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Capítulo VI

Do terceiro governador do Brasil, que foi Mem de Sá

A d. Duarte da Costa sucedeu o dr. Mem de Sá, que com razão pode ser espelho de governadores do Brasil; porque concorrendo nele letras, e esforço, se sinalou muito na guerra, e justiça.

Este, em pondo os pés no Brasil, que foi no ano de mil quinhentos cinqüenta e sete, nenhuma coisa do seu regimento executou primeiro que o que el-rei lhe mandava em favor da Religião Cristã; para isto mandou chamar os principais índios das aldeias vizinhas desta Bahia, e assentou com eles pazes com condição que se abstivessem de comer carne humana, ainda que fosse de inimigos presos, ou mortos em justa guerra, e que recebessem em suas terras os padres da companhia, e os outros mestres da fé, e lhes fizessem casas em suas aldeias, onde se recolhessem, e templos onde dissessem missa aos cristãos, doutrinassem os catecumenos, e pregassem o Evangelho livremente; e porque a cobiça os portugueses tinha dado em cativar quantos podiam colher, fosse justa ou injustamente, proibiu o governador isto com graves penas, e mandou dar liberdade a todos os que contra justiça eram tratados como escravos.

Acudiu depois a vingar as injúrias dos índios cristãos, que outros seus vizinhos pagãos lhe faziam até chegar a matar alguns.

Pediu que lhe entregassem os homicidas, e perdoaria aos mais, mas eles fiados na sua multidão zombaram da sua petição; pelo que o governador em pessoa os cometeu dentro de suas terras, e feita neles grande matança, e queimadas mais de setenta aldeias, os desfez, de sorte que lhes foi forçado pedirem a paz, a qual lhes concedeu com as mesmas condições, que havia posto aos outros.

O tempo que lhe vagava da guerra, gastava o bom governador na administração da justiça, porque além de ser em que consiste a honra dos que regem, e governam, como diz David: Honor Regis judicium diligit: a trazia ele particularmente a cargo por uma provisão del-rei, em que mandava que nenhuma ação nova se tomasse sem sua licença; o que mandou el-rei por ser informado das muitas usuras, que já naquele tempo cometiam os mercadores no que vendiam fiado, pelo que muitos, por se não descobrir a usura, que eles sempre costumam paliar, e por não perderem a dívida, e haver as mais penas que o direito põe, não levavam seus devedores a juízo, e lhes esperavam pela paga quanto tempo queriam; mas só punham ações por dívidas lícitas, que o governador logo mandava pagar, e se era o devedor pessoa pobre pagava por ele, ou fazia que o credor esperasse pela dívida, pois fiara de quem sabia que não tinha por onde lhe pagar; e assim cessaram as demandas, de modo que fazendo o dr. Pedro Borges, ouvidor-geral, uma vez audiência, não houve parte alguma requerente, do que levantando as mãos ao céu deu graças a Deus; mas durou pouco este bem, porque logo veio por ouvidor-geral o dr. Braz Fragoso com outra provisão em contrário à do governador, e tornaram a correr as demandas, e as usuras, não só paliadas, mas tanto de escancara, que se vale um escravo vinte mil-réis pago logo, o dão fiado por um ano por quarenta, e o que mais é, que por isso o não querem já vender a dinheiro de contado, senão fiado, e não há quem por isto olhe.

Capítulo VII

De como mandou o governador seu filho Fernão de Sá socorrer a Vasco Fernandes Coutinho, e o matou lá o gentio

Neste tempo estava Vasco Fernandes Coutinho em grande aperto posto pelo gentio na sua capitania do Espírito Santo, e mandou à Bahia requerer ao governador Mem de Sá que o socorresse, o que o governador logo fez, mandando cinco embarcações bem providas de gente, e por capitão-mor dela a seu filho Fernão de Sá na galé São Simão; os outros capitães eram Diogo Morim, o Velho, e Paulo Dias Adorno. Chegaram todos a Porto Seguro, onde lhes disseram, que no rio chamado Bricaré estava o mais do gentio, que fazia guerra a Vasco Fernandes, e que aí deviam de os ir buscar, oferecendo-se para ir com eles, como de feito foram, o capitão Diogo Álvares, e Gaspar Barbosa em seus caravelões, e navegaram pelo dito rio arriba quatro dias, até que viram as cercas do gentio que estavam juntas da água, onde, pondo as proas em terra por estar a maré cheia, por elas desembarcaram, e saltaram fora os soldados, tornando-se os marinheiros com os navios ao meio do rio por não ficarem em seco na vazante, e os bombardeiros, para de lá fazerem seus tiros, começou-se a travar a briga, na qual logo no primeiro encontro puseram o gentio em desbarate, mas tornando-se a ajuntar, e reformar, voltou com tanta força que forçou aos nossos a desordenarem, e misturarem com os inimigos, de maneira que os tiros que tiravam das embarcações, não só os não defendiam, mas antes os feriam, e matavam, e retirando-se para se acolher a elas estavam tanto ao pego, que os mais foram a nado, e os feridos em algumas jangadas, entre os quais foram os dois capitães Adorno, e Morim, ficando o capitão-mor com o seu alferes Joanne Monge na retaguarda, onde crescendo o gentio, que de outras aldeias vinha de socorro, os mataram às flechadas; e assim acabou Fernão de Sá, depois de haver feito grandes coisas em armas contra a multidão destes bárbaros, assim neste combate, como em outros em que se achou na Bahia, e em outras partes: os mais se partiram para o Espírito Santo, onde Vasco Fernandes os recebeu com muito pesar, sabendo do seu destroço, e da morte de Fernão de Sá, e os mandou com a mais gente que pôde ajuntar a dar em outros gentios, que o tinham quase em cerco, os quais lho fizeram levantar, posto que com morte de alguns dos nossos, entre os quais Bernardo Pimentel, o Velho, que mataram ao entrar em uma casa.

Feito isto se foram a São Vicente, e daí a Bahia, onde o governador os não quis ver, sabendo como haviam deixado matar seu filho, e quando eles não tiveram esta culpa, nem por isso a devemos dar ao pai em fazer extremos pela morte de tal filho.

Capítulo VIII

Da entrada dos franceses no Rio de Janeiro, e guerra que lhe foi fazer o governador

O Rio de Janeiro esta em 23º graus debaixo do Trópico de Capricórnio, e impropriamente se chama Rio, porque antes é um braço de mar, que ali entra por uma boca estreita, que se pode facilmente defender de uma parte a outra com artilharia; mas dentro faz uma baía, ou enseada em que entram muitos rios, e tem perto de quarenta ilhas, das quais as maiores se povoam, e as menores servem de ornar o sítio, ou de portos onde se abriguem os navios.

Estas comodidades, e outras muitas deste Rio e baía, juntas com a fertilidade da terra, a faziam digna de ser povoada, quando se povoaram as mais do Brasil; mas ou porque coube na doação a Pero de Goes, que se não atreveu com o gentio, como dissemos no capítulo terceiro do segundo livro, ou por não sei que descuido, ela esteve por povoar até que Nicolau Villegaignon, homem nobre de França, e cavaleiro do hábito de São João, informado dos franceses, que por ali vinham comerciar com o gentio Tapuia, determinou de vir a povoá-la; para o que fez uma armada em que veio com muitos soldados, e entrando no rio no ano de mil quinhentos cinqüenta e seis, lhe fortificou a entrada, solicitou os gentios, e fez liga e amizade com eles, e para maior defensa começou em uma das ilhas da enseada a levantar uma fortaleza de pedra, tijolo, e gesso, em cuja obra trabalhavam os índios com muita vontade, e de França lhe vinham cada dia novos socorros.

Corria já o ano de mil quinhentos cinqüenta e nove, em que reinava a rainha d. Catarina por morte de el-rei d. João seu marido, e por seu neto el-rei d. Sebastião não ter ainda a este tempo mais que cinco anos de idade; a qual, informada do que passava no Rio de Janeiro, escreveu ao governador Mem de Sá encarregando-lhe muito esta empresa, e mandando-lhe para ajuda dela uma boa armada, com a qual o governador, e com outras naus, que pôde ajuntar, acompanhado dos principais portugueses da Bahia, e alistados os mais soldados, que pôde, assim brancos como índios da terra, no ano do Senhor de mil quinhentos e sessenta se partiu para o Rio de Janeiro, onde rompendo as forças, que impediam a entrada, entrou na enseada, e tomou uma nau francesa, da qual soube não estar aí já o Villegaignon, que fora chamado a Malta, mas ter deixado um sobrinho seu por capitão na fortaleza, a quem escreveu o governador na maneira seguinte:

«El-rei de Portugal, meu Senhor, sabendo que Villegaignon vosso tio lhe tinha usurpada esta terra, se mandou queixar a el-rei de França, o qual lhe respondeu que se cá estava, que lhe fizesse guerra, e botasse fora, porque não viera com sua comissão, e posto que já aqui o não acho, estais vós em seu lugar, a quem admoesto, e requeiro da parte de Deus, e do vosso rei, e do meu, que logo largueis a terra alheia a cuja é, e vos vades em paz sem querer experimentar os danos que sucederam da guerra.»


Ao que respondeu o mancebo que não era seu julgar cuja era a terra do Rio de Janeiro, senão fazer o que o senhor Villegaignon seu tio lhe havia mandado, que era sustentar, e defender aquela sua fortaleza, e que assim o havia de cumprir, ainda que lhe custasse a vida, e muitas vidas, das quais lhe requeria também que não quisesse ser homicida, antes se tornasse em paz.

Gastaram-se nisto dez ou doze dias, nos quais a nossa armada se pôs em ordem de guerra, e assim ouvida esta resposta, a outra que lhe deram foi de artilharia e arcabuzes, com que começaram a bater o forte insuperável / ao parecer / às forças humanas; porém estando uns outros metidos no furor do combate, Manuel Coutinho, homem pardo, Afonso Martins Diabo, e outros valentes soldados portugueses, subindo por uma parte que parecia inacessível, entraram o castelo, e ocuparam repentinamente a pólvora do inimigo.

Descorçoados os franceses com a perda da pólvora, e com o inopinado atrevimento dos portugueses, desampararam o castelo à meia-noite com todas as máquinas de guerra que nele havia, recolheram-se às suas naus, e parte deles nelas se tornaram para sua terra, outros ficaram com os Tamoios / que este é o nome daquele gentio /, assim para restaurar a guerra, e a opinião perdida, como para exercitar a mercancia com eles, de que tiravam muito proveito.

Alcançada tão ilustre vitória desfez o governador o forte, por não poder deixar gente que o defendesse, e povoasse a terra, por lhe haverem morta muita gente neste combate, e mandou seu sobrinho Estácio de Sá na nau que havia tornado aos franceses com o aviso do sucesso a rainha d. Catarina.

Capítulo IX

De como o governador tornou do Rio de Janeiro para a Bahia, e o sucesso que teve uma nau da Índia, que a ela arribou

O governador se tornou do Rio de Janeiro para a Bahia, e chegou a ela no mês de junho do mesmo ano de mil quinhentos e sessenta, onde continuou com o governo da terra, na qual era tão necessária a sua assistência, e presença, que algumas poucas vezes, que ia ver um engenho que fez em Sergipe, ia de noite, e deixava um pajem na escada, que dissesse que estava ocupado a quem por ele perguntasse, o qual não mentia, porque onde quer que estava se ocupava; e isto fazia para que a notícia da sua ausência não fosse ocasião de alguma desordem, e assim, ainda que o engenho distava desta cidade oito léguas, fazia lá mui pouca detença.

Neste ano de mil quinhentos e sessenta arribou a esta Bahia a nau S. Paulo, como já outra vez havia arribado em tempo do governador d. Duarte da Costa, posto que então vinha nela por capitão Antônio Fernandes, como dissemos no capítulo quarto deste livro, e desta vez vinha Rui de Mello da Câmara, o qual vendo que para invernar aqui haviam de gastar sete ou oito meses, e que a água e gusano corrompem brevemente a madeira das naus, ajuntando-se com os pilotos, e da terra, diante do governador praticaram se haveria ainda tempo para seguirem viagem, e ir invernar à Índia? e de comum parecer assentaram que sim, se partissem daqui em setembro, e fossem por muita altura buscar a ilha de Sumatra, para dela em fevereiro voltarem com a monção com que vem as naus de Malaca e China, e tomando desta cidade tudo o que lhes foi necessário, partiram em 15 de setembro, achando os tempos prósperos foram a vista do cabo da Boa Esperança em fim de novembro, e assim foram seguindo sua viagem para a ilha de Sumatra com ventos brandos até vinte de janeiro, dia do bem-aventurado mártir São Sebastião à boca da noite, em que se acharam tão abordados com a terra por causa da grande corrente das águas, que por muito que trabalharam por se afastar foram varar nela, e quis Deus que foi em parte onde ficou a nau encalhada, e todos nela até pela manhã, que lançaram o batel ao mar, e se passaram a terra sem coisa alguma entender com eles, por ser a gente dali mesquinha, e tão doméstica, que acudiram logo a lhes vender algumas coisas posto que assim não fora, os da nau eram setecentos homens, todos bem dispostos, e armados, que puderam atravessar toda aquela ilha, e assim logo fizeram cabanas, para se agasalharem, e desembarcaram da nau mantimentos, vinhos, azeite, e tudo o mais, que puderam, e desfizeram a nau, e tiraram dela toda a pregadura, madeira, cordoalha, e tudo mais que lhe foi necessário, e armaram duas embarcações, e levantaram o batel, trabalhando todos com muito gosto, e presteza; servindo de ferreiros, serradores, carpinteiros, e de todos os mais ofícios, como se sempre o usaram; e assim em breve tempo as acabaram, e lançaram ao mar, e fizeram sua aguada em abastança, e recolheram nelas todas as armas, e alguns berços, e falcões, por não serem as vasilhas capazes de maiores peças, porque eram a modo de barcaças.

Uma delas se deu a Diogo Pereira de Vasconcelos, um fidalgo que ali levava sua mulher, que se chamava d. Francisca Sardinha, e era uma das mais formosas do seu tempo.

Outra tomou Rui de Mello, capitão da nau, e a terceira deram a Antônio de Refoios, um cavaleiro muito honrado, que ia despachado com a Capitânia de Coulão, e repartindo a gente por elas não coube em cada uma mais que cento e setenta homens, ficando cento e setenta, que por nenhum caso se puderam agasalhar: pelo que assentaram, que estes caminhassem por terra à vista dos batéis, para lhes socorrerem alguma necessidade, e repartindo por eles as espingardas, que havia, começaram a caminhar de longo do mar, e os batéis sempre à sua vista, e tanto que era noite escolhiam lugar para descansarem, e dormirem, e surgiam os batéis com as proas em terra; e o mesmo faziam a horas de jantar, em que tomavam a refeição ordinária, e assim foram caminhando nesta ordem sem lhes acontecer desastre algum, e havendo poucos dias que caminhavam houveram vista de quatro embarcações, a que foram correndo, e elas trabalhando tudo o que podiam por lhes fugir, e atirando-lhes de uma embarcação das nossas com um falcão, que lhes foi zunindo pelas orelhas, lhes pôs tão grande medo e espanto, que logo se lançaram a nado para a terra, e deixaram os navios carregados de farinhas de sagu / que é o principal mantimento de todas aquelas ilhas / de que os nossos se proveram em abastança /, e recolheram nestas embarcações toda a gente que ia por terra, com o que ficaram mais descansados, e sendo já em três graus da banda do sul, se recolheram a um formoso rio, que acharam, desembarcando todos em terra para se recrearem, e dormindo também nela algumas noites, com tanto descuido e segurança, como se a terra fosse sua, e até Diogo Pereira de Vasconcellos se desembarcou ali com sua mulher, a qual vista pelos Manancabos, que é a gente da terra, tão formosa, junto com estar ricamente vestida, desejaram levá-la ao seu rei, e assim deram uma noite nas suas estâncias, e mataram perto de sessenta pessoas, e levaram d. Francisca Sardinha, em cuja defensa fez o mestre da nau espantosas coisas até que o mataram. O Diogo Pereira salvou uma filha, que tinha, chamada d. Constança, que depois casou com Tomé de Mello de Castro, e outras mulheres, com que se recolheu à sua embarcação muito anojado desta desventura, que lhe aconteceu por sua sobeja confiança.

Dali se partiram de longo da costa, que era mui limpa, com muito mais tento, porque aquele desastre os espertou, e não se fiaram mais da gente da terra; e assim embocaram o boqueirão do Sonda, e foram tomar a cidade de Pata, onde acharam quatro naus portuguesas, de que era capitão-mor Pero Barreto Rollim, que ali estava carregando de pimenta, e recebeu toda esta gente, e a repartiu pelas naus, e proveu a todos bastantemente, e parte deles se passaram a China, para onde Pero Barreto Rollim ia por mandado do viso-rei d. Constantino.

Do aperto, em que os Tamoios do Rio de Janeiro puseram a Capitania de S. Vicente, e o governador lhes mandou fazer segunda guerra

Vendo-se os Tamoios já livres da guerra do governador Mem de Sá, se tornaram a fortificar no Rio de Janeiro, donde saíam a correr a costa toda até São Vicente, salteando os índios novos cristãos, prendendo, matando, e comendo a quantos podiam alcançar.

Durou esta moléstia dois anos, sem que força alguma pudesse reprimir o atrevimento dos bárbaros insolentes, que cada dia crescia com o favor, e ajuda dos franceses, com que já se não contentavam do mal que faziam aos outros índios, mas a todos os moradores de São Vicente ameaçavam com cruel guerra, e apresentavam uma armada de canoas para por mar, e por terra os combaterem.

Este mal tão grande quis remediar o padre Manuel da Nóbrega, primeiro provincial que havia sido da Ordem da Companhia de Jesus na província do Brasil, resolvendo-se a ir tentear os ânimos dos bárbaros para reduzi-los a condições de paz, ou dar a vida pela saúde comum.

Para isto tomou por seu companheiro o irmão José de Anchieta, e um Antônio Luiz, homem secular; com os quais se embarcou em uma nau de Francisco Adorno, ilustre genovês, homem naquela terra mui conhecido, rico, e devoto da companhia.

Os bárbaros, a notícia da nau portuguesa, cuidando que ia de guerra, acudiram a suas canoas, e lhe saíram ao encontro carregadas de flechas; porém o irmão José de Anchieta com uma breve, e amorosa prática, que lhes fez na sua língua, os quietou, e fez benévolos a sua chegada, e depois com outras muitas, e principalmente com suas devotas orações, e exemplo, que deu de sua vida em três meses, que ficou só entre eles, e dois que esteve com o padre Nóbrega, que se tornou para São Vicente, os reduziu a desejada paz, exceto alguns, que discordes dos mais, e fiados nas armas dos franceses, continuaram a guerra contra os portugueses.

Estes sucessos previu a rainha d. Catarina quando leu a carta do governador Mem de Sá, em que lhe dava conta da vitória, que alcançara no Rio de Janeiro, e assim, ainda que lhe agradeceu, e se houve por bem servida dele, todavia lhe estranhou muito o haver arrasado o forte, e não deixar quem defendesse, e povoasse a terra, e lhe mandou, que logo o fizesse, porque não tornasse o inimigo a fazer ali assento com perigo de todo o Brasil; o mesmo lhe escreveu o cardeal d. Henrique, que com ela governava o reino, e para este efeito lhe mandaram pelo próprio seu sobrinho Estácio de Sá, que levou a nova, uma armada de seis caravelas com o galeão S. João, e uma nau da carreira da Índia chamada Santa Maria, a Nova, a que ajuntou o governador os mais navios que pôde, e quisera ir em pessoa; mas por o povo lho não consentir mandou o dito seu sobrinho, no ano de mil quinhentos sessenta e três, a quem acompanhou o ouvidor-geral Braz Fragoso, e Paulo Dias Adorno, comendador de Santiago, em uma galeota sua, que remava dez remos por banda, e outros capitães, os quais chegando todos ao Rio de Janeiro acharam uma nau francesa, que lhe quis fugir pelo rio acima, mas os nossos lhe foram no alcance, e a primeira que lhe chegou foi a galé de Paulo Dias Adorno, em que também ia Duarte Martins Mourão, e Melchior de Azeredo, depois chegou Braz Fragoso, e outros, os quais entrando na nau, acharam muito pão, vinho, e carne, e assim a levaram para baixo onde ficava a Capitânia Santa Maria, a Nova, e o galeão, e o capitão-mor Estácio de Sá fez capitão dela a Antônio da Costa; mas como não há gosto nesta vida, que não seja aguado, indo uma madrugada três batéis nossos tomar água à ribeira da Carioca, deram com nove canoas de índios inimigos, que estavam aguardando em cilada, os quais repartindo-se três e três a cada batel, mataram no da capitânia o contramestre, o guardião, e outros dois marinheiros, e no do galeão feriram a Cristóvão d'Aguiar, o moço, com sete flechadas, e outros sete homens, e o levavam, mas Paulo Dias Adorno lhe acudiu à pressa na sua galé, e chegando a tiro mandou pôr fogo a um falcão, que os fez largar o batel.

Enterrados os mortos em uma ilha, chamou Estácio de Sá os capitães a conselho, e assentaram, que se fosse a S. Vicente buscar canoas, e gentio doméstico, e amigo, com que melhor se poderia fazer guerra àquele bárbaro inimigo.

Saíram uma madrugada, e a nau francesa, que haviam tomado, diante de todas as outras com um caravelão de Domingos Fernandes, dos Ilhéus, acharam na barra muitas canoas de inimigos índios, e franceses misturados, que chegando ao caravelão o furaram com machados, e o meteram no fundo, matando-lhe quatro homens, e ferindo a Domingos Fernandes de seis flechadas, com que se foi a nado para a nau, a qual também chegaram, e lhe fizeram um buraco; mas um índio da Índia de Praz Fragoso, que ali ia com seu senhor, se foi abaixo da coberta, e pelo mesmo buraco matou um francês, com o que eles, ou com o temor da armada, que vinha atrás, se foram embora, e a nau também, seguindo seu caminho para São Vicente, onde contaram ao capitão-mor, e aos mais o que lhes havia sucedido.

Neste tempo estava a povoação de São Paulo, que é da capitania de São Vicente, de guerra com o gentio, que a tinha posta em grande aperto, ao que acudiu Estácio de Sá com muita gente da que consigo levava, a cuja vista o gentio lhe veio logo pedir pazes, e ele lhas concedeu, e ficaram fixas.

Entretanto chegaram os capitães Jorge Ferreira, e Paulo Dias, com as canoas, e gentio, que tanto que chegou mandou buscar a Cananéia, e provida a armada de todo o necessário se partiu outra vez para o Rio de Janeiro no ano de mil quinhentos sessenta e quatro, dia de São Sebastião, a quem tomou por patrão da sua jornada, entrou pelo Rio em primeiro de março, e ancorando na enseada, saltaram em terra, e feitos tujupares, que são umas tendas ou choupanas de palha, para morarem, onde agora chamam a Cidade Velha, ao pé de um penedo, que se vai às nuvens, chamado o Pão de Açúcar, se fortificaram com baluarte, e trincheiras de madeira, e terra, o melhor que puderam, donde saíam a fazer guerra aos bárbaros, ajudando-os Deus por espaço de dois anos que ali estiveram, de modo que em encontros quase sempre saíam vitoriosos, e os feridos de mortais feridas das flechas inimigas brevemente saravam: outros feridos nos peitos nus com pelouros dos arcabuzes franceses, não sentiam mais o golpe que se estiveram armados de peitos de prova, e aos pés lhes caíam os pelouros.

Cansados já os Tamoios de tão prolixa guerra, e enfados de ruins sucessos, porque ordinariamente nos encontros saíam escalavrados, determinaram lançar o resto de seu poder, e de sua ventura em uma batalha industriados pelos franceses, e sem dúvida a coisa ia traçada para conseguirem seu intento. Porém a Divina Providência se acostou à parte mais justificada.

Haviam os Tamoios ajuntado ao número ordinário de suas canoas outras novas, que chegaram a cento e oitenta, fabricadas secretamente longe do posto donde estavam os navios dos portugueses.

Toda esta armada de canoas puseram em cilada, escondida em uma volta que fazia o mar, daqui saiu um pequeno número delas, contra as quais mandou o general cinco das nove que trouxe de S. Vicente, porque os índios amigos, enfadados da guerra, se haviam já ido com as quatro.

Os Tamoios, não ainda bem começada a batalha, viraram as costas, que assim o haviam traçado, e meteram os nossos, que atrevidamente os iam seguindo na cilada, donde saíram as mais canoas inimigas, e subitamente as cercaram por todas as partes; mas nem por isso perderam o ânimo os portugueses, antes resistiram valorosamente ajudados do Divino favor, o qual ainda das coisas que parecem adversas sabe tirar prósperos sucessos, como aqui se viu que acaso ascendendo-se a pólvora em uma das nossas canoas chamuscou a alguns dos inimigos, que a tinham abordada, com o que, e com a chama que levantou a pólvora se alterou tanto a mulher do general, Tamoia, que dando gritos e vozes espantosas atemorizou a todos, e sendo seu marido o primeiro que fugiu com ela, os seguiram os mais, deixando livres os nossos, os quais tornando às suas fronteiras deram graças a Deus por tão grande benefício, e por os haver livres de perigo tão grande pela voz e assombro de uma fraca mulher, ainda que depois declararam os mesmos inimigos que não fora por isto, senão por haverem visto um combatente estranho, de notável postura, e beleza, que saltando atrevidamente nas suas canoas os enchera de medo; donde creram os portugueses que era o bem-aventurado S. Sebastião, a quem haviam tomado por padroeiro desta guerra.

Capítulo XI

Da viagem, que fez Jorge de Albuquerque de Pernambuco para o reino, e casos que nela sucederam

Não faltavam também neste tempo guerras em Pernambuco, porque com aquela vitória, que os gentios do cabo de Santo Agostinho alcançaram de Jerônimo de Albuquerque, de que fizemos menção no capítulo undécimo do livro precedente, ficaram tão soberbos, e atrevidos, que não cessavam de dar assaltos nos escravos que os portugueses tinham em suas roças, e fazendas, e principalmente em outros gentios da mata do Brasil, nossos confederados, que eles tinham par mortais inimigos; e o mesmo faziam os do rio de São Francisco nos barcos que iam ao resgate, que se ao descoberto comerciavam, e mostravam amor aos portugueses, em secreto se colhiam alguns descuidados os matavam, e comiam.

Sobre tudo isto a rainha d. Catarina, que governava o reino, e não teve menos cuidado em mandar acudir a estas guerras que às do Rio de Janeiro, mandando que logo se embarcasse Duarte Coelho de Albuquerque herdeiro daquela capitania, e a viesse socorrer, o qual, por entender quão necessário lhe era trazer consigo seu irmão Jorge de Albuquerque, pediu à rainha que o mandasse como mandou, e ele obedeceu, assim por serviço da Rainha e del-rei, seu neto, como por dar gosto a seu irmão, e o ajudar.

E assim, tanto que chegaram a Pernambuco, e tomou Duarte Coelho de Albuquerque posse da sua capitania, que foi na era de mil quinhentos e sessenta, logo chamou a conselho os homens principais do governo da terra, e se assentou entre todos, que se elegesse por general da guerra Jorge de Albuquerque, o qual aceitando o cargo começou logo a fazer assim aos inimigos do cabo de Santo Agostinho, saindo-lhes muitas vezes ao encontro aos seus assaltos, matando, e ferindo a muitos, com que já deixavam alargar-se os brancos, e viver em suas granjas, como aos do rio de São Francisco, aonde foi em companhia de seu irmão, e neste militar exercício se ocupou cinco anos, sofrendo muitas fomes, e sedes, e não sem derramar seu sangue de muitas flechadas, que os inimigos lhe deram, até que enfadado mais das guerras civis, e dissensões dos portugueses amigos que destoutras, determinou ir-se outra vez para o reino, e embarcar-se em uma nau nova de duzentos tonéis, por nome Santo Antônio, que estava carregada no porto do Recife para Lisboa, de que era mestre André Rodrigues, e piloto Álvaro Marinho, e estando carregada a nau, se embarcou, e partiu em uma quarta-feira, 16 de maio do ano de 1566, e não era bem fora da barra, quando lhe acalmou o vento com que partiu, e se lhe tornou tão contrário, que com a corrente da maré, que começava a vazar, levou a nau através até dar em um baixo, onde esteve quatro marés mui perto de se perder, se os mares foram mais grossos; e por lhe acudirem com presteza muitos batéis e outras embarcações, se salvou toda a gente, e fazenda, e nem assim descarregada pôde sair do baixo, em que estava, sem lhe cortarem os mastros, pelo que lhe foi forçado tornar ao porto, e concertar-se, e carregar de novo, no que gastou mês e meio, até 29 de junho, dia de São Pedro e São Paulo, em que se tornou a embarcar com todos os da sua companhia não sem contradição dos amigos, que pelo princípio lhe prognosticavam o ruim sucesso da viagem, a qual foi uma das piores, e mais perigosas, que hão visto navegantes; porque indo demandar as ilhas uma segunda-feira, 3 de setembro, fazendo-se o piloto com elas, veio a eles uma nau de corsários franceses, artilhada, e concertada como costumam, e por a nossa ir desarmada, e só com um falcão, e um berço, determinaram os homens do mar a se render, e entregar aos franceses, a que acudiu Jorge de Albuquerque, dizendo que nunca Deus quisesse, nem permitisse que a nau em que ele ia se rendesse sem pelejar, e se defender quanto possível fosse; por isso que trabalhassem todos de fazer o que deviam, e o ajudassem a pelejar, porque, com a ajuda de Nosso Senhor, somente com o berço, e falcão, que tinham, esperava se defender; mas como a nau ia tão desapercebida de armas, e os mais que nela iam fossem tão fracos de coração, não achou Jorge de Albuquerque quem o quisesse ajudar, mais que sete homens, que para isso se lhe ofereceram; e assim com estes somente, contra o parecer dos mais, se pôs às bombardas, arcabuzadas, e flechadas com os franceses perto de três dias, até que o mestre, e o piloto, vendo o muito dano que assim a nau como a gente recebia da artilharia, e arcabuzaria dos franceses, e que Jorge de Albuquerque em nenhum modo determinava entregar-se, mandaram dar subitamente com as velas embaixo, e começaram a bradar pelos franceses que entrassem a nau, como logo fizeram pela quadra dezessete franceses armados de armas brancas com suas espadas e broquéis, e pistolas, os quais, sem lhes responderem nem lhe poder estorvar se asenhorearam da nau, e vendo que nela não havia mais que o berço, e falcão, que esta dito, ficaram muito espantados, e muito mais quando lhe disseram quão poucos eram os que pelejavam, e sendo dito ao capitão francês que Jorge de Albuquerque fora o que fizera defender a nau todo aquele tempo, se chegou a ele, e lhe disse: Não me espanta o teu esforço, que esse tem todo o bom soldado, mas espanta-me a temeridade de quereres defender uma nau tão desapercebida com tão poucos companheiros, e menos petrechos de guerra, mas mão te desconsoles, que por quão bom soldado tu és, eu te farei muito boa companhia, e assim lha fez, tanto que não queria comer sem ele vir primeiro, e o fazia assentar na cabeceira da mesa, até que um dia, rogando-lhe o capitão que a benzesse ao modo dos portugueses, ele a benzeu com o sinal da cruz, como costumamos, do que alguns dos circunstantes luteranos o repreenderam, e ele repreendido, mas não arrependido, se tornou a benzer, dizendo que com aquele sinal da cruz se havia de abraçar enquanto vivesse, e nele esperava de se salvar de todos seus inimigos, e com isto pediu ao capitão licença para não ir comer mais, com eles, e poder comer em sua câmera o que lhe dessem, e posto que o capitão mostrou-se agravar-se disto, todavia lhe deu a licença que pedia, e vinha ele algumas vezes comer com Jorge de Albuquerque.

Estando já em altura de 43º graus, em uma quarta-feira 12 de setembro, sobreveio a maior tormenta de vento que nunca se viu, com que a nau chegou a ficar sem leme, sem velas, sem mastros, e quase rasa com a água; e vendo-se todos em tão grande perigo, ficaram assombrados e fora de si, temendo ser esta a derradeira hora da vida, e com este temor se chegaram todos a um padre da Companhia de Jesus por nome Álvaro de Lucena, que com eles ia, e a ele se confessaram, e depois de confessados, e se pedirem perdão uns aos outros, se puseram todos de joelhos pedindo a Nosso Senhor Misericórdia, o que também fizeram os franceses, que ficaram dentro da nossa nau, porque a sua logo no princípio da tormenta desapareceu, e pediam perdão aos portugueses dizendo que por seus pecados viera aquela tormenta, que rogassem a Deus por eles, que já se davam por mortos, pois a nau estava da maneira que todos viam. Mas Jorge de Albuquerque começou em altas vozes a esforçar a uns e outros, dizendo que fizessem também de sua parte o remédio possível, uns dando à bomba, outros esgotando a água que estava no convés; porque esperava na bondade divina, e intercessão da Virgem Senhora Nossa, que haviam de ser livres do perigo em que estavam; estando-lhes dizendo isto viram todos um resplendor grande no meio da grandíssima escuridão com que iam, a que todos se tornaram a pôr de joelhos, encomendando-se à Virgem, e pedindo a Deus Misericórdia, o qual foi servido de aplacar a tormenta, e logo apareceu também a nau francesa também muito desbaratada, mas não tanto que ainda não pudesse prover estoutra assim de enxárcia e velas como de mantimento, o que não quiseram fazer, antes descarregando-a de alguma fazenda que tinha em si, e levando os seus franceses, se foram para França, deixando só aos portugueses dois sacos de biscoito podre, e uma pouca de cerveja danada, ao que se ajuntou uma botija, que ainda os nossos tinham, com duas canadas de vinho, e um frasco de água de flor, uns poucos de cocos, e poucos punhados de farinha de guerra, e seis tassalhos de peixe-boi, que Jorge de Albuquerque foi repartindo por trinta e tantos homens o tempo que durou a viagem, para a qual deu ordem com que se fizesse uma vela de alguns guardanapos e toalhas, que se acharam na nau, as quais mandou se ajuntassem a uma velinha de esquife dos franceses, que ficou, e de dois remos fizeram uma verga, e sobre o pé do mastro grande puseram um pedaço de pau de duas braças em alto, e de uns pedaços de enxárcia, que haviam ficado, e de cordas de rede, e morrões, fizeram enxárcia; o leme andava pendurado por um só ferro, que lhe ficou, e lançaram-lhe umas cordas para que pudesse servir, e com isto seguiram sua viagem, tomando a Nossa Senhora Mãe de Deus por guia, sem mais outra agulha ou astrolábio que prestasse, porque tudo lhe levaram os franceses; a qual os guiou de modo que milagrosamente se acharam defronte da sua igreja da Pena, entre as Barlengas e a serra de Cintra; ao dia seguinte se acharam mui perto da roca, e indo já a nau para dar à costa, passou por eles uma caravela, que ia para a pederneira, e pedindo aos homens dela que à honra da morte e paixão de Nosso Senhor os quisessem socorrer, e que lhes pagariam muito bem se os tomassem, e levassem à terra, responderam que Jesus Cristo lhes valesse, que eles não podiam perder tempo de viagem, e se foram sem alguma piedade, ou porventura houveram medo da nau por lhes parecer fantasma, porque nunca se viu no mar coisa tão dessemelhada para navegar, como o pedaço da nau em que iam; porém este medo ou crueldade não tiveram outros que iam para a Atouguia, os quais acudiram logo aos primeiros brados / que não podiam ouvir senão milagrosamente por estarem muito longe / e levaram a nau à toa até a porem em Cascais, a horas de sol posto; donde o infante d. Henrique, cardeal, que neste tempo governava o reino de Portugal, a mandou levar pelo rio acima, e pô-la defronte da igreja de São Paulo, para que todos os que a vissem dessem muitos louvores a Deus, por livrar os que nela vinham de tantos perigos como passaram. E assim, ainda que esta viagem pertence tanto a História do Brasil que vou escrevendo por ser ele o término a quo, e feita, e padecida por um dos capitães destas partes, e natural delas, contudo rogo aos que lerem este capítulo, que dêem ao Senhor as mesmas graças, e louvores; e tenham sempre nele firme esperança, que os pode livrar de todos os perigos.

Capítulo XII

De como o governador Mem de Sá tornou ao Rio de Janeiro, fundou nele a cidade de S. Sebastião, e do mais que lá fez até tornar à Bahia

Posto que o governador Mem de Sá não estava ocioso na Bahia, não deixava de estar com o pensamento nas coisas do Rio de Janeiro, e assim sacudindo-se de todas as mais, aprestou uma armada, e com o bispo d. Pedro Leitão, que ia visitar as capitanias do sul, que todas naquele tempo eram da sua diocese, e jurisdição, e com toda a mais luzida que pôde levar desta cidade, se embarcou e chegou brevemente ao Rio, onde em dia de São Sebastião, vinte de janeiro do ano de mil quinhentos sessenta e sete, acabou de lançar os inimigos de toda a enseada, e os seguiu dentro de suas terras sujeitando-os a seu poder, e arrasando dois lugares em que se haviam fortificado os franceses, posto que em um deles, que foi na aldeia de um índio principal chamado Iburaguaçu mirim, que quer dizer «pau grande pequeno», lhe feriram seu sobrinho Estácio de Sá de uma mortífera flechada, de que depois morreu.

Sossegadas as coisas da guerra, escolheu o governador sítio acomodado ao edifício de uma nova cidade, a qual mandou fortalecer com quatro castelos, e a barra ou entrada do Rio com dois, chamou a cidade de S. Sebastião, não só por ser nome de seu rei, senão por agradecimento dos benefícios recebidos do santo, pois a vitória passada se ganhou dia de S. Sebastião; e em este dia, dois anos antes, partiu Estácio de Sá de S. Vicente para o Rio de Janeiro, e começou a guerra invocando o seu favor, o qual reconheceram bem os portugueses, assim na batalha naval das canoas, como em outras ocasiões de perigo.

Pelo que, ainda em memória da vitória das canoas, se faz todos os anos naquela baía, defronte da cidade, no dia do glorioso São Sebastião uma escaramuça de canoas com grande grita dos índios, que as remam, e se combatem, coisa muito para ver.

O sítio em que Mem de Sá fundou a cidade de São Sebastião foi o cume de um monte, donde facilmente se podiam defender dos inimigos, mas depois, estando a terra de paz, se estendeu pelo vale ao longo do mar, de sorte que a praia lhe serve de rua principal, e assim sendo lá capitão-mor Afonso de Albuquerque, se achou uma manhã defronte da porta do Convento do Carmo, que ali está, uma baleia morta, que de noite havia dado à costa; e as canoas que vem das roças, ou granjas dos moradores, ali ficam desembarcando cada um à sua porta, ou perto dela, com o que trazem, sem lhe custar trabalho de carretos, como costa pela ladeira acima. Nem eles próprios lá subiram em todo o ano, e menos as mulheres, se não fora estar lá a igreja Matriz, e a dos padres da companhia, pela qual causa mora ainda lá alguma gente.

Fundada pois a cidade pelo governador Mem de Sá no dito outeiro, ordenou logo que houvesse oficiais, e ministros da milícia, justiça, e fazenda, e porque haviam ido na armada mercadores, que entre outras mercadorias levaram algumas pipas de vinho, mandou-lhes o governador que o vendessem atavernado, e pedindo eles que lhes pusesse a canada por um preço excessivo, tirou ele o capacete da cabeça com cólera, e disse que sim, mas que aquele havia de ser o quartilho, e assim foi, e é ainda hoje, por onde se afilam as medidas, donde vem serem tão grandes, que a maior peroleira não leva mais de cinco quartilhos.

Entre os primeiros franceses, que vieram ao Rio de Janeiro em companhia de Nicolau Villegaignon, de que tratamos no capítulo oitavo deste livro, vinha um hereje calvinista chamado João Bouller, o qual fugiu para a capitania de S. Vicente, onde os portugueses o receberam cuidando ser católico, e como tal o admitiam em suas conversações, por ele ser também na sua eloqüente, e universal na língua espanhola, latina, grega, e saber alguns princípios da hebréia, e versado em alguns lugares da Sagrada Escritura, com os quais entendidos a seu modo dourava as pirolas, e encobria o veneno aos que o ouviam, e viam morder algumas vezes na autoridade do Sumo Pontífice, no uso dos sacramentos, no valor das indulgências, e na veneração das imagens. Contudo não faltou quem o conhecesse / que ao lume da Fé nada se esconde /, e o foram denunciar ao bispo, o qual o condenou como seus erros mereciam, e sua obstinação, que nunca quis retratar-se; pelo que o remeteu ao governador, o qual o mandou que à vista dos outros, que tinham cativos na última vitória, morresse a mãos de um algoz.

Achou-se ali para o ajudar a bem morrer o padre José de Anchieta, que já então era sacerdote, e o tinha ordenado o mesmo bispo d. Pedro Leitão, e posto que no princípio o achou rebelde não prometeu a Divina Providência que se perdesse aquela ovelha fora do rebanho da igreja, senão que o padre com suas eficazes razões, e principalmente com a eficácia da graça, o reduzisse a ela, ficou o padre tão contente deste ganho, e por conseguinte tão receoso de o tornar a perder, que vendo ser o algoz pouco destro em seu ofício, e que se detinha em dar a morte ao réu, e com isso o angustiava, e o punha em perigo de renegar a verdade, que já tinha confessada, repreendeu o algoz, e o industriou para que fizesse com presteza seu ofício, escolhendo antes pôr-se a si mesmo em perigo de incorrer nas penas eclesiásticas, de que logo se absolveria, que arriscar-se aquela alma às penas eternas.

Casos são estes que desculpa a divina dispensação, e a caridade, que é sobre toda a lei, e sem isto mais são para admirar, que para imitar.

Ordenadas todas as coisas tocantes ao governo político, povoada, e fortificada a terra, a encarregou o governador a Salvador Corrêa de Sá, seu sobrinho, para que a governasse, e ele se tornou para a Bahia.

Capítulo XIII

De como o governador tornou para a Bahia, e de uma nau que a ela arribou indo para a Índia

Tornando o governador Mem de Sá para a Bahia, e chegando a ela, escreveu logo a rainha, e ao infante cardeal d. Henrique, que governava o reino, o que tinha feito no Rio de Janeiro, pedindo em satisfação de seus serviços lhe mandasse sucessor, para se poder ir para Portugal, onde tinha sua filha d. Helena, que depois casou com o conde de Linhares d. Fernando de Noronha; e entretanto foi continuando com seu cargo como costumava, e era obrigado.

Neste tempo veio aqui de arribada Francisco Barreto, que havia sido governador da Índia, e ia conquistar Menomotapa, a quem o governador em tudo o que pôde para sua navegação; ficou-lhe aqui muita gente, e entre os mais um soldado homicida, que em algum tempo teve diferenças com outro em Portugal, mas haviam-se depois congraçado, e vinham ambos, e como tais se foram uma tarde recrear ao campo, onde se lançaram à sombra de uma fresca árvore, e adormecendo o outro, o Medeiros / que assim se chamava o homicida / lhe deu uma estocada de que logo morreu.

Muito desejou Francisco Barreto castigar esta aleivosia do seu soldado, mas não pôde colhê-lo, porém depois da sua partida o ouvidor-geral Fernão da Silva o prendeu, e formado o processo foi sentenciado à morte.

O dia que o levaram a justiçar os mais, que ficaram de Francisco Barreto, tinham dado ordem que estivessem trincados os baraços, para que caísse da forca, como em efeito caiu não só uma vez mas três vezes, o que visto pelos irmãos da Misericórdia, que o haviam acompanhado com a justiça, como é costume, requereram ao ouvidor-geral, que não executasse a sentença, pois assim parecia ser vontade de Deus, o que ele fez, e tornando-o ao cárcere foi logo avisar ao governador do que havia passado, o qual, como era letrado e reto na justiça, o repreendeu muito, dizendo que aquela piedosa opinião era, mas não tinha lugar naquele caso, onde a verdade era sabida, e a aleivosia tão notória, pelo que o mesmo governador uma madrugada o mandou tirar da cadeia, e fazer uma forca à porta dela, onde o enforcaram, e não quebrou a corda.

Nestas, e outras coisas semelhantes se ocupava o governador na Bahia enquanto esperava sucessor, e as guerras não cessavam assim nas capitanias do sul, como do norte, segundo veremos nos capítulos seguintes.

Capítulo XIV

De como os Tamoios, e franceses depois da vinda do governador foram do Cabo Frio ao Rio de Janeiro para tomarem uma aldeia, e do que lhe sucedeu

Posto que o governador geral Mem de Sá, antes que se viesse para a Bahia, deixou limpa a do Rio de Janeiro dos inimigos Tamoios, eles se acolheram ao Cabo Frio, que dista do Rio 18 léguas, e ali se fizeram, fortes, e saíam a dar alguns assaltos aos de S. Vicente ajudados dos franceses, a conta deles mesmos também os ajudarem a cortar pau-brasil para carregarem suas naus, que há muito naquele cabo; e a tanto chegou o seu atrevimento, que juntando a oito naus francesas as canoas que puderam, se embarcaram uns e outros, e entraram pelo Rio de Janeiro, e passando à vista da cidade de S. Sebastião, foram surgir em um porto de uma aldeia, que distava da cidade uma légua, a qual era dos índios confederados, e amigos dos portugueses, onde estava por principal um de grande ânimo, e esforço, que nas guerras passadas havia feito grandes façanhas em defensa do nome cristão, e dos portugueses: seu nome brasileiro foi Araribóia, e no batismo se chamou Martim Afonso de Souza, como seu padrinho o senhor de S. Vicente, que o padrinhou quando viu a sua capitania no ano de mil quinhentos e trinta.

A este vinham os Tamoios ajudados dos franceses saltear e prender, para fazerem em sua terra um solene banquete de suas carnes, segundo eles o mandaram por um mensageiro dizer ao capitão-mor Salvador Corrêa de Sá, o qual temeroso que tomada a aldeia tornassem sobre a cidade, a fortificou muito à pressa, e mandou aos moradores, e soldados que estivessem em armas, e não menos solícito da saúde do índio amigo lhe mandou logo socorro de gente portuguesa / ainda que pouca / animosa, e governada por Duarte Martins Mourão, seu capitão.

Avisado o valoroso índio Martim Afonso de Souza, cercou logo a sua aldeia de trincheiras, e detendo só nela os que podiam pelejar, mandou sair toda a gente inútil, e escondê-la em parte segura, e ele com grande ânimo esperou os inimigos, os quais desembarcados em terra, e a seu prometer seguros da vitória, nenhuma coisa fizeram aquele dia, dilatando a batalha para o outro seguinte.

Donde os nossos, que vieram de socorro, ajudados da obscuridade da noite puderam pôr em bom lugar um falconete, que em uma grande canoa haviam trazido para arredarem com ele os inimigos.

Esforçado mais o valoroso índio com este socorro, e animando os seus, mandou romper as trincheiras, e apelidando o nome de Jesus e de São Sebastião, acometer o inimigo, antes que se concertasse em esquadrões; os índios alentados com a voz do seu capitão, e animados com o exemplo dos portugueses, cerraram com os inimigos desconcertados, os quais ainda, por serem mais em número, lhes resistiram fortemente, enfim viraram as costas, não podendo sofrer a força dos portugueses, e índios confederados.

Os nossos os seguiram, e com pouco dano seu, fizeram grande matança, porque as naus francesas, acostando-se demasiadamente à terra, com a vazante da maré haviam ficado em seco, e o falconete, chovendo sobre elas uma tempestade de pedras, matava, e feria muitos marinheiros, que nelas estavam, e soldados que se embarcavam, até que tornando a crescer a maré se fizeram ao mar, perdidos muitos franceses, e elas maltratadas; os bárbaros destroçados com dificuldade saltaram nas canoas, e perdidos os brios, e desfeitas as forças, em companhia das naus francesas tornaram para o Cabo Frio, e os que carregados de armas saíram de sua terra ameaçando que haviam despedaçar com seus dentes a Martim Afonso, deixaram no campo espalhados muitos dos seus, para que com seus bicos os despedaçassem as aves.

Os franceses, reparadas suas naus, e carregadas de pau-brasil, se tornaram nelas à sua pátria.

Capítulo XV

Das guerras, que houve neste tempo em Pernambuco

Vendo Duarte Coelho de Albuquerque a muita gente que acudia, assim de Portugal como das outras capitanias, para povoarem a sua de Pernambuco, e fazerem nela engenhos e fazendas; e que as terras do cabo, que os gentios inimigos tinham ocupadas, eram as mais férteis, e melhores, determinou de lhas fazer despejar por guerra, e para isto fez resenha de gente que podia levar, e ordenou que com a gente de Iguaraçu fosse por capitão Fernão Lourenço, que era o mesmo capitão da dita vila: com a gente de Parati Gonçalo Mendes Leitão, irmão do bispo, que então era d. Pedro Leitão, e casado com uma filha de Jerônimo de Albuquerque; com a gente da Várzea de Capiguaribe Cristovão Lins, fidalgo alemão; e da gente da vila, mercadores, e moradores, porque eram de diversas partes do reino, ordenou outras três companhias, e que por capitão dos Vianenses fosse J.º Paes; dos do Porto, Bento Dias de Santiago; e dos de Lisboa, Gonçalo Mendes Delvas, mercador; pelas quais seis companhias iam repartidos vinte mil negros, os mais deles do gentio da mata do pau-brasil, contrários dos do cabo.

Também lhes mandou o capitão da ilha de Itamaracá uma companhia de trinta e cinco soldados brancos, e dois mil índios flecheiros, e por capitão Pero Lopes Lobo: posto que ele os entregou a Duarte Coelho, para que os repartisse por onde visse serem necessários, e quis antes meter-se na companhia dos aventureiros, que era dos mancebos solteiros.

Sobre todos ia por general Duarte Coelho de Albuquerque, acompanhado de d. Filipe de Moura, e Filipe Cavalcante, genros de Jerônimo de Albuquerque, e de outros homens nobres e honrados, que todos o quiseram acompanhar, e não ficou mais na vila que Jerônimo de Albuquerque com alguns velhos, que não podiam menear as armas.

Com toda esta gente se partiu Duarte Coelho de Albuquerque, e foi marchando até às primeiras cercas dos inimigos, onde o esperaram aos primeiros encontros, e houve alguns mortos e feridos de parte a parte, mas vendo que era impossível resistir a tantos, se puseram em fugida com grande pressa, para que seguindo-os com a mesma não tivessem os nossos lugar de desmanchar-lhes as casas, e as cercas, e assim tornassem depois pelos matos a meter-se nelas; mas Duarte Coelho, que lhes adivinhou os pensamentos, lhes mandou queimar algumas, e em outras deixou presídios, com ordem que lhes arrancassem todos os mantimentos, com o que os obrigou a cometer pazes, e ele lhas outorgou com as condições, que melhor lhe estiveram, e repartiu as terras por pessoas, que as começaram logo a lavrar, os quais como acharam tanto mantimento plantado não faziam mais que comê-lo, e replantá-lo da mesma rama, e nas mesmas covas, e com isto foram fazendo seus canaviais, e engenhos de açúcar, com que enriqueceram muito, por a terra ser fertilíssima, e só um, que por isto se chamou João Paes do Cabo, chegou a fazer oito engenhos, que repartiram por oito filhos que teve, e coube a cada um seu de legítima.

E porque as terras do rio de Cirinhaen, que ficam defronte da ilha de Santo Aleixo, seis léguas do cabo, eram também muito boas, e as tinha ocupadas outro gentio contrário, que já estava sujeito e pacífico, e de lá os vinham inquietar, e salteá-los, lhes mandou Duarte Coelho dizer pelos nossos línguas, e intérpretes, que se quietassem, e fossem amigos, senão que lhe seria necessário defendê-los, e tomar vingança dos agravos, e injúrias, que lhes faziam.

Ao que eles com muita arrogância responderam que não o haviam com os brancos, nem com ele, senão com aqueles que eram seus inimigos, e contrários antigos; mas se os brancos queriam por eles tomar pendências, ainda tinham braços para se defenderem de uns, e de outros.

Tornados os línguas com esta reposta, fez Duarte Coelho de Albuquerque uma junta de oficiais da Câmera, e mais pessoas da governança, onde se julgou ser a coisa bastante para se lhes fazer guerra justa, e os cativar, e com este assento se aprestou logo outro exército, em que foi Filipe Cavalcante, fidalgo florentino, capitão dos que foram por mar em barcos, e caravelões, e Jerônimo de Albuquerque, dos que marcharam por terra, que Duarte Coelho como soldado quis ir solto, na companhia dos aventureiros, e tanto que chegaram às cercas, e aldeias dos inimigos, tiveram grandes encontros, e resistências, porque eram muitas, e rotas umas se acolhiam logo, e se fortificavam, e defendiam em outras com grande ânimo e coragem.

Porém quando viram o socorro dos barcos, e que não puderam impedir-lhes o desembarcar, posto que o acometeram animosamente, logo desconfiaram, e fugiram para o sertão, levando as mulheres, e filhos diante, e ficando os valentes fazendo-lhes costas, que nunca as viraram aos nossos aventureiros, e índios nossos amigos, que os foram seguindo muitas léguas, até chegar a uma grande cerca, onde se meteram uma tarde, aparecendo alguns pelos altos dela, com tantos ralhos, e mostras de se defenderem, que ali cuidaram os nossos que os tinham certos, e não sabiam já quando havia de amanhecer para abalroarem, animando-se todos uns aos outros para a peleja; porém pela manhã a acharam despejada, que todos haviam fugido, e só saíram de entre o mato um moço e uma moça de outro gentio, que eles tinham cativos, os quais contaram que no mesmo tempo, que os ralhadores apareceram na fronteira da cerca, iam todos os mais secretamente fugindo pela outra parte; e assim não havia para que cansar mais em os seguir, porque iam para mui longe, e para mais não tornarem, como de feito assim foi, e os nossos se tornaram para onde haviam deixado os mais, e os acharam arrancando, e desfazendo os mantimentos dos fugidos, com o que se tornaram todos, uns por mar outros por terra, a Olinda com muito contentamento.

A fama destas duas vitórias ficou todo o gentio desta costa até o rio de S. Francisco tão atemorizado, que se deixavam amarrar dos brancos como se foram seus carneiros e ovelhas; e assim iam em barcos por esses rios, e os traziam carregados deles a vender por dois cruzados, ou mil-réis cada um, que é o preço de um carneiro. Isto não faziam os que temiam a Deus, senão os que faziam mais conta dos interesses desta vida, que da que haviam de dar a Deus, e principalmente veio um clérigo a esta capitania, a que vulgarmente chamavam o Padre do Ouro, por ele se jactar de grande mineiro, e por esta arte era mui estimado de Duarte Coelho de Albuquerque, e o mandou ao sertão com 30 homens brancos, e 200 índios, que não quis ele mais, nem lhe eram necessários; porque em chegando a qualquer aldeia do gentio, por grande que fosse, forte, e bem povoada, depenava um frangão, ou desfolhava um ramo, e quantas penas, ou folhas lançava para o ar tantos demônios negros vinham do inferno lançando labaredas pela boca, com cuja vista somente ficavam os pobres gentios machos, e fêmeas, tremendo de pés e mãos, e se acolhiam aos brancos, que o padre levava consigo; os quais não faziam mais que amarrá-los, e levá-los aos barcos, e aqueles idos, outros vindos, sem Duarte Coelho de Albuquerque, por mais repreendido que foi de seu tio, e de seu irmão Jorge de Albuquerque, do reino, querer nunca atalhar tão grande tirania, não sei se pelo que interessava nas peças, que se vendiam, se porque o Padre Mágico o tinha enfeitiçado; e foi isto causa para que el-rei d. Sebastião o mandasse ir para o reino, donde passou, e morreu com ele na África, e ficou a capitania a Jorge de Albuquerque Coelho, que também passou com el-rei, e foi cativo, ferido, e aleijado de ambas as pernas, mas resgatou-se, e viveu depois muitos anos casado com a filha de d. Álvaro Coutinho de Amourol, da qual houve dois filhos, Duarte de Albuquerque Coelho, e Mathias de Albuquerque, de que trataremos em o Livro Quinto. E o Padre do Ouro também foi preso em um navio para o reino, o qual arribou às ilhas, donde desapareceu uma noite sem mais se saber dele.

Capítulo XVI

De como vinha por governador do Brasil d. Luiz Fernandes de Vasconcelos, e o mataram no mar os corsários

No ano do Senhor de mil quinhentos e setenta vinha por governador do Brasil d. Luiz Fernandes de Vasconcelos, o qual, partido em uma boa frota, ao segundo dia que saiu da barra de Lisboa começou a correr tormenta, que fez apartar umas naus das outras, donde uma foi encontrar com corsários poderosos, que a tomaram, e mataram quarenta padres da Companhia de Jesus, que nela vinham com o padre Inácio de Azevedo, que já havia sido no Brasil seu primeiro visitador, e a toda a mais gente que a nau trazia e d. Luiz arribou destroçado da tempestade à ilha da Madeira, onde refazendo-se, sobre ter navegado de uma parte para a outra mais de duas mil léguas, com imenso trabalho chegou à vista do Brasil, que demandava, e sem a poder tomar, por mais que por isso trabalhou, lhe foi forçado arribar dali a ilha Espanhola, que é das Índias de Castela, e invernar nela, e arribar dali outra vez a Portugal com a nau desbaratada da falta de tudo, e aportando assim na ilha Terceira, no porto da ilha lhe deram a nova da morte de seu filho d. Fernando, que desastradamente morreu na Índia a mãos de mouros.

Passado a outra nau, esperando tempo para tornar a cometer a viagem do Brasil, partiu quando o teve, sem alguma companhia de outras naus, e encontrou na mesma semana três naus de corsários luteranos, a cujas mãos, não sendo poderoso de defender-se nem se querendo render, sobre ter mui esforçadamente pelejado, foi morto na batalha.

Era d. Luiz Fernandes de Vasconcelos / além de outras boas qualidades, pelas quais parecia digno de melhor ventura / curiosíssimo da arte marítima, e tão douto, e diligente nela, que podia competir com os mais cientes, e experimentados pilotos; mas com isto infelicíssimo em todas suas viagens, e navegações.

A primeira vez que houve de sair ao mar, sendo despachado por capitão-mor da Armada da Índia, estando já as naus carregadas, e a ponto de partirem, abriu a sua capitania uma tão grossa água, que não pôde partir com as outras, mas partiu depois só, e veio invernar a esta Bahia, como dissemos no capítulo quinto deste livro, e pior foi a jornada da Índia para o reino, em que se perdeu com miserabilíssimo naufrágio, de que salvou somente a pessoa, com 30 e tantos companheiros, no batel da nau, deixando nela mais de 300, que se afogaram, com tanta mágoa de seu coração por lhes não poder valer, que cobriu os olhos com uma toalha por não ver tão triste espetáculo, e saindo assim da nau permitiu Nosso Senhor que visse ela em poucos dias da ilha de S. Lourenço, povoada de cruel, e bárbaro gentio, com que as vidas não ficavam menos arriscadas, não tendo dali, senão muito longe, outra terra, nem navio, nem mantimento; mas ordenou a Divina Misericórdia que topasse ali acaso uma nau resgatando, na qual tornaram a Índia, onde d. Luiz se embarcou em outra para Portugal, e sobre ter peregrinado três anos, e mais, chegou ao reino, sem ter de tão longa jornada, em que metera tanto cabedal, mais que dívidas, e trabalhos, e perigos, que nela passou, e não se cansando nem se mudando por tempo sua fortuna, sendo depois mandado por governador do Brasil lhe aconteceram os infortúnios, que atrás dissemos, e por fim deles a morte, que põe fim a tudo.

Capítulo XVII

Da morte do governador Mem de Sá

Neste mesmo ano, em que d. Luiz Fernandes de Vasconcelos foi morto no mar a mãos de inimigos corsários, que foi o de mil quinhentos setenta e um, morreu de sua enfermidade o governador Mem de Sá, que o estava esperando para ir-se para o reino, mas quereria Nosso Senhor levá-lo para outro reino melhor, que é do céu, como por sua vida, e morte, e principalmente pela Misericórdia Divina, se pode confiar. Foi sepultado na capela da igreja dos padres da companhia, que ele havia ajudado a fazer de penas das condenações aplicadas para a obra, e de outras esmolas. Fez testamento, em que instituiu universal herdeira da sua fazenda, a sua filha condessa de Linhares, com esta cláusula, que se morresse sem deixar filho ou filha, que a herdasse, do engenho e terras, que cá tinha em Sergipe, ficasse a terceira parte a casa da Misericórdia desta cidade da Bahia, e os outros dois terços aos padres da companhia, um para eles, outro para repartirem em esmolas, e dotes de órfãs.

Porém ainda que a condessa morresse sem deixar filhos herdeiros, ela legou estes bens ao Colégio dos Padres da Companhia de Santo Antão de Lisboa, onde mandou fazer uma capela, e os padres de cá, não lhes parecendo bem pôr-se à demanda com os seus, deixaram o litígio a Misericórdia.

Não somente o governador Mem de Sá morreu gozoso de suas vitórias / se há coisa nas mundanas que na morte possa dar gozo /, mas também de outras, que neste ano da sua morte, o décimo quarto do seu governo, alcançaram os católicos contra os infiéis, que foram as mais insignes de quantas no mundo se hão visto; uma foi a que os portugueses alcançaram na Índia contra três reis, que se confederaram para os lançarem dela, e para este efeito deram todos a um tempo, o Hidalcão sobre Goa, o Nisa Maluco sobre Chaul, e o de Achem sobre Malaca; mas como em todas estas partes havia defensores portugueses, em todas foi igual a resistência. Muitos foram de parecer que se largasse Chaul, porque não estava murado, nem tinha gente que o pudesse defender do poder de Nisa Maluco, e para lhe mandar socorro de Goa seria porem-se a perigo de perderem uma coisa, e outra: porém o viso-rei d. Luiz de Ataíde, contra o parecer de todos, disse que nada havia de largar, e assim ficando-se com só dois mil homens em Goa, mandou d. Francisco Mascarenhas a Chaul com 600 soldados escolhidos, fora muitos fidalgos, e capitães, dos quais alguns aperceberam navios em que o seguiram com gente à sua custa, como foram d. Nuno Álvares Pereira, Pedro da Silva de Menezes, Nuno Velho Pereira, Rui Pires de Távora, João de Mendonça, e outros, que não podendo haver embarcações por partirem a furto do viso-rei, se embarcaram com estes, que dissemos, e com outros, que pelo tempo foram acudindo, e com tão pouca gente foi Deus servido que o viso-rei vencesse em Goa o Hidalcão, o qual o teve cinco meses em cerco com 35 mil cavalos, e 60 mil de pé, dois mil elefantes armados, e 200 peças de artilharia de campo, as mais delas de monstruosa grandeza, e d. Francisco Mascarenhas com a gente que levava de socorro, e a que tinha Luiz Freire de Andrade, capitão-mor de Chaul, que senão 800 homens, mataram a Nisa Maluco 12 mil mouros de 100 mil combatentes de pé, e 55 mil de cavalo, com que teve cercado a Chaul, e o puseram em tanta desconfiança que a cabo de nove meses, que durou o cerco, cometeu pazes a d. Francisco Mascarenhas.

As mesmas cometeu o Hidalcão ao viso-rei, e um, e outro as aceitou com condições a seu gosto, muito a salvo da sua honra, e del-rei. Pois o de Achem não livrou melhor que estoutros, porque indo para Malaca se encontrou com Luiz de Mello da Silva, que em naval batalha o venceu, e o fez por então tornar frustrado de seu intento.

Com esta vitória chegou o viso-rei d. Luiz de Ataíde ao reino a 22 de julho do ano seguinte de mil quinhentos setenta e dois, por deixar já na Índia d. Antônio de Noronha, seu sucessor, e el-rei d. Sebastião foi na cidade de Lisboa dar graças a Deus no domingo seguinte, em solene procissão da Sé ao Mosteiro de S. Domingos, onde se pregou, e denunciou ao povo, levando à mão direita o viso-rei em precedência de todos os príncipes e senhores, de que foi acompanhado; grande honra, mas bem merecida, e devida a tão heróicos feitos.

A outra vitória que neste ano de mil quinhentos setenta e um se alcançou foi a de d. João de Áustria, general da liga cristã, o qual com Marco Antônio Colona, general das galés do papa Pio Quinto, Sebastião Veniero, general dos Venezianos, o príncipe Doria, o de Parma, e Urbino, e outros senhores, que seguiram seu estandarte, em um domingo, a 7 de outubro, no golfo de Lepanto venceu o Baxá general dos turcos, matou-o, e lhe cativou dois filhos, sendo mais mortos 30 mil turcos, cativos cinco mil, tomadas duzentas e 20 galés, e galeotas, e libertados 15 mil escravos cristãos, a que vinham remando na armada do turco; mas também dos nossos morreram na batalha sete mil e quinhentos soldados, em que entraram alguns capitães famosos.

Sabida a nova da perda da sua armada por Selim, imperador dos turcos, a sentiu tanto, que saiu do seu juízo, dizendo que era princípio da ruína do seu império, mas sendo consolado por Luchali, que havia escapado com 15 galés, e lhe mostrou o estandarte de Malta, que havia tomado na batalha, aconselhado pelos seus, mandou logo aprestar outra armada, fazendo general dela o dito Luchali, o qual mui contente com o novo cargo se dava pressa em fabricar galés, fundir artilharia, fazer munições, e vitualhas para sair o ano seguinte, o que sabido pelo Sumo Pontífice tornou a tratar com os príncipes cristãos de nova liga, pedindo também a el-rei de Portugal d. Sebastião quisesse entrar nela, e juntamente quisesse aceitar o casamento de Margarita, filha de el-rei Henrique de França, em que já lhe haviam falado, e ela não quisera, o qual sabendo que o dito rei de França se escusava da liga contra o turco, respondeu que aceitava o casamento, e não queria mais dote com ela, senão que entrasse seu pai na dita liga, e ele mesmo se oferecia que pelo mar Roxo, e Pérsico molestaria o grão turco com suas armadas naquele tempo vitoriosas, e nisso trabalharia com todo o seu poder e forças.

Tão zeloso era el-rei d. Sebastião da honra de Deus, e de guerrear por ela contra os infiéis, que só por isto aceitava o casamento / a que não era afeiçoado /, e não queria outro dote; mas não se concluindo este matrimônio, que tantos males, e desventuras pudera escusar, casou com ela Henrique de Bourbon, duque de Vandoma, e príncipe de Bierne, e el-rei d. Sebastião continuou com suas guerras, que era o que desejava sobre todas as coisas da vida, até que nelas a perdeu.

Capítulo XVIII

De como el-rei d. Sebastião mandou Cristóvão de Barros or capitão-mor a governar o Rio de Janeiro

El-rei d. Sebastião, depois que começou a governar por si o reino, como era tão solícito de conquistas / que provera a Deus não fora tanto /, sabendo da que se fazia no Rio de Janeiro, mandou a ela por capitão-mor, e governador a Cristóvão de Barros, o qual era filho bastardo de Antônio Cardoso de Barros, primeiro provedor-mor da Fazenda del-rei no Brasil, que tornando-se para o reino em companhia do primeiro bispo, dando a nau à costa junto ao rio de S. Francisco, foi morto, e comido do gentio, como já dissemos no capítulo terceiro deste livro.

Era Cristóvão de Barros homem sagaz, e prudente, e bem-afortunado nas guerras, e assim depois que chegou ao Rio de Janeiro, em todas as que teve com os Tamoios ficou vitorioso, e pacificou de modo o recôncavo, e rios daquela Bahia, que tornados os ferros das lanças em foices, e as espadas em machados, e enxadas, tratavam os homens já somente de fazer suas lavouras, e fazendas, e ele fez também um engenho de açúcar junto a um rio chamado Magé, onde se faz uma pescaria de fataças, e chama-se Piraiqué, que quer dizer «entrada de peixe», tão notável, que não é bem passá-la em silêncio.

É este rio de água doce, mas entra por ele a maré uma légua pouco mais ou menos. Nas águas vivas do mês de junho, que é ali a força do inverno, entram por ele tantas fataças, ou corimans / como os índios brasis lhes chamam /, que para as poderem vencer se juntam duzentas canoas de gente, e lançando muito barbasco machucado à riba donde chega a maré, quando esta preamar se tapa a boca, ou barra do rio com uma rede dobrada, vai o peixe a sair com a vazante, não pode com a rede, nem menos esconder-se no fundo, porque a água o embasbaca, e embebeda de maneira que, viradas de barriga as fataças andam sobre ela meias mortas, donde com um rede-fole as tiram como colher de caldeira, aos pares, até encher as canoas.

Saem-se logo fora, e cortadas as cabeças lhes escalam os corpos, e salgadas os põem a secar nos penedos, que há ali muitos; e das cabeças cozidas fazem azeite para se alumiarem todo o ano.

Nas águas seguintes de julho se faz outra Piraiqué, ou pescaria, da mesma maneira que a passada, mas não são já tão gordas as fataças, porque estão todas ovadas de ovas grandes e saborosas, as quais salgam, prensam, e secam para comerem, e levarem a vender à Bahia, e a outras partes.

Contei isto, porque esta pescaria se faz naquele rio de Magé, onde Cristovão de Barros fez o seu engenho, e no seu tempo, e ainda depois alguns anos se mandava lançar público pregão na cidade do dia em que se havia de fazer a pescaria, para que fossem a ela todos os que quisessem, e poucos deixavam de ir, assim pelo proveito como por recreação.

Capítulo XIX

Do quarto governador do Brasil Luiz de Brito de Almeida, e de ua ida ao rio real

Sabida no reino a nova da morte de Luiz Fernandes de Vasconcellos, que os corsários mataram no mar vindo governar o Brasil, mandou logo el-rei por governador a Luiz de Brito de Almeida, que havia sido escrivão da Misericórdia em um ano de muita festa em Lisboa, e desamparando o provedor, e irmãos o hospital com temor do mal contagioso, ele assistiu sempre, provendo-os de todo o necessário para sua cura; pelo que el-rei lhe encarregou este governo, no qual, depois de chegar, e prover nas coisas da paz, que por morte de seu antecessor achou desordenadas, começou a entender nas da guerra; e a primeira a que acudiu foi a lançar os gentios inimigos do rio Real, e povoá-lo como el-rei lhe havia mandado, pelas boas informações que dele tinha, e o mesmo nome de rio Real esta publicando, e prometendo.

Este rio esta em 12 graus, tem de boca meia légua, em a qual há dois canais, e por qualquer deles entram navios da costa de cinqüenta toneladas. Da barra para dentro é o rio mui fundo, e faz uma baía de mais de uma légua, onde há grandes pescarias de peixes-bois, e de toda a mais sorte de peixe.

Entra a maré por ele sete ou oito léguas. Do salgado para cima é a terra muito boa para canas-de-açúcar, e outras plantas; tem muito pau-brasil, e por todas estas coisas a mandava el-rei povoar; porém como havia ali gentio contrário, foi primeiro o governador para a fazer despejar com muitos moradores da Bahia, uns por terra, outros nos barcos, em que iam os mantimentos, e alcançou vitória de um grande principal chamado Sorobi, queimando-lhe as aldeias, matando, e cativando a muitos; e porque outro chamado Aperipé lhe fugiu com a sua gente o seguiu cinqüenta léguas pelo sertão sem lhe poder dar alcance, onde achou duas léguas notáveis, uma de quinhentas braças de comprido, e cento de largo, cuja água é mais salgada que a do mar, e toda cercada de perrexil outra pegada a esta de mais de 600 braças de largo de água muito doce; ambas têm muitos peixes, e o governador mandou pescar muito, com que se tornou para a Bahia, encarregando a povoação a Garcia da Vida, que tinha sua casa, fazenda, e muitos currais dali a 12 ou 13 léguas no rio de Tatuapará, o qual a começou, mas nunca se acabou de povoar senão de currais de gado.

Capítulo XX

Das entradas, que neste tempo se fizeram pelo sertão

Não ficaram pouco pesarosos os moradores da Bahia, que acompanharam o governador ao rio Real, por não acharem o gentio, que buscavam, para o cativarem, e se servirem dele como aqueles a quem havia levado mais esta cobiça que o zelo da nova povoação, que el-rei pretendia se fizesse; mas ainda se ajudaram do sucesso para seu intento, dizendo ao governador que pois as guerras afugentavam os gentios, como se vira nesta, e nas que seu antecessor lhes havia feitas, com que os fez afastar do mar mais de sessenta léguas, seria melhor trazê-los por paz, e per persuasão de mamalucos, que por eles saberem a língua, e pelo parentesco, que com eles tinham / porque mamalucos chamamos mestiços, que são filhos de brancos, e de índias /, os trariam mais facilmente que por armas.

Por estas razões, ou por comprazer aos suplicantes, deu o governador as licenças, que lhe pediram, para mandarem ao sertão descer índios por meio dos mamalucos, os quais não iam tão confiados na eloqüência, que não levassem muitos soldados brancos, e índios confederados, e amigos, com suas flechas, e armas, com as quais, quando não queriam por paz, e por vontade, os traziam por guerra, e por força: mas ordinariamente bastava a língua do parente mamaluco, que lhes representava a fartura do peixe, e mariscos do mar, de que lá careciam, a liberdade de que haviam de gozar, a qual não teriam se os trouxessem por guerra.

Com estes enganos, e com algumas dádivas de roupas, e ferramentas, que davam aos principais, e resgates, que lhes davam pelos que tinham presos em cordas para os comerem, abalavam aldeias inteiras, e em chegando à vista do mar, apartavam os filhos dos pais, os irmãos dos irmãos, e ainda às vezes a mulher do marido, levando uns o capitão mamaluco, outros os soldados, outros os armadores, outros os que impetraram a licença, outros quem lha concedeu, e todos se serviam deles em suas fazendas, e alguns os vendiam, porém com declaração que eram índios de consciência, e que lhes não vendiam senão o serviço, e quem os comprava, pela primeira culpa, ou fugida, que faziam, os ferrava na face, dizendo que lhe custaram seu dinheiro, e eram seus cativos; quebravam os pregadores os púlpitos sobre isto, mas era como se pregassem em deserto.

Entre estas entradas no sertão fez uma Antônio Dias Adorno, ao qual encomendou o governador que trabalhasse por descobrir algumas minas, o qual entrou pelo rio das Contas, que é da capitania dos Ilhéus, e seguindo a sua corrente, que vem de mui longe, rodeou grande parte do sertão, onde achou esmeraldas, e outras pedras preciosas, de que trouxe as amostras, e o governador as mandou ao reino, onde examinadas pelos lapidários, as acharam muito boas; mas nem por isso se mandou mais a elas, sinal que haviam lá ido mais a buscar peças que pedras, e assim trouxeram 7000 almas dos gentios Tupiguaens, sem trazerem algum mantimento, que comessem, em 200 léguas, que caminharam muito devagar, por virem muitas mulheres, e crianças, e muitos velhos, e velhas, sustentando-se só de frutas agrestes, caça, e mel, mas isto em tanta abundância que nunca se sentiu fome, antes chegaram todos gordos, e valentes: donde se colige quão fértil é aquele sertão, e pelo conseguinte com quanta facilidade se pudera tornar em busca das pedras preciosas já descobertas, e descobrir outras.

Também mandou o mesmo governador um Sebastião Álvares ao rio de S. Francisco com oficiais, e tudo o mais necessário para fazer uma embarcação em que por ele navegassem em descobrir algumas minas, e para isso escreveu a um grande principal do sertão chamado Porquinho, que o ajudasse com gente, e tudo o mais que pudesse; ele mandou um vestido de escarlata, e uma vara de meirinho para trazer na mão.

Levou este recado um Diogo de Castro, que já havia estado em sua casa, e sabia bem falar-lhe a língua, e outro grande língua, que havia sido irmão da companhia, chamado Jorge Velho.

Estimou muito o Porquinho ver o caso que dele fazia o governador, e nunca jamais faltou em quanto os brancos o ocuparam; e assim pôs com sua ajuda o capitão a embarcação em boa altura, e a fez em paragem donde o rio era todo navegável, porque dali para baixo lhe ficava já a cachoeira, e o sumidouro, quando lhe chegou uma carta do governador Lourenço da Veiga, que sucedeu a Luiz de Brito, em que mandava que logo lhe viesse dar conta da fazenda de el-rei, que levara, obedeceu o homem, e posto que depois tornou não achou já os seus, que se haviam metido com outros de Pernambuco a descer gentio, como ele também fez, e todos lá acabaram.

Não só da Bahia, mas também dos Ilhéus, e de Pernambuco, se fizeram neste tempo outras entradas.

Dos Ilhéus foi Luiz Álvares Espinha com pretexto de fazer guerra a certas aldeias daí a 30 léguas, por haverem nelas mortos alguns brancos, porém hão se contentou com lha fazer, e cativar todas aqueles aldeãos, senão que passou adiante, e desceu infinito gentio.

De Pernambuco foram Francisco de Caldas, que serviu de provedor da fazenda, e Gaspar Dias de Taíde com muitos soldados ao rio de S. Francisco, e ajudando-se do Braço de Peixe, que era um grande principal dos Tabajaras, e da sua gente, que era muito esforçada, e guerreira, entraram muitas léguas pelo sertão, matando os que resistiam, e cativando os mais.

Tornando-se depois para o mar com sete mil cativos, determinaram pagar ao Braço com o levarem também amarrado, e a todos os seus: porém ele os entendeu, e não deixando de os servir com mantimentos das suas roças, e caça do mato, para aqueles, deu 200 caçadores para assegurar mais a sua caça, e depois que os teve seguros, que nem se vigiavam, nem lhes parecia haver para que, mandou chamar outro principal seu parente, chamado Assento de Pássaro, que viesse com os flecheiros da sua aldeia, e avisou os seus caçadores, que estavam entre os brancos, estivessem alerta na madrugada seguinte, para que, quando ouvissem o seu urro costumado, darem juntamente nos nossos, e lhes não escapar algum com vida; e assim foi que, achando-os dormindo mui descuidados, subitamente os acometeram com tanto ímpeto, que não lhes deram lugar, a tomar armas, nem a fugir, e os mataram todos; e soltos os outros gentios cativos, depois que ajudaram a festejar a sua liberdade, comendo a carne de seus senhores, os deixaram tornar para suas terras, ou para onde quiseram; só escapou dos nossos um mamaluco, que uma moça, irmã do principal Assento de Pássaro, escondeu.

Este levou a nova aos brancos, que estavam no porto esperando, e depois neles a Olinda, onde foi muito sentida de todos, pranteando as viúvas seus maridos, e os filhos seus pais, que ali morreram. Nem parou aqui o mal, senão que os homicidas, temendo-se que os brancos fossem tomar vingança destas mortes, sendo Tabajaras, e contrários dos Potiguares, se foram meter com eles na Paraíba, e se fizeram seus amigos para os ajudarem nas guerras, que nos faziam, como adiante veremos.

N. B.- Este capítulo foi copiado das adições e emendas a esta História do Brasil; cujos adiamentos existem no Real Arquivo da Torre do Tombo.

Capítulo XXI

Das diferenças, que o governador, e o bispo tiveram sobre um reso, que se acolheu a igreja

Por morte do bispo d. Pedro Leitão veio o bispo d. Antônio Barreiros, que havia sido d. prior de Aviz, a governar este bispado do Brasil; era homem benigno, esmoler, e dotado de muitas virtudes; mas não era chegado de muitos dias, quando se ofereceu uma ocasião de diferenças, e desgostos entre ele e o governador Luiz de Brito; a ocasião foi esta:

Havia nesta terra um homem, aliás honrado, e rico, chamado Sebastião da Ponte, mas cruel em alguns castigos, que dava a seus servos, fossem brancos ou negros; entre outros chegou a ferrar um homem branco em uma espádua como ferro das vacas depois de bem açoutado; sentido o homem disto se embarcou, e foi para Lisboa, onde esperando uma manhã a el-rei, quando ia para a capela, deixou cair a capa, que só levava sobre os ombros, e lhe mostrou o ferrete, pedindo-lhe justiça com muitas lágrimas.

Informado el-rei do caso, escreveu ao governador que mandasse preso, e a bom recado ao reino o dito Sebastião da Ponte.

Teve ele notícia disto, e acolheu-se a uma ermida de Nossa Senhora da Escada, que está junto a Pirajá, onde o réu então morava: demais disto chamou-se às ordens, dizendo que tinha as menores, e andava com hábito, e tonsura, porque não era casado, pelas quais razões deprecou o bispo ao governador não o prendesse, mas não lhe valeu, começou logo a proceder a censuras, e finalmente chegou o negócio a tanto, que houveram de vir às armas, correndo com elas o povo néscio, e inconstante, já ao bispo com o temor das censuras, já ao governador com o temor da pena capital, que ao som da caixa se publicava, e o que mais era, que ainda depois de todos acostados ao governador, seus próprios filhos, que estudavam para se ordenarem, com pedras nas mãos contra seus pais se acostavam ao bispo, e a seus clérigos, e familiares.

Porém enfim / Jussio Regis urgebat /, e se mandou o preso ao reino, como el-rei o mandava, onde foi metido na prisão do Limoeiro, e nela acabou como suas culpas mereciam.

Também neste tempo deu a nau Santa Clara, indo para a Índia, à costa no rio Arambepe à meia-noite, dando por cima de uma lájea, um tiro de falcão do recife, e se perderam mais de trezentos homens, que nela iam com o capitão Luiz de Andrade.

Dista o rio donde a nau se perdeu cinco ou seis léguas desta cidade, e assim acudiu logo lá muita gente, e se tirou do fundo do mar muito dinheiro de mergulho, de que se pagaram per si os búzios, e nadadores, e muitos que nada nadaram. A isto acudiu o bispo com a excomunhão da Bula da Ceia contra os que tomam os bens dos naufrágios; não sei se aproveitou alguma coisa, só sei, que ouvi dizer a um, dali a muitos anos, que aquele fora o tempo dourado para esta Bahia pelo muito dinheiro que então nela corria, e muitos índios, que desceram do sertão, e bem dizia dourado, e não de ouro, porque para este outras coisas se requeriam.

Capítulo XXII

Do princípio da rebelião, e guerras do gentio da Paraíba

O rio da Paraíba, que nas cartas de marear se chama de S. Domingos, está em seis graus e três quartos... A boca da abra que o rio faz tem de largo uma légua, e o canal que vai pelo meio, que é o que chamam barra, tem um quarto de légua, e todo o mais de uma parte e outra é muito esparcelado, o fundo é de areia limpa, e assim é muito maior porto, e capaz de maiores embarcações, que o de Pernambuco, do qual dista 22 léguas de costa para a banda do norte.

Pelo rio acima uma légua tem uma ilha formosa de arvoredo de uma légua de comprido, e um terço de largo, defronte da qual esta o surgidouro das naus capaz de grande quantidade delas, e abrigado de todos os ventos, e chega ainda a maré pelo rio acima cinco léguas, por onde podem navegar grandes caravelões; tem uma várzea de mais de 14 léguas de comprido, e de largo duas mil braças, toda retalhada de esteiros, e rios caudais de água doce, que já hoje está toda povoada de canas-de-açúcar e engenhos, para os quais dão os mangues do salgado lenha para se cozer o açúcar, e para cinza da decoada em que se limpa; neste rio entravam mais de 20 naus francesas todos os anos a carregar de pau-brasil, com ajuda que lhes davam os gentios Potiguares, que senhoreavam toda aquela terra da Paraíba até o Maranhão algumas 400 léguas: e assim ajudavam os portugueses vizinhos das capitanias de Itamaracá e Pernambuco, depois que tiveram pazes, como fica dito no capítulo décimo segundo do livro segundo; mas tantas vexações, e perrarias lhe fizeram, que se tornaram a rebelar.

Uma só contarei, que foi como disposição última, e ocasião propínqua desta rebelião, e foi que entre outros mamalucos, que andavam pelas aldeias suas resgatando peças cativas, e outras coisas, e debaixo disto roubando-os com violência e enganos, houve um natural de Pernambuco, o qual, posto que era filho de um homem honrado, tirou mais a ralé da mãe que do pai; este indo a uma aldeia da Capaôba com seus resgates se agasalhou em um rancho de um principal grande chamado Iniguaçú, que quer dizer «rede grande», e se namorou de uma filha sua, moça de 15 anos, dizendo que queria casar ou amancebar-se com ela, para ficar entre eles, e não vir mais para os brancos, no que ela consentiu, e o pai também, entendendo que cumpriria o noivo a condição prometida. Porém indo a uma caça, que durou alguns dias, quando tornou não achou o genro, nem a filha, porque se haviam ido para Pernambuco: sentiu-o muito, e mandou logo dois filhos seus em busca da irmã, os quais, porque o mamaluco lha não quis dar se foram queixar a Antônio Salema, que estava por correição em Pernambuco, posto que já de partida para a Bahia, e ele mandou logo notificar que o pai do querelado, que trouxesse a moça, como trouxe, e a entregou aos irmãos, passando-lhes uma provisão para que ninguém lhes impedisse o caminho, ou lhes fizesse agravo, antes lhes dessem os brancos por onde passassem todo o favor, e ajuda para o seguirem; avisando-os que não consentissem mamalucos em suas aldeias, e assim o avisou ao capitão-mor da ilha Afonso Rodrigues Bacelar, que não consentisse em ir ao sertão semelhante gente.

Foram os negros mui contentes com sua irmã, e mais depois que viram o bom agasalhado, que pelo caminho lhes faziam os brancos, obedecendo à provisão que levavam, até que chegaram à casa de um Diogo Dias, que era o derradeiro que estava nas fronteiras da capitania de Itamaracá, o qual os recebeu com muitas mostras de amor, e muito mais a irmã, que mandou recolher com outras moças de Câmera, sem mais a querer dar aos portadores, nem ao outros, que o pai mandou depois que soube, pedindo-lhe que lhe mandasse sua filha, e quando não quisesse a fossem pedir ao dito capitão-mor da ilha, como foram, e nenhuma coisa aproveitou, porque o capitão era amigo de Diogo Dias, e dissimulou com o caso.

Espalhada esta nova pelos gentios das aldeias quiseram logo tomar vingança nos regatões, que nelas estavam, e tomar-lhes os resgates; mas o principal agravado lhes foi à mão dizendo que aqueles não tinham culpa, e não era razão pagassem os justos pelos pecadores, e somente os fez sair das aldeias, e ir para suas casas como o corregedor Antônio Salema havia mandado; tão bem intencionado era este negro, e afeto aos portugueses, que nem ainda de seu ofensor tomara vingança, senão fora atiçado por outros Potiguares, principalmente pelos da beira-mar, com os quais comunicavam os franceses, e para o seu comércio do pau-brasil lhes importava muito ter aliança com estoutros da serra, e como nesta conjunção estavam três naus francesas à carga na baía da Traição, e o capitão-mor da ilha de Itamaracá havia dado um assalto, que matou alguns franceses, e lhes queimou muito pau que tinham feito, no qual o assalto se havia também achado Diogo Dias, tantas coisas disseram ao bom Rede Grande, que veio a consentir que dessem em sua casa, e fazenda, que era um engenho que havia começado no rio Taracunhaê; e porque sabiam que o homem tinha muita gente, e escravos, e uma cerca mui grande feita, com uma casa forte dentro, em que tinha algumas peças de artilharia, se concertaram que ele viria com todo o gentio da serra por uma parte, e o Tujucipapo, que era o maior principal da ribeira, com os seus, e com os franceses por outra, e assim como o disseram o fizeram, e com serem infinitos em número ainda usaram de uma grande astúcia, que não remeteram todos à cerca nem se descobriram, senão somente alguns, e ainda estes começando os nossos a feri-los de dentro com flechas, e pelouros, se foram retirando como que fugiam; o que visto por Diogo Dias se pôs a cavalo, e saindo da cerca com os seus escravos, foi em seu seguimento, mas tanto que o viram fora rebentaram os mais da cilada com um urro, que atroava a terra, e o cercaram de modo, que não podendo recolher-se à sua cerca, foi ali morto com todos os seus, e a cerca entrada, onde não deixaram branco nem negro, grande nem pequeno, macho nem fêmea, que não matassem, e esquartejassem.

Foi esta guerra dos Potiguares, governando o Brasil Luiz de Brito, na era de mil quinhentos setenta e quatro, e dela se seguiram tantas, que duraram 25 anos.

Capítulo XXIII

De como dividiu el-rei o governo do Brasil mandando o dr. Antônio Salema governar o Rio de Janeiro com o Espírito Santo, e mais capitanias do sul, e o governador Luiz de Brito com a Bahia, e as outras do norte, e que fosse conquistar a Paraíba

Informado el-rei d. Sebastião de todo o conteúdo no capítulo precedente, e receoso de se os franceses situarem no rio da Paraíba, mandou ao governador Luiz de Brito de Almeida o fosse ver, e eleger sítio para uma forte povoação, donde se pudessem defender deles, e dos Potiguares, e para que melhor o pudesse fazer, e sem que sentissem sua falta as capitanias do sul, de Porto Seguro para baixo, encarregou o governo delas ao dr. Antônio Salema, que havia estado em Pernambuco com alçada, e então estava na Bahia, donde se partiu no ano do Senhor de mil quinhentos setenta e cinco, e foi bem recebido no Rio de Janeiro assim pelo capitão-mor Cristóvão de Barros, como de todos os mais portugueses, e índios principais, que o visitaram, sendo o primeiro e principalíssimo Martim Afonso de Souza, Araribóia, de quem tratamos no capítulo décimo quarto deste livro, ao qual, como o governador desse cadeira, e ele em se assentando cavalgasse uma perna sobre a outra segundo o seu costume, mandou-lhe dizer o governador pelo intérprete, que ali tinha, que não era aquela boa cortesia quando falava com um governador, que representava a pessoa de el-rei.

Respondeu o índio de repente, não sem cólera e arrogância, dizendo-lhe: «Se tu souberas quão cansadas eu tenho as pernas das guerras em que servi a el-rei, não estranharas dar-lhe agora este pequeno descanso, mas já que me achas pouco cortesão eu me vou para minha aldeia, onde nós não curamos desses pontos, e não tornarei mais à tua corte.» Porém nunca deixou de se achar com os seus em todas as ocasiões, que o ocupou.

Depois que o governador esteve alguns dias em terra compondo e ordenando as coisas dela, e da justiça, como bom letrado que era, foi informado que no Cabo Frio estavam muitas naus francesas resgatando com o gentio, e que todos os anos ali vinham carregar de pau-brasil; pelo que determinou logo lançá-los fora, e para isto se ajuntou com Cristóvão de Barros, e com 400 portugueses, e 700 gentios amigos, cometeram animosamente os franceses, e posto que os acharam já fortificados com os Tamoios, e se defenderam com muito ânimo, todavia apertaram tanto com eles, que tiveram por seu bem entregar-se, e os Tamoios, que escaparam, com espanto do que tinham visto se afastaram de toda aquela costa, mas os cativos, que quiseram receber a Fé, pôs o governador Antônio Salema em duas aldeias no recôncavo do Rio de Janeiro, a que chamaram uma de S. Barnabé, e outra de S. Lourenço, e se encomendaram aos padres da companhia, para que como aos outros catecumenos lhes ensinassem o ministério de nossa Fé.

Capítulo XXIV

De como o governador Luiz de Brito mandou o ouvidor-geral Fernão da Silva à conquista da Paraíba, e depois ia ele mesmo, e não pôde chegar com ventos contrários

Por não poder o governador Luiz de Brito de Almeida ir logo à conquista da Paraíba, que el-rei lhe encomendou, a encarregou ao dr. Fernão da Silva, ouvidor-geral, e provedor-mor deste estado, que naquela ocasião ia por correição a Pernambuco, o qual com todo o poder de gente de pé e de cavalo, e índios, que de Pernambuco e Itamaracá pôde levar, foi a ver o sítio, e castigar os Potiguares rebelados: os quais como o viram ir tão poderoso não ousaram esperá-lo, nem ele os correu mais que até à boca do dito rio, onde tomou dele posse em nome de el-rei com muita solenidade de atos, que mandou fazer muito bem notados, e com este feito se tornou mui satisfeito a Pernambuco, e daí depois de concluídos os negócios de seu ofício outra vez para a Bahia, porém os Potiguares, que nenhuma coisa entendem de atos nem termos judiciais, nem se lhes dá deles, como não viram pelouros, nem quem lhos tirasse, se tornaram a senhorear da terra como de antes, e com mais ânimo e coragem.

Neste interim se havia concertado Boaventura Dias, filho de Diogo Dias, com um Miguel de Barros, de Pernambuco, homem rico, e que tinha muito gentio da terra para fazerem um engenho de açúcar em Guiana (Goyana?), no sítio em que depois o teve Antônio Cavalcante, e para bem o poderem fazer, e defender, fizeram uma casa forte de madeira de taipa, e mão dobrada, donde com os arcabuzes, que os brancos dentro tinham, e o seu gentio com arcos e flechas, se defenderam de alguns assaltos, que os Potiguares lhe deram, e cerco em que os puseram; porém um dia advertiram que a loja da casa estava aberta por uma parte onde lhes não haviam feito taipa, e enquanto uns pelejavam outros secretamente meteram por ali muita palha seca, e lhes puseram fogo, o qual se começou logo a atear nas traves, e tábuas do sobrado, sem que os de riba vissem mais que a fumaça, que os cegava, sem saberem donde vinha, e indo duas mulheres abrir um alçapão para verem o que era, subiu incontinente tão grande labareda que as abrasou, o que visto pelos homens, e como toda a casa estava cercada de inimigo, determinaram sair a campo, e vender bem suas vidas, como fizeram, matando primeiro a muitos, que deles fossem mortos, e como o número era tão grande foram vencidos e mortos.

Capítulo XXV

De uma entrada, que nesse tempo se fez de Pernambuco ao sertão

Na era do Senhor de mil quinhentos setenta e oito, em que Lourenço da Veiga governava este estado, se ordenou em Pernambuco uma entrada para o sertão em que foi por capitão Francisco Barbosa da Silva em um caravelão até ao rio de S. Francisco, e por ser a gente muita, e não caber na embarcação, foram setenta homens por terra, levando por seu cabo a Diogo de Castro, que falava bem a língua da terra, e havia já ido da Bahia a outras entradas.

Estes havendo passado o rio Formoso foram cometidos de um bando de porcos monteses, com tanta fúria, e rugido de dentes, que os pôs em pavor, mas como tinham as espingardas carregadas, descarregaram-nas neles, e os fizeram voltar ficando sete mortos, que foram bons para a matulagem.

Daí a nove dias, chegando à lagoa viram estar uma nau francesa, surta três léguas ao mar, para o rio de S. Miguel, da qual se haviam desembarcado 10 franceses, e estavam em uma tranqueira contratando com alguns gentios.

Deram os nossos sobre eles de madrugada quando dormiam, mataram nove, ficando só um defendendo-se tão valorosamente com uma alabarda, que com estar já com uma perna cortada, ainda antes que o matassem matou um soldado nosso chamado Pedro da Costa.

Os índios, que com eles estavam, eram poucos, e dizendo-lhes Diogo de Castro, que os não buscavam, senão aos franceses, se foram sem fazer alguma resistência, e os nossos seguiram seu caminho até o desembarcadouro do rio de S. Francisco, onde foi aportar o caravelão com o seu capitão, e os mais, que levava; e dali, por não terem índios, que lhes carregassem os mantimentos, e resgates, os mandaram pedir ao principal chamado Porquinho, e a outro seu contrário chamado o Seta, para que se um os não desse, os desse o outro, e eles foram tão obedientes, que de ambas as partes vieram; e assim para os contentar se foi o capitão com os do Seta, e Diogo de Castro com os do Porquinho.

O Seta, depois de ter o capitão em casa, lhe cometeu que lhe queria vender uma aldeia de contrários, que tinha dali a nove ou 10 léguas, que fosse com ele, e lha. entregaria; aceitou o capitão o partido, e deixando em guarda do fato um Diogo Martins Leão com 12 homens, se foi com os mais onde o Seta os levava.

Dos que ficaram com o Leão foram cinco pelas aldeias vizinhas a buscar de comer, porque os gentios delas se publicavam amigos, mas eles os mataram sem lhes haverem dado para isso ocasião alguma, e logo se foram à casa onde Diogo Martins Leão havia ficado com os mais para os matarem todos, e lhes tomarem os resgates, os quais entendendo a determinação com que iam carregaram à pressa as espingardas, e começaram a se defender valorosamente.

Logo escreveu Diogo Martins uma carta a Diogo de Castro, que o socorresse, e lha mandou por um cigano, a qual vista, e o perigo, e aperto em que ficavam, deu cópia dela ao Porquinho, que logo se pôs a pregar que sempre fora amigo dos brancos, e o havia de ser até a morte, pois eles lhes levavam as ferramentas com que faziam suas roças, e sementeiras, e outras coisas boas de que eram senhores; que se fizessem prestes para os irem socorrer, porque ele se punha já ao caminho, como de feito se pôs, e dentro de 24 horas se achou junto aos cercados com 1.500 índios, em companhia de Diogo de Castro, e de mais oito homens brancos, os quais, repartidos todos em duas mangas, feito o sinal com uma corneta, deram subitamente no inimigo com tanto ímpeto que não lhes puderam resistir, e se puseram em fugida; mas como os tinham cercados com as mangas, iam lhes dar nas mãos, e foram mortos mais de 600; era isto antemanhã, e como amanheceu depois de se saudarem, e renderem as graças os que ficaram livres do cerco, lhes perguntou se sabia o capitão daquela rebelião do gentio, e por lhe dizerem que não, lhe escreveu dois escritos do que havia passado, e que logo se tornasse com boa ordem, e vigilância até se juntarem com ele, que também o ia buscar, porque entre tantos inimigos não convinha andarem espalhados: um destes escritos levava um mamaluco, que não chegou, porque os inimigos o mataram no caminho; o outro levou um índio que chegou, o qual visto pelo capitão dissimulou o temor, e alvoroço, que com ele recebeu e disse ao Seta e aos mais, que os acompanhavam, que era necessário tornar atrás a socorrer os brancos, que o Porquinho tinha posto em cerco, e com isto fez volta até um rio, que distava dali quatro léguas, onde os rebeldes o estavam já aguardando em cilada, e rebentando dela se travou entre todos uma briga, que durou até a noite, e tornando pela manhã a continuá-la, chegaram Diogo de Castro, e o Porquinho, com cujo socorro se animou mais o capitão, e combatendo-os uns por detrás, outros por diante, mataram mais de 500.

Ali tomaram conselho, e assentaram que os acabassem de uma vez, e fossem a uma cerca forte, e grande, onde se haviam acolhido, dali a 12 léguas, no alto de uma serra.

Começaram a marchar, e no segundo dia chegaram a um rio, que manava de um penedo, onde acharam morto, e com os braços cortados, e as pernas, o mamaluco, que haviam mandado com o escrito ao capitão. Dali mandaram um branco com dois negros por espias, que se encontraram com outros dois dos inimigos; um mataram, e trouxeram o outro vivo, do qual souberam que a cerca distava dali duas léguas, e que estavam nela 43 principais nomeados com toda a sua gente, mulheres e filhos.

Chegados os nossos à vista, não a quiseram os brancos dar de si senão só os do Porquinho, que já a este tempo eram vindos das suas aldeias mais de dois mil, os quais vistos pelos da cerca saíram a eles outros tantos, e fingindo os do Porquinho, depois de haverem bem batalhado, que lhes fugiam, se foram retirando até os afastar um bom espaço da cerca, e então saiu o nosso capitão com os brancos, dando-lhe sua surriada de pelouros pelas costas, e voltaram os da retirada com outra de flechas, onde tomando-os em meio trezentos, e os mais sem poderem tornar à cerca, se acolheram para os matos.

A cerca tinha três mil e 236 braças em circuito, e lançava um braço até a água de que bebiam; esta lhe determinaram os nossos tomar primeiro, e posto que os de dentro a defenderam com muito esforço seis dias, contudo no sétimo foi rendida, com o que começaram a morrer de sede, e a cometer muitos partidos, e o último foi que entregariam uma aldeia de seus contrários se os brancos fossem com eles a tomar a entre a como foram, e entrando na aldeia começaram a pregar que eles os tinham vendido por serem seus inimigos, e ainda lhe faziam muita mercê em não os matarem nem os venderem a outros gentios, que os matassem ou maltratassem, senão a cristãos, que os haviam tratar cristãmente; ao que respondeu o principal da aldeia, chamado Araconda, que eles eram os que mereciam o cativeiro, e a morte, por serem matadores de brancos, e não ele nem os seus, que nunca lhes fizeram nenhum dano; e então se virou para o capitão, e lhe disse: «Branco, eu nunca fiz mal a teus parentes, nem estes me podem vender; mas eu por minha vontade quero ser cativo, e ir contigo.»

O capitão lhe agradeceu com palavras, e mandou que se aprestassem dentro de quinze dias para o caminho, como fizeram; eram tantos, que indo todos em fileira um atrás de outro como costumam /, ocupavam uma légua de terra.

Não sei eu com que justiça e razão homens cristãos, que professavam guardá-la, quiseram aqui que pagasse o justo pelo pecador, trazendo cativo o gentio, que não lhes havia feito mal algum, e deixando em sua liberdade os rebeldes, e homicidas, que lhes haviam feito tanta guerra e traições. Porém eles lhes deram o pago, pois apenas os haviam deixado, quando determinaram de lhe ir no alcance, e mandaram adiante alguns por espias, que se metessem pelos matos, e quando os do Araconda fossem à caça lhes dissessem que eles remordidos de suas consciências os queriam redimir do cativeiro dos brancos em que os puseram, e para isto lhes queriam dar guerra, pelo que os avisavam que quando vissem a batalha os deixassem, e se fossem embora para suas terras, porque a gente do Porquinho era já despedida, e não tinham que temer; mas posto que isto se tratou com muito segredo, o ouviu uma índia das cativas, que o disse a seu senhor, e o senhor a outros, que não creram senão depois que o viram, e não lhes aproveitou o aviso, porque os inimigos lhes deram na retaguarda, e lhes mataram 11 homens, sem os da vanguarda lhes poderem valer, assim por irem mais longe, como pelo gentio de Araconda ser acolhido, e cuidar o capitão que nenhum da retaguarda lhes haveria escapado com vida; só mandou dois negros saber se eram mortos ou vivos, os quais vendo-os cercados e postos em tanto aperto, que quase estavam desmaiados, entraram apelidando a Santo Antônio, e um com arco e flecha, outro com seu terçado, e rodela, fazendo tanto estrago, que bastou este pequeno socorro para animar os amigos, e atemorizar os inimigos, de sorte que se puseram em fugida, e os pernambucanos não os podendo já seguir, se tornaram para suas casas, mais pobres do que vieram.

Tinha o governador d. Lourenço da Veiga uma coisa, e era que, por mais negócios, que tivesse, não deixava de ouvir missa, e para não obrigar alguém a que o acompanhasse, ia e vinha sempre a cavalo.

Capítulo XXVI

Da morte do governador Lourenço da Veiga

Depois que el-rei d. Henrique reinou, por morte de el-rei d. Sebastião seu sobrinho, como era já de tanta idade quando entrou no reinado, que passava de sessenta e seis anos, logo se começou a altercar sobre quem lhe havia de suceder no reino, porque os pretensores eram el-rei católico Filipe Segundo de Castela, a duquesa de Bragança, o príncipe de Parma, o duque de Sabóia, e o senhor d. Antônio, e todos enviaram seus procuradores à Corte, para que, informado el-rei da justiça de cada um, declarasse por sucessor o que lhe parecesse nela mais justificado.

Todos alegavam que eram seus sobrinhos, filhos de seus irmãos ou irmãs, e estavam em igual grau de parentesco, porque el-rei católico era filho de sua irmã a imperatriz d. Isabel, e do imperador Carlos Quinto. A duquesa de Bragança era filha do infante d. Duarte, seu irmão, e de d. Isabel, filha do duque de Bragança d. Jaime.

O príncipe de Parma era casado com a infanta d. Maria, também filha do mesmo infante d. Duarte. O duque de Sabóia era filho da infanta d. Beatriz, sua irmã, e de Carlos, duque de Sabóia.

O senhor d. Antônio era filho natural do infante d. Luiz, seu irmão, todos netos de el-rei d. Manuel, pai dos seus genitores, e do mesmo rei Henrique, seu tio.

El-rei, posto que de princípio se inclinou à parte da duquesa de Bragança, contudo, por ser fêmea, e el-rei católico varão, e por outras razões, se resolveu que a ele pertencia o reino, mas não o quis declarar por sentença, nem em testamento, porque era melhor para os pretensores, e para o mesmo reino de Portugal, que lho dessem por concerto.

Já a este tempo el-rei se achava mui fraco, e foi apertando o mal de maneira que morreu sendo de idade de 68 anos, e os perfez no mesmo dia em que morreu, que foi o último rei de Portugal de linha masculina, e como o primeiro senhor de Portugal se chamou Henrique, assim se chamou o último.

Morto el-rei, os governadores que deixou nomeados foram o arcebispo de Lisboa, Francisco de Sá, camareiro-mor de el-rei, d. João Tello, d. João Mascarenhas, e Diogo Lopes de Souza, presidente do Conselho de Justiça, ainda que não tinham vontade de resistir a el-rei católico, todavia, por dar satisfação ao povo, proveram algumas coisas para a defensa do reino, o que tudo sabido por el-rei, e as diligências que d. Antônio fazia para que o levantassem por rei de Portugal, sentiu muito não poder escusar-se de aproveitar-se das armas, e já estava assegurado da consciência, com pareceres de teólogos e canonistas, que o podia fazer, e se aparelhava para isso; mas escreveu primeiro aos governadores, e a cinco principais cidades do reino, e aos três estados, que estavam em Cortes em Almeirim, pedindo-lhes que o declarassem conforme a vontade do rei-defunto seu tio, e a seu direito. Responderam-lhe que não podiam até que a causa se declarasse por justiça; o que visto por el-rei, nomeou o duque de Alba por general do exército, e mandou que entrassem em Portugal por terra e por mar.

Iam no exército mais de 1.400 cavalos, a infantaria, além dos terços de Espanha, eram quase quatro mil alemães, e seu coronel o conde Baldrou (de Lodron), e quatro mil italianos com seu capitão-general d. Pedro de Médicis.

O duque de Alba, contra o parecer de outros, que diziam que sem tratar da torre de S. Gião (S. Julião), se fossem direitos a Lisboa, e começou de bater com vinte e quatro canhões, e ainda que lhe não fez grande dano, Tristão Vaz da Veiga, irmão de Lourenço da Veiga, governador do Brasil, que era o capitão da Torre, determinou de entregá-la, e mandando pedir seguro ao duque se viu com ele em campo, e se concertou de entregar a fortaleza, se lhe concediam o que d. Antônio lhe havia dado, e assim se fez, e se meteu nela presidiu de castelhanos; o que visto por Pedro Barba, capitão do forte da Cabeça Seca, que até então se não havia querido render, e que o marquês de Santa Cruz, d. Álvaro Baçan, ia entrando com as galés castelhanas, o desamparou, e se foi a d. Antônio, que também foi daí a poucos dias vencido em Lisboa, e retirando-se dela a cidade de Coimbra, e de Coimbra à do Porto, onde o reconheceram por rei, indo sempre em seguimento Sancho de Ávila; finalmente o forçou a embarcar-se no rio Minho, vestido como marinheiro, e passar-se às ilhas, e delas a outros reinos estranhos, onde acabou a vida.

Hei dito estas coisas em suma, não sem propósito, senão para declarar o achaque ou ocasião da morte do governador do Brasil Lourenço da Veiga, que como se prezava de português, sentiu tanto haver seu irmão Tristão Vaz da Veiga entregue a torre de S. Gião da maneira que temos visto, que ouvindo a nova enfermou, e morreu; e assim acabou o governador Lourenço da Veiga, e nós com ele acabamos também este livro.

Livro quarto

Da História do Brasil do tempo que o governou Manuel Teles Barreto até a vinda do governador Gaspar de Souza

De como veio governar o Brasil Manuel Teles Barreto, e do que aconteceu a umas naus francesas, e inglesas no Rio de Janeiro, e S. Vicente

Como a Majestade de el-rei Filipe Segundo de Castela, e Primeiro de Portugal, foi jurado nele por rei no fim do ano de mil quinhentos e oitenta, sabendo da morte do governador do Brasil Lourenço da Veiga, mandou por governador Manuel Teles Barreto, irmão de Antônio Moniz Barreto, que foi governador da Índia; era de 60 anos de idade, e não só era velho nela, mas também de Portugal o Velho; a todos falava por vós, ainda que fosse ao bispo, mas caía-lhe em graça, a qual não têm os velhos todos.

Tanto que chegou a esta Bahia, que foi no ano de mil quinhentos oitenta e dois, escreveu a todas as capitanias que conhecessem a Sua Majestade por seu rei, e foi de importância este aviso, porque daí a poucos dias chegaram três naus francesas ao Rio de Janeiro, e surgiram junto ao baluarte, que está no porto da cidade, dizendo que iam com uma carta de d. Antônio para o capitão Salvador Corrêa de Sá, o qual nesta ocasião era ido ao sertão fazer guerra ao gentio; mas o administrador Bartolomeu Simões Pereira, que havia ficado governando em seu lugar, e estava informado da verdade pela carta do governador geral, lhes respondeu que se fossem embora, porque já sabia quem era seu rei; e porque a cidade estava sem gente, e não havia mais nela que os moços estudantes, e alguns velhos, que não puderam ir à guerra do sertão, destes fez uma companhia, e d. Ignez de Souza, mulher de Salvador Corrêa de Sá, fez outra de mulheres com seus chapéus nas cabeças, arcos e flechas nas mãos, com o que, e com o mandarem tocar muitas caixas, e fazer muitos fogos de noite pela praia, fizeram imaginar aos franceses que era gente para defender a cidade, e assim a cabo de dez ou doze dias levantaram as âncoras, e se foram.

No mesmo tempo foram dois galeões de ingleses, de 300 toneladas cada um, à capitania de S. Vicente com intento de povoar, e fortificar-se por relação de um inglês, que se havia ali casado, das minas de ouro, e outros metais, que há naquela terra, e publicavam que el-rei católico era morto, e d. Antônio tinha o reino de Portugal, oferecendo da parte da rainha de Inglaterra grandes coisas. Porém os portugueses, pela carta que tinham estiveram mui firmes por el-rei católico, sem querer admitir aos ingleses, os quais ameaçavam de entrar por força, e realmente o fizeram, se naquela conjunção não chegaram três naus de castelhanos, que começaram a pelejar com eles, os quais logo bateram estandarte, pedindo paz, que os castelhanos lhes não deram, antes jogaram a artilharia toda a noite, porque pelas correntes não os puderam abordar.

Ao outro dia, ainda que deixaram uma nau tão maltratada que se foi ao fundo, desampararam a empresa, e saíram do porto mui maltratadas, sem antenas, e as naus furadas por muitas partes, e mais de 50 homens mortos, e 14 feridos. Entraram as naus castelhanas no porto, sendo bem recebidas dos portugueses, que rogavam mil bens a Sua Majestade, pois / ainda que acaso / tão presto os começava a defender.

O caso como ali foram aquelas naus se contará no capítulo seguinte.

Capítulo II

Da armada, que mandou Sua Majestade ao estreito de Magalhães, em que foi por general Diogo Flores de Valdez, e o sucessor que teve

Francisco Drake, corsário inglês, passou o ano de mil quinhentos setenta e nove o estreito de Magalhães, e correu o mar do Sul; e d. Francisco de Toledo, viso-rei do Peru, mandou atrás dele a Pedro Sarmento, e Antão Paulo Corso, piloto, os quais havendo passado o mesmo estreito do sul ao norte, chegaram a Sevilha, e daí a Badajós, onde el-rei católico então estava despedindo o seu exército sobre Portugal, e ouvida sua relação, e o desassossego, que no Peru havia posto o corsário; e certificando muito Pedro Sarmento, que no estreito se podiam fazer fortes de ambas as partes, dos quais facilmente com a artilharia se impedisse o passo aos navios, houve pareceres contrários, dizendo que o estreito era mais largo do que Sarmento o figurava, e que quando fosse tão estreito, como dizia, nem por isso se impediria o passo aos navios, pela muita corrente, e porque com um golpe, ou dois de artilharia, não sempre se mete uma nau no fundo, e quando se meta passa outra: entre outros que tiveram esta opinião foi um o duque de Alba d. Fernando Álvares de Toledo,

Porém el-rei mandou que se juntassem no rio de Sevilha 23 naus de alto bordo, com cinco mil homens de mar e guerra, com petrechos para a fábrica destes fortes, capazes para 300 homens de guerra, e alguns povoadores para facilitar mais sua conservação.

Nomeou para general desta armada a Diogo Flores de Valdez, e por piloto-mor a Antão Paulo Corso, e a Pedro Sarmento por governador dos fortes, e povoações. Saiu de S. Lucas esta armada a 25 de setembro do ano de 1581, com tão mau tempo por a pressa que o duque de Medina Sidonia dava, que depois de três dias arribou com tormenta a baía de Cadiz com perda de três navios, havendo-se afogado a maior parte da gente, e tão destroçada, que para reparar-se se deteve mais de 40 dias; tornou a sair com 17 navios, e chegou ao Brasil, ao porto da cidade de S. Sebastião do Rio de Janeiro, onde invernou seis meses e meio; porque ainda que chegou a 25 de março, que em Espanha é a primavera, nestas partes é o princípio do inverno, em que se não pode navegar para o estreito; e porque neste tempo não estivesse a gente ociosa, a ocupou em fazer estacas para trincheiras, e taipais, e outros petrechos, e em lavrar madeira para duas casas, em que no estreito tivessem as munições recolhidas.

Para o que tudo deu muita ajuda Salvador Corrêa de Sá, governador do Rio de Janeiro, e parecendo que já era tempo para navegar saíram da barra do Rio a 2 do mês de outubro com 16 navios, deixando um por inútil, e tomando a derrota do estreito, que está 700 léguas deste porto, chegaram ao rio da Prata, donde se levantou um temporal de ventos tão fortes, que estiveram 22 dias mar em través, sem poder pôr um palmo de vela; e havendo-se perdido aqui em véspera de Santo André a nau do capitão Palomar, e 236 pessoas nela, sem podê-los remediar; aos 2 de dezembro aplacou alguma coisa o mar, e o vento, e com acordo dos capitães e pilotos tornou Diogo Flores atrás, buscando porto para reparar as naus, porque estavam cinco delas abertas da tormenta, e as mais em perigo de fazer o mesmo.

Foram à ilha de Santa Catarina, 300 léguas dali, a qual ainda que despovoada / por ser de portugueses, que não sabem povoar, nem aproveitar-se das terras, que conquistam /, é terra de muita água, pescado, caça, lenha, e outras coisas: onde a cabo de vinte e dois dias, que ali estiveram, deixou Diogo Flores de Valdez três naus, que não puderam navegar, a cargo do contador André Equinon, com ordem que se tornassem ao Rio de Janeiro, e deu outras três a d. Alonso de Souto Maior, que ia por governador do Chile, para levar a sua gente pelo rio da Prata ao porto de Buenos Aires, donde não há mais que vinte jornadas à China; e o dito Diogo Flores, com as mais, em dia de reis do ano de mil quinhentos oitenta e três, tornou a volta do estreito. As três naus, que ficaram na ilha de Santa Catarina, saíram dali aos 14 de janeiro, e aos 24 do mesmo chegaram à barra de S. Vicente, e na mesma barra acharam os dois galeões ingleses, que estavam para tomar a terra se não chegassem os castelhanos, que os lançaram dali às bombardas, como temos dito.

Diogo Flores de Valdez seguiu seu caminho, para o estreito, levando a terra à vista, sobre a mão direita, até darem com a boca em 53º graus, e entrando com bom tempo como duas ou três léguas, se levantou de repente uma tempestade, que os tornou ao mar mais de 40 léguas.

Andaram oito dias porfiando por tornar a embocar o estreito; porém não podendo com o vento, não quis Diogo Flores tentar mais a fortuna, por ver as naus destruídas, e a gente enferma de tanto trabalho. Tornou-se à costa do Brasil, ao porto de S. Vicente, e com as naus que trazia, e as duas, que ali achou, passou ao Rio de Janeiro, onde topou a d. Diogo de Alzeda, que por mandado de el-rei com quatro naus o ia socorrer com batimentos, e outras coisas, e parecendo a Diogo Flores que a armada estava desfeita, sem gente, e sem munições, determinou de tornar à Espanha com d. Diogo de Alzeda, e que o seu almirante Diogo da Ribeira, com cinco navios, que lhe deixou, ficasse ali para tornar o verão seguinte, a ver se teria mais ventura de embocar o estreito, e povoá-lo, como el-rei mandava.

Navegando Diogo Flores com os mais navios, que já não eram mais de sete, arribou com uma tormenta, que o fez tornar 200 léguas atrás, a esta baía de Todos os Santos, no princípio do mês de junho de 1583, onde se deteve a concertá-los, para o que da fazenda de el-rei se lhe deu o que foi necessário; e se mandou fornecimento ao Rio de Janeiro para o almirante Diogo da Ribeira seguir a sua viagem ao estreito, e o governador Manuel Teles Barreto o banqueteou, e a todos os capitães e gentis-homens um dia esplendidamente, e o bispo d. Antônio Barreiros outro; mas o que mais fez nesta matéria foi um cidadão senhor de engenho, chamado Sebastião de Faria, o qual lhe largou as suas casas com todo o serviço, e o banqueteou, e aos seus familiares e apaniguados oito meses, que aqui estiveram, só por servir a el-rei, sem por isso receber mercê alguma, porque serviços do Brasil raramente se pagam.

Capítulo III

Do socorro, que da Paraíba se mandou pedir ao governador Manuel Teles, e o assento que sobre isso se tomou

No capítulo vinte e cinco do livro terceiro tocamos como o governador Lourenço da Veiga desistira da conquista da Paraíba, por el-rei d. Henrique, que naquele tempo governava, a encarregar a Frutuoso Barbosa, que lha pediu.

Havia este homem ido de Pernambuco, e por haver na Paraíba carregados navios de pau por algumas vezes, no tempo das pazes, que lhe os Potiguares fizeram, e por ter conhecimento da terra, e deles, o encarregou el-rei da conquista por contrato que fez em sua fazenda, dando-lhe para isso as provisões necessárias, naus, e mantimentos, e conquistando a Paraíba, a capitania por 10 anos chegou Frutuoso Barbosa à barra de Pernambuco no ano de mil quinhentos setenta e nove em um formoso galeão, e uma zabra, e outros navios, com muita gente portuguesa, assim soldados como povoadores casados, com muitos resgates, munições, e petrechos necessários, assim a conquista como a povoação, que logo havia de fazer; para a qual trazia um vigário, a quem el-rei dava quatrocentos cruzados de ordenado, e religiosos da nossa Seráfica Ordem Franciscana, e de S. Bento, com toda a ordem e recado necessário à empresa, que a fazenda de el-rei devia de custar muito, e em sete ou oito dias, que esteve na barra surto sem desembarcar, nem tratar do negócio a que vinha, lhe deu um tempo com que arribou às Índias, onde lhe morreu a mulher, e tornando dali ao reino partiu dele no ano de mil quinhentos e oitenta e dois, por mandado de el-rei d. Filipe, e tornando a Pernambuco se concertou com os da vila de Olinda que o licenciado Simão Rodrigues Cardoso, capitão-mor e ouvidor de Pernambuco, fosse por terra com gente, e ele com a que trazia, e outra muita que da capitania por serviço de el-rei se lhe ajuntou, por mar, o qual chegando a boca da barra da Paraíba com a armada que trouxe, e alguns caravelões, entrou pelo rio acima, por ter aviso de sete ou oito naus francesas, que lá estavam surtas bem descuidadas, e varadas em terra, e a maior parte da gente nela, e os índios metidos pelo sertão a fazer pau para carregá-las, e dando de súbito sobre elas queimou cinco, esbulhando-as primeiro, que foi um honrado feito, e as outras fugiram com quase toda a gente.

Descuidados os nossos com esta vitória alcançada com tão pouco custo, e nenhum sangue, saindo alguns deles em terra com um filho de Frutuoso Barbosa, rebentou o gentio de uma ilha, em que estava, e dando neles os foram matando até os batéis, aonde se iam recolhendo, sem das naus os socorrerem, que foi coisa lastimosa ver matar mais de quarenta portugueses, em que entrou o filho do capitão, e com a mesma fúria houveram os inimigos de tomar a zabra em que ia Gregório Lopes de Abreu por capitão, que o dia de antes entrara diante, e o fizera muito bem, por ficar na ponta da ilha quase em seco, e a se não defender tão esforçadamente, sempre os índios o tomaram, e acabaram todos.

O capitão Frutuoso Barbosa ficou tão cortado, e receoso deste sucesso, que se levantou com toda a armada, e foi surgir na boca da barra, por se não ter por seguro dentro, esperando a gente que ia por terra, e estando para dar à vela por ver que tardava, chegou o licenciado Simão Rodrigues com duzentos homens de pé, e de cavalo, e muito gentio, o qual no caminho da várzea da Paraíba teve um bom recontro com os Potiguares, que avisados da sua vinda o foram esperar, e meteram em revolta e pressa, se o nosso gentio ajudado da gente branca lhe não tivera aquele primeiro encontro; porque os Potiguares animados da vitória passada se metiam tanto, que vinham a braços com os nossos, mas enfim ficaram vencidos, e desbaratados, e assim chegaram os nossos à barra do rio da banda do norte com esta vitória, com que consolaram os da armada, e animados uns com outros trataram, em oito dias, que ali estiveram, os meios de se fortificarem da banda do norte, porque pareceu impossível da banda do sul, no Cabedelo, por ser mau o sítio, e não ter água, o que não fizeram de uma parte nem de outra, antes fugiram à maior pressa, por verem da banda dalém muito gentio, pelo que mandando dali o galeão com aviso à Sua Majestade do que passava, desesperado já Frutuoso Barbosa de tudo se veio lograr um novo casamento, que à sombra da governação de caminho em Pernambuco havia feito para restauro da mulher e filho, que havia perdido; e assim ficou tudo como dantes, os inimigos mais soberbos, e as capitanias vizinhas a risco de se despovoarem, só os detinham as esperanças, que tinham de serem socorridos da Bahia, onde haviam mandado por procurador um Antônio Raposo ao governador Manuel Teles Barreto com grandes protestos de encampação; o qual fez sobre isto junta, e conselho em sua casa, em que se acharam com ele o bispo d. Antônio Barreiros, o general da Armada Castelhana Diogo Flores Valdez, o ouvidor-geral Martim Leitão, e os mais que na matéria podiam ter voto, e se assentou que fosse o general Diogo Flores, e em sua companhia o licenciado Martim Leitão, com todos os poderes bastantes para efeito da povoação da Paraíba, e por provedor da Fazenda, e mantimentos da armada, Martim Carvalho, cidadão da Bahia, os quais todos aceitaram com muito ânimo e gosto, particularmente Diogo Flores, por ver, já que o jogo lhe sucedeu tão mal no estreito, se ao menos podia levar este vinte de caminho.

Capítulo IV

De como o licenciado Martim Leitão, ouvidor-geral, foi por mandado do governador com o general Diogo Flores de Valdez a conquista da Paraíba, e se fez nela a fortaleza da barra

Tomado o assento que fica dito no capítulo precedente se aprestaram, e saíram da Bahia a primeiro do mês de março do ano de 1584 com uma armada de nove naus, sete castelhanas, e duas portuguesas, e chegaram a Pernambuco a vinte do mesmo, onde logo desembarcou o ouvidor-geral, ficando de fora toda a armada, e fez ajuntar em Câmera d. Filipe de Moura, capitão da capitania por Jorge de Albuquerque, senhor dela, com os mais vogais, em que também se achou d. Antônio de Barreiros, bispo deste estado, que havia ido na armada a visitar as igrejas de Pernambuco, e Itamaracá, e ficou assentado se aprestasse tudo para domingo de Páscoa partirem d. Filipe de Moura por cabeça, com a gente que o ouvidor-geral havia de fazer, como logo começou rogando um, e um, compondo-lhes suas coisas, com que se aviaram muitos dos moradores de Pernambuco, e se ajuntaram na vila de Iguaraçu no dia sinalado; havendo já d. Filipe juntos os da ilha de Itamaracá no engenho de seu sogro Filipe Cavalcante, em Araripe, até onde Martim Leitão acompanhou o arraial, e depois de partidos dali ajuntou mais alguns 40 homens, que entregues a um Álvaro Bastardo, mandou a d. Filipe, e o alcançaram junto ao rio Paraíba, onde tiveram todos um recontro com o gentio; mas enfim passaram o rio acima para a banda do norte, por onde Simão Rodrigues Cardoso o havia outra vez passado, e foram demandar a barra, onde acharam a Diogo Flores, que já tinha queimadas três naus francesas, que ali achou surtas, e varadas em terra, donde indo para subir em uma lhe deram os inimigos de dentro do mato uma flechada no peito, que lhe não fez nojo, pelas boas armas que levava, e porque o principal fim, que se pretendia, era povoar-se a terra, chegado, e alojado o arraial, saiu Diogo Flores, e tomado conselho entre os capitães, assentaram fazer-se um forte primeiro, para que à sua sombra pudessem povoar.

Para o qual nomeou o general por alcaide o capitão da sua infantaria Francisco Castejon com 110 arcabuzeiros castelhanos, e 50 portugueses, para os quais e para povoação, que se havia de fazer, remeteu ao exército português elegesse cabeça, e por a maior parte ser de vianeses, se elegeu Frutuoso Barbosa, que era vianês, tendo-se também respeito à provisão que apresentou de el-rei d. Henrique, em que o fazia capitão da Paraíba se a conquistasse, posto que, como era condicional, faltando a condição parece que já não obrigava, e este era o parecer do general.

O forte se situou logo uma légua da barra da parte do norte, defronte da ponta da ilha, mas, por não fugirem os soldados, com o largo rio, que fica em meio, que por ser bom sítio, que é baixo, e de ruim água, do qual ficou por alcaide o capitão Francisco Castejon, e dele deu homenagem ao general Diogo Flores, e se lhe pôs o nome de S. Filipe e Santiago; no dia dos quais santos se fez à vela o general caminho de Espanha, onde chegou a salvamento.

O capitão Simão Falcão, enquanto os mais assistiam na obra do forte, espiada uma aldeia dos inimigos a salteou uma madrugada, matando alguma gente, e cativando quatro, com cuja língua o nosso exército, vendo que já ali não era de efeito, se partiu a via do sertão em busca dos inimigos até uma campina, que se chama das Ostras, três léguas do forte, onde se alojou, e por ser a festa do Espírito Santo, e a gente ser dada a folgar, se puseram a festejar com muito descuido o dia, e oitavas, e dizia d. Filipe por descargo que esperava a seu sogro Filipe Cavalcante, que havia ficado no forte.

Uma tarde ouvindo uma trombeta, e grande rumor, foram dez de cavalo, e alguns quarenta de pé com muitos índios à ordem de um Antônio Leitão, com muita desordem, a descobrir campo, e deram em uma cilada, que os começou a sacudir até chegarem à vista do arraial, sem haver acordo para lhes acudirem, antes se pôs tudo em tão grande confusão, que vinda a noite se deitaram a uma lagoa por onde haviam tornar ao forte, e passando uns por cima dos outros, voando com asas do medo, que levavam, foram bater às portas do forte, que o alcaide, enfadado de os ver, lhes não quis abrir, deixando-os estar à chuva toda a noite, que foi leve castigo para o merecido.

Vindo o dia lhes persuadiu que tornassem a buscar os inimigos com mais cinqüenta arcabuzeiros, que lhes dava dos do presídio, e tais estavam que nem com isto quiseram ir, senão voltar para Pernambuco, e assim se vieram, passando o rio defronte do forte em barcos com bem trabalho por ser inverno, que os tratou mal todo o caminho, onde lhes morreram muitos cavalos, e escravos à míngua.

Dos socorros, que por indústria do ouvidor-geral se mandaram a Paraíba

Chegados desta maneira a Pernambuco, em o mês de junho, começaram logo os requerimentos do alcaide do forte, e Frutuoso Barbosa por ficarem faltos de mantimentos; e os inimigos por ficarem vitoriosos os molestaram tanto, que só os detinha a não levarem a fortaleza nas unhas a fúria da artilharia, que achando-os em descoberto os despedaçava, a cuja sombra o alcaide em algumas escaramuças, que com eles teve, lhes mostrou o valor da sua pessoa, e dos espanhóis, e portugueses, que o seguiam, apesar de seu capitão Frutuoso Barbosa, que não tinha paciência com estas escaramuças, e com requerimentos as estorvava quanto podia; e assim encontrados ele, e o alcaide nos humores, tudo eram brigas, e ruins palavras, fazendo papeladas um do outro, que mandavam ao ouvidor-geral, com requerimentos do socorro dos mantimentos, que como conhecido por mais zeloso do serviço de el-rei até isto batia nele, sendo obrigação do provedor Martim Carvalho, que pelo contrário se mostrava mui remisso, e por esta causa se começaram entre ambos grandes desavenças; crescendo sempre do forte os requerimentos, porque se viam nele tão apertados da guerra, e fome, que até os cavalos tinham comido.

Mandou-lhes Martim Leitão por mar 24 homens a cargo de um Nicolau Nunes com alguns mantimentos, que deu o provedor, mas foram tão parcos, e cresciam tanto os rebates dos inimigos Potiguares, que o alcaide do forte se veio no mês de setembro a Pernambuco a pedir socorro; onde achou a Pedro Sarmento, que o general havia deixado com o almirante Diogo da Ribeira no Rio de Janeiro para ir povoar o estreito de Magalhães, e governar a povoação, que fizesse, donde já vinha destroçado, e pedia também mantimento, que se lhe deu para poder passar à Espanha; mas o alcaide Castejon havia-se tão devagar, que andava impaciente; pelo que achando-se um dia / depois de outros muitos / em casa de Martim Carvalho com os juízes e oficiais da Câmera, em presença do bispo, vieram a muito ruins palavras, sobre as quais alguma gente da casa arrancou com os soldados do alcaide em cima onde todos estavam, e baralhados assim saíram à rua com grande briga, a que acudiu muita gente com o ouvidor-geral, que os apaziguou como pôde; por isto se tornou o almirante para a Paraíba, no mês de outubro, mal-provido, e com claras mostras de o ser cada vez menos pelo ódio em que com eles ficava o provedor.

Mas foi de muito efeito a sua tornada, porque logo no novembro seguinte entraram duas naus francesas na Paraíba, e reconhecendo o forte, e uma nau grande portuguesa com dois patachos, que lhe Diogo Flores tinha deixado, se saíram, e foram surgir três léguas daí na boca da baía da Traição, e começando trato com os Potiguares, vieram de lá por terra correr o forte, trazendo alguns berços, com que grandemente o apertavam, fazendo grandes cavas, e bardos de terra, e areia, pelos não pescar a artilharia; com os quais, e outros ardis, como práticos nas nossas guerras, puseram o alcaide em termos de desesperar de poder defender-se, e logo disso avisou ao ouvidor-geral, com grandes requerimentos, assim seus como de Frutuoso Barbosa.

O ouvidor no primeiro dia que lhos deram se foi dormir ao Recife, onde aprestou um navio de setenta toneladas à sua custa com muitos homens brancos, e setenta índios, e por capitão um Gaspar Dias de Moraes, soldado antigo de Flandes, que por seu rogo aceitou sê-lo, e em dois dias, andando em uma rede por andar doente, os deitou pela barra fora; este navio, e a galé de Pedro Lopes Lobo, capitão de Itamaracá, que também o ouvidor forneceu, em que o mesmo Pedro Lopes foi por capitão com cinqüenta homens, e alguns índios, chegaram a Paraíba, onde foram recebidos, e estimados como a própria vida.

Os franceses vendo o socorro se recolheram às suas naus, que haviam deixado na baía da Traição, e consultando o caso o almirante com os capitães do socorro, assentaram que ficasse Pedro Lopes capitão da galé no forte, por respeito do muito gentio, que diziam passar de dez mil, os que o tinham cercado com suas cavas, e trincheiras, e que o alcaide na sua galé, e nau, que lá tinha, e a do socorro, fossem buscar os franceses, como logo foram, e tomando-lhes o mar os fizeram varar em terra com as naus, e lhas queimaram, e mataram alguns, que foi honrado feito por serem as naus grandes, e estarem avisados; mas a nau do forte, por ser muito grande, e a costa ali ir já muito voltando para as Índias, arribou a elas, e nela foi a maior parte da artilharia, que haviam tomado das francesas. O navio, e galé voltaram, e chegando ao forte desembarcando de súbito, e com a gente de dentro, deram nos inimigos com tão grande ímpeto, que lhes ganharam as suas estâncias, matando muitos, com o que se afastaram bem longe, e os nossos cobraram a água, que lhes tinham tomada, e assim ficando os do forte mais largos, que nunca; e todos muito contentes, com grandes louvores ao ouvidor-geral se tornaram os de Pernambuco, e Itamaracá até lhe dar razão de tudo, e receber os parabéns da jornada, que fui de muito efeito, assim para o desengano dos franceses, que nem na baía da Traição haviam de ter colheita, como dos Potiguares, que já com eles por nenhuma parte poderiam ter comércio.

Capítulo VI

De como o ouvidor-geral Martim Leitão foi a Paraíba a primeira vez, e da ordem da jornada, e primeiro rompimento, e cerca tomada

Com esta mágoa, e desejo de vingança, que ficou dos Potiguares, no fim de janeiro de mil quinhentos oitenta e cinco se ajuntaram mais que nunca, e fizeram três cercas mui fortes ao longo do forte a tiro de pedreiro, de troncos de palmeiras, que por muito grossos os defendiam da artilharia, e todas as noites as iam chegando, e ganhando terra, do que logo o almirante avisou ao ouvidor-geral, ficando muito receoso que por aquela via com as próprias cercas os viriam abordando, até se abarbarem, e igualarem com o forte, sem se poderem valer da artilharia, nem das mãos, por no forte haver muitas doenças por respeito do mau sítio, fomes, e ruim água, de que muita gente lhe era morta, e assim estava com muito perigo.

Aos 8 de fevereiro dobrou com mais força os requerimentos, e encampações de logo despejarem todos; como também por avisos se soube terem já para isto o melhor embarcado em uma nau, que lá tinham; pela qual nova todas as capitanias se meteram em grandes revoltas, e muito mais com se saber esta determinação, e por ter chegado de socorro aos Potiguares o famoso entre o gentio Braço de Peixe, ou por sua língua Pirágiba, de que tratamos em o capítulo vigésimo do livro próximo passado.

O ouvidor-geral logo em lhe dando os requerimentos do alcaide os mandou ao capitão d. Filipe, que estava já aliado com Martim Carvalho, ao qual se levaram também outros requerimentos sobre mantimentos, vindo a isso o tenente do forte, a cuja instância todos concordaram, e juntamente o bispo, e oficiais da Câmera requererem ao ouvidor-geral Martim Leitão fosse em pessoa a esta guerra, de que fizeram autos, o que ele, vista a importância do caso, aceitou em 14 de fevereiro com determinação de partir dentro dele no que se começou com incrível presteza em toda a parte, e era coisa notável ver a vontade com que todos se ofereciam a ir com ele; mas contudo, a não haver no porto passante de trinta navios com muitos mantimentos, que nunca tantos houve, nem fora possível aviarem-se com tanta brevidade, suprindo também a grande diligência de Martim Leitão, escrevendo particularmente aos nobres convidando-os com razões eficazes para a jornada, e aviando a muitos; porque no Brasil tudo se compra fiado, e estes nestas coisas querem superabundâncias, a que os mercadores já não acudiam, e era necessário fazê-los prover; e aviar uns, e outros era infinito; fez também duas capitanias para sua guarda, que depois mandou na vanguarda, pela confiança que neles tinha, por ser toda gente solta, e muitos mamalucos, e filhos da terra, porque estes nisto são de muito efeito, e a estas duas companhias deu sempre à sua custa de comer, e tudo o mais necessário, e prover de armas, ainda que nos requerimentos, que lhe fizeram para ele haver de ir, disse o provedor Martim Carvalho que fosse, que ele o proveria à custa da fazenda de Sua Majestade.

Além dos dois capitães da guarda, que um era Gaspar Dias de Moraes, que de socorro antes havia ido a Paraíba, e outro mister Hipólito, antigo, e mui prático capitão da terra, se elegeram mais de novo por capitães Ambrósio Fernandes Brandão, e Fernão Soares, que se chamavam capitães de mercadores; foram mais os capitães das companhias da ordenança da terra, Simão Falcão, Jorge Camelo, João Paes, capitão do cabo de Santo Agostinho, muito rico, que o fez nesta jornada por cima de todos, em tudo levando sempre a retaguarda, e João Velho Rego, capitão de Iguaraçu, e todos da ilha de Itamaracá, com seu capitão Pedro Lopes, e porque havia muita, e boa gente de cavalo, que foram cento e noventa e cinco, ordenou três guiões de trinta cavalos cada um dos melhores para acudirem ao cumprisse (sic), de que eram capitães Cristóvão Paes Daltera, Antônio Cavalcante, filho de Filipe Cavalcante, e Baltazar de Barros.

Ia mais um filho do capitão Antônio de Carvalho com a sua bandeira por ele ficar doente, que em todas as jornadas o fez muito bem; e era a segunda pessoa deste exército, sobre quem carregava o peso dele, Francisco Barreto, cunhado do ouvidor-geral Martim Leitão, a que chamavam mestre de campo, e ele o pudera ser de outro de muitos milhares de soldados, por seu esforço e destreza.

Com tudo este exército, que foi a mais formosa coisa, que nunca Pernambuco viu, nem sei se verá, foi o general Martim Leitão / que assim lhe chamaremos nesta jornada / dormir no campo de Iguaraçu, no meio do qual mandou armar sua tenda de campo, com outras duas pegadas, uma para dois padres da Companhia de Jesus, que com ele iam; e outra de sua despensa, onde se agasalhava também a gente do seu serviço. Aqui mandou deitar grandes bandos, pondo graves penas contra todos aqueles, que brigassem, ou arrancassem, encomendando mui particularmente que houvesse entre todos muita amizade, e conformidade, e outras boas ordens necessárias, que se se cá costumaram no Brasil não houvera tantas perdas, e desconcertos, como sabemos. Ali esteve três dias esperando se ajuntassem alguns, que faltavam; onde fez aposentador, e mais oficiais de campo.

Ao quarto dia / que foi o primeiro de março / daquele alojamento foram dormir além do rio Taporema, onde fez resenha, e se achou com quinhentos e tantos homens brancos, e o general deu regimento a todos do que haviam de fazer, repartiu as campanhas, e ordenou que um dos guiões de cavalos aos dias por evitar competências fosse na vanguarda, outro na retaguarda, e o terceiro na batalha, onde ele ia; e o capitão a que no seu dia tocava a retaguarda, tivesse obrigação de uma hora antemanhã com alguns índios correrem, e descobrirem o campo, e assim como toda a ordem possível, e com irem de contínuo alguns homens de confiança com mamalucos e índios por descobridores diante, e pelas ilhargas do exército metidos pelo mato, e gastadores abrindo o caminho, foram por suas jornadas em cinco dias a grande campina da Paraíba, onde pela lembrança de que alguns ali em outras jornadas tinham visto, ia a gente tão apartada, que sendo o caminho da campina largo, e raso, não andavam por mais recados, que se passavam a vanguarda em que naquele dia, por ser de mais importância, ia Francisco Barreto; mas não sofrendo tanto vagar tomou o general um galope, e foi ver o que era, e achando que haviam já dado em mato, e se detinham os gastadores em abrir caminho com as foices, os fez abreviar, e marchar a vanguarda com presteza e recado, esperando ele ali até se meter em seu lugar.

Marchando pois a vanguarda, e o mestre de campo Francisco Barreto com ela, já quase sol posto deu em uma cerca mui grande de gentio, pegada do rio Tibiri, que prometia ter dentro mais de três mil almas, o que não obstante, nem a escuridão da noite, que sobrevinha, nem ser a cerca mui forte, e com uma rede de madeira por fora, como uns leões remeteram, e entraram nela, matando muitos dos inimigos, e pondo os mais em fugida, ficando dos nossos muito pouco feridos, porque foi tal a pressa e açodamento, que lhes não deram vagar, nem tempo para despedirem muitas flechas, o que sentindo o corpo do exército, e retaguarda, rebentavam todos por chegar com os dianteiros à briga, e por mais pressa que se deram, quando já chegaram, era acabada.

Entrando pois todo o exército dentro na cerca, que Francisco Barreto lhe tinha ranqueada com a gente da vanguarda, e alojados todos nela, repousaram ali aquela noite, onde acharam farinha feita, e armas, e pólvora, que tinham para ir cercar o forte, conforme os cativos disseram.

Capítulo VII

De como se tentaram as pazes com o Braço de Peixe, e por as não querer se lhe deu guerra

Ao outro dia pela manhã cedo logo os índios se puseram às pulhas / como é seu costume / em um teso alto defronte da nossa cerca, além de um grande alagadiço, que por aquela parte ficava, donde foram conhecidos dos nossos ser gente do Braço de Peixe, que não eram Potiguares, senão Tabajaras seus contrários; mas por se temerem dos portugueses, que vingassem a morte de cento e tantos, que com Gaspar Dias de Ataíde, e Francisco de Caldas / ainda que com razão / haviam mortos / como dissemos no capítulo vigésimo do livro precedente /, se vieram a meter com os Potiguares, e assim por se reconciliarem com eles, como por serem mais industriosos, e valentes, nos faziam muito dano; o que entendido pelo general Martim Leitão, e considerando de quanta importância seria ter paz com eles, e apartá-los dos Potiguares, mandou por línguas fazer-lhe práticas, que estivessem seguros que só buscavam os Potiguares, com os quais nunca queríamos paz, mas com eles sim, dizendo-lhes mais que o general era homem do reino, fora de malícias e enganos, que com eles usavam os do Brasil, e estava muito bem informado da sua amizade antiga com os brancos, pelos quais sabia que quebrava a paz, e que se os capitães Ataíde e Caldas foram vivos os mandara el-rei castigar; com estas práticas, e vinho que lhes deram a beber, concertaram que dando reféns mandaria o Braço seus embaixadores depois de jantar assentar pazes com o general, o qual neste meio tempo trabalhou com toda a dissimulação em mandar descobrir o alagadiço, se por cima ou por baixo daria vau à gente; mas não se achou nisto remédio, pela grandeza do alagadiço, e espessura do mato à roda.

Ao meio-dia vieram três índios a tratar das pazes, que foram ouvidos na tenda do general, e examinados por línguas, e feitas todas as diligências, e ostentações que foram necessárias, por o Braço e os seus terem consigo muitos Potiguares, juntamente com o medo de suas culpas, nada bastou para os segurar, e assim tornando-se à tarde quiseram lá matar os reféns, e ficou a guerra rota, que os inimigos estimando pouco esquentaram toda aquela tarde, com trinta e tantas espingardas, e muitas flechas que tiraram. Ao que ainda querendo atalhar o general, para os desenganar mandou sair por sua ordem todas as companhias, e gente por uma campina entre a cerca, e o lago, que naquela manhã, para o que sucedesse, tinha mandado roçar; também lhe mandou dar mostra de dois berços, que trazia em carros, e varejar com eles uma caiçara, ou tranqueira, que para pelejarem, e se defenderem no cume de um pico, no cabo de uma queimada, os inimigos haviam feito, e com outros assombros, nada bastou para quererem paz: com isto se resolveu o general a lhes darem ao outro dia batalha, mandando aquela tarde fazer muitos feixes de faxina, que ao longo da cerca haviam cortado, para que com as pontes, que o gentio no alagadiço havia feito, passagem da outra banda.

Não foi nada aprazível ao arraial esta determinação do general, que se viu melhor no Conselho, que na sua tenda se teve aquela noite, que foi assaz vário, e confuso, e a seus brados se assentou ficassem ali as duas partes do arraial, e Francisco Barreto com eles, com todo o provimento, para o que sucedesse, e ele a pé com a terça parte ir dar nos inimigos no pico.

Ouvindo missa ao outro dia pela manhã muito cedo, partiu o general com as companhias da vanguarda somente, e o guião de cavalo de Antônio Cavalcante, que mandou no roçado, e em uma queimada andar da nossa parte do alagadiço, para por ali não rebentar alguma cilada, e lhe tomarem as costas, e levando o padre Jerônimo Machado, da companhia, um crucifixo diante, acharam no alagadiço muito estorvo por de noite os inimigos cortarem muitas árvores, com que o atravessaram, e embaraçaram todo: com isto, e com andarem muitos soldados pela queimada da outra banda às flechadas, e arcabuzadas, se passava devagar, e com tanto receio, que foi necessário ao general agastar-se com alguns, e mandando ficar a companhia de Ambrósio Fernandes com ordem que se não bulisse do alagadiço até todos serem em cima, arrancou da espada jurando havia de escalar o primeiro que falasse, senão obrarem todos como esforçados; isto, e meter-se com o passo apressado após os dianteiros, fez passar os mais, e tornar a ladeira acima bem depressa.

Depois de se recolherem os inimigos na cerca, subiam os nossos em pés e mãos por ela, e ferrando-a todos não acabavam de a render, o que vendo o general tomou um inglês, que levava consigo armado, e subindo às costas em cima da cerca com uma formosa lança de fogo fez tais floreios, lançando dela infinidade de foguetes, que despejaram os inimigos. Por ali, e derribando os nossos duas ou três braças de cerca, que cortaram, entraram dentro, e os foram seguindo um pedaço, ainda que, com o ruim caminho, e impedimentos que os inimigos tinham postos, e eles serem bichos do mato, que foram por onde querem, foi causa de escaparem muitos. O que ordenou Deus para nos ficarem, como agora os temos, por amigos.

Corridos assim, o mais que os nossos puderam, mandou o general queimar toda a caiçara, e madeira da cerca, e assolado tudo se tornou para seus companheiros, que haviam ficado na outra cerca, os quais o vieram receber fora com Te-Deum Laudamus, e no mesmo dia a tarde houve um rebate da banda do Tibiri a que alguns capitães acudiram desordenadamente, e por ser a revolta grande mandou o general a Francisco Barreto os fosse recolher, o que fez muito bem, e com muita ordem; porque na escaramuça que se travou foram mortos alguns Potiguares, sem dos nossos haver ferido algum, e por não ser já de efeito a estada ali, ao outro dia mandou o general pôr fogo à cerca, e com todo o exército pelo rio Tibiri abaixo foi seguindo os inimigos, e foram dormir dali a duas léguas, onde agora se chama as marés, e arrancados todos os mantimentos, que acharam, que foi a maior guerra que se lhes pôde fazer, e queimadas duas aldeias, que ali estavam despovoadas, se tornaram acima a buscar outra cerca nova, que havia feito um principal, chamado Assento de Pássaro, aonde, antes de chegarem, acharam tantos embaraços de ruim caminho, que se ia abrindo pelo mato, e brejos, e alguns inimigos corredores, que se atravessaram diante, que por mais que o general se apressou, passando-se á vanguarda com o ouvidor da capitania Francisco do Amaral, que sempre o seguia, e marchando com ela, já acharam a cerca, que era grande, e forte, despejada, ainda que em alguns velhos e fêmeas se vingou o nosso gentio; e ali pararam aquele dia, e o outro, donde pelos muitos alagadiços, e diversidade de opiniões dos caminhos, que ninguém sabia, se resolveram tornar pelo rio da Paraíba abaixo, buscar o passo para o forte, onde se assentaria o que cumprisse.

Partidos desta cerca por outro caminho, que era a estrada, acharam nela tantos labirintos, que os inimigos tinham feitos, tantos fojos, árvores cortadas atravessadas, que era admiração, e a não haver grande cautela, poucos bastaram ali para desbaratar a muitos; mas de tudo Nosso Senhor os guardou e desviou.

Passado embaixo o rio da Paraíba, em três dias chegaram ao forte, que estava coisa piedosa de ver, assim o danificamento, e ruinez dele, como as pessoas dos soldados, que bem mostravam as fomes, e misérias, que tinham passado.

Capítulo VIII

De como o general Martim Leitão chegando ao forte mandou o capitão João Paes à baía da Traição, e depois se tornaram para Pernambuco

Logo na tarde que chegaram ao forte ordenou o general que fosse o capitão João Paes com trezentos homens de pé e de cavalo correr a baía da Traição, como foram o seguinte dia em amanhecendo. Procurou também muito com Frutuoso Barbosa quisesse ir duas léguas do forte, junto das marés, onde havia muitos mantimentos da parte do sul do rio da Paraíba, fazer povoação, para o que lhe juntava oitenta homens brancos, e índios os mais que pudesse, e se oferecia estar com ele seis meses, e outros seis seu cunhado Francisco Barreto, mas nunca se pôde acabar com ele, e por atos que disto se fizeram, desistiu de toda a pretensão da Paraíba, dizendo que não estaria mais uma hora nela; contudo determinou o general fazer no dito sítio / que a todos pareceu bem / a povoação, para o que cometeu a Pero Lopes, e a outros, mas não pôde concluir. Pelo que com assaz paixão se determinou ir pela praia com a gente, que lhe ficou, juntar-se na baía da Traição com João Paes; porque assim, levando um campo por cima outro por baixo, não ficando coisa em meio, seguissem por alguns dias os inimigos até os encontrarem, ou enxotarem para longe, mas determinando partir na baixa-mar do outro dia, subitamente aquela noite adoeceram quarenta, e duas pessoas com estranhas dores de barriga e câmaras, entre os quais foi Francisco Barreto, e o padre Simão Tavares, da companhia, e outros de muita importância, com o que houve detença dois dias, e vendo que não melhoravam pelos ruins ares, e águas daquele sítio, foi forçado levantar o arraial, e tomar acima duas léguas em um campo muito formoso e aprazível, sítio de muitas boas águas, a que puseram nome Campo das Hortas, onde em seis dias, que ali estiveram esperando por João Paes, alguns se refizeram; chegado ele, e juntos outra vez todos, e sabido que na baía da Traição não ousaram os inimigos esperar, eles queimaram muitas aldeias, e arrancaram mantimentos, fizeram-se dois ou três conselhos, para se dar ordens no que se devia fazer, e por terem por certo que os Tabajaras, gentio do Braço de Peixe, estavam desavindos com os Potiguares, e começavam a guerrear uns contra outros; se resolveram todos era bem deixá-los, já que por si se queriam gastar antes convir muito por alguma via avisar o Braço de Peixe, que lhe dariam socorro contra os Potiguares, e que não se tornasse à serra; com que em muito segredo o general fez fugido um índio seu parente com grandes promessas, se o quietasse, e fizesse tornar ao mar; com esta ordem, e provido o forte de mais vinte homens, e com lhe deixar o capitão Pero Lopes em lugar de Frutuoso Barbosa, e os prover do seu como melhor pôde, deixando-lhes pipas de farinha, biscoito, vinho, e sardinhas, para dois meses, se partiram todos para a vila de Olinda com muita festa, ainda que o espírito do ouvidor-geral Martim Leitão / que já chamarei general / não se quietava nem contentava, dizendo não ter feito nada, pois não ficava levantada povoação na Paraíba, e tudo o da guerra concluído, como se fora poderoso para tão grande empresa, em que nosso Senhor o tinha tão favorecido.

Desta maneira entraram na vila de Olinda em som de guerra, postos em ordem, acompanhando todos ao ouvidor-geral até sua casa, com a maior festa, e triunfo que Pernambuco nunca teve, que foi a 6 de abril de 1585.

Capítulo IX

De como o capitão Castejon fugiu, e largou o forte, e o ouvidor-geral o prendeu, e agasalhou os soldados

O primeiro de junho do mesmo ano de oitenta e cinco, chegou nova a Pernambuco era chegado a Itamaracá o capitão Pero Lopes, que o ouvidor-geral Martim Leitão deixara com alguns portugueses no forte da Paraíba em companhia do alcaide, o qual também se dizia o queria desamparar com os espanhóis, e que em secreto buscavam piloto, que de lá os levasse às Índias, e como o ouvidor-geral andava tão pronto, e receoso destas coisas, logo pela posta mandou buscar Pero Lopes, do qual informado, em quatro dias concluiu com ele se tornasse a assistir no forte como o deixava, com alguns filhos da terra, e gente, no qual estivesse até janeiro, com obrigação de lhe darem cada mês cinqüenta cruzados; porque não seria possível deixar el-rei até então de avisar, e prover, por cuja falta se despovoava isto.

Dificultosamente aceitou Pero Lopes, porque pela má condição do alcaide Castejon todos fugiam dele; mas sobre isto rebentou outro maior inconveniente, que foi resolver-se o provedor Martim Carvalho / que até então mal provia o forte / em não o querer mais prover bem nem mal, nem nisso entender, e assim o respondeu por atos públicos, com o que ficou tudo desarmado, e se concluíra pior se o ouvidor-geral não tratara este negócio por via de empréstimo, com que logo mandou o capitão Pero Lopes fizesse rol do que havia mister para provimento de 100 homens em seis meses, e feito, e somado em três mil cruzados, os mandou logo tomar, e repartir pelos mercadores, que tinham as coisas necessárias, aos quais se satisfazia com créditos de João Nunes mercador, e tomado navio, e aviado, por não suceder no forte fazer o alcaide com os espanhóis abalo, lhe fez escrever da Câmera com muitos mimos, e certeza de serem agora muito melhor providos; pois havia de correr por eles livres de Martim Carvalho, que muito deviam estimar.

O mesmo lhe escreveu o ouvidor-geral, e com estas cartas se foi Pero Lopes aviar a sua casa à ilha de Itamaracá, donde havia o navio, e gente de o ir tomar de caminho, e ele entretanto avisaria o alcaide; e ou o diabo o tecesse ou não sei porque, Pero Lopes não avisou ao forte, nem mandou as cartas, indo disso tão encarregado, e as teve em seu poder sem as mandar desde 8 de junho até 24, que estando tudo a pique para o outro dia partir o navio, e de caminho ir pela ilha, se começou a dizer serem chegados a ela castelhanos do forte; dizendo vinha atrás o alcaide, e deixavam tudo arrasado.

A isto / que em breve se encheu a terra / se ajuntou toda a vila às aves-marias em casa do ouvidor-geral, onde se assentou que se juntassem logo pela manhã no colégio; bispo, capitão d. Filipe, Câmera, provedor Martim Carvalho; e ele, que nestas coisas não dormia, na mesma noite despediu os seus oficiais que fossem buscar a Castejon, e lho trouxesse preso a bom recado, como fizeram, e nas perguntas não deu outra razão senão da fome, que era assaz fraca, pois confessava que depois da guerra que havia dado não aparecer mais inimigo, e irem os barcos, que lhe havia deixado, pelo rio acima buscar mantimentos, que era assaz provimento; mas deviam de estar enfadados, e vingaram-se em deitar a artilharia ao mar, e uma nau que lá estava ao fundo, e pôr o fogo ao forte, e quebrar o sino, e com isto se vieram à vila como quem não tinha feito nada; e o que mais é que assim se julgou depois no reino aonde o ouvidor-geral mandou o Castejon preso, que de tudo se livrou e saiu bem.

Ao outro dia pela manhã, juntos em modo de conselho no colégio, houve algumas dúvidas com o bispo, e outros, movidos de quão mal se respondia do reino a tanta importância, dificultavam a empresa, que na verdade estava mais duvidosa que nunca, por ser sobre tantas quedas, e lá consumirem tantas vezes os nossos, e se recearem franceses, que nunca ali faltavam.

Pelas quais causas diziam que na terra sem grossa mão de el-rei haveria força para esta empresa, só o ouvidor-geral Martim Leitão, todo aceso em cólera, e fervor com que andava, com muitas razões o persuadiu a entre si elegerem um homem, que com cento e cinqüenta, que se ofereceu a buscar, e gentio com a despesa, e vitualha, que estava buscada, tornasse logo a recuperar o perdido, senão que ele com os seus, e amigos que tivesse, estava determinado ir a meter-se no nosso forte arruinado, antes que os inimigos se fortificassem nele, pois os que tinham obrigação de o defender o desampararam, e isto com tanta veemência, requerimentos, protestos, e ameaças da parte de Sua Majestade, que os espertou e aviventou; e assim elegeram o capitão Simão Falcão, que pareceu pessoa para isso, por Frutuoso Barbosa em nenhuma maneira querer aceitar, com estar a tudo presente: do que Simão Falcão foi logo avisado; e o ouvidor-geral com alguns pregões, indústria, e suma diligência juntou todos os espanhóis, que do forte vieram, e ao presente na terra havia, dos quais fez duas esquadras, de quarenta e dois, que ajuntou em umas casas, a que cada dia fazia prover da tação ordinária de sua casa, e à sua custa, não se esquecendo de por via de religiosos fazer encomendar este negócio a Deus.

De como o Braço de Peixe mandou cometer pazes, pedindo socorro contra os Potiguares, e o ouvidor-geral tornou à Paraíba, e começou a povoação

Havendo neste mês de julho alguma dilação por adoecer Simão Falcão, tanto ao cabo como esteve, no fim do mês chegaram dois índios do Braço de Peixe ao ouvidor-geral, pedindo-lhe socorro contra os Potiguares, porque tornando-se pelo seu recado ao mar o cercaram por vezes, e tinham posto em grande aperto.

Neste próprio dia vestiu Martim Leitão os índios, e se foi dormir ao Recife com João Tavares, escrivão da Câmera e juiz dos órfãos, ao qual por parecer de todos encomendou este socorro, e ele por seus rogos, e por serviço del-rei aceitou, e assim com 12 espanhóis bem concertados, e satisfeitos, e oito portugueses, e uma caravela equipada, e concertada para tudo com algumas dádivas, e bom regimento, partiu do porto de Pernambuco a 2 de agosto de 1585, e aos três chegou pelo rio da Paraíba acima, onde se viu com o Braço de Peixe, e mais principais no porto, que agora é a nossa cidade, assombrando primeiro os Potiguares com alguns tiros, que presumindo mais força fugiram.

Assentadas as pazes, e dadas suas dádivas, e reféns, saiu o capitão João Tavares dia de Nossa Senhora das Neves, por cujo respeito depois se pôs esse nome a povoação, e a tomaram por patrona, e advogada, debaixo de cujo amparo se sustenta, e ordenaram um forte de madeira com as costas no rio, onde se recolheram.

Avisado logo o ouvidor-geral, se alvoroçou toda a vila, e moradores destas capitanias, parecendo-lhes, e com razão, eram já todos seus trabalhos acabados, e depois de muitas graças a Deus, sobre isto chegaram os línguas por terra com obra de 40 índios com a embaixada do Braço, aos quais todos o ouvidor-geral em sua casa agasalhou, vestiu, e festejou, e avisando ao capitão João Tavares do que havia de fazer, mandando-lhe mais vinte e cinco homens de toda a sorte, pelos espanhóis estarem ainda muito enfermos, e mandando vestidos finos para os principais, e outros mimos, e todos muito contentes os tornou a mandar, e com grandes defesas, que não houvesse algum gênero de resgate, de que o ouvidor como experimentado era muito inimigo, e com razão, que isto é o que dana o Brasil, mormente quando é de índios, pois com título de resgate os cativam.

Para se aperfeiçoarem estas pazes pareceu necessário não se perder tempo, antes ir-se logo fazer um forte, recuperar a artilharia do outro, e assentar a povoação; para o que por todos foi assentado que ninguém podia fazer todas estas coisas, senão o ouvidor-geral Martim Leitão, ao qual o pediram, e requereram todos, e ele o aceitou, por serviço de Deus e de el-rei, e por bem destas capitanias, e assim se partiu para a Paraíba a 15 do mês de outubro do mesmo ano com alguns amigos seus, oficiais, e criados, faziam número de 25 de cavalo, e 40 de pé, levando pedreiros e carpinteiros, e todo o recado necessário para fazer o forte, e o que mais cumprisse, e chegou lá aos vinte e nove, onde foi grandemente recebido dos índios e brancos, que aí estavam; e aos principais dos índios, que vieram uma légua recebê-lo, abraçou um a um com grande festa, e fazendo apear os de sua casa os fez ir a cavalo, e alguns, pelo que tinham passado com os brancos, iam tremendo de maneira, que era necessário i-los sustentando na sela.

Com este triunfo os levou pelo meio de suas aldeias, com que uns choravam, e outros riam de prazer, e logo nessa noite se informou dos sítios, que particularmente tinha encomendado lhe buscassem com todas as comodidades necessárias para a povoação a Manuel Fernandes, mestre das obras de el-rei; Duarte Gomes da Silveira, João Queixada, e ao capitão, que todos estavam para isso prevenidos dele em segredo, mas encontrados nos pareceres dos sítios.

Ao outro dia o ouvidor-geral, ouvindo missa antes de sair o sol / que caminhando, e andando nestas jornadas sempre a ouvia /, foi logo a pé ver alguns sítios, e à tarde a cavalo, até o ribeiro de Jaguaripe, para o cabo Branco, e outras partes, com que se recolheu à noite resoluto ser aquele em que estavam o melhor, onde agora está a cidade, planície de mais de meia légua, muito chão, de todas as partes cercado de água, senhor do porto, que com um falcão se passa além, e tão alcantilado que da proa de navios de sessenta tonéis se salta em terra, donde sai um formoso torno de água doce para provimento das embarcações, que a natureza ali pôs com maravilhosa arte, e muita pedra de cal, onde logo mandou fazer um forno dela, e tirar pedra um pouco mais acima; com o que visto tudo muito bem, e roçado o mato, a 4 de novembro se começou o forte de 150 palmos, deram em quadra com duas guaritas, que jogam oito peças grossas uma ao revés da outra, no qual edifico trabalhavam maus e bons com o seu exemplo, que um e um os chamava de madrugada, e repartia uns na cal, outros no mato com os carpinteiros, e serradores, outros nas pedreiras, e os mais a pilar nos taipais; porque os alicerces, e cunhais só eram de pedra e cal, e o mais de taipa de pilão de quatro palmos de largo, para o que mandou logo fazer oito taipais, para todos trabalharem, e era coisa para ver a porfia e inveja, em que os metia, trabalhando mais que todos, com o que duravam na obra de sol a sol, sem descansar mais que a hora de comer, e assim em duas semanas de serviço chegou a estado de se lhe pôr artilharia, que neste meio tempo com muito trabalho, e indústria, por búzios, que para isso levou, se havia tirado do mar sem se perder peça, que foi coisa milagrosa, só as Câmeras faltaram, mas com seis, que levou de Pernambuco, e dois falcões, que foram nos caravelões da matalotagens, se remediou tudo.

Assentada a artilharia ordenou, por se não perder tempo, e o nosso gentio confederado se não esfriar, como já começava, fossem João Tavares, e Pero Lopes, com toda a gente dar uma boa guerra às fraldas de Copaoba, que é uma terra montuosa, e mui fértil, dezoito léguas do mar, donde há muito gentio Potiguar; e assim ficando-lhe somente os seus moços, e oficiais da obra, e Cristóvão Lins, e Gregório Lopes de Abreu, foram todos os mais, aonde por andarem treze ou quatorze dias somente não destruíram mais de quatro ou cinco aldeias, cuja vinda tão apressada o ouvidor-geral sentiu muito, e determinando ir em pessoa, concluiu com a maior brevidade que pôde a obra do forte, casa para o capitão, e armazém.

Capítulo XI

De como o ouvidor-geral foi à Baía da Traição

Posto isto em boa ordem até 20 de novembro, deixou aí Cristóvão Lins, fidalgo, alemão de nação, com os oficiais e gente necessária, e ele se partiu com 85 homens brancos, e 180 índios do nosso gentio, coisa assaz temerária, e que muitos procuravam estorvar com roncas de estarem naus francesas na baía da Traição, e sobre isto alguns lhe começaram em palavras a perder o devido acatamento, e respeito, particularmente um, que se soltou mais do necessário, que já também havia posto o arcabuz nos peitos ao capitão João Tavares, o qual mandou o ouvidor-geral tomar, e à porta do forte, em presença de todos açoutar, que foi gentil mesinha, porque não houve quem mais falasse, e assim partidos todos do forte foram dormir ao Tibiri, e daí no dia seguinte ao Campo das Hortas, onde se juntaram com o nosso gentio, que não levava mais vianda para todo o caminho, que seis alqueires de farinha de guerra, nem os brancos levaram de comer mais que para dois dias, do que sendo advertido o ouvidor-geral respondeu alegremente que o iriam buscar entre os inimigos, que era gente viva, e havia de ter o que comer, e assim se partiram daí até a água que chamam de Jorge Camelo, e depois do sol posto chegaram ao rio Mamanguape, que são grandes oito léguas, e por haver de ir dar em umas aldeias, que estavam da outra parte do rio, antes que os inimigos, que haviam achado atrás na campina, lhes dessem aviso, e se aproveitarem da baixa-mar, o passaram sem ceia à meia-noite, e moídos do trabalho do dia, donde em amanhecendo marcharam com boa ordem e recado até às dez horas, que deram em um grande golpe de gentio, o qual com o seu medonho urro atroou aquela campina, e ribeira, mas os nossos muito contentes de os ver, ainda que fora por ponte de prata.

Capítulo XII

De como da baía da Traição foram ao Tujucupapo, e tornaram para Pernambuco

Ao terceiro dia, carregados os índios de despojos, e alguns mantimentos, partiram da baía da Traição, indo sempre ao longo da costa com o língua dos índios cativos, em busca do Tujucupapo o mor, principal dos Potiguares, por ser muito grande feiticeiro, e indo ao quarto dia depois da partida bem descuidados, parecendo-lhes que já não o achariam o inimigo, gritaram da vanguarda -Potiguares! Potiguares!, e não se espantem falar desta maneira sendo tão poucos, porque como as guerras destas partes são nos matos, sempre vão enfiados por o ruim caminho atrás dos outros, e assim, ainda que poucos, como não podem ir em fileira nem ordem de guerra, ocupam muita terra ao comprido; por esta causa à grita da vanguarda se concertou cada um em seu lugar, e começaram a marchar depressa, mas por neste tempo vir um soldado espanhol dizer a Martim Leitão acudisse, que recuava a vanguarda, e havia feridos, em calças e em gibão, como ia, tomou uma remissão a João Nunes, e uma rodela a um índio, e encomendando a gente a Gregório Lopes de Abreu, e a Antônio de Barros Rego, pôs as pernas ao cavalo, e atravessando o mato, que era baixo, chegou a tempo que rebentavam do bosque três esquadrões de gente inimiga, e se tornaram a recolher em ondas ou remetidos, que este é o seu pelejar; e o nosso gentio vendo tantos inimigos, quase que ficou assombrado, e à pressa em corpo se andavam cercando de rama para todos se recolherem em qualquer fortuna; mas chegando assim o ouvidor-geral, os começou a afrontar de palavras, dizendo-lhe se determinavam fazer ali casas para viver, e depois morrer como ovelhas, e que as suas casas haviam de ser as dos inimigos, e assim gritando rijo a eles passou avante, mandando João Tavares por outra parte, e com isso pelejava com homens, mas aqui com os elementos, que é mais.

Passados assim da banda dalém, que senão duas horas antemanhã, feito algum fogo, em que brevemente enxugaram os arcabuzes, fez logo o ouvidor-geral tomar a praia, que como até então não fosse sabida, e sobre tantos trabalhos, pareceu a todos tão comprida como trabalhosa.

Mas indo ele com Duarte Gomes, e Antônio Lopes de Oliveira, com três negros da terra descobrindo diante todos, foram até em amanhecendo, apartados os de cavalo com alguns arcabuzeiros, para darem da parte do norte, e os mais com o nosso gentio, do sul, remeteram ao forte que ali tinham os inimigos, o que fizeram com grande grita, e mataram até vinte índios, tomaram vivo o seu principal, outros se deitaram ao mar por lhe terem a terra tomada, e se acolheram à nau dos franceses, que todos estavam recolhidos com sua artilharia do dia de antes, pelo aviso que lhes deu um índio, que fugiu a Duarte Gomes; e porque com a claridade da manhã começou a varejar a praia, onde os nossos estavam com a artilharia, vararam todos a aldeia, e povoação, que estava acima, a qual acharam toda despejada, mas com muitas farinhas feitas, e favas, que foi grande recreação, junto com os cajus do mato, fruta que já começava, e para lhe destruírem todos os mantimentos, e assolarem aquela estalagem aos franceses, assentaram estar ali três dias, e logo à tarde foram arrancar a mandioca; de noite mandou o ouvidor-geral lançar ao mar três ferrarias, que ali havia de franceses, que foi coisa de importância tirá-las aos inimigos, que com elas os cevavam os franceses, reparando-lhe estes três ferreiros, que ali já eram moradores, suas ferramentas.

Acharam-se aqui mais de sessenta caldeiras grandes, e pequenas, fato, e muita ferramenta, de que se o nosso gentio carregou.

Ao outro dia mandou o ouvidor-geral 24 arcabuzeiros na baixa-mar dar-lhe uma surriada com três ou quatro cargas, e ainda que lhes não fez dano, todavia temendo que o viriam a receber, ou que viessem algumas embarcações da Paraíba, levaram âncora, e se foram, esbombardeando para o ar, levar estas novas à França, ficando os inimigos diante de si, deitando-os de fora de mil labirintos, que ali tinham feito e ordenado, e por extremo fortificados, ficando todavia as suas estâncias, e meadas de muitos corpos mortos, e mais foram se não houvera a detença dos nossos no abrir dos caminhos para todos passarem, e assim tiveram os inimigos alguma guarida com o ruim caminho, e grande alagadiço / que sempre eles costumam tomar por reparo /, onde houve muitas graças de muitos atolarem mais do que quiseram, não querendo seguir o ouvidor-geral seu capitão, que ainda que o cavalo caiu com ele, o levou pela rédea, e saindo fora muito gentil-homem, e enlodado saltou em cima dele mui desenvolto, e seguiu os inimigos por um caminho com outros dois de cavalo, e alguns índios, que sempre foram derribando neles, e o mesmo aconteceu por onde foi o capitão João Tavares, e houveram de ser infinitos os mortos, se o nosso gentio ousara segui-los; mas vendo tantos, e eles tão poucos, o fizeram pesadamente, e só à sombra dos brancos; e com isto se recolheram depois das três da tarde à grande aldeia, que estava perto do alagadiço, onde descansaram o que ficava do dia; dando muitas graças a Deus por esta grande vitória, porque se afirmou haver ali mais de 20 mil portugueses apercebidos de dia do seu feiticeiro, que por desastre se acolheu em um cavalo, que lá tinha de brancos havia muitos anos, curados os feridos, que houve alguns, e nenhum morto, para a vitória ficar com dobrado gosto, ali estiveram até ao outro dia, e por serem 12 léguas aquém do Rio Grande, donde tiveram novas ser já passado todo o gentio inimigo da outra banda, que como senhores de mais de quatrocentas léguas desta costa não era possível esgotá-los, se tornaram ao forte, donde foram recebidos com muitas festas, e continuou o ouvidor-geral as obras em que Cristóvão Lins com oficiais havia bem trabalhado, e de todo acabou o forte, torres, e casas de armazéns com seus sobrados para morada do capitão e almoxarife, e feitos também alguns reparos para a maior parte da artilharia, e ficando-se acabando os mais, tomou a homenagem ao capitão João Tavares, e o deixou com trinta e cinco homens de peleja, providos para quatro meses, e feito isto se tornaram para Pernambuco no fim de janeiro de mil quinhentos oitenta e seis, que foi assaz breve tempo para tantas coisas, e obras; mas tudo nos homens honrados o desejo da honra faz possível.

Capítulo XIII

Da vinda do capitão Morales do reino, e tornada do ouvidor-geral a Paraíba

No fim de fevereiro seguinte vieram cartas ao ouvidor-geral Martim Leitão de haver por bem servido no que fazia na povoação da Paraíba, e ordem para que se pagassem todos os gastos, as quais trouxe um capitão espanhol coxo chamado Francisco de Morales, com cinqüenta soldados também espanhóis, e para recolher a si os que cá ficaram de Francisco Castejon, que foi grande bem ainda, que disso se não conseguiu efeito pelo capitão ser em tudo de mui pouco, o qual se partiu de Pernambuco a 2 do mês de abril seguinte para na Paraíba haver de estar a obediência de João Tavares, capitão do forte, conforme a sua patente, e todos a do ouvidor-geral; mas o coxo tanto que lá chegou deitou João Tavares fora do forte, e os portugueses, tratando-os de maneira que alvoroçou tudo, e amotinou o gentio das aldeias, que todos os dias se ia queixar a Pernambuco, e sobre o avisarem que parecia mal tomar o forte a quem tinha dado homenagem dele, e que lho tornasse, se desentoou em palavras com o ouvidor-geral, esquecido de sua obrigação, e de quanto gasalhado e mimos lhe havia feito em Pernambuco; e assim se enfrestou logo com ele, e com a Câmera, e com todos os portugueses, que houve muitos requerimentos o tirassem de lá, e o mandassem a el-rei, por muitos excessos, que sempre nele foram crescendo, ajudado dos ruins conselhos, que lhe mandavam de Pernambuco inimigos do ouvidor-geral, que por inveja dos seus bons sucessos o queriam infamar, assim cá como no reino, o que tudo o ouvidor foi passando, e dissimulando até o fim de setembro do dito ano, porque aos vinte e sete dias dele lhe vieram novas da Paraíba, e cartas que avisaram serem chegadas à baía da Traição cinco naus francesas com muita gente, e munições, determinados a se ajuntarem com os Potiguares para combaterem, e assolarem o forte da Paraíba, com as quais cartas vinha um grande requerimento do capitão Morales, e moradores, e assim ao mesmo ouvidor, como ao capitão de Pernambuco, e Câmera os fossem socorrer.

Recebido este requerimento, fez logo Martim Leitão ajuntar no colégio o capitão de Pernambuco, Câmera, oficiais da Fazenda, e os mais nobres e ricos da terra, onde por todos foi assentado que por não crescer mais aquela ladroeira, e sair dali algum grande exército de franceses, que junto com os Potiguares destruíssem o que estava ganhado da Paraíba, convinha acudir-lhe, e que ninguém o podia fazer senão ele, como dantes tinha feito; e assim todos juntos lho pediram, e requereram em nome de el-rei, e ele aceitou, ordenando logo que se aprestassem duas naus, que não estavam mais no porto, e alguns caravelões, em que fossem 150 homens de peleja, fora os do mar, e alguma gente de cavalo por terra, que se ajuntariam com os que estavam na Paraíba, para que lhes dessem por terra, e por mar uma boa guerra, porque estando-se os navios concertando, e as mais coisas necessárias, chegou nova que Francisco de Morales se queria vir da Paraíba, lhe escreveu Martim Leitão tal não fizesse, e que chegando lá o acomodaria, e serviria em tudo, como sempre fizera, e quando de todo em todo se quisesse vir neste tempo não trouxesse os soldados de el-rei; mas nada bastou para deixar de se vir, e trazer os soldados de el-rei, e persuadido de alguns de Pernambuco, invejosos, e inimigos do ouvidor-geral, largou o forte, e se perdeu e estragou na vila de Olinda até se ir para o reino, e porque a 20 de outubro se soube haverem chegado mais à baía da Traição outras duas naus, que eram já sete. Pelo que se requeria melhor recado se tomou mais uma, que chegou do reino, e posta a monte, provida de xareta, e fortalecida para poder sofrer a artilharia como as outras até a entrada de dezembro, se puseram a pique todas três naus mercantes, e dois bons caravelões ou zabras, de que eram capitães Pero de Albuquerque, Lopo Soares, e Tomé da Rocha, Pero Lopes Lobo, capitão da ilha de Itamaracá, e Álvaro Velho Barreto.

Ordenado isto, foi o ouvidor-geral até o engenho de Filipe Cavalcante, que é sete léguas da vila de Olinda, com 25 homens de cavalo bons, e despedindo-os dali para a Paraíba se tornou para a vila a embarcar, prometendo-lhes primeiro seria com eles na semana seguinte; e assim se foi logo ao Recife, onde estiveram embarcados 13 dias, sem poderem partir com tão grande tormenta de nordeste, que dentro do rio se desamarrou uma nau, e deu à costa; e temendo o ouvidor-geral a tardança, quis mandar um caravelão com aviso a Paraíba, e eram tais os nordestes, que o levaram sem remédio além do cabo de Santo Agostinho à ilha de Santo Aleixo.

Com este trabalho e estando todos pasmados, e o ouvidor-geral atribulado de não poder fazer viagem, chegou Mauro de Resende com grandes requerimentos; e protestos de largarem todos tudo, se o ouvidor-geral não era lá até o dia de S. Tomé, por estarem todos assombrados da muita gente francesa, e Potiguares, que quatro dias havia tinha dado em uma aldeia das nossas fronteiras, cujo principal era Assento de Pássaro, o melhor índio dos nossos, onde mataram mais de oitenta pessoas, e dois Castelhanos, com o que se davam todos por perdidos; pelo que o ouvidor-geral, vendo que o tempo lhe não dava lugar a ir por mar, determinou ir por terra, dizendo aos mais que o seguissem, se partiu quase só de madrugada, e no rio Tapirema, que são nove léguas de Olinda, se achou ao segundo dia com alguns trinta e dois homens, com os quais seguiu avante, que por ir assim, e os homens despropositados para o acompanharem, por terra o seguiram somente estes, e com eles chegou à nossa povoação da Paraíba, a que os moradores chamam cidade de Nossa Senhora das Neves, aos 23 de dezembro, véspera da véspera do Natal, onde se começou logo a pôr em ordem, e aviar para haver de partir no dia seguinte, como partiu, caminho da Copaíba, onde teve por novas que estava todo o gentio, e alguns franceses fazendo-lhes pau-brasil para a carga das naus, porque estorvar-lha era a maior guerra, que podia fazer assim a uns como a outros.