinceramente abolicionistas viram que se deu no seu partido o mesmo que no Partido Conservador: o sr. Saraiva foi e é para o sr. Dantas o mesmo que o sr. Paulino de Sousa foi e é para o sr. João Alfredo.

Quando os partidos se dividem, como se dividiram pela idéia da abolição, fica provado que a idéia não é propriedade de nenhum deles.

Com relação à eleição direta, houve divergências em ambos os partidos; porém não cavaram propriamente dissidências; ninguém contestou ao Partido Liberal o direito à reforma, que ele realizou, louvado seja Deus, de modo a limpar a mão à parede.

A idéia da libertação da escravatura é grande demais para se enquadrar nos estreitos moldes dos partidos atuais do Brasil, meros ajuntamentos oligárquicos, organizados para explorar o Estado em substituição da exploração do negro.

É preciso ver mais longe e em horizonte mais largo. A extinção da escravidão é uma idéia nacional, pertence ao povo brasileiro, e todo estadista tem competência para realizá-la.

Todos os partidos têm-lhe fornecido grandes propagandistas e mártires. Em setenta e um no parlamento tinham o mesmo ardor Inhomirim e Sousa Franco; agora nesta última fase, é impossível esconder, mesmo com a sombra de Rui Barbosa e Nabuco, a pessoa de Severino Ribeiro e no Senado, toda a luz do sr. Dantas não foi mais agradável do que essa luz suave e templária da modéstia do sr. senador Jaguaribe.

É preciso que o povo saiba que o sr. João Alfredo fez o maior sacrifício calando-se, condenando-se ao segundo plano.

É que S. Ex.ª viu desde 1875 até 1885 triunfando parlamentarmente a dissidência de 1871, e rebelar-se seria sacrificar a vitória. E porque não queria servir a sua pessoa, mas a sua pátria, S. Ex.ª fez como Régulo que, fingindo obedecer aos inimigos, dava com o seu exemplo coragem aos seus compatriotas.

Temos fé em que o Ministério 10 de Março crescerá dia a dia na estima e no respeito do povo. Ele o merece, porque se inspira no mais santo amor da pátria e na mais evangélica piedade: a piedade pelos cativos.

19 mar. 1888

Ângelo

E assim que o tratamos a ele, o bom, o grande.

Alma sem rugas, não se lhe refolham ódios nem pretensões. Quanto mais cresce mais se democratiza; quanto mais sofre mais ama.

Só lhe conhecemos uma vaidade: a de não ter precisado nascer nestas paragens do Cruzeiro do Sul para ser um dos primeiros, dos mais beneméritos brasileiros.

Poeta do lápis, as suas musas são a justiça, a liberdade, a fraternidade.

Tem nas suas veias o sangue de todas as raças; faz do seu coração o depósito dos sofrimentos de todas as classes, enxameiam-se no seu cérebro todos os ideais de progresso e de perfectibilidade.

Não é de ninguém e é de todos. Dá-se espontaneamente e não se deixa domar nem por ameaças, nem pelas maiores angústias.

Não sabe advogar; evangeliza. Causa que ele abrace, leva-lhe a alma e coração.

Não conhece geografia para fazer o bem. O seu coração é pátria para todos os que sofrem.

Não conhece lei nenhuma que possa preterir a da solidariedade humana.

Vive fora de todos os partidos para poder castigar, ou servir a todos.

Pratica o bem pelo bem.

Não quer que lhe reconheçam o sacrifício: tem o pudor das suas amarguras. A sua mão esquerda nunca soube o que estava fazendo a mão direita. Por isso mesmo, à proporção que ele ia construindo os alicerces para o Brasil novo, ia cavando a mina do seu lar.

Pai, perfilhou os cativos, e dividiu com eles o pão, conquistado pelo seu trabalho genial, ao ponto de quase deixar com fome os filhos legítimos, tão pequeno era o quinhão que lhes tocava.

Nunca vi levar mais serenamente aos lábios a taça de fel e bebê-la com tanta coragem. O estoicismo não teve na propaganda abolicionista melhor representante.

Quando o escravismo pretendeu levantar a opinião, chamando-o estrangeiro audaz, hóspede ingrato, o Ângelo sorria-se e limitava-se a dizer: bom, enquanto não me deportam, eu aproveito o tempo para dizer o que sinto e o que penso. E é preciso dizer logo de uma vez, em grosso, o que teria de dizer por meias palavras e por circunlóquios.

Quando lhe guerrearam o jornal no interior, quando pretenderam reduzi-lo pela fome, alguns amigos tímidos quiseram que ele atenuasse os seus ataques à escravidão.

Ele nem respondeu.

Quanto mais perseguido, mais intemerato.

Não há meio de o fazer desviar uma linha da sua carreira. Para ele os princípios são outros tantos dogmas.

Na imprensa, não tem amigos nem inimigos. Conhece apenas ações. É um magistrado severo quando empunha o lápis.

Debruçado sobre a pedra, que lhe vai receber o espírito, transfigura-se.

Ele que é uma pomba, converte-se num tigre, quando é preciso acometer.

Só conhece para a imprensa, para o jornalista, uma responsabilidade que não deve ser arrostada: a de não dizer a verdade.

-Se tu fosses deportado, o que farias?

-A História do Brasil ilustrada, -respondeu tranqüilamente.

Não desanima; não hesita; não gradua o seu fervor. Uma vez na luta, só conhece dois deveres: vencer ou morrer.

Ângelo não é só um propagandista, é um apóstolo. Não defende só, ama realmente os negros. Comove-se diante dos seus sofrimentos, indigna-se como um irmão, como um pai, quando os vê maltratados.

O Brasil deve-lhe tanto que só poderia remunerá-lo em parte, se o seu parlamento decretasse a nacionalização de Ângelo, como o testemunho da gratidão nacional.

O presente já o estima; o futuro há de adorá-lo.

Tenho orgulho em abraçá-lo como ao irmão mais velho.

7 abr. 1888

Abolicionistas no seu posto

Está ganha a primeira batalha abolicionista em favor dos escravizados.

O sr. Ferreira Viana saiu das urnas coroado pela mais gloriosa manifestação de uniformidade de vistas da opinião com o programa do Gabinete 10 de Março.

O eleitorado declarou-se francamente abolicionista. A votação, recaindo nos nomes do ministro da Justiça e de Quintino Bocaiúva, deu ao pleito o caráter de uma aclamação à santa causa dos cativos.

A maioria extraordinária obtida pelo sr. Ferreira Viana quer simplesmente dizer que o povo quer já ver feita lei a aspiração que mais o preocupa neste momento.

O Partido Republicano, apresentando a candidatura de Quintino Bocaiúva, quis somente dizer que ele, atualmente abolicionista também, não se julgava, entretanto, obrigado à trégua partidária, que o Partido Liberal e abolicionistas de todos os matizes entenderam necessária.

Travado, porém, o pleito, o Partido Republicano limitou-se a dar mais uma vez a Quintino Bocaiúva testemunho de sua estima e deixou a eleição correr serenamente no álveo abolicionista.

Dir-se-ia que todo o eleitorado havia lido o Abolicionismo do sr. Joaquim Nabuco e cada partido praticava a lição haurida nas páginas do livro do ilustre doutrinador.

São de S. Ex.ª as seguintes reflexões:

«É com efeito difícil hoje a um liberal ou conservador, convencido dos princípios cardeais do desenvolvimento social moderno e do direito inato -no estado de civilização- de cada homem à sua liberdade pessoal, e deve sê-lo muito mais para um republicano, fazer parte homogênea de organizações em cujo credo a mesma natureza humana pode servir para base da democracia e da escravidão, conferir a um indivíduo, ao mesmo tempo, o direito de tomar parte no Governo do país e o de manter outros indivíduos, porque os comprou ou os herdou -em abjecta subserviência forçada durante toda a vida.»

Segundo o sr. Joaquim Nabuco e a boa razão, nenhum homem político, de orientação moderna, pode ater-se dentro de tais organizações.

O republicano, porém, ainda tem mais um dever, que o escritor lhe aponta, quando lhe define o que seja o abolicionismo, nestes termos:

«O Abolicionismo num país de escravos é para o Republicano de razão a República oportunista, a que pede o que pode conseguir e o que mais precisa e não se esteriliza a querer antecipar uma ordem de coisas da qual o país só pode tirar benefícios reais quando nele não houver mais senhores


Em seguida S. Ex.ª acrescenta:

«Todos os três partidos baseiam as suas aspirações políticas sobre um estado social, cujo nivelamento não os afeta; o abolicionismo, pelo contrário, começa pelo princípio, e, antes de discutir qual o melhor modo para um povo livre de governar-se a si mesmo -é essa a questão que divide os outros- trata de tornar esse povo -livre, aterrando o imenso abismo, que separa as duas castas sociais em que ele se extrema.

Nesse sentido o abolicionismo deverá ser a escola primária de todos os partidos, o alfabeto da nossa política, mas não o é; por um curioso anacronismo houve um Partido Republicano muito antes de existir uma opinião abolicionista, e daí a principal razão por que essa política é uma Babel, na qual ninguém se entende.»


Esmiuçando bem o que devia ser o abolicionismo entre os partidos existentes, S. Ex.ª entrou em indagações para saber se seria ou não provável a organização de um partido abolicionista no Brasil, como aconteceu nos Estados Unidos, e chegou a esta conclusão:

«É natural que isto aconteça no Brasil; mas é possível também que -em vez de fundir-se num só partido por causa de grandes divergências internas entre liberais, conservadores e republicanos- o abolicionismo venha a trabalhar os três partidos de forma a cindi-los sempre que seja preciso -como foi em 1871 para a passagem da Lei Rio Branco- reunir os elementos progressistas de cada um numa cooperação desinteressada e transitória, numa aliança política limitada a certo fim; ou que venha mesmo a decompor e reconstituir diversamente os partidos existentes, sem todavia formar um partido único e homogêneo.»


Durante o pleito eleitoral praticaram religiosamente essas previsões do sr. Joaquim Nabuco todos aqueles que votaram no sr. Ferreira Viana.

O eleitorado compreendeu que a divisa era abolicionista sem partido e daí muito naturalmente considerar-se um erro político desviar votos do candidato que podia como Governo realizar na lei a aspiração nacional.

Considerou-se, como nós também consideramos, indébita a intervenção da política abstrata nesta hora em que o Governo se apresentava às urnas para robustecer-se com a opinião para decretar o primeiro direito do homem -a sua liberdade pessoal.

Entendeu-se e muito bem que nenhum homem, por maior que ele seja, por mais títulos que ele tenha à gratidão nacional, tem o direito de adiar por um minuto a hora da liberdade pessoal de seu semelhante.

O candidato republicano, bem o sabemos, não tinha esse propósito; mas, concorrendo às urnas para disputar a prioridade da forma de Governo, se vencesse, teria obrigado o Governo a tratar concomitantemente de acautelar a liberdade dos cativos dos assaltos dos senhores e o trono, do ataque dos seus adversários intransigentes.

Ora, se é legítimo que o republicano anteponha a forma de Governo à libertação de seus concidadãos escravizados, é também natural que o monarquista o faça, e, por conseqüência, o esquecimento do abolicionismo da parte do primeiro era igualmente natural da parte do segundo.

Na organização do pleito eleitoral a cooperação da Confederação Abolicionista foi, admitidos os princípios do sr. Joaquim Nabuco, a mais lógica e patriótica.

São imprudentes, insensatas mesmo, todas as reflexões em contrário.

A Confederação Abolicionista entendeu que o momento não era nem do Partido Conservador, nem do Partido Liberal, nem do Partido Republicano; era dos escravos; e, cumprindo o seu dever, esforçou-se por afastar das urnas toda a idéia que pudesse perturbar o triunfo claro, e praticamente provado, do abolicionismo.

Apresentado em nome da República o sr. Quintino Bocaiúva, a Confederação não podia sufragar-lhe a candidatura sem atraiçoar compromissos anteriores com abolicionistas que são sinceramente monarquistas.

Um destes é o sr. Joaquim Nabuco, o nome mais prestigioso do abolicionismo, dentro e fora do país, onde S. Ex.ª o tem ido levar para ser coroado pelos aplausos do mundo civilizado, que vê em S. Ex.ª a encarnação do abolicionismo no Brasil.

A Confederação Abolicionista, essa mesma corporação gloriosa que várias vezes se encontrou abandonada, pelos homens políticos, em risco de vida na praça pública; essa corporação que, sem imunidades parlamentares e respondendo por si e por todos, os presentes, como os ausentes; os soldados da linha negra, como os diplomatas que iam buscar lá fora a aliança moral da civilização e da religião para a nossa santa causa -viu-se atacada com a mesma ferocidade pelo arbítrio sanguinário de liberais e conservadores, e nunca hesitou em dizer a verdade e arrostar os ódios de uns e de outros, lamentou sinceramente não poder cooperar para a vitória de Quintino Bocaiúva, que ela conta no número dos seus beneméritos.

Mas antes de tudo, era preciso salvar os princípios e por isso os abolicionistas sacrificaram o coração.

Não nega a Confederação Abolicionista que o imortal jornalista republicano foi, desde o dia em que se dedicou à propaganda em favor dos cativos, um batalhador que nunca descansou, que nunca escolheu campo de combate, nem posto no exército beligerante. Tanto lhe fazia pegar da arma para entrar na fileira, como dar plano entre os generais. Era tão grande no quartel-general, como na linha de atiradores. Não se lhe conhecia o valor pelas dragonas, mas pela intrepidez.

Entretanto, a Confederação viu-se forçada a não preferi-lo nas urnas ao ministro da Justiça.

Por esquecimento dos seus grandes serviços? Não; por coerência com os seus princípios.

O pensamento da Confederação foi homologado pelo eleitorado. Nas guerras em que entram aliados, é fato vulgar ver revezarem-se nas funções de generalíssimo generais das diversas nacionalidades aliadas. Dá-se o mesmo no abolicionismo, que é um exército formado pela tríplice aliança de republicanos, conservadores e liberais.

Assim como os exércitos se não desnacionalizam por servirem debaixo de ordens de generalíssimo estrangeiro, a Confederação Abolicionista não se descaracteriza por servir a este ou àquele partido na luta da abolição.

Considerá-la bagagem conservadora ou liberal, por servir ao sr. Dantas ou ao sr. João Alfredo, é de duas uma: não ter pela dignidade alheia o respeito que se quer impor pela própria; ou, por egoísmo condenável, querer Deus para si e o diabo para o próximo.

O pleito provou que a Confederação não quer divisões odientas na irmandade abolicionista. Ela não admite irmãos que fiquem com o patrimônio de outro por um prato de lentilha. Divide igualmente o seu carinho. Tanto para os liberais, tanto para os conservadores, tanto para os republicanos.

Mãe carinhosa, dessas que dividem o amor como a luz a sua claridade, ela não faz testamento deixando a terça a um dos filhos com prejuízo dos outros.

Por isso mesmo ela contribuiu para a eleição do sr. Ferreira Viana, em nome dos conservadores que com ela trabalharam, como outrora contribuiu para a eleição do sr. Bezerra de Meneses, em nome dos liberais que pertenciam ao seu grêmio, sufragando em ambos os candidatos as suas idéias.

Congratulemo-nos, pois, todos os abolicionistas pela transformação que o abolicionismo operou no caráter nacional. Os preconceitos de partidos e de posições extinguiram-se. Não se olha mais a homens, porém a idéias. A pátria vale mais que os partidos.

Reproduziu-se na corte o mesmo que se deu no 5º distrito de Pernambuco, há dois anos.

Um candidato liberal, forte no seu distrito, tendo ali prestado serviços imediatos, serviços de todos os dias e de todas as horas, abriu mão do seu lugar, adiou o seu direito a uma cadeira no parlamento, porque entendeu que o sr. Joaquim Nabuco prestaria na Câmara serviços muito mais relevantes.

Os abolicionistas da corte tiveram abnegação igual a desse ilustre pernambucano, que elegeu o sr. Joaquim Nabuco. Sacrificaram a candidatura de Quintino Bocaiúva à do sr. Ferreira Viana, porque parlamentarmente o ministro da Justiça prestará mais serviços do que o deputado republicano prestaria, apesar de todo o seu talento e de todo o seu prestígio.

23 abr. 1888

Estamos em plena aurora.

Dentro em três dias vai começar a História Moderna do Brasil e fechar-se a triste história dos tempos bárbaros da nossa terra.

Não é possível imaginar de um lance de pensamento o que será todo esse iluminado futuro, não obstante o presente fornecer-nos o esboço do que ele será nos largos traços dos acontecimentos, que nos surpreendem.

O que está por trás do dia 3 de maio não cabe na previsão dos políticos, e não é demasiado otimismo profetizar que a nossa evolução nacional será feita com a mesma rapidez da dos Estados Unidos.

As estrelas do Sul dentro em um quarto de século não invejarão o fulgor da constelação do Norte.

Já podemos acentuar orgulhosamente um contraste.

A maior revolução social de nossa terra está sendo feita entre bênçãos e flores. Nada mais extraordinário: bastaram o atrito da imprensa e o calor da palavra para limar e fundir os grilhões de três séculos de cativeiro.

A alma nacional mostrou-se preparada, em todas as camadas sociais, para praticar e receber a liberdade.

Em nenhuma história do mundo se encontram páginas como as que se têm escrito ultimamente em nossa terra. A esses fazendeiros pródigos, que atiram pela janela fora a carne tarifada de seus cativos, carne que era a sua fortuna legal, porque era gênero de valor no mercado da desumanidade antiga e da afronta à moral e à civilização; a esses fazendeiros, que precedem a lei para afirmar que nunca, em nossa pátria, o interesse se colocará diante da Justiça, a rebeldia diante da razão, correspondem os libertos que, tendo parecido acumular ódios de três séculos, demonstram que nunca souberam senão sofrer resignados, que não viram, no seu martírio, um crime de opressores, mas uma tremenda e inexplicável fatalidade; os libertos que devendo ter aprendido na escravidão a anarquia, provam ao contrário que lá mesmo conservaram intactos o patriotismo e o amor da ordem, e saem do cativeiro para cooperar na obra do bem-estar geral, tanto que se iniciam na vida cedendo em favor da produção uma parte dos direitos da sua liberdade: -o salário.

Os poucos que, sinceramente, se arreceiam de que os primeiros fenômenos resultantes da revolução social, que se está operando, sejam perturbações da ordem, abandono do trabalho, desassombrem os espíritos.

Há de reproduzir-se em todo o Brasil o que se deu no Ceará. Em vez de guerra fratricida, paz patriarcal; em vez da estagnação da produção, aumento de riqueza e progresso.

As epopéias de Itu e de Friburgo aí estão.

Esses negros que atravessam povoações com a cabeça baixa, depois de um combate em que haviam revelado a coragem dos companheiros de Leônidas; e apesar de famintos, maltrapilhos e sangrando feridas do tiroteio e da luta corpo-a-corpo, conduzindo crianças extenuadas, não atacam a população aterrorizada, não abusam da sua força nem para satisfazer às mais urgentes necessidades da vida; esses outros negros que respondem aos senhores no dia da libertação: descansai quanto à organização da vossa nova existência industrial -nós não queremos salário nos primeiros tempos: esses negros falam por uma raça, são os endossantes da letra de amor à ordem e à probidade, que eles pretendem descontar no regime da liberdade e da igualdade nacional.

O que há de mais admirável na nova fase de nossa vida de povo civilizado é a uniformidade de pensamento, desde o Governo até ao último liberto.

O Ministério restaura a segurança pública em todas as manifestações.

O presidente do Conselho garante a fortuna do país, esforçando-se para restituir à moeda, representação do trabalho, o seu valor exato na cotação universal. Bate-se, como um duelista tão inimigo de luta, como terrível no combate, e, em menos de um mês de administração, derrota a horda dos especuladores do câmbio.

Este glorioso trabalho de valor inestimável é feito sem estrépito, com a modéstia do dever cumprido.

O empréstimo foi o mais solene desmentido ao escravismo, que nos dava como o único título de crédito europeu o sermos o último país, cuja fortuna se baseava no tráfico das almas, no roubo do trabalho.

O ministro da Fazenda provou que o país podia comparecer perante o mercado do ouro levando como valores a hipotecar a sabedoria de seu procedimento, resolvendo sem perturbação da ordem o mais temeroso dos problemas, e a certeza de que este país foi dotado pela natureza de tesouros que nem mil séculos de prodigalidade poderão gastar.

O ministro da Justiça garante a liberdade do cidadão com a letra cega da lei e com a lucidez humanitária do seu espírito. Quebra-lhe o punhal da vingança, para dar-lhe a balança das reparações e da correção.

Põe o código à cabeceira de cada cidadão, por mais humilde que ele seja; todos podem dormir tranqüilos dentro de seus limites legais.

A autoridade perdeu a carranca de Medusa com que petrificava o Direito.

Ela não pode mais espalhar caprichosamente pânico e lágrimas, violências e calúnias.

E porque veio da imprensa, e porque veio da desilusão popular, esse ministro extraordinário, compreendendo que para pregar a boa nova da regeneração governamental é preciso, como Jesus, freqüentar as multidões, dar vinho às suas bodas, distribuir com as próprias mãos pão e peixe aos famintos, parar junto das sepulturas para ressuscitar os mortos; esse ministro está em todas as festas para que é convidado, distribuindo o vinho generoso, o cordial de sua palavra, que é banho de nardo no corpo do mendigo, o agno do Cenáculo ao espírito das crianças.

O ministro da Guerra faz recolher a quartéis o Exército, que se viu obrigado a vir à praça pública reclamar como cidadão o que o seu patriotismo lhe impediu que exigisse como soldado: respeito pelo seu brio e pelo seu direito.

Certo de que está salvando a pátria e de que ela bem merece o sacrifício de conveniências efêmeras, o ministro enche a fé de ofício dos heróis com as repetidas provas de confiança do Governo; faz-se no poder o órgão da opinião, que cercou com o seu prestígio os perseguidos da véspera.

O que será este país amanhã, quando o que hoje surpreende for a norma do procedimento dos Governos e do povo? Quando, extinta a recordação do cativeiro, cada cidadão entender que ele é tanto maior, quanto mais respeitar, no direito de outrem, o seu direito e o direito de todos?

Temos o olhar alongado sobre esse amanhã que vem rápido, vertiginosamente, e que, entretanto, afigura-se, à nossa ansiedade, lento como o desdobrar de um século.

Bate-nos novamente o coração, perguntando-nos ao pensamento se é com efeito verdade que, dentro em poucos dias, uma senhora vai comparecer perante a assembléia de um povo, não para impor, mas para pedir e conquistar, como a tímida Ester, piedade para os milhares de desgraçados, os filhos de uma raça que foi degradada por haver contribuído tanto como qualquer outra para a grandeza de sua pátria.

Sabemos que a promessa de homens de bem é a antecipação da realidade e, entretanto, temos ainda essa incredulidade fugitiva que nos provoca o bem muito maior do que esperávamos.

E por isso mesmo, perdoamos aos que não acreditam de todo, aos que julgam que amanhã havemos de chorar de despeito.

Não há negá-lo: a corrupção havia minado tanto o país, que é quase impossível acreditar que se conservasse intacta uma porção do caráter completamente refratário ao contágio.

Demais, é melhor não esperar muito, para morrer de alegria recebendo tudo.

30 abr. 1888