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As vítimas do comendador

-Eu sou o autor daquelas mofinas contra o coronel Pinto Leite... segredou o comendador, fechando a porta.

O Melo, por única resposta, deu um longo assovio e estalou os dedos no ar. O comendador aproximou-se mais dele e disse-lhe ao ouvido:

Precisamos esfregar em regra aquele sujeito!...

-Schit! fez Melo, cheio de movimentos misteriosos.

E, depois de uma pausa, o comendador contou uma história muito engenhosa a respeito de vícios, da maldade e da hipocrisia do pai de Gaspar.

-Ora, que tipo!... dizia de vez em quando o homem dos rolos de papel; e passava a lembrar planos soberbos e meios ardilosos de estigmatizar o coronel. Continue a atacá-lo pelo ridículo! Ataque-o pelo ridículo, e verá o efeito! Olhe! lembra-me até agora uma cousa. Caricaturas! Não seria mau caricaturar o birbante!...

-Não! Não! vamos mesmo pela mofina. A caricatura é dar-lhe muita importância!... E você é quem me há de arranjar umas boas mofinas... Eu, confesso, estou esgotado! Dezessete anos de mofina não são nenhuma brincadeira!...

-Ora, se as arranjo! É o meu gênero! Eu tenho a veia da sátira! Na piada de doer ninguém me leva à palma!

-Pois arranje, arranje, que você não será com isto prejudicado. E quando precisar de alguma cousa para as despesas, é dizer! Que nós estamos neste mundo para servir uns aos outros...

-Deixe-o por minha conta!

-Mas...

E o comendador levou o indicador ao lábios:

-Nem pio!...

-Sou então alguma criança?... A alma do negócio é o segredo!...

-Pois ficamos entendidos... E vamos para a sala, que suponho já lá estar alguém.

E saíram do gabinete, a conversar disfarçadamente em outro assunto.

A mofina imediata a essa conversa foi terrível. O coronel ao lê-la, sentiu tal assomo de cólera que caiu prostrado em uma cadeira, da qual tiveram que o conduzir para a cama.

Gaspar havia poucos dias antes partira para Petrópolis, e só quem apareceu à noite em casa do doente foi o Alfredo Bessa, o empregado público demitido.

Entrou sinistramente, com o seu profundo ar de miséria; estava cada vez mais acabado, mais achacoso e mais triste.

-É você, meu genro?... perguntou-lhe da cama o pobre velho, ao vê-lo entrar. Seja bem aparecido... Eu estava muito só!...

E acrescentou, depois de um silêncio, meneando funebremente a cabeça:

-Não sei que diabo de terror a todos incute a idéia da sepultura!... À proporção que vai a gente se aproximando dela, vão rareando os companheiros e os amigos!...

Alfredo atravessou a sala com o seu passo discreto e medido, passou cuidadosamente o velho chapéu de copa alta sobre um traste, e foi colocar-se à cabeceira do coronel.

-Então, que história foi essa? perguntou ele ao doente, com um sorriso que pretendia animar, mas que só conseguia entristecer.

-Ora, o que há de ser? São aquelas malditas mofinas, que há tantos anos me perseguem, como se eu fosse algum malvado!

E possuindo-se de cólera:

-Com todos os diabos! Será possível que tenha eu inspirado um ódio tão grande e tão rancoroso, que, ao cabo de tanto tempo, em vez de extinguir-se, recrudesça com mais fúria?! Mas, com milhão de metralhas! Qual foi o meu delito? A quem prejudiquei em meu caminho? A quem tirei o pão? A quem roubei a honra? A quem procurei arrancar a vida?!

E voltando-se para o genro, exclamou, agoniado, e febril:

-Dou-te minha palavra de honra, meu bom amigo, que não me dói a consciência de haver feito mal a ninguém! Às vezes perco a noite a cogitar de quem será o dedo que trama na sombra esta luta implacável contra a minha tranqüilidade!... Não atino, não acerto! Ah! Não poder eu descobrir, não poder esmagar nestas velhas mãos o réptil infame, que me rói as entranhas!

E o coronel repisou, com uma grande excitação:

-Esmagava-o! Juro que o esmagava!

-Está bom, está bom! Não vale a pena exaltar-se... O caluniador há de ser descoberto! O que se faz neste mundo que não se venha a saber?...

-Palavras! E só palavras! Sinto que vou já resvaiando para a cova, e que afinal rolarei por uma vez sem descobrir quem foi o infame que me amargurou os últimos anos de minha vida!

-Lá voltam as idéias tristes! observou Alfredo, com um gesto de reprovação. Conversemos noutra cousa. Veja se afasta do espírito semelhantes pensamentos...

O coronel continuou, sem fazer caso das palavras do genro:

-Pressinto debaixo dos pés a aridez pavorosa do meu próprio despojo... Já preciso olhar para trás, quando quero olhar para a vida. Sinto-me só e a solidão me aterra; procuro em torno de mim os afetos que me aqueceram e consolaram o coração noutros tempos mais felizes, e só vejo sombras, fugitivas e vaporosas... Onde estão meus rudes companheiros de trabalho?... Onde estão meus amores da mocidade!... Onde foram desabrochar os lírios que plantei no lar, contando com as amarguras da velhice!... Tudo falhou, tudo murchou, e tudo fugiu!...

E o coronel, possuído completamente do delírio da febre, levantou-se do leito, com o seu longo vulto amortalhado no cobertor.

Alfredo acompanhava-lhe os movimentos, piscando os olhos, com um ar de medo.

O coronel golpeou o quarto a passos largos e pesados.

Tinha a cabeça erguida, o olhar descomposto, a boca aberta, mostrando os dentes fulvos de tabaco. A fronte, larga e despojada, saía-lhe de uma nuvem de cabelos brancos.

No seu porte, na sua fisionomia, no seu olhar de águia velha, havia uma trágica expressão de loucura.

Foi entre o fumo das batalhas, exclamou ele estacando ao fundo do aposento e fitando o genro, que formei o meu caráter e o meu coração! Foi entre o fuzilar da metralha e o clamor dos moribundos, que se escoou a minha mocidade, limpa e vermelha, como o sangue de um justo! Nunca a mentira me anuviou o olhar, nunca a vergonha me desmaiou as faces! Fui reto e valente! Mil vezes arrisquei a vida pela pátria, mil vezes mergulhei no fogo, abraçado ao pavilhão brasileiro! Entretanto, em paga de tudo isso, ela, a pátria, só me dá o esquecimento! E a sociedade, a grande sociedade! Só me dá, de quinze em quinze dias, uma inventiva pelo Jornal do Comércio! Maldito sejas tu, Brasil ingrato! Fui intrépido, leal e generoso, contudo irei para o fundo da terra isolado e crivado de insultos, como se fosse um bandido!

E avançando para Alfredo, bradou-lhe com uma voz terrível:

-Tu mesmo, desgraçado, não te lembrarias de fazer-me esta visita, se te sentisses menos infeliz! Vieste cá pela simpatia do desespero; entraste, porque és velho conhecido da negra miséria que cá está. Sabias que aqui pelo menos, não te cuspiriam nas costas, não te bateriam no chapéu, nem te voltariam enjoados o rosto! Porém fizeste mal em vir! Eu vou perfeitamente só para a sepultura. Volta por onde vieste, miserável! Que já há por cá bastante mágoa, bastante agonia, bastante sofrimento! Vai exibir noutra parte a tua mingua, que ela mais me apoquenta e me irrita! Sai!

E o coronel apontou-lhe a porta:

-Anda! Sai!...

Alfredo obedeceu, de cabeça baixa; tomou o chapéu, e saiu humilde e silencioso, como um cão enxotado.

Mas, ao passar pela sala de jantar, chamou a criada, que dormia, e disse-lhe fosse ver o amo, que estava mal.

E, ao chegar à rua, abriu a soluçar, com uma grande aflição.

-Até este!... dizia ele; até este!... A moléstia fê-lo ficar como os outros!

E assentou-se à soleira de uma porta, para chorar mais à vontade.

Um pequeno que passava gritou-lhe:

-Ó Marmelada!

Descobre-se o autor das mofinas

As mofinas desde que se converteram para Melo Rosa em fonte de receita, tornaram-se muito mais desabridas e aleivosas. Melo excedia à expectativa do comendador Moscoso.

O coronel, coitado! Já não as lia, porque nesses últimos três anos quase não se levantava da cama. «Esperando pelo desfecho...» dizia ele com indiferença.

Gaspar, a partir de então, não lhe abandonava mais a cabeceira e lhe prestava desveladamente o duplo serviço de médico e de enfermeiro. Mas o pobre velho sacudia os ombros, e pedia-lhe que saísse do caminho e não estivesse a contrariar a morte!

-É melhor deixar que isto acabe por uma vez! disse-lhe ele certa manhã, durante a qual Gaspar lhe pareceu mais sucumbido e triste. Tu, que és moço e devias ter esperanças tu, meu filho, atravessas a existência como um espectro! Como consentiste que a mulher, a quem dedicaste todo o teu amor e a melhor parte do teu coraçao, levasse consigo para sempre a alegria e os sorrisos da tua mocidade?... E queres exigir deste pobre velho a coragem que te falta! Não! Renuncia a tal intento e reage contra a tua tristeza, procura viver, para que ao menos possa eu fechar os olhos, na doce ilusão de que o perseguidor de teu pai há de ser um dia punido por tuas mãos!

-Juro-lhe, meu pai! Juro-lhe, por minha honra, que o senhor, ou a sua memória, serão vingados!

-Assim! Fala-me deste modo, meu Gaspar! Dá a este coração amargurado uma idéia consoladora! Ah! Sabes perfeitamente que nunca fui rancoroso e jamais me comprazi com o sofrimento alheio; mas tanto e tanto fel me verteram cá dentro, tanta e tanta lama me atiraram, que afinal todo eu me converti em lama e fel! Sinto-me mau! Eu, que fazia dantes consistir a minha felicidade no comprimento do dever e toda a minha aspiração em ser bom e leal, eu sou hoje cruel e vingativo! Sim! Preciso saber desde já que serás inexorável na vingança! Que calcarás debaixo dos pés o meu verdugo! Prometes, não é verdade, meu filho? Não é verdade, que serás ainda mais cruel do que eu? Fala!

-Sim! Sim! Meu pai! Juro-lhe por minha honra!

E os dois abraçaram-se comovidos.

No resto da sala corria um silêncio que já era de morte.

De repente, porém, ouviu-se uma voz, fresca sonora, gritar da porta:

-Gaspar! Ó Gaspar! Onde diabo estás tu?!

Aquela voz alegre despedaçou escandalosamente o silêncio compacto da sala. Gaspar levantou-se de um silêncio e precipitou-se nos braços de Gabriel, que voltava dos seus estudos acadêmicos.

-Meu filho! Dizia ele chorando e rindo; minha vida!

E beijava-o na testa e nas faces.

-Como estás forte! Como estás belo!

E voltando-se para o coronel:

-Olhe! Olhe! Meu pai! Veja o Gabriel! Entrou aqui como um raio de sol! Já não há tristezas! Exclamava o médico. Já não há tristezas! fugiram as sombras!

E abraçava o enteado.

-Como tu me dás vida! Como eu te amo, meu filho!

E Gaspar, com efeito, parecia outro; estava agora reanimado e feliz.

O coronel abraçou o filho de Violante.

-Voltaste, afinal, meu pequeno! disse ele procurando sorrir. Fizeste bem! cá estávamos nós outros, como dois tolos, à espera da morte, e afinal chegas tu, que és a vida, a alegria, a mocidade! Com mil cartuchos! Não há como ter vinte anos!

-Mas, que escuridão, meu Deus! disse Gabriel olhando em torno de si. Como se pode viver em uma casa fechada deste modo?!

E escancarou uma janela que dava para a rua.

Uma baforada quente do ruido de fora invadiu com a luz do meio-dia a sala do coronel, e despertou-a do seu fundo entorpecimento.

-Que diabo faz este piano paralítico, que não me dá um ar de sua graça? exclamou o rapaz estacando defronte do sombrio instrumento. Ah! Supunhas que não te havia de pôr mais os dedos? Ora, espera, meu velho entrevado, que já te vou escovar a alma!

E, sem ouvir o coronel, que lhe gritava da cama, Gabriel sacou a capa do velho piano e abriu-o com estrondo.

-Olha que me afliges com isso, Gabriel! dizia o pobre veterano. Depois da minha Anita, ninguém mais tocou nessas teclas! Não me faças chorar!...

Mas já ninguém o podia ouvir, porque um doido turbilhão de notas enchia a sala com a sonoridade retumbante dos seu ecos.

Era um infernal! Bailado de Offenbach. As notas palpitavam vertiginosamente no ar adormecido daquela sala, como um bando de máscaras endemoninhadas invadindo uma sacristia.

E tudo parecia ir a pouco e pouco revivescendo com o delírio da música. Os graves trastes, cheios de pó e alquebrados de abandono, pareciam resistir ao desejo de atiraram-se aos pinchos do cancã.

Os retratos a óleo, o venerando relógio de armário, as estantes, os tremós, o canapé, tudo parecia acordar à mágica fascinação do rei da gargalhada musical. Gaspar esfregava as mãos.

-É a mãe tal qual! A mesma vivacidade! A mesma voz a mesma formosura!

E limpava os olhos, apressado, para os não ocupar com outra cousa que não fosse Gabriel.

-Como é vivo! Como é belo! exclamava ele, com a fisionomia iluminada de amor paterno.

Não obstante, o velho coronel chorava silenciosamente a um canto. Só ele não participou da alegria geral; ao contrário, aquela música, petulante e sarcástica, doía-lhe por dentro como um insulto à sua tristeza.

A casa palpitava e estremecia na onda vertiginosa das vibrações, quando de súbito assomou à porta o vulto magro do Marmelada, o chapéu para a nuca e as botas encalavradas, a dançar o som do palpitante bailado.

O pobre homem tinha, inteiramente fora de seus hábitos e talvez em conseqüência da fome, apanhado uma formidável bebedeira; e, no entanto, não podia ser melhor o impulso que o levava ali; ia prestar um grande serviço, fazer uma revelação importantíssima para o coronel.

Depois daquele delírio em que este o expulsara de casa, o infeliz ainda mais se afundara no seu desânimo moral e físico. O sogro mandara chamá-lo por várias vezes, mas Alfredo resmungava que lá não poria os pés!

-Haviam-no enxotado, como se enxota um cão; ele porém, é que não voltaria como os cães! Sabia que era um pobre diabo, mas tinha consciência de não fazer mal a ninguém, nem cometer baixezas, para que o tratassem daquele modo!

E o caso é que, apesar de toda a sua miséria, nunca mais voltaria com efeito, se não fosse o seguinte:

Na manhã desse dia, toscanejava estendido em um dos bancos do Passeio Público, quando dois homens se assentaram no banco imediato, conversando. Alfredo reconheceu-os; eram o comendador Moscoso e o Melo Rosa.

O viúvo de Ana fingiu que dormia, escondeu o rosto e prestou ouvidos.

Os outros não lhe descobriram as feições, nem desconfiaram de sua presença, tão miserável era o aspecto de Alfredo e tão borracho parecia estar.

O comendador, entretanto, ia dizendo, em continuação à sua conversa:

-Pois o bicho escondeu-se! Suas mofinas produziram o efeito desejado... Mais umas duas da mesma força, e lavra-se-lhe a certidão de óbito. Foi obra!

Melo Rosa tirou uma tira de papel do bolso e leu com intenção:

«O nosso coronel, sem milho e crivado de dívidas não sai do buraco, nem à sétima facada; tem medo dos cadáveres, coitado! Mas nós havemos de arrancá-lo do esconderijo, nem que seja a marmelada! Lá diz o outro que macaco velho quando se coça, é que está tramando alguma! Vamos ter nova patifaria! Olho vivo! - A Sentinella.».

-Que tal a acha?... perguntou o Melo ao comendador.

-Não sei... disse este. Faltava-lhe graça... Você tem sido mais feliz das outras vezes. Veja se faz alguma cousa mais picante, mais mordaz...

Melo guardou silenciosamente a tira no bolso, e prometeu arranjar cousa melhor.

E depois acrescentou com interesse:

-É verdade, preciso que o comendador me adiante cinquenta mil-réis... é um aperto sério!

Adiantar era o seu termo, quando pedia dinheiro.

-Homem! disse o outro. Você ultimamente me come bastante dinheiro!... Lembre-se de que não há muitos dias que eu...

-Bagatelas! replicou o Melo com um ar superior; bagatelas, comendador!

-Bagatelas, não!

-Ora, pelo amor de Deus! Estava eu bem servido se contasse com esses bicos para viver!... E é dessa forma que o senhor quer que lhe arranje eu a Berta! Ora, seu comendador! tire o cavalo da chuva!

-Mas é que...

-Ora, o senhor sabe perfeitamente que, para estar em contato com ela, é preciso ter algum dinheiro no bolso; é já uma garrafita de champanha, é já meio quilo de marrons glacês, já um camarote no Alcasar! E estas cousas, meu amigo, não se fazem com palavras! Quem quer a moça, puxa pela bolsa!...

-Se eu tivesse a certeza de que você conseguia o que eu desejo!... É uma asneira, bem sei, mas gostei da tipa!...

-E quem lhe diz que não consiga?...

-Repito: «casa, comida, roupa lavada e engomada, luxo e dinheiro pros alfinetes...» Se ela quiser, é pegar! contanto que não receberá mais ninguém! Ah! Lá isso... De portas pra dentro, há de ser só cá o menino!...

E o comendador afagava o próprio queixo, sonhando-se já na felicidade futura.

-Pois é!... confirmou o Rosa; mas estas cousas custam seu bocado! A gaja é artista... porém eu lhe darei umas voltas, que ela o remédio que terá é cair!

-Posso vê-la hoje?

-Pode, no Alcasar. Se quiser, previno-a de que se não comprometa, e iremos depois cear os três ao Príncipes...

E o Melo, batendo no outro com o braço, piscou maliciosamente um olho:

-Descanse que não ficarei até ao fim da ceia! Maganão!

-O diabo é que aquele gerente Ramos tem umas unhas tão compridas!... É um roubo o que cobram no Hotel dos Príncipes!

-Bem! Mas vai, não é?

-Sim, mas veja se obtém da Berta o que lhe disse... Eu não tenho jeito para falar nessas cousas...

E o comendador fez um ar de acanhamento.

-Deixe correr o marfim por minha conta! respondeu o Melo com um movimento persuasivo. A questão é o.... E fez com os dedos sinal de dinheiro.

-Pois bem! Tome lá os cinqüenta... Mas veja se economiza, homem! Eu também não tenho em casa nenhuma máquina de dinheiro!...

-Ora, não ofenda a Deus, comendador! E vamo-nos. E foram-se os dois a passo frouxo pela alameda.

O sol da manhã tirava-lhes cintilações das cartolas novas.

Alfredo levantou a cabeça e esteve a olhá-los, vagamente, por muito tempo. Iam ali dois homens considerados em público e diversamente felizes! Depois, levantou-se impelido por uma resolução, e tocou para a casa do coronel. Mas em caminho, um companheiro de miséria convidou-o a tomar um trago. Alfredo estava em jejum e já tinha bebido, bebeu ainda mais e ficou afinal como o vimos surgir na sala do sogro.

Este desejava muito tornar a recebê-lo, mas ao dar com ele naquele estado, escondeu o rosto nas mãos.

-O que mais me faltará ver, meu Deus? dizia entre lágrimas o pobre veterano.

Gabriel deixou de tocar, e Gaspar correu a conter o cunhado; mas Alfredo, possuído de uma alegria frenética, continuava a cancanear, a seco, agitando as abas esverdinhadas da sua hedionda sobrecasaca.

-Quebra! gritava ele, com a voz estrangulada de cansaço e trêmula de embriaguez. Quebra, meu bem! Quebra o caroço!

E pulava, revirando os olhos e sacudindo os braços.

-Viva a folia! Viva a pândega!

Gaspar procurava dête-lo:

-Alfredo! Que é isso? Então!...

-Solta-me, Gaspar! Eu estou contente! Trago-lhe uma notícia importante! Venham as alvíssaras! Devemos todos tomar hoje uma boa carraspana! Tenho cá o segredo!

E o Marmelada fechou a mão no ar e cambaleou:

-Sei tudo!

E cuspia-se.

-Solta-me, ou então não digo! Se quiseres saber, vai buscar vinho!

-Disso podes estar bem descansado, interveio Gabriel.

-Pois se não me derem vinho, não digo quem escreve as mofinas contra o tal coronel das dúzias!

O velho saltou da cama.

-Hein? O quê?! Sabes tu quem é? Dêem-lhe de beber! Dêem-lhe tudo! Pancada, se preciso for! Mas não o deixem sair, sem fazer a declaração! Ó meu Deus! Ele saberá?! Será crível que eu não morrerei sem...

-E o velho caiu de braços na cama, a exclamar numa doida vertigem:

-Fechem as portas! Não o deixem sair! Acudam-me!

-Está o que você veio fazer! disse Gabriel a Alfredo.

-Está danado! respondeu este com a voz mole e com um sobressalto de medo. Tu pensas, velho rabugento, que eu voltaria cá, se não fosse ter pena de ti. Vim para dizer quem é o autor das mofinas, mas vocês não querem obsequiar... não digo!

E voltando-se para Gabriel:

-Menino! Vai para o piano, que eu gosto de música!

Mas vendo que ninguém o atendia, resmungou zangado, ganhando a porta:

-Querem saber que mais? Vão vocês todos para o diabo que os carregue!

E deitou a correr para a rua.

Segurem-no! rugiu da cama o coronel. Segurem-no! E tentando erguer-se, desabou nos braços do filho.

Gabriel precipitou-se no encalço de Marmelada. Só conseguiu alcançá-lo já no fim da esquina.

Espere com um milhão de raios! disse o rapaz, segurando-lhe o braço.

-Largue-me! exclamou o outro. Largue-me! Ou vou-lhe ao frontispício!

-Cale-se! Aqui tem dinheiro. Tome! Pode beber à vontade, mas diga primeiro quem é o autor das mofinas! Alfredo guardou o dinheiro e segredou:

É o Melo Rosa e o comendador Moscoso. O Moscoso é aquela peste que se queria casar com a minha defunta mulher... Ai, minha rica Aninha!

E desatou a soluçar.

-Era uma santa, menino! Uma santa!

-Bem! console-se, porque agora as cousas lhe vão correr melhor; eu preciso falar-lhe. Venha daí!

-O que é?!

-É negócio muito sério! Venha comigo!

-É negócio! Pronto! Ah! Eu cá sou como Reguinho!... Queremos dinheiro, sebo!

-Se voce quiser sujeitar-se, não lhe faltará o necessário e também algum dinheiro... Ande daí!

-Queremos dinheiro, sebo!

-Pois terá dinheiro! Espere um instante por mim.

E Gabriel subiu novamente à casa do coronel; disse a Gaspar de quem eram as mofinas, pediu-lhe que ficasse durante a sua ausência fazendo companhia ao velho, e depois foi ter de novo com o Bessa.

-Vamos cá... disse este.

Alfredo acompanhou-o.

-Você almoçou hoje?... perguntou-lhe Gabriel.

-Não me lembra.

-Bem! Mas de ora em diante é preciso mudar de vida! Cá está um hotel. Entramos!

O Marmelada hesitou.

-Entre, homem!

E Gabriel procurou o dono da casa para encarregá-lo de Alfredo.

-É um amigo meu, disse-lhe, que por desgostos, caiu neste estado... O senhor tratará dele o melhor possível. Obrigue-o a recolher-se, faça-o comer alguma cousa, lavar-se, vestir-se de roupa nova; enfim, quero que ele não saia daqui, sem ter voltado ao seu primitivo estado de asseio e decência...

-Mas, Dr., é que...

-Não me diga que não! Aqui lhe deixo cem mil-réis para as primeiras despesas. Não tenho mais dinheiro comigo, porém, amanhã voltarei e desejo encontrar o seu hóspede em melhores condições... O principal é não deixá-lo sair sem estar restaurado.

O hoteleiro afinal aceitou, e fez recolher Alfredo.

Este não queria deixar-se prender.

-Querem roubar-me! Berrava ele, debatendo-se. Querem roubar-me, porque tenho dinheiro comigo! É meu! Deram-me! Há testemunhas!...

Gabriel recomendou ainda uma vez o seu protegido e retirou-se, gozando a caridade que acabava de praticar.

Ao chegar à casa, disse-lhe a criada que Gaspar havia saído.

-E deixou o velho sozinho... Que imprudência!

E foi fazer companhia ao coronel.

Às dez da noite voltava Gaspar. Vinha radiante.

-Meu pai, exclamou ele logo ao entrar; alegre o seu coração! Está descoberto o autor das mofinas! Alfredo dizia a verdade. Soube agora que chegara este a tal resultado, fingindo que dormia em um banco do Passeio Público, perto do qual conversavam o comendador Moscoso e o Melo Rosa. Procurei este último, que eu já conhecia, e consegui dele a confissão de tudo. O verdadeiro autor das mofinas é o comendador Moscoso!

-Ah! agora compreendo, gritou o coronel, depois de um esforço de memória. O comendador Moscoso... Já sei! é um sujeito que desejou casar com Anita! Eu não consenti... Infame! E porque lhe neguei... Ah! mas caro o pagarás, miserável!

-Nada de precipitações, observou Gaspar. É necessário fazer tudo com calma para obtermos bom resultado. Eu me encarrego do comendador! O senhor há de recebê-lo aqui neste quarto, sem se incomodar. Ele há de vir cá, há de ajoelhar-se a seus pés, e o senhor dir-lhe-á o que quiser! Fique descansado! Durma hoje sem preocupação, porque o essencial está feito!

-Obrigado, meu filho, muito obrigado! disse o coronel, abraçando o filho. Até já me sinto são e forte depois de tuas palavras, meu Gaspar!

-Bem, mas é preciso descansar... Por enquanto, não convém falar muito sobre isto. Veja se consegue dormir. Se precisar de mim, toque a campainha.

E, voltando-se para Gabriel:

-Vem comigo cá ao escritório. Tenho que te falar.

E quando se acharam a sós, acrescentou:

-É uma incumbência sagrada!

-Vais falar-me de minha mãe?

-Sim, de tua mãe e de ti, meu amigo.

E encerraram-se no escritório.

Entretanto, o coronel, logo que sentiu a casa em silêncio, envergou o seu capote militar, pôs o boné, tomou um revólver e, apoiando-se a uma grossa bengala de cana da Índia, ganhou cautelosamente a porta da rua, e saiu.

Dirigia-se para o palacete do comendador Moscoso.

Em casa do comendador

Gaspar fechou-se no gabinete com o enteado.

-Senta-te, disse ele, dando volta a uma charuteira e tirando de sobre a estante uma garrafa de cristal. Fuma um charuto e toma um cálice de Málaga:

Gabriel instalou-se em uma poltrona.

Estava realmente um belo moço; e ali, contra o marroquim vermelho da cadeira, a luz do gás, caindo do alto, lhe fazia destacar bem o puro contorno da cabeça, deixando-lhe o rosto embebido em meia sombra, na qual cintilavam com um olhar ansioso as duas negras jóias, que Gabriel herdara da mãe.

Havia nele toda a graça dos vinte e um anos.

Gaspar acendeu um charuto, e assentou-se defronte do enteado.

-Chegou a época da tua emancipação, disse, e amanhã mesmo iremos tratar dela. Estás, por conseguinte, um homem, e eu tenho de substituir, junto a ti, o meu papel de tutor pelo de teu mais dedicado amigo. Vais entrar na posse de teus bens, que aliás são bastante avultados; antes disso porém, quero contar-te a história de tua mãe e desempenhar uma comissão que ela me confiou nos seus últimos momentos...

E Gaspar, muito comovido, tirou do fundo de uma gaveta da secretária um estojo, que passou ao filho de Violante.

-Um punhal?! exclamou este ao abri-lo.

Foi de tua mãe e pertenceu igualmente a teus avós. É objeto de família, que tem passado de pais a filhos. Guarde-o como sagrada relíquia daquele anjo que consigo me levou para sempre toda a minha esperança de felicidade.

Gaspar enxugou os olhos e prosseguiu, enquanto o outro examinava o punhal:

-Esse sangue que enferrujou a lâmina, é sangue de tua mãe. Violante matou-se com uma punhalada. Tinha um temperamento de leoa e uma alma de arcanjo; matou-se, porque eu lhe supliquei que não assassinasse meu cunhado Paulo Mostella...

Gabriel ficou pensativo, Gaspar foi buscar um retrato de Violante e colocou-o defronte de ambos.

Houve um grande silêncio, respeitoso e, profundo, como se os dois se preparassem para receber, com aquela visita do passado, uma visita da própria morta. Só se ouvia, além do palpitar da pêndula suspensa da parede, o zumbido das asas de uma mariposa, que gravitava freneticamente em torno do globo aceso.

Afinal, Gaspar, com a voz enfraquecida pela comoção, narrou circunstanciadamente a Gabriel tudo o que sabia a respeito de Violante.

O moço ouvia-o sereno e contrito. No seu bizarro temperamento, a história romântica de sua mãe produzia um conjunto de orgulho e mágoa. Sentia que o seu sangue era ainda o mesmo, vermelho e quente, que tingira a lâmina daquele punhal; compreendeu que em sua alma dormiam também grandes vendavais e tempestades. Ouviu falar da própria raça, sem o mais passageiro vestígio de sobressalto. A sua pálida fronte conservava-se límpida, e seus olhos dormiam no fundo do seu olhar, como dois diamantes esquecidos na areia de um lago cristalino e plácido.

Quando Gaspar terminou, ele abraçou-o com toda a calma, e guardou junto do coração o seu punhal de família.

O relógio marcava meia-noite. Já era tempo de recolherem. E os dois encaminharam-se para os aposentos do coronel.

Mas Gaspar, ao entrar no quarto do pai, estremeceu, assustado pela escuridão e pelo completo silêncio que ali reinavam. Acendeu uma vela e penetrou na alcova; estava vazio o leito.

Possuído de mil receios e cuidados, correu toda a casa. O coronel tinha desaparecido.

-Ah! Já sei! exclamou, sobressaltado por uma idéia. Meu pai foi à casa do comendador! Depressa Corramos a encontrá-lo!

E os dois lançaram-se para fora.

Na rua tomaram um carro e mandaram tocar à disparada para o Caminho Velho de Botafogo, que era onde Moscoso tinha a sua residência na cidade.

As janelas do palacete do comendador mostravam-se iluminadas. Defronte do portão do jardim havia urna enorme fila de carruagens.

O palacete estava em baile.

Enquanto Gaspar e Gabriel confidenciavam tristemente essa noite encerrados no gabinete do médico, fervia o prazer e reinava a alegria em casa do próspero comendador.

As suas salas, regurgitantes de convivas, fremiam ao som da orquestra e ao quente rumor das danças. Por todas elas palpitava o gozo; por todas elas riso, jogos, libações e amor.

Em breve a festa chegava ao seu momento de delírio, a esse momento apogístico do baile em que a alma parece derreter-se na saturação dos vapores do prazer, em que as luzes, os vinhos, os perfumes das toilettes e das flores, o ansioso respirar na vertingem da valsa, se vaporizam pelo ambiente, despertando os sentidos e entontecendo o espírito; instante feliz em que mais deliciosamente gemem os violinos, em que cintilam com mais luz os diamantes e os olhos das mulheres, e os colos arfam, e o corpo cede de todo à volúpia, e o sangue se embriaga e vem até aos lábios reclamando beijos.

-De repente, porém, uma voz rude e áspera, voz de batalha, retumbou pelas salas, bramindo:

Silêncio!

Todos pasmaram. A orquestra emudeceu e os pares estacaram tolhidos de surpresa.

Ao fundo do salão, no meio da inconsciência do prazer, assomara o vulto venerando do coronel.

Seu porte, alto e alquebrado, destacava-se imponente; o longo capote aumentava-lhe a estatura, dando-lhe proporções naturais. O gás mordia-lhe asperamente a aridez da fronte, que faiscava como a ponta calva de um rochedo aos raios do sol; os seus olhos fundos e ardentes, chispavam de cólera, os cabelos, brancos e assanhados, davam-lhe à cabeça um terrível aspecto de loucura.

Todos o olhavam com assombro. As mulheres empalideciam desmaiadas.

O coronel, espectral e imóvel, permanecia ao fundo do salão.

Ninguém se animava a proferir palavra.

O comendador acudiu em sobressalto; mas, ao dar com o veterano, soltou um grito e estacou petrificado defronte daquela fantástica e ameaçadora figura, que o fitava sem pestanejar.

-Eu sou o coronel Pinto Leite, vozeou o fantasma; e eis aí o autor das infames mofinas que há vinte anos me amarguram a existência! Esse miserável ex-caixeiro de taverna, covardemente me persegue desde o dia que lhe não consenti fazer parte de minha família, casando com uma de minhas filhas! Que aos dois nos julguem dentre vós os homens de bem! Quanto a mim, quero apenas apontar a hipocrisia deste monstro ao anátema social e estigmatizá-lo com o ferrete do meu ódio.

E o veterano caminhou para ele.

Era um estranho caminhar de estátuas. O chão parecia ir desabar debaixo dos seus pés de bronze. Caminhou majestosamente até à figura vulgar do comendador, que quedava estarrecido como sob o domínio de uma fascinação magnética, e soltou-lhe em cheio nas faces uma bofetada.

Houve então uma geral exclamação de protesto e de pasmo.

Moscoso voltou a si com o sangue que lhe subiu ao rosto e quis lançar-se contra o agressor, mas os amigos o agarraram e conduziram lá para dentro, consolando-o com a idéia de que ele tinha sido vitima de um louco.

O esbofeteado reclamava a prisão do insolente que o fora provocar no seu domicílio.

Mas não apareceu um braço que se erguesse contra a venerável figura do coronel. Abriram-lhe caminho. E, ao passar o seu vulto encanecido e todo trêmulo de comoção, abaixaram-se as frontes por um instintivo impulso de respeito.

Ele atravessou a sala com o passo firme e desapareceu.

Ao chegar à porta do jardim, parava na rua, urna carruagem, que vinha a toda desfilada.

Eram Gaspar e Gabriel saídos ao seu encontro.

Os dois apoderaram-se dele.

O velho, entretanto, sem poder dar uma palavra, encostou a cabeça no peito do filho, e soluçou desafrontadamente.

-Chore! chore, meu pai! Desabafe! dizia Gaspar.

E o velho soluçava.

-Sinto-me bem! exclamou este afinal. Sinto-me bem! Tirei um peso do coração! Desmascarei aquele canalha e dei-lhe uma bofetada! Ah, meus filhos! já posso morrer tranqüilo! Estou consolado!

Recolheram-se à casa. Contudo, o pobre homem não pregou olho senão pela manhã, tal era a sua excitação.

Daí a dois dias, apareceu no Jornal do Comércio um artigo, descrevendo minuciosamente o escândalo do baile do comendador. O escrito tinha frases bombásticas; elogiava ó procedimento do velho coronel e comparava o caráter do honrado militar com o tipo baixo e vil do comendador.

Esta publicação surpreendeu em extremo o coronel e os seus. Nenhum destes podia atinar quem seria o espontâneo autor de semelhante defesa.

O Moscoso, ao lê-la ficou possuído de uma cólera tremenda, e jurou vingar-se melhor do que ate aí.

Os artigos continuaram. Eram escritos pelo Melo Rosa. O esperto calculara uma engenhosa especulação para desfrutar ainda o comendador: Este, desde que encontrasse qualquer correspondência no Jornal a seu respeito, teria que responder, e havia de recorrer àquele. Assim sucedeu. O Rosa escrevia, contra e a favor, tanto do coronel, como do Moscoso.

A luta estava perfeitamente travada.

O coronel caía de surpresa em surpresa, e o Melo Rosa ia empalmando os cobres que lhe dava o comendador.

Afinal, um belo dia estando Pinto Leite em casa a conversa com o filho e Gabriel, foram interrompidos por um meirinho, que apresentou ao veterano uma citação em nome do comendador Moscoso.

O pai de Ambrosina comprara as dívidas do adversário, que montariam a uns dez contos de réis.

Foi sacrifício, mas o perverso não desdenhou arrostá-lo para dar pasto à sua vingança.

O coronel tinha de entrar com aquela quantia dentro de vinte e quatro horas.

-Onde iria ele de pronto, buscar esse dinheiro... E o pobre do coronel olhou abstratamente para o meirinho, depois para o filho, em seguida para Gabriel, e por fim escondeu o rosto nas mãos e ficou a cismar, completamente possuído pela sua perplexidade.

Gabriel, porém, apossou-se da intimação, e disse alegremente ao veterano.

-Não lhe dê isso cuidado, meu amigo. Lembre-se de que sou filho de Violante! O senhor pode perfeitamente pagar o triplo dessa importância, sem o menor constrangimento.

E, voltando-se para o meirinho, acrescentou com a voz calma e resoluta:

-Retire-se! O senhor coronel Pinto Leite entrará com o dinheiro.

E, antes de esgotado o prazo fatal, já o belo moço tinha com efeito pago as dívidas do benfeitor de sua mãe.

Mas, para liquidar a transação, foi-lhe necessário entender-se diretamente com o comendador Moscoso, que estava de cara à banda porque contava que o coronel nunca pudesse pagar as dívidas.

Gabriel, para dar caráter mais espetaculoso ao negócio, preferiu que o credor o recebesse em sua casa particular.

Moscoso marcou-lhe uma entrevista às sete horas da noite.

Gabriel apresentou-se. Veiu recebê-lo Ambrosina.

-Como! Pois V. Exa. é filha do comendador?

-É verdade, sou. Não sabia?

-Ignorava-o totalmente. Como tem passado?

-Bem. E o senhor?

-Eu... um pouco pior depois que sei o que acabo de saber...

-Ora, essa! Por quê?...

-Ainda não lhe posso dizer a razão...

E os dois, que já se conheciam, olharam-se de um modo estranho.

A formosa Ambrosina

A filha do comendador estava mulher, e mulher bela.

Aquela criança, franzina e linfática, se transformara em uma mulher encantadora e forte.

A não ser os olhos, que foram sempre formosos, toda ela se havia metamorfoseado. O pescoço, os braços e os quadris enriqueceram-se de graciosas curvas, o cabelo fez-se volumoso, a tez pálida e fresca, os ombros um primor de estatuária, a boca um ninho de sorrisos cor-de-rosa e cor de pérola.

Toda ela respirava, porém, uma híbrida fascinação de anjo e de demônio. Os seus lindos olhos verde-escuros, tanto poderiam servir para ensinar o caminho do céu, como o caminho do inferno.

Havia alguma cousa do pecado de Eva paradisíaca na elasticidade ofídia e ondulosa do seu corpo, na mancenilha daqueles cabelos crespos, no viço provocador daqueles lábios carnudos e vermelhos.

A sua voz era como um hino de amor e de revolta, feito de ironia, de súplica, de desdém e de ternura.

Gabriel só viu e percebeu de tudo isso o lado risonho e claro, quando se achou pela primeira vez em presença de Ambrosina.

Foi em um baile, na casa de um dos seus colegas de academia, que também voltava formado de S. Paulo.

O filho de Violante dançou com a formosa moça; muito, e ele, já cativo, rudemente lhe dedarou que a achava encantadora e que seria o mais feliz dos mortais, se pudesse amá-la com a esperança de ser correspondido.

Ela riu-se, e aconselhou-o a que desistisse de semelhante loucura.

Na Corte havia muita menina bonita. Gabriel, chegando naquele instante, nada ainda tinha visto; não se deixasse por conseguinte levar pelas primeiras impressões...

-São sempre as melhores... respondeu ele sorrindo.

-Qual o quê! replicou Ambrosina. O senhor arrepender-se-ia. Só eu, tenho mais de uma dúzia de amigas que, se fosse rapaz, amá-las-ia de joelhos... São lindas

-Mas lembre-se de que são mais de uma dúzia...

-Ora! Se eu fosse rapaz, amava-as a todas. Não há como ser homem!... O homem pode viver como quiser, fazer o que bem entender, amar a todas as mulheres ao seu alcance; enganá-las, ridicularizá-las, e... nem por isso deixará de ser um rapaz comme il faut, desde que se vista à moda, tenha uma cara suportável, algum emprego ou algum capital, e, um bocadinho de tino... para não dizer asneiras seguidas. Ao passo que a pobre mulher coitadal se quiser amar, há de contentar-se com um indivíduo, que ela só conhecerá depois de ter ligado para sempre a seu destino ao dele; quando aliás um marido é como charuto, que só se pode saber se é bom depois de aceso. As aparências nada valem!...

-V. Exa. pinta o charuto tão ao vivo que faria acreditar que já fumou!...

-Figuradamente, como lhe acabo de falar, não, porque sou solteira, e não tenho pressa... mas se o senhor se refere à verdadeira acepção da palavra, responder-lhe-ei que sim; já fumei. Pura extravagância

-Não lhe fez mal?

-Muito! Tive vertigens, ânsias; passei mal uma noite inteira... Jurei não cair noutra!

-Ah!

-E creio justamente que com o casamento me aconteça o mesmo... Não com uma noite, mas com a vida inteira!...

-Então não tenciona casar?...

-Tenciono, pois não! Nós, as mulheres, somos muito desgraçadas a este respeito: temos às vez es horror ao casamento, mas que fazer!... Não o podemos dispensar. Oh! O senhor bem sabe que a mulher só se emancipa quando se escraviza ao marido... Desgraçadinha daquela que não tiver um guarda-costas que a represente na sociedade e que com ela partilhe um pouco dos perigos que a esperam.

-V. Exa. faz-me pasmar com a sua experiência...

-Não sei porquê! Eu não tenho mais experiência que qualquer outra senhorita nas minhas condições; apenas sou menos hipócrita, e não quero impingir minha mão ao primeiro que apareça...

-Mas, uma vez resolvida a casar, qual será o noivo que lhe convém? quais serão nele as qualidades que a poderão conquistar?

-Sei cá! Mas, se tivesse rigorosamente de escolher marido, escolheria um homem que me parecesse bem vulgar.

-O que, minha senhora? V. Exa. não preza a distinção?...

-Não, decerto. A distinção será muito boa para o homem que a possua, nunca será para a mulher que com ele se case. A distinção! Mas não vê o senhor que, quanto maior for a superioridade do marido, tanto maior será também a inferioridade da mulher!... Com um homem vulgar, sucede precisamente o contrário: ela terá o primeiro lugar, e não precisará pôr-se nas pontinhas dos pés para falar com ele, o que é incômodo.

-Mas terá de abaixar-se...

-Qual! Ele que trepe! é sempre o mais baixo que procura os meios de subir... Digo-lhe e repito: A ter de casar, prefiro um homem vulgar, trabalhador e honesto.

-Creio que estou no caso..

-Não sei se totalmente. Trabalhador e honesto, só mais tarde o saberemos, porque o senhor entra agora na vida; quanto ao vulgar, isto está! -a sua observação acaba de prová-lo...

-Sou tão vulgar quanto V. Exa. é severa...

-Sincera, é que deve dizer...

-Contudo, não me pareceu sincera no que disse a respeito do casamento..

-Pois não! O homem, meu caro senhor, apresenta-se-nos sempre por um prisma falso; é a capa do charuto de que há pouco lhe falei... Por fora, muito liso, muito cheiroso e com um ar magnífico. Quem dirá pelas aparências que tão sedutor charuto não é bom?... Entretanto, se o senhor o acender e insistir em fumá-lo, far-lhe-á ele uma ferida na língua. Desdobre-o! Há de achar dentro, em vez de tabaco, papelão! Imagine que eu encontrasse na sociedade um homem de bom-tom, um elegante com a resposta pronta, a casaca irrepreensível e a luva fresca, e ligasse o meu destino ao dele; mas que, na ocasião íntima de desdobrar esse belo espírito lhe descobrisse o tal miolo de papelão...

-Oh!

-É justamente o que eu diria: «Oh!»

E Ambrosina comprimiu os lábios com a graça de um beijo.

-O que, todavia, não evitava, continuou ela rindo, que tivesse eu aquele trambolho amarrado à minha vida como uma grilheta de condenado. Escolhendo, ao contrário, um homem sem qualidades brilhantes, não teria eu de sofrer decepção de nenhuma espécie, e é possível até que chegasse, depois do casamento, a descobrir em meu marido algum dote, verdadeiro e sólido, para o qual a sociedade não se desse ao trabalho de reparar...

Gabriel soltou uma risada, e Ambrosina prosseguiu:

-Creio, meu caro doutor, que a sociedade é para os homens medíocres o que o palco é para as atrizes de segunda ordem -simplesmente um meio de lhes realçar as graças e emprestar encanto às que o não possuem. Toda a mulher feia, que souber preparar-se bem, será bela no palco; todo o homem vulgar, que souber repetir de orelha certos conceitos alheios e guardar silêncio quando for preciso, será nas salas um homem elegante e do bom-tom. Para aquelas, é preciso pintar os olhos, fazer um sinal na face, dar tinta aos lábios, arranjar os cabelos; para estes, é necessário um título qualquer, algum dinheiro, saber vestir-se à moda, conhecer certos prazeres, falar de óperas e cantores, mulheres e cavalos. E aí tem o senhor como se ama uma mulher bonita ou um homem de salão; ambos com os seus competentes diplomas -uma das platéias, e outro das salas. Entretanto, se o senhor desejar uma mulher verdadeiramente bonita, bonita sem artifícios, sem alvaiade, sem carmim, sem cabeleira, não a irá buscar certamente ao teatro; do mesmo modo, se o senhor quiser um homem que sirva de marido, não o deve procurar nos bailes, porque ele já não existe. Tanto aquele que trouxer para o seu lar uma étoile das rampas do teatro, como aquela que levar para casa um leão caçado ao som de valsas, sofrerá tremenda decepção.

-V. Exa. então não aceitaria para esposo um herói da moda?...

-Está claro que não. Pois eu queria lá marido para os outros?... Queria lá um marido que passasse algumas horas no lar apenas por obrigação doméstica, e viesse impressionado com a toilette da viscondessa tal, como o perfume da baronesa tal e tal, e com os amores escandalosos de todas as mulheres? Para meu marido desejaria eu um homem tão bom, que me não desse ocasião de desejar outro melhor; mas não o procuro, nem faço o menor empenho em o encontrar.

E levantando-se, observou:

-Olhe! Está terminada a quadrilha e o meu par desta valsa não tarda a vir buscar-me.

-Mas V. Exa. não respondeu à minha principal pergunta...

-Se o virei a amar?... É muito natural que não.

E separaram-se.

Gabriel só falou depois com Ambrosina em casa do pai dela, na situação em que o deixamos no capítulo anterior.

Vejamos agora o que disseram os dois neste novo encontro:

-Mas, por que faz o Sr. essa cara tão esquisita, ao saber de quem sou filha?... perguntou a linda moça, oferecendo uma cadeira a Gabriel.

-O comendador demora-se! averiguou este, assentando-se.

-Depende de nós. Meu pai recolhe-se sempre depois do jantar e não aparece antes das nove horas da noite, a não ser que alguém o procure. Podemos estar à vontade. Nem sabem até que o senhor cá está. Conversemos sem constrangimento...

-Nesse caso, vou falar-lhe com toda a franqueza. Diga-me uma coisa: A senhora, quero dizer, V. Exa....

-Não! Trate-me mesmo por Senhora.

-Obrigado. A senhora anda a par dos negócios de seu pai?...

-Valha-me Deus! Eu sei cá dos negócios de meu pai! Que posso saber eu disso?

-Não sabe então que ultimamente ele comprou as dívidas.

-As dívidas do coronel Pinto Leite? Oh! Mas isso foi um escândalo; nem há no Rio quem o não saiba. Aqui em casa não se fala noutra cousa! Porém, a que propósito vem tudo isso? O que tem o senhor com esse negócio?...

-Muito mais do que se persuade: e, uma vez que o fato já anda pela imprensa, posso dizer-lhe com franqueza que sou eu a tal pessoa que pagou ao senhor seu pai as dívidas do coronel.

-O senhor?!... interrogou Ambrosina com a mais completa surpresa. E atravessou Gabriel com um olhar penetrante que nem uma sonda. «Ele!» dizia ela consigo. E procurava descobrir-lhe alguma cousa, algum indício, por onde acreditasse nos seus consideráveis bens de fortuna.

-Sim, minha senhora; não desejava entrar nestas explicações, mas...

Então, o senhor é muito rico?...

-Um pouco, disse Gabriel, abaixando os olhos. Quanto possui?...

-Diz Gaspar que uns mil contos de réis...

-Mil contos!... repetiu Ambrosina, e transformou logo a fisionomia com um sorriso, que ela não tinha até aí dispensado a Gabriel.

Este não deu por ele, e balbuciou:

-Sou rico por acaso, sem a menor glória... herdei o que possuo de minha mãe, que já por sua vez herdara de meu pai...

-Mas, nada disso explica o que há de comum entre o senhor e o coronel, e o que o levou a pagar as dívidas de um velho idiota...

-Perdão, minha senhora, tomo a liberdade de preveni-la de que em minha presença não consinto ofenderem o coronel. Ele é pai de meu padrasto; é por bem dizer, meu avô; sem contar que lhe devo mil obrigações herdadas de minha mãe. Foi o coronel quem a esta recolheu da miséria, e quem a educou...

-O senhor, por conseguinte, pagou uma dívida de gratidão?...

Não paguei coisa alguma, minha senhora; os serviços que devo ao coronel não se podem pagar, são inestimáveis...

-O Médico Misterioso é então viúvo de sua mãe...

-Sim minha senhora; e, nem só é meu padrasto, como também é o meu único amigo, o meu confidente, o meu guia, o meu mestre!

-Que entusiasmo! E ele sabe do nosso primeiro encontro?...

-Perfeitamente. Contei-lhe tudo na mesma noite, mas sem declarar que se tratava da filha do comendador Moscoso, porque ignorava semelhante circunstância...

-E o que disse ele?

-Ligou pouca importância às minhas palavras, e afiançou-me que tudo passaria dentro de uma semana.

E passou?

-Não. Cresceu!

-Mesmo depois de saber quem é meu pai?...

-Sim, minha senhora; mesmo depois disso...

-Entretanto não seria mau esperar até ao fim da semana...

-Para quê? para convencer-me de que sou o mais desgraçado dos homens?

-Ou a mais impaciente das crianças....

-Vê! V. Exa. zomba de mim, enquanto eu...

-Vai dizer que sofre, e é exato; mas não por minha causa, sim pelos seus vinte anos, que estão purgando o idealismo absorvido durante todo o seu período acadêmico de S. Paulo.

-Pensará então que eu...

-Não me ama?... Valha-me Deus! Não disse tal! Sei, ao contrário, que o senhor me adora; me adora com fogo, com entusiasmo, com paixão, com poesia! E é justamente por isso, é porque o seu amor é forte demais, que desconfio dele. O senhor não possui em si o combustível necessário para alimentar semelhante chama durante uma existência inteira... O seu coração não é nenhuma mina inesgotável de carvão de pedra!

-Crimina-se então por amá-la demais?...

-Certamente! O homem, qualquer que ele seja só pode dar de si uma certa e determinada dose de amor; nada mais pode dar por melhor que o deseje, porque mais não tem. A grande ciência da felicidade conjugal consiste em fazer com que essa dose chegue para a vida inteira. Ora, o senhor quer dar-me toda ela de uma só vez, e eu não a quero receber por essa forma. O que não quer dizer que não aceite; aceito-o, mas em pequenas prestações. Recebendo tudo de uma vez temo fazer como os perdulários -esbanjar a fortuna e ter depois de mendigar. Para que havemos de consumir em poucos dias aquilo que nos chega para sempre?... Além de que, meu caro, o abuso traz sempre consigo a saciedade, e o tédio, o enjôo; e eu, no fim de contas...

-Aborrecia-se de mim...

-Não digo isso, mas aborrecia-me de ser amada. E esta é a pior desgraça que pode suceder a uma mulher.

-Mas então só me resta o recurso de fingir, indiferença, e amá-la em segredo, amá-la com todo o ardor da minha paixão!

-Isso ainda seria pior: além da prodigalidade, haveria o completo desperdício. Seria como se alguém para não passar por pródigo, vivesse na miséria, mas fosse às escondidas atirando fora a sua riqueza. Não! Não! Nesse caso seria melhor sorvê-la de um trago, e dar depois um tiro nós ouvidos.

-Por que se faz tão inocente e má?... Não vê que não pode haver termo de comparação entre o amor e o dinheiro? entre o coração e uma bolsa?... O dinheiro mede-se, conta-se, e o amor é indivisível. Como se pode conceber um registro para o coração?... O dinheiro tira-se do bolso quando se precisa e quanto se deseja; e o amor não! O amor sai por si, derrama-se, corre, como o sangue de uma ferida!

-Ora! Também não se pode parar o curso do tempo, nem lhe transpor as leis, e, no entanto, há quem o esperdice, e há quem o aproveite admiravelmente...

-Não! O tempo não existe; a idéia dele é toda relativa; ao passo que o amor não tem relações, nem admite leis. É um fato real; existe! Existe, que o sinto palpitar aqui dentro, não como um miserável relógio que nos mede vida gota a gota, mas louca e desnorteadamente, como neste instante! Eu te amo Ambrosina!

E Gabriel segurou-lhe as mãos com ansiedade:

-Não me repilas! exclamou; não esmague com essa indiferença e frio! Despreza-me, se quiseres, porém não me apunhales desta forma! Oh! Mas por que deixaste, meu amor, que eu te tomasse as mãos? Por que consentiste que eu me aproximasse tanto de ti?...

-Porque ainda não voltei a mim do seu atrevimento e da sua grosseria!

-E Ambrosina ergueu-se, indignada.

-Têm toda a razão... balbuciou Gabriel, abaixando a cabeça. Perdoa-me!

-Creio que o senhor disse que procurava por meu pai... Tenha a bondade de esperá-lo.

-Ouça-me um instante, por piedade!.

-Que deseja ainda?...

-Não diga a seu pai que estou cá. Não me sinto em estado de falar com ele.... Diga-lhe antes que vim para autorizá-lo a liquidar o negócio como entender. O que ele fizer será bem feito!

-Tenha a bondade de ver em que fica!

-Ambrosina! Não seja cruel!... Dê-me uma palavra, uma só! uma esperança de ser amado! Diga o que quer que eu faça!... Eu tudo cumprirei, na esperança de ser seu esposo!...

«Mil contos!» reconsiderou a filha do comendador, e sentiu um estremecimento no coração; conteve-se, porém com tal arte, que a sua fisionomia nada transpirou.

E, voltando-se para Gabriel, inquiriu com um ar firme:

-O senhor pode freqüentar esta casa?

-Posso.

-E, se encontrar oposição em seus parentes, o que fará?

-Não sei! Só sei que a amo loucamente!

-Isso não é resposta -Quero saber se o senhor tem a necessária coragem para vencer todos os escrúpulos e freqüentar os bailes de meu pai.

-E ele consentirá?

-Se eu quiser, há de consentir.

-Pois estou por tudo!

-Venha então quinta-feira. Faço vinte e três anos. O convite lhe chegará às mãos...

-E fico perdoado?...

-Não sei!

-E Ambrosina afastou-se de Gabriel, mas ficou perto do reposteiro, que apenas arredou com uma das mãos.

-Ele correu até lá e estendeu-lhe os braços.

-Adeus... disse.

-Adeus, respondeu a dissimulada.

-Nem uma palavra de esperança?...

-Eu te amo, segredou ela.

E fugiu para dentro.

Gabriel quedou-se por algum tempo estático, a olhar abstratamente para o reposteiro que se fechara sobre a bela moça. Depois, rebentou-lhe no coração uma grande alegria, e ele saiu a chorar de contentamento.

-Ama-me! exclamava, desgalgando a escada. Ama-me! Como sou feliz!

Leonardo

Ultimou-se o negócio do comendador com Gabriel, e este recebeu o prometido convite para a tal quinta-feira. Haveria baile.

-É uma loucura o que vais fazer! Observou-lhe Gaspar, quando o moço enfiava já a casaca. Convenho que Ambrosina seja uma interessante rapariga, convenho que seja bela, chego mesmo a concordar em que ela tenha espírito, e que a ames loucamente; digo e repito, porém, que uma menina, criada e educada pelo comendador Moscoso, não pode ser uma menina bem educada. O casamento, meu filho, depende principalmente da educação da mulher. Tu és o que se chama um bom partido; e ela, pelo que vejo, uma grande espertalhona. Não dou um mês a vocês dois para se amarrarem, e outro para te arrependeres!

-Mas, que diabo hei de fazer? Prometi ir ao baile!... Vá que cometesse com isso uma asneira, mas não é muito razoável querer remediar uma asneira com uma incorreção!... A verdade é que prometi ir. Ela, coitadinha! Para obrigar o pai a convidar-me, que passos não teria dado...

-Bem se vê que tens vinte e um anos! Pois acredita nisso? Não percebes que, de todos ali, o mais interessado na tua ida é justamente o comendador, esse homem do dinheiro e da vaidade? Não percebes, Gabriel, que tu representas mil contos de réis, e que aquele velho especulador não te deixará passar impunemente por entre as unhas?!

-Não! Isso não, coitado! Porque ele nem sequer me conhecia!.

-Mas conhece-te agora por intermédio da filha!

-Que juízo fazes dela, então?

-O juízo que faço de qualquer menina inteligente e mal-educada.

Nisto entrou o servente com uma carta para Gabriel.

-Alguma novidade?... perguntou Gaspar ao enteado.

-É uma comunicação misteriosa...

-Cedo principiam!

-Não traz assinatura... Lê.

E passou a carta ao outro.

Era isto:

«Meu amigo. Uma pessoa, que o estima deveras, aconselha-te todas as precauções: O senhor tem um rival formidável, que irá hoje à casa do comendador e não deseja vê-lo ao lado de Ambrosina. Não vá ao baile, se quiser evitar escândalo».

-Isso foi escrito por ela!... disse o padrasto com repugnância.

-Por ela?!

-Sim; para te obrigar a ir... Quer estimular-te o orgulho. Eu, no teu caso, servia-me dessa carta como pretexto para ficar em casa...

-Mas, se a amo!...

-É o que supões; porém a verdade é que mal a conheces.

Juro-te que...

-... Que perdeste a cabeça defronte de uns olhos grandes, de uma boca engraçada e de uns cabelos bonitos; que te deixaste enfeitiçar pela garridice de uma rapariga viva que anda à procura de noivo rico, e supões afinal que tudo isso tem alguma importância!... Mas eu te afianço que perderás a cabeça do mesmo modo defronte de outros quaisquer olhos não menos feios, e que em breve, se te afastares de Ambrosina, te esquecerás dela para sempre.

-Duvido!

-Proponho-te uma cousa: metamo-nos num carro fechado, e vamos, antes de te apresentares no baile, espiar cá de fora os passos de tua apaixonada. Talvez colhamos disso alguns esclarecimentos.

-Está dito!

E às onze horas achavam-se os dois em caminho para a casa do comendador.

O sarau principiara às dez. Havia grande concorrência e muito luxo. Como fazia calor, dançavam somente nos sabes térreos do palacete, ao lado do jardim, com as janelas abertas, o que auxiliava à curiosidade dos dois espiões.

Ambrosina sobressaía dentre a multidão de pares como verdadeira rainha da festa. Irrepreensível de elegância e dispendiosa simplicidade, trajava um vestido inteiriço de cassa branca, cujas rendas e bordados de alto gosto pareciam beber a fria doçura das pérolas em que ela trazia agrilhoados cabelos e garganta. A justeza da roupa dizia lucidamente a flexibilidade das suas primorosas formas, fazendo destacar o contorno dos quadris, a volta das espáduas e a delineação rafaélica dos seios.

Nunca estivera tão encantadora. Gabriel não lhe tirava os olhos de cima, enquanto Gaspar bocejava ao fundo do coupé.

Ambrosina vinha de vez em quando à janela, e olhava para a rua com a impaciência de quem espera alguém que se demora.

-Conta comigo! dizia Gabriel, apertando as mãos uma contra a outra.

Mas, pouco depois parou à porta do comendador um carro de gosto distinto, puxado por bons cavalos, e em seguida apeou-se um cavalheiro alto, um pouco magro, elegante, barba parisense, lunetas escuras, cabelos muito rentes.

Ambrosina, ao reconhecer o carro, estremecera.

O recém-chegado produziu sensação ao entrar no baile.

O comendador foi recebê-lo com vivo interesse, e apresentou-o logo a vários grupos. Percebia-se que o novo conviva era estranho para a maior parte das pessoas que ali estavam.

Ambrosina não voltou mais à janela.

-Era por aquele maldito sujeito que ela esperava! considerou o pobre Gabriel, cheio de agonia.

O novo personagem de resto, dera o braço à filha do comendador, e percorria as salas. Ambrosina mostrava-se radiante de satisfação.

Dançaram depois uma valsa, acabada a qual, foram ausentar-se ao terraço, conversando.

Gabriel não podia do carro ouvir o que diziam, mas pelos gestos parecia que os dois conversavam animadamente.

Alguém foi para o piano e cantou; dançou-se depois nova quadrilha, depois uma valsa. E os dois conversavam ainda no terraço.

Gabriel arquejava.

Entretanto, o belo par de Ambrosina levantou-se, e conduziu pelo braço a sua dama para o jardim.

Gabriel espichou o pescoço, e viu afastarem-se os dois, a passo descansado, por entre as árvores frouxamente tocadas de luz. Havia iluminação em torno das estátuas e dos floridos canteiros.

O venturoso par ia desaparecendo cada vez mais.

Só Gabriel percebia ainda, de vez em quando, o vulto indeciso de Ambrosina, que alvejava por entre as moitas de roseiras.

Não se pôde conter por mais tempo; apeou-se do carro, com a necessária cautela para não acordar o padrasto que dormia sobre as almofadas, e daí a pouco penetrava no jardim do comendador por um portão que havia aos fundos da casa.

Ambrosina assentara-se afinal com o seu invejado par debaixo de um caramanchão; Gabriel, donde estava podia observá-los à vontade.

Falavam de amor os dois. Ela enlevada, e ele cheio de entusiasmo; o casamento entrava na conversação como assunto já resolvido.

-És minha vida! dizia o rapaz; és toda a minha esperança! Ardia por tornar a ver-te!

-Leonardo! murmurou Ambrosina. Olha que nos podem ouvir, meu amor...

-E a mim que importa? Não tenciono porventura ligar o meu destino ao teu? Não és quase minha esposa, ou mudarias tu de intenção durante a nossa ausência?

-Bem sabes que não, mas é que ainda somos apenas noivos, e tu me perturbas com essas palavras!...

-Não me recrimines, amada de minh'alma! Há tanto tempo que não estávamos a sós!... deixa que aproveite estes fugitivos instantes para te falar de nossa felicidade.

E Leonardo, puxando para si Ambrosina, passou-lhe o braço na cintura.

Ouviu-se em seguida estalar um beijo. Um? não; era a harmonia de dois: o dele e o dela.

Gabriel, com um doido arranco, afastou a moita de roseiras que lhe ficava em frente, e de chofre se precipitou entre ambos.

-Miseráveis! exclamou.

Houve nos dois amantes um espasmo de surpresa. Ambrosina em seguida soltou um grito, fugiu para a sala.

-Quem é o senhor?! perguntou Leonardo, medindo.

-Sou o homem que ama aquela mulher! respondeu este, pálido de raiva.

-O homem não: a criança! Já tinha noticias suas. Chama-se Gabriel, é rico, deseja casar com Ambrosina e...

-E não meço obstáculos quando quero realizar qualquer cousa!

-Bem; mas nada disso o habilita para dizer-me insolências. Chamo-me Leonardo Pires de Andrade, há muito amo Ambrosina; não sou tão rico como o senhor, mas antes de partir nesta minha última viagem, fui autorizado a pedi-la em casamento. O comendador cedeu-ma ontem...

-É falso!

-Contenha-se! O senhor está fora de si. Ambrosina já me tinha prevenido dos seus rompantes...

-Senhor!

E Gabriel deu um passo para o outro.

-Ela não o quer, continuou Leonardo; disse-me com franqueza. A mim, como homem de juízo cabe-me, todavia, evitar qualquer conseqüência má do passo imprudente que o senhor acaba de dar. No fim de contas, não tenho obrigação de explicar as minhas intenções; elas são conhecidas já da família de minha noiva. É a essa família que o senhor se deve dirigir para denunciar o que acabou de colher da sua espionagem. Boa noite, meu caro senhor!

E, dizendo isto, Leonardo afastou-se rapidamente.

Gabriel voltou ao carro, e entre soluços de dor e de cólera contou a Gaspar o ocorrido.

-Nada disso me surpreende. Era caso previsto. Creio que agora mudaste de intenção a respeito de Ambrosina...

-Amo-a cada vez mais!

-Ora! isso já passa de loucura!

-Talvez, mas é a verdade!

No dia seguinte, Gabriel leu, por um prisma de lágrimas, a participação do casamento de Ambrosina, que ela própria lhe remetera.

Seria efetuado daí a dois meses, fora da cidade.

A simpática Eugênia

Vamos refluir ao ponto em que este romance principiou, vamos penetrar de novo na bela chácara em que se fez o malogrado casamento de Ambrosina; vamos, finalmente, saber o que sucedeu às cenas da loucura de Leonardo.

Mas, antes disso, antes de fecharmos este grande parêntese, cumpre esclarecer o leitor sobre os últimos acontecimentos que procederam àquela situação.

Resume-se tudo em poucas palavras:

O coronel, depois de alguns dias de prostração, expirou nos braços do filho, ao lado de Gabriel e de Alfredo. O pobre velho não foi abandonado nos seus últimos momentos, sacramentou-se, fechou os olhos com a fisionomia banhada na mais doce resignação, e a alma tranqüilamente ungida pela consolação religiosa.

Morreu como um justo.

Gaspar, pouco depois, propôs a Gabriel uma viagem à Europa. Gabriel consentiu, contanto que assistissem primeiro ao delongado casamento de Ambrosina; o outro protestou, mas afinal teve de ceder, porque o enteado não desistia uma polegada do seu intento.

-Repara que é uma tremenda loucura o que tencionas fazer, Gabriel! Lembra-te de que, um vez casada Ambrosina, nada mais tens que esperar dela!

-Deixa-me! respondeu insolitamente o moço. Faze tu se quiseres a tal viagem; eu, haja o que houver, irei ao casamento!

-E prometes partir comigo logo ao depois?...

-Prometo.

-Palavra de honra?

-Palavra de honra!

-Bem, nesse caso eu te acompanharei à casa do comendador.

A festa foi extraordinária. A casa destinada aos noivos era uma bela chácara, que se prestava admiravelmente aos caprichos do gosto e às fantasias da bolsa. Leonardo, sofrivelmente rico, não olhou despesas; o comendador, por outro lado, procurou dar o maior brilho ao casamento da filha.

E tudo saiu muito à medida dos seus desejos. Foi enorme a concorrência.

A chácara apresentava um aspecto deslumbrante com a sua caprichosa iluminação; repuxos, cascatas, alpendres, caramanchões artificiais, estátuas simbólicas, tudo estava cheio de luz ou coberto de flores.

O Melo Rosa não descansara um mês inteiro. Fora ele o encarregado de dirigir os preparativos do festejo. Durante esse tempo vivia preocupado exclusivamente com aquele trabalho. Controlava operários, copeiros, encomendava doces, tinha idéias, lembrava esquisitices de grande efeito, desenhava planos e sonhava maravilhas originais.

O Reguinho ajudava-o muito e era quem saía a fazer compras, a procurar cortinas, laçarias, estatuetas, cantoneiras e mais petrechos de ornamentação.

Foi um mês de pândega na chácara, enquanto a preparavam para o noivado. Melo Rosa conhecia vários boêmios, que entendiam de pintura e viviam por aí a trocar as pernas; carregou com eles para lá, deu-lhes de comer e beber, e os homens puxaram a valer pelas tintas e pelos pincéis.

O Melo estava no seu elemento; passava o dia a distribuir ordens e a tomar grogs, sem largar o charuto da boca.

O comendador, de vez em quando, aparecia por lá, para dar um vista d'olhos ou um sorriso de aprovação.

-Os rapazes são o diabo! dizia ele depois em casa à mulher. Olhe que revolucionaram a chácara: bandeiras, figuras, estrelas, o diabo! E o fato é que está bonito! Logo na entrada puseram um caboclo abraçando a figura de Portugal; dá na vista! Foi uma idéia feliz! Não! Tanto um como o outro têm bastante mérito.

-Como não?! disse Genoveva com um ar sério e estúpido, persuadida que o marido, naquela última frase, se referia a Portugal e ao Brasil.

Quando só faltava uma semana para o grande dia, a mulher do comendador, e o seu futuro genro, mudaram-se para a chácara com o fim de aprontarem as mesas e os aposentos dos noivos. Ficariam estes em um pavilhão cor-de-rosa, que estava uma tetéia.

Foi justamente no pavilhão, que aqueles dois rapazes mais capricharam: havia cupidos por toda a parte, pombinhos, grinaldas, fitas e borboletas. Era um bouoir de mágica, um ninho casquilho e arrebicado.

Mudaram-se também para a chácara, com pretexto de ajudarem, Ursulina e suas duas filhas: Eugênia e Miló.

Chegou, afinal, o grande dia, e tudo correu às mil maravilhas, até à hora em que os noivos fugiram para a independência feliz do seu pavilhãozinho cor-de-rosa. E viu já o leitor, pelo segundo capítulo, todas as desgraças que então se sucederam. Pois bem; vamos agora encontrar de novo os nosso pobres heróis na crítica situação em que os deixamos.

Gaspar, como vimos, fora surpreendido pelo comendador na ocasião em que socorria Ambrosina, e declarou, apesar de enxotado pelo dono da casa, que ficava no seu posto de médico; Gabriel fora recolhido a um quarto, e o noivo, tão violentamente atacado de insânia, teve de resignar-se a ser encerrado no porão da chácara.

Quem imaginaria que o homem, para quem se faziam todos aqueles deslumbramentos, havia de ser encurralado no pior lugar da casa?...

Depois de tais cenas, tudo se converteu em sobressalto e desordem. O comendador compreendeu que não dispunha de outro médico, e consentiu que Gaspar tratasse da filha; esta, porém, não queria voltar a si do tremendo abalo nervoso que a prostrara.

Da gente quedada para passar a noite na chácara, muitas pessoas desapareceram com a catástrofe e outras se achavam chumbadas à cama pelo vinho. Melo Rosa e o Rêgo eram dos últimos. Além de muito cansados, havia neles, para os inutilizar de vez, uma formidável carga de champanha.

Gaspar medicou o enteado, e voltou a cuidar de Ambrosina, cujo desfalecimento principiava a sobressaltá-lo. O comendador e a mulher encostaram-se, a chorar, no quarto da filha e esperaram pelo dia.

Ambrosina, estendida na cama, parecia morta.

Gabriel ficara só; às cinco horas da manhã, abrira os olhos e percorrera-os com um ar infeliz e resignado pelo quarto, como um ferido à espera da ambulância.

Entretanto, por detrás do seu leito, sem ser vista e sem ser ouvida, uma doce amiga lhe velava o sono, e parecia resguardá-lo com um véu de amor e de piedade.

Era Eugênia.

Leonardo havia enlouquecido totalmente, e só com muita dificuldade conseguiram alimentá-lo.

De um moço bonito e elegante que era, estava um monstro. Tinha os olhos espantados e vermelhos, o cabelo hirsuto, a boca feroz. Não admitia nenhuma roupa no corpo e passeava a quatro pés na sua prisão, soltando uivos plangentes ou bramidos de fúria.

E assim se passaram dois dias tristes e aborrecidos. Havia por toda a casa o constrangimento da desgraça. Ninguém se animava a rir e conversar livremente; ouviam-se gemidos e suspiros dolorosos, e de vez em quando os berros de Leonardo. Andavam todos espantados.

Gaspar declarou que o louco não podia ficar ali:

Ambrosina, se chegasse a ouvir aqueles berros, havia de piorar e talvez viesse a enlouquecer também. Leonardo foi com grande trabalho, conduzido para uma casa de saúde no bairro de Laranjeiras.

Gabriel convalescia à sombra dos desvelos de Eugênia.

Alguns dias depois, o médico procurou o comendador para dizer-lhe que se retirava; a sua doente estava livre de perigo, e Gabriel já podia partir.

O comendador ouviu-o com ar comovido e cheio de humildade. Súbita mudança havia ultimamente se operado nele; agora, ao contrário, parecia muitas vezes empenhado em praticar ações que o reabilitassem.

-Compreendo, disse ele a Gaspar, que o senhor esteja agastado comigo. Tem razão... Fui grosseiro e mal reconhecido aos seus serviços; peço-lhe, porém, que me perdoe e que se não vá embora por enquanto... Trate ainda minha filha, e só se despeça quando a pobre menina voltar de todo à sua primitiva saúde... Ah! Se o senhor soubesse quanto tenho sofrido nestes últimos dias... teria compaixão de mim...

Gaspar cedeu afinal, mas declarou logo que não se separaria de Gabriel.

-Ó senhores! respondeu o comendador, já reanimado. Ele ficará conosco. Longe de incomodar-nos, nisso nos dará o maior prazer... Creia-me que falo neste instante com toda a sinceridade!...

Ficaram.

Ambrosina volvia-se garrida e sã com os hábeis cuidados de Gaspar. Este quase lhe não abandonara a cabeceira até conseguir levantá-la da moléstia. Daí uma certa intimidade muito respeitosa entre os dois. A doente só o tratava por «Meu salvador», e lhe sorria afetuosamente.

Uma ocasião, pediu-lhe ela licença para lhe dar um beijo na testa. Gaspar consentiu sorrindo, com um gesto paternal.

-Olhe! disse-lhe a bela moça; desejo que o senhor seja muito meu amigo... Não calcula o respeito que me inspira a sua tristeza; pressinto por detrás dela alguma penosa recordação de amor...

Gaspar fez-se mais pálido e sombrio.

-Peço-lhe que me conte a história. Tenho até hoje ouvido falar tanto do Médico Misterioso!... Conte-ma. Suplico-lhe!

-Não. Far-lhe-ia mal...

-Porém, quando me não fizer mal... promete?...

-Está bom, prometo, mas não se preocupe com isso...

E o médico recaiu na sua habitual serenidade. Ambrosina ficou a olhar longamente para aquela fronte pálida e despojada como se interrogasse o mármore de um sepulcro.

Gabriel, entretanto, também se restabelecia quanto ao corpo, porém absolutamente nada quanto ao espírito.

À tarde saía do quarto, arrastando debilmente a sua mágoa, e ia assentar-se, sombrio, debaixo das mangueiras, ao fundo da chácara. Comprazia-se então em deixar-se penetrar pela tristeza misteriosa do crepúsculo, e ficava horas esquecidas a olhar vagamente para o horizonte, que além se atufava nas últimas matizações da luz do sol.

Uma vez achava-se aí, como de costume. Era uma tarde esplêndida. Todavia, a natureza parecia ir morrendo à proporção que lhe escapava o dia, como se lhe fugisse a alma.

Havia em tudo a sombra melancólica de uma saudade; as árvores murmurinhavam numa deliciosa agonia, e no seio da terra caíam as primeiras lágrimas da noite.

Gabriel permanecia meditativo, a cismar no seu malogrado amor. Sem se regozijar com os últimos acontecimentos, sentia não obstante certo prazer amargo em pensar no sofrimento de Ambrosina e na desgraça de Leonardo.

Ah! Ela com certeza teria mais de uma vez se arrependido da escolha que fizera!... pensava o pobre rapaz; entretanto, se o tivesse aceitado a ele para marido, como seriam agora felizes!... que bela lua-de-mel não desfrutariam ao calor amoroso daquelas tardes!...

E continuava a meditar: Que triste situação a dela!... Afinal, não era casada, nem solteira e nem viúva... Não podia ser amada e nem podia amar, pois Leonardo não dava esperanças de melhoria... Pobre Ambrosina!

E Gabriel, apesar de tudo, sentia que a amava sempre; como nunca! Sentia que aquele doido amor, longe de perecer desabrochava em novos rebentões, viçosos e verdejantes.

-Maldito! apostrofou ele; mil vezes maldito seja aquele homem, que veio despedaçar a minha felicidade!

E escondeu a cabeça entre as mãos, a soluçar. Quando levantou, viu defronte de si Eugênia. Esta o observava silenciosamente, com um olhar cheio de doçura e melancolia.

-Ah! exclamou Gabriel. Não sabia que estava aí...

-Sim, vim mais esta vez importuná-lo com a minha presença...

-Não; a sua presença só pode trazer-me esperança e resignação... Importunar-me a senhora! E por quê? por que não lhe causa tédio o infeliz que sofre e vive das suas próprias dores? Não! A senhora, que ultimamente se converteu em minha confidencial amiga, nunca será para mim uma importuna... Eu a estimo, D. Eugênia, como se foramos irmãos.

Eugênia abaixou os olhos.

-Às vezes, continuou Gabriel, tomando-lhe as mãos; quero crer que nos aproxima a simpatia do sofrimento, quero crer que nesse coração, sereno e casto, já algum dia esfuziou também a tempestade. Eu lhe tenho falado de minha vida; disse-lhe com toda a franqueza os meus infortúnios... por que não me conta a senhora os seus?... Eu os saberia compreender... Vamos! Diga-me alguma cousa dos seus segredos... Seja minha amiga.

-Não! Não lhe posso dizer cousa alguma...

-Não tem confiança em mim?

-Valha-me Deus! Tenho, o que não tenho são segredos... Vim procurá-lo aqui para lhe dizer que amanhã nos vamos embora... O senhor já é conhecido e estimado por minha família... apareça-nos...

-Meu Deus! Como está comovida!...

-Não faça caso... Adeus...

-Adeus, disse Gabriel, colhendo um ramo de miosótis. Olhe, leve estas flores, para se lembrar de mim.

Eugênia recolheu as flores ao seio, e retirou-se pensativa e triste.

Entretanto, Ambrosina presenciava esta cena por detrás das gelosias de seu quarto.

-Miserável! disse consigo mesma, num sobressalto de ciúmes. E eu que supunha que ele só a mim amasse!...

Aquele procedimento de Gabriel a revoltava e lhe doía por dentro como a mais negra das traições.

-Correspondem-se? Pois não hão de amar-se, que o não quero eu! Protestou ela de si para si.

Amo-te! Vem!

Mas na semana seguinte, um novo desastre veio revolucionar ainda uma vez a casa. O comendador caira prostrado por uma congestão cerebral, que lhe punha em risco a existência.

Andavam todos aturdidos. Ambrosina apresentava grande palidez, acompanhada de suspiros e olhares desesperançados. O comendador ia de mal a pior. Voltou logo a fazer-lhe companhia a família do negociante inglês. Do Reguinho e do Melo Rosa é que ninguém sabia dar notícias. Genoveva, essa conservava sempre a mesma inerte e carnuda resignação.

-Doutor, dizia o enfermo a Gaspar; não me abandone... O senhor não imagina a fé que me inspira!... Oh! Incontestavelmente há intervenção da Providência em tudo isto!... Quem poderia calcular que eu viesse a ter, à cabeceira da minha cama, o filho do honrado velho que persegui tão covardemente durante a vida?... O Providência, acredito agora em teus desígnios!

-Bem! Mas não esteja a mortificar-se... aconselhou o Médico Misterioso.

-Oh! O senhor deve estar plenamente vingado!... Volveu o outro; salvou minha filha, e faz agora por também me salvar a mim... Fui mau! Fui bastante mau; hoje, porém, arrependo-me de tudo, e principalmente de não haver protegido o casamento de seu enteado com Ambrosina... Tenho medo de morrer em semelhante situação!... Eram-me necessários mais alguns anos de vida, para poder deixar minha família amparada... O doutor não faz idéia do péssimo estado de meus negócios!

-Quem, ou o que, lhe fala agora em morrer, homem de Deus?..

-Nem eu sei!... Mas sinto-me mal... falta-me já a memória... faltam-me até as palavras!... Nem me lembra o que fiz hoje! Repare como tenho a língua presa... Só me lembro das maldades que cometi!...

Gaspar animava-o, dizia-lhe palavras consoladoras; mas o doente sacudia a cabeça com desânimo e fechava os olhos, gemendo.

Havia um grande mal-estar por toda a casa. A própria Emília, sempre alegre e brincalhona, nada conseguia com o seu bom humor. Gabriel falava em retirar-se; sentia-se já perfeitamente bom e não lhe convinha ficar ali.

Os olhos tristes do moço encontravam-se constanmente com os de Eugênia, e os dois ficavam a cismar.

Um dia, em que ela se encontrou mais desconsolada, Gabriel perguntou-lhe:

-O que tanto a afilge, minha amiginha? o que a faz tão muda e pesarosa?...

-Para que me pergunta? disse ela; se não me pode dar nenhum remédio?... Meu gênio foi sempre este!... Nunca fui de expansões... Olhe, se promete visitar algumas vezes minha família, pode ser que, com a convivência, venha a contar-lhe os meus segredos; mas, por agora, não lhe direi uma palavra...

O moço ficou a pensar. Que estranho era o coração daquela rapariga!... Que mistério poderia haver naquela alma quase infantil?...

E Gabriel afinal partiu.

Ambrosina, ao se despedir-se dele, estendeu-lhe a mão expansivamente e disse-lhe, arrependida e cheia de mágoa:

-Não me fiquei tendo ódio... seja meu amigo; compreenda que sou eu menos culpada de tudo o que se passou entre nós dois!...

-Ah! Se a senhora me amasse! Se me houvesse compreendido!... exclamou o desgraçado.

-E pensa que não?... Só eu sei o que sofri por sua causa!...

Gabriel segurou-lhe as mãos.

-Então ainda me ama?! Responda!

-Mais tarde o saberá... por enquanto, ausente-se de mim... Adeus.

E fugiu.

Gabriel meteu-se lá fora no carro com o coração a saltar-lhe num grande alvoroço. Depois das palavras de Ambrosina, tudo em volta dele se alegrou e sorriu.

E pelo caminho de casa ia fazer cálculos de felicidade, mas a sinistra figura do doido aparecia-lhe nos sonhos como um demônio a cabriolar no paraíso.

-Ora! concluía ele; o essencial é que ela me ame!...

E estalava de contentamento quando chegou à casa.

No dia seguinte, o comendador expirou. Porém antes de morrer, encarregou a Gaspar de obter do pobre Alfredo o perdão do muito mal que lhe havia feito; e pediu ao marido de Ursulina, o esplenético negociante inglês que admitisse o infeliz como empregado no seu escritório comercial.

A morte do comendador dissolveu o grupo que se tinha formado em casa dele. O inglês e a família retiraram-se; Gaspar fez o mesmo, e a viúva mudou-se pouco depois, com a filha para o palacete da cidade.

Tratou-se do inventário e, com pasmo geral, chegou-se à conclusão de que o comendador, tão opulento em vida, nem só não deixara bens, como ainda ficara devendo duzentos contos de réis à praça.

Os credores caíram logo sobre a viúva e lançaram mão do que puderam. Só lhe ficou uma casinha no Engenho Novo, que havia sido comprada em nome da filha.

Mãe e filha mudaram-se para lá.

Ambrosina, porém, não se queria conformar com semelhante miséria.

-No fim de contas, argumentava ela, sou casada com um homem remediado de fortuna e não devo levar esta vida quase de privações. Não tenho culpa de que meu marido enlouquecesse. O curador faz-me dar uma mesada, que mal chega para acudir às primeiras necessidades! Sebo!

E parecia que ia repetir a frase do Reguinho.

A mãe ouvia-a com um ar tolo; tudo aquilo para a pobre mulher era negócio complicado.

Todavia, Gabriel, por esse tempo, freqüentava a família do Sr. Windsor.

Windsor é o negociante inglês, marido de Ursulina. Este inalterável homem tomara afeição a Gabriel, e via com bons olhos a inclinação de sua filha Eugênia pelo rapaz.

Gabriel aparecia-lhe regularmente duas vezes por semana, para o chá. Fazia-se então palestra à roda da mesa ou fazia-se música no salão.

Eram aqueles serões tranqüilos e confortadores. Eugênia, às vezes, cosia ou bordava, e Gabriel assentava-se ao lado dela, esquecido a olhar para o movimento da agulha ou para os olhos da rapariga, abaixados sobre a costura.

-Creio que já lhe mereço alguma confiança, disse-lhe ele em uma dessas vezes; por que não me revela os seus segredos?...

-Não os tenho... respondeu ela, sem levantar os olhos.

-E contudo, observou Gabriel, há muito de misterioso e triste em todos os seus gestos... Diga-me a verdade!... Às vezes uma revelação uaviza os nossos pesares...

-Não, nunca lhe direi uma palavra... é exato haver cá dentro um motivo de desgosto, mas esse motivo nunca será denunciado por mim... Eu o confessaria francamente, no caso que o senhor o descobrisse... porém, declará-lo eu... isso nunca!

-Minha amiga!...

-Não insista. Aqui, onde me vê, feia e pobre, também tenho o meu bocadinho de orgulho...

-E se eu adivinhasse o seu segredo? se eu descobrisse o que a faz mergulhar assim nessas indefinidas tristezús?... Diga-me: confessaria tudo?

-Sim, já disse que sim...

-Mas eu tenho receio de enganar-me... Às vezes supomos distinguir aquilo que desejamos ver, e essa ilusão é uma felicidade que se desfaz ao tentarmos alcançar a bela miragem!...

Gabriel calou-se por algum tempo; depois, aproximou mais a sua cadeira da de Eugênia, debruçou-se para ela e acrescentou quase em segredo:

-Se soubesse como sofro!... Nem mesmo sei explicar o que sinto... São desejos vagos e incompletos, um querer sem vontade, um desejar sem ânimo, um aspirar sem destino e sem coragem. E contudo, sinto que me falta alguma cousa... Se me perguntarem o que é não saberei responder; mas sinto necessidade de dedicar-me a qualquer idéia, a qualquer cousa. Preciso de um ideal que ocupe a minha atividade, que exija os meus sacrifícios, que me anime, que me estimule. Ah! E venham falar-me ainda nos encantos da mocidade, nos risos dos vinte anos... Não! Nada disso existe! Sou moço, rico, tenho vigor e saúde, e, no entanto, sofro, sofro muito! Sinto a existência pesar-me sobre as costas como um castigo!

Eugênia, que o ouvia de cabeça baixa, ergueu-a docemente, com um sorriso.

-É justamente porque nada lhe falta, que o senhor se aborrece e não aprecia a existência... disse ela. Tivesse, como outros, de trabalhar para viver, e os seus dias correriam alegres e ligeiros. Como quer o senhor gostar da existência, quando nem sequer conhece?... A vida consiste no esforço, no trabalho, na dedicação e no sacrifício. O senhor nunca experimentou nenhum desses gozos, que entretanto são os únicos verdadeiros. Quer ouvir um conselho?... Ame e trabalhe, dedique-se a alguém e a alguma cousa, constitua família e forme a sua responsabilidade de homem. Sem essa resolução, o senhor há de sentir sempre o mal de que se queixa, e nunca poderá ser feliz.

-Bem! Pois vou então falar-lhe com toda a franqueza; vou abrir-lhe o meu coração, para que a senhora escolha e guarde o que nele houver de aproveitável, e lance fora o resto...

Eugênia estremeceu e largou o trabalho que tinha entre mãos. Gabriel aproximou ainda mais a sua cadeira, e fitou os olhos da rapariga, postos agora tranqüilamente à espera.

Estavam transparentes, infinitamente doces, e via-se no fundo deles brilhar o sorriso de uma esperança.

Houve entre os dois moços um idílio instantâneo e mudo, precursor do «Amo-te!» sagrado.

Nesse momento, porém, entrou o Sr. Windsor, que os buscava para a cerimônia do chá.

Gabriel prometeu a Eugênia fazer-lhe no dia seguinte a suprema revelação prenunciada. Iria visitá-la expressamente para este fim.

Mas, nessa mesma noite, ao entrar em casa, o criado entregou-lhe uma cartinha perfumada e cor-de-rosa.

O moço abriu-a, e leu:

«Gabriel. Não queria procurar-te. Tencionava nunca mais te ver, nem te falar. Não posso! A porta do jardim ficará aberta durante a noite. Às onze e meia já todos os de casa estarão recolhidos... Amo-te! Vem!

Ambrosina»

Gabriel leu o bilhete de Ambrosina, uma, quatro, vinte vezes.

Aquelas duas últimas palavras, breves, quentes e palpitantes, faiscavam-lhe no cérebro: «Amo-te Vem!»

-Que harmonia! Que música! Como lhe soavam agradavelmente ao coração aquelas notas feiticeiras! «Amo-te! Vem!»

Um paraíso em duas palavras! Um mundo de delícias! Um rosário de venturas!

-Como sou feliz! Como sou feliz! Exclamava ele, incendiado pelas duas palavras de fogo.

Possuir Ambrosina! amá-la e ser amado por ela! tê-la ao alcance da mão, ao alcance dos braços, ao alcance da boca!... Oh delírio! Oh supremo gozo!

Gaspar achava-se nessa ocasião à cabeceira de um doente em Petrópolis, e a Gabriel quadrava esta circunstância, porque lhe permitia saborear mais à vontade aquele alvoroço do seu amor. Era a primeira vez que não sentia vontade de comunicar um segredo seu ao padrasto. É que Gaspar, com certeza, acharia mau tudo aquilo, e privar-se Gabriel da felicidade sonhada, seria privar-se da própria vida.

Despiu-se cantarolando; acendeu um charuto e deitou-se de costas na cama, a olhar para o teto, e a ler no espaço estas palavras:

«Amo-te! Vem!»

Eram escritas por ela... por Ambrosina! Por aquela bela mulher de cabelos perturbadores, de olhos ardentes e sombrios, de boca vermelha e dentes brancos! Eram dela! E nessas duas palavras estava toda a sua alma e estava todo o seu sangue!

Sim, era Ambrosina, que lá da sua alcova lhe bradava com delírio: «Amo-te! Vem!»

E as duas palavras o invadiram e se gravaram no espírito dele, como dois pontos luminosos, duas estrelas brilhantes, que o iluminavam todo por dentro.

E as duas estrelas iam despejando-lhe no ânimo d'lma uma aluvião de sorrisos de amor, de beijos e de abraços apertados. E quanto mais despejavam, mais tinham elas que despejar. Eram novas carícias, que se atropelavam, que se confundiam, tomando-lhe a respiração, escaldando-lhe os sentidos.

Gabriel soprou a vela, e fez por adormecer. Aninhou-se na cama, enterrou a cabeça nos travesseiros; mas as duas irrequietas estrelas lá estavam a luzir, a luzir, a repetir: «Amo-te! Vem - Amo-te! Vem!»

E de novo lhe perpassavam pelo espírito, em uma torrente vertiginosa, todos os encantos de Ambrosina; interminável e palpitante desfilar de ombros despidos, cabelos soltos, peitos trementes, olhos requebrados e lábios insaciáveis. E tudo isso lhe rodava por dentro pondo nele alucinações de febre e fazendo-o desabar fundo num inferno de desejo vivo, ou alçar-se para o nirvana de um inconscientismo de loucura; mas aqui ou ali, no vermelho ardor da extrema excitação sensual, ou no opalino vácuo do alheiamento produzido pela fadiga da insônia, lá estavam as duas implacáveis palavras de fogo, a saltar num frenesi macabro, a cuspir-lhe na pólvora do sangue faíscas de luxúria.

«Amo-te! Vem!»

Gabriel queria reagir, lutar; voltava-se na cama, procurava amarrar o espírito a outros assuntos; quando, porém, dava por, si via-se inda uma vez calculando como não seria bom tomar Ambrosina nos braços, cobri-la de beijos, amá-la toda inteira, de um só trago como se o desejo dele fosse um mar em que ela mergulhasse nua.

-Diabo! exclamou, saltando da cama. Não posso dormir!

Foi à janela e abriu-a.

-O quê?! Pois será possível que esteja amanhecendo?!...

O céu branqueava às primeiras irradiações do sol. A natureza parecia ainda estremunhada de sono. As árvores espreguiçavam-se bocejando, os pássaros cumprimentavam o dia com um hino matinal.

Gabriel olhou vagamente para o espaço. A insondável tranqüilidade da aurora invadiu-lhe o espírito, deixando-lhe a porta escancarada; e logo uma loura imagem, castamente risonha, entrou sem-cerimônia por ele, a perguntar, cruzando graciosamente os braços:

-Então, meu amigo, quais são as belas cousas que o senhor ficou de dizer-me hoje?... Vamos! Eu de cá não saio sem saber quais são elas...

-Eugênia! exclamou Gabriel, como se a pobre menina estivesse realmente defronte dos seus olhos.

E fechou a janela para não a ver, tanto lhe atormentava a consciência aquela meiga e resignada figura de cabelos louros.

Em vão o esperaria Eugênia à noite desse dia em casa, costurando a um canto da sala de jantar; as tais lindas cousas que Gabriel lhe tinha a dizer, ela nunca chegaria a ouvi-las.

A casa dos amantes

Às onze e meia da noite, horas marcadas para a entrevista, já Gabriel passeava defronte das janelas de Ambrosina.

Deu meia-noite. Nada.

Gabriel sentia-se impaciente e sofrego, uma agonia formava-se-lhe no coração, tal era a sua ansiedade. O menor mexer de galhos, o rojar de um inseto, tudo lhe fazia adivinhar um vulto branco, de mulher, que ia atirar-se-lhe nos braços.

Mas o vulto vinha, e ele ficava a imaginar como se apresentaria Ambrosina; quais seriam as suas primeiras palavras, a expressão da sua alegria, o perfume do seu corpo. Ela se lhe atiraria nos braços?... a beijá-lo, a dizer-lhe: «Amo-te! Vem... entra para minha alcova! Tu és a minha felicidade, o meu amor. Vem! aqui me tens! Sou tua! ama-me com todo o ardor dos teus vinte e dois anos!?...»

E ele, arrastado pela imaginação aos aposentos da mulher amada, sonhava-se já em todas as atitudes venturosas do prazer, quando uma pancadinha no ombro lhe fez voltar a cabeça para trás. O coração bateu-lhe logo mais apressado. Era ela.

-Oh! Enfim! disse Gabriel, sem ter ainda voltado a si de todo.

Ambrosina não deu uma palavra e foi sentar-se, sem o menor sobressalto, em um banco do jardinzinho, ao lado da casa.

Estava toda vestida de negro, ainda por luto do pai. Vinha de galochas, por causa da umidade e para não fazer rumor com os pés, e trazia no peito um ramo de violetas, que espalhavam em redor dela um cheiro bom e penetrante.

Gabriel quis dar-lhe um abraço.

-Devagar!... Opôs-lhe a rapariga, safando-se-lhe das mãos. E se continua desse modo, previno-o desde já que me retiro. Se quiser que fique, há de respeitar-me como até agora!

-Mas...

-Não admito réplica! Autorizei-o a vir cá, porque o amo, como lhe disse; tanto que estou resolvida a mudar de situação. Mas, antes de tudo, quero saber quais são as suas intenções a meu respeito...

-De concordar com tudo o que lhe parecer.

-Então, pensemos maduramente: Eu o amo, e uma vez que descobri este segredo, que me não devia escapar dos lábios, confesso que só ao senhor amei até hoje, e que me seria muito penoso ter de esconder para sempre semelhante amor...

-Minha Ambrosina!...

-Espere! disse ela, afastando a mão de Gabriel prestes a empolgar-lhe a cintura, e retomou friamente o fio das suas considerações. Infelizmente, porém, não nos podemos unir pelos laços legais, porque sou casada; estou, entretanto, resolvida a esquecer totalmente a peste de meu marido, rejeitar a mesada que em nome dele me dá o curador....

-E...

-E fazer-me sua. Quer?

-Se quero, meu amor!...

-Pois bem; nesse caso, procure uma boa casa onde possamos esconder decentemente a legalidade da nossa ternura, prepare-a com o luxo e conforto correspondentes à minha educação: e se estiver o senhor, além disso, resolvido a fazer por mim os sacrifícios que faria se fosse meu marido, serei sua, inteiramente sua, para toda a vida. Serve-lhe?...

-Se me serve!...

-Então, é tratar da casa; pronta esta, eu o acompanharei.

-Obrigado! Obrigado! disse Gabriel num transporte de alegria. Como sou feliz! Deixe dar-lhe um abraço!

-Não! Por ora... nada! Vá-se embora.

-Suplico!

-Nada! Nada!

-Então, meu anjo?!...

-Solte-me! Ou desisto de tudo o que disse!

-Má!

-Adeus, adeus.

-Ingrata!

-Está bom! Tome lá um beijo, mas é dá-lo e pôr-se a caminho!

E Ambrosina estendeu os lábios ao futuro amante, que se precipitou sobre eles como se os fora devorar.

-Está bem! Basta! disse ela... até à volta.

E desapareceu.

Ele saiu de lá quase a correr, mal acompanhando todavia a andadura do seu coração, que galopava.

O resto da noite passou-o todo a pensar, a sonhar com os deslumbramentos da sua futura existência de amor.

Gaspar demorava-se em Petrópolis.

Às dez horas da manhã do dia seguinte, já Gabriel ganhava a rua, mas sem saber ao certo por onde principiar a pôr em prática as ordens da sua dama. Estava indeciso. Como não tinha experiência da vida, nem hábito de trabalho, tudo para ele era dificuldade.

Em primeiro lugar, urgia descobrir uma boa casinha, meditava, procurando dar direção ao seu raciocínio. Ora, em qual dos arrabaldes devia ser?... Eram tantos!... Diabo! Ela devia ter escolhido o lugar!...

-Adeuzinho, doutor! gritou-lhe o Melo Rosa, que passava nessa ocasião, com um ar de atividade.

Isto era na rua do Ouvidor. Gabriel chamou-o. interessado.

-Venha cá! Como vai? Você é quem me podia fazer um favor!....

-Homem, filho! Ando muito cheio de serviço... tenho afazeres até aqui!

E o Melo mostrava a garganta.

-Sim, mas é cousa que se pode decidir em palavras. Você onde vai agora?...

-Almoçar, e depois...

Nesse caso, almoce comigo, e durante o almoço conversaremos.

Os dois tomaram a rua do Teatro e meteram-se num gabinete particular do hotel Paris. Melo encarregou-se do menu.

-Imagine que eu, segredou-lhe Gabriel, preciso preparar uma casa em regra para...

O Melo largou tudo de mão, dominado por essas palavras.

-Vais casar?... perguntou ele, fitando Gabriel por cima das lunetas.

-Pouco mais ou menos... disse o interrogado.

-Compreendo, compreendo! Queres tomar à tua conta alguma rapariga, e para isso é preciso um ninho perfumado... uma boceta de guardar jóias!...

-Mas é uma cousa com pressa... observou o outro.

-Isso é o que menos custa; se é que estás resolvido a puxar pela bolsa!...

-Decerto.

-Então, posso encarregar-me de tudo. Onde queres a casa?...

-Em qualquer arrabalde, com tanto que seja bonita, nova e em lugar aprazível.

-Daqui a pouco, teremos a chave, prometeu o outro, e sem lembrar mais das suas supostas ocupações desse dia. Sei de um chalezito recém-concluído, que está a pintar para o caso!

E os dois, mal acabaram de almoçar, tomaram uma vitória e seguiram para Laranjeiras.

Gabriel continuou pela viagem os seus cálculos de felicidade, e Melo Rosa principiou os seus de especulação.

«Isto é negociozinho para render alguns cobres pensava este último. O tipo é muito peludo e está impaciente por lançar à rua uns bons pares de contos de réis... é uma mina! O que convém é ganhar-lhe primeiro a confiança; o resto fica por minha conta».

E voltou-se para Gabriel, dizendo-lhe:

-Com quê! Te vais meter em uma lua-de-mel... hem, maganão?...

-É exato, respondeu o outro, nadando em contentamento.

-Estás que nem te podes lamber de contente.

E com um ar mais sério:

-Que tal é ela?...

-Para mim - a mais bela das mulheres!

-É conhecida por cá?...

-Não!

-Então chegou há pouco?...

-Qual! É daqui mesmo. É rapariga de família...

-Ah! exclamou o outro com um vislumbre; é a Ambrosina!

Gabriel olhou-o de frente:

-Como sabe?!...

-Ora, que pergunta! Uma vez que é de família e vai morar contigo, não pode ser outra.

E, fitando o banco fronteiro da carruagem:

-Sim senhor! Boa mulher! Parabéns!

Daí a pouco, Gabriel passava às mãos do Melo todo o dinheiro que preventivamente trouxera consigo; e dentro de algumas horas principiavam já as andorinhas a conduzir os primeiros móveis para a futura residência dos dois amantes. Melo Rosa mostrava-se de uma solicitude admirável; tinha grande prática daquele serviço, e sabia onde se vendiam as mais caprichosas fantasias para uma instalação de amor caro.

Depois de fazer compras e encomendas, muniu-se de três homens e meteu-se na casa a trabalhar. Pôs-se logo em mangas de camisa e a dar ordens para a direita e para a esquerda.

-Olha, estouvado! gritava ele a um trabalhador; Vê lá como pegas nesse espelho! Olha que isso não é de ferro, bruto! Abaixa! mais ainda! gritava para outro lado. Não machuques essas flores! Cuidado, animal!

E a casa ia já se transformando em uma habitação de prazer e luxo. Era uma chacarazita com seu prédio novo, todo pintadinho e forradinho de fresco. Presta-se maravilhosamente para o fim desejado.

Gabriel acompanhava o serviço com frenético prazer. O diabo era que a casa de saúde em que recolheram Leonardo ficava por ali cerca, e tal vizinhança não produzia bom efeito no ânimo do namorado de Ambrosina.

Às sete horas da noite veio o jantar que Melo encomendara a um hotel, e os dois rapazes, à luz do gás, comeram e beberam intimamente, como se foram velhos camaradas.

Gabriel tornava-se expansivo, palrava com entusiasmo da sua amante; mas pedia reserva ao outro. Era necessário que não se falasse nisso por aí!...

Melo prometia e mostrava-se interessado, como se se tratasse da sua própria felicidade.

Ah! Ele haveria de aparecer... Não! Que umas certas pândegas queria ele mesmo organizar!

E, todo cheio de intenções, de projetos, de planos de prazer, falava de cousas ruidosas, alegres, retumbantes de riso e champanha. Lembrava no gênero ceias esplêndidas, de grandes orgias, de cuja iniciativa lhe cabia a glória, e citava, com assombro, nomes de famosas mulheres e libertinos célebres do Rio de Janeiro.

Três dias depois, dirigia Gabriel à Ambrosina um bilhete, declarando:

«Está tudo pronto; só falta a tua presença».

E por galanteria, escreveu embaixo: -«Amo-te! Vem!»

Espólio do comendador

Genoveva, no outro dia, deu por falta da filha.

Ambrosina deixara sobre a cama um cartão seu com as seguintes palavras:

«Se me desejar ver, pode procurar-me nas Laranjeiras, rua tal, n. tal». Dizia o número da casa e o nome da rua.

A pobre mãe esteve por perder a cabeça. Pois seria concebível que Ambrosina lhe fugisse, daquela forma, de casa?!...

Vestiu-se, saiu, tomou um tilburi, e deu ao cocheiro o número indicado.

Veio abrir uma francesa:

-Voulez-vous parler à madame? perguntou esta, Genoveva abaixou os olhos e disse:

-Quero falar à minha filha...

A francesa retirou-se, e voltou logo para abrir a sala.

A viúva do comendador sentiu-se constrangida em meio da opulência arrebicada e impudica daquela instalação; tapetes, móveis, quadros, tinha tudo um certo caráter leviano, certo ar de vida de atriz moça e bonita, que tresandava a escândalo.

Daí a pouco apareceu Ambrosina. Vinha um tanto abatida, porém de bom humor.

-Então o que quer dizer tudo isto?! perguntou-lhe a mãe.

-O que vê!...

-Mas com quem moras aqui?

-Com Gabriel.

-Teu amante!...

-Sim, porque não pode ser meu marido.

-E por que então não te casaste com ele?

-Sei cá! Porque me casei com outro! Sabia lá que ali estava um doido furioso?...

-E este rapaz tenciona acompanhar-te sempre?

-Ainda não pensei nisso.

-E se ele te abandonar?

-Que abandone!

-E sabes tu o que isso será?

-Perfeitamente, e não falemos mais em tal. A «senhora ponha-se à vontade; dê-me a sua capa e o seu chapéu. Fica conosco para o almoço, não?

-Não! Não posso ficar; não desejo encarar com o teu amante...

-Ainda está dormindo.

Gabriel, com efeito, dormia, fatigado pela felicidade da noite. Fora uma singular noite de núpcias. Ambrosina era virgem, mas sabia já, por instinto, por índole, por inata perversão, todos os segredos do amor sensual. Entregou-se com arte, com talento. Ele, porém, amou-a com toda a dignidade de um noivo; amou-a convictamente, sentindo orgulho em possuí-la, cercando-a de ternuras respeitosas e de solicitudes de amigo.

Supunha-se o infeliz deveras amado e sentia-se pronto a depor nas mãos da amante todas as suas esperanças e todo o seu futuro.

-O Leonardo, calculava ele, mais cedo ou mais tarde, desaparece, e eu caso-me com Ambrosina. Ela será minha esposa, minha família, a mãe de meus filhos!

Foi com estas palavras, repetidas pela filha, que Genoveva serenou um pouco e prometeu, ao retirar-se, freqüentar a casa de Gabriel.

Entretanto, a pobre mulher, tempo depois, curtia o tédio do seu isolamento a aviar uma costura que tinha em mão, quando a campainha do jardim deu sinal.

Foi ela mesma abrir. Era o Alfredo, o empregado público demitido.

Estava outro o diabo do homem. Desde que Gabriel o socorrera, e o sr. Windsor, a pedido do comendador, o empregara no seu escritório comercial, voltaram-lhe os antigos hábitos de ordem e de asseio. Já não era o mesmo Marmelada; vinha escanhoado, com a camisa irrepreensível, bota engraxada e a sobrecasaca limpa.

Genoveva recebeu-o com uma amabilidade triste e compungida. Depois das extremas palavras do comendador a respeito do pobre viúvo de Ana, ela o tratava com atenção quase religiosa, como quem cumpre um dever sagrado. Tinha-lhe estima e respeito, gostava de vê-lo com aquele ar austero e metódico, a falar pausadamente sobre assuntos sancionados pela moral pública.

-Sente-se para cá, senhor Alfredo. Aí corre muito vento; pode fazer-lhe mal... Dê-me o seu chapéu. Eu vou trazer-lhe uma xícara de café.

Alfredo agradecia, limpando com o lenço o suor da testa. Desculpava-se por estar dando incômodo, e queixava-se do calor.

-Ah! Não se pode respirar! confirmava Genoveva, assentando-se defronte da visita.

E tomando uma posição mais descansada:

-Ora, até que finalmente o senhor Alfredo se lembrou de aparecer aos amigos!...

Ele estava sempre ocupado! O serviço do senhor Windsor não lhe deixava pôr pé em ramo verde; mas agora tratava-se de um negócio um tanto melindroso... Sim! A cousa era delicada! Era!

Genoveva assustava-se.

-Que notícias me dá a senhora de sua filha e do Gabriel?...

-Uma desgraça, senhor Alfredo! Uma verdadeira desgraça! Parece que temos má estrêla; nunca vi assim uma enfiada de caiporismos! O senhor já sabe que o Gabriel me carregou com a pequena?...

Desconfiava disso, minha senhora.

-Pois é exato...

E Genoveva contou minuciosamente o ocorrido.

-O que lhe posso afiançar, disse Alfredo, é que aquilo é um rapaz de conta, peso e medida. Creia, D. Genoveva, que, se ele não se casa com a senhora sua filha, é porque a senhora sua filha é casada...

-Não é dele que tenho receio, senhor Alfredo, é dela! é daquela cabecinha de vento, que não pensa no dia de amanhã. Ah! Quando me lembro que posso ficar totalmente desamparada, sinto vontade de morrer!...

E Genoveva tinha lágrimas a espiar-lhe pelo canto dos olhos.

-Sossegue, minha senhora, não há de ser assim. Deus não permitirá semelhante cousa!...

-Ora, o quê! disse a viúva com desconsolo. Agora tudo são rosas para ela; mas, em breve, as cousas mudarão... Como sabe o senhor, com a morte do meu defunto comendador, ficamos sem nada; só nos deixaram por muito favor, esta casinha, estes trastes e uma escrava, tão velha, que bem pouco terá de vida. Comíamos com a mesada que o curador nos entregava por parte de meu genro. Ora, depois que Ambrosina se meteu com o Gabriel, foi-se a mesada, e eu... veja o senhor isto!... eu sujeitar-me a receber uma pensão correspondente das mãos do amante de minha filha!

E Genoveva concluiu, muito comovida:

-É duro! É duro, senhor Alfredo, para quem estava habituada a passar de certo modo e a não conhecer necessidades!

-Mas o que quer a senhora? disse o viúvo, em tom de condolência. O que ninguém pode negar é que houve em tudo isso uma grande dose de fatalidade. Quem poderia esperar que o Leonardo enlouquecesse, e desse modo inutilizasse a pobre menina para outro casamento?... Ela, é moça, bonita, instruída; pelo jeito gostava do Gabriel, que, de sua parte, é rico e um rapaz às direitas; encostou-se a ele. Se as nossas leis fossem outras, os dois se casariam; mas as nossas leis não consentem... Queixe-se de nossas leis, Sra. D. Genoveva!

-Eu me queixo é da sorte, senhor Alfredo. Olhe que sempre somos muito caiporas!.

-De hora em hora, Deus melhora! Sentenciou gravemente o viúvo. Não desespere, D. Genoveva, não desespere! Quem mais do que eu teve motivos para perder o ânimo?...

E Alífredo levantou-se. Eram horas de se ir chegando...

-Então o quê, já vai? Que pressa!...

-Estou já informado a respeito do Gabriel...

-Mas, era só isso o que o senhor queria saber? Não disse também que tinha uma comissão delicada?...

-Ah! Sim, mas fica tudo resolvido com o que a senhora me declarou.

-Meu Deus! Quanta reserva!... Por que não se abre por uma vez, senhor Alfredo?... O senhor assusta-me!

-Bem, nesse caso, vou falar-lhe com franqueza.

E Alfredo tornou a sentar-se.

-Desde que me acho empregado na casa do senhor Windsor, confidenciou ele, tive a fortuna de merecer, tanto deste como de sua família, toda a confiança e até estima. Ora, eu, que sempre fui reconhecido aos meus benfeitores, tornei-me para aquela gente um amigo dedicado e sincero. Por outro lado, devo grandes obrigações ao Gabriel, que foi quem me tirou da miséria e do abandono em que vivia. Pois bem, depois daqueles tristes acontecimentos na noite do fatal matrimônio da senhora sua filha, Gabriel teve ocasião de conhecer a D. Eugênia, filha mais velha de meu patrão, e desde logo nasceu entre os dois moços uma forte simpatia, que em breve se transformava em amor. Creio que chegaram a falar em casamento... Tudo isto, como vê a senhora, é muito natural e nenhuma conseqüência má teria, se não fosse o Gabriel haver passado a freqüentar regularmente a casa do patrão, avivando desse modo, no coração de D. Euzênia, as esperanças que ele próprio lá plantara...

-E daí?...

-Daí, é que a pobre menina se habituou a vê-lo, a falar-lhe, naturalmente tiveram de parte a parte os seus sonhos de felicidade; mas de repente, Gabriel desaparece, D. Eugênia, a principio apenas ressentida, foi pouco a pouco se entregando a uma tristeza profunda e doentia, até que ultimamente lhe sobreveio tosse acompanhada de febre, e ela, coitadinha! Não come, dorme muito mal e há dois dias, enfim, que está para decidir!...

Genoveva olhava-o com um ar aflito.

O patrão ontem chamou-me em particular, e disse-me com os olhos cheios de água: «-Alfredo, estou com medo de perder minha filha mais querida! O médico declarou já que ela só o que tem é muita debilidade e melancolia, mas que pode vir a ser, de um momento para outro, atacada do peito. Ora, eu bem sei que a Eugeniazinha está desgostosa com a ausência do Gabriel... Tu me falaste várias vezes nesse rapaz e sempre lhe encareceste as qualidades... Pois então vai por aí; indaga a respeito dele, e vê se trazes alguma boa notícia para minha filha... Eu conheço bem aquela cabecinha!... Eugênia é muito orgulhosa; é muito capaz de deixar-se morrer, sem soltar uma queixa, nem derramar uma lágrima!...»

-Pobre menina! suspirou Genoveva.

-Eu fiquei sufocado com o que me disse o patrão, continuou Alfredo; mas, nesse mesmo dia, ao visitar D. Eugênia no se quarto, prometi que lhe havia de levar notícias do Gabriel. Ela, coitadinha! Olhou-me com toda a calma e respondeu-me, sacudindo os ombros indiferentemente: «-Não, não é preciso... ele mora nas Laranjeiras com Ambrosina». Esta notícia tirou-me a luz dos olhos; não pude dar mais uma palavra, e cá estou para saber ao certo o que há!

-Pois D. Eugênia não se enganou, disse Genoveva, a olhar tristemente para a sua saia de paninho preto. É exato! Ambrosina mora com Gabriel...

Alfredo levantou-se de novo para sair.

-Foi uma desgraça!... repisava a viúva do comendador, acompanhando-o até à porta. Foi uma grande desgraça! Faça o senhor idéia da vida que não levo eu aqui entre estas quatro paredes!... Então é chegar a noite, meu Deus! fico tão triste, que me ponho a chorar até dormir. Ando nervosa!... não tenho ânimo de sair da sala de jantar, onde trabalho! Qualquer rumor faz-me ficar a tremer; ponho-me a cismar em quanta asneira me vem à cabeça! Parece-me que vão aparecer ladrões para me matarem, ou suponho ver o espectro de meu defunto marido! Fico num estado de causar dó!

-Tudo isso são nervos, dizia Alfredo.

E aconselhava à Genoveva que todas as noites, antes de dormir, tomasse água de flor de laranja. Ele havia de aparecer-lhe mais amiúde...

-Venha! Venha conversar à noite. Jogaremos a bisca... O senhor é só e não tem que fazer a essas horas... se há de ficar em casa, a olhar pro tempo, venha antes para cá dar dois dedos de cavaco. Olhe, venha amanhã!

-Pois sim, prometeu ele, e saiu.

No dia seguinte, voltou à noite.

Genoveva estimou muito esta nova visita. Os dois viúvos conversaram largamente sobre o passado, falaram de Ambrosina, de Gabriel e de Eugênia. Alfredo retirou-se às dez e meia, depois de tomar chá com torradas.

A pobre senhora não chorou essa noite e acordou menos nervosa no outro dia.

Alfredo repetiu a visita; ao fim do mês, já estas se tinham convertido, para ambos, em um hábito feliz. Genoveva dava-lhe chá todas as noites. Ele mostrava-se reconhecido a esse galanteria, levava-lhe quase sempre alguma gulodice.

Um dia reparou que Genoveva tinha um pescoço roliço e uns dentes muito sãos. «-Devia ter sido um mulherão no seu tempo!» considerou ele. E o fato é que, desde logo, principiou a notar que a viúva estava bem frescalhona. E, sem querer, demoravam-se os dois a olhar mais expressivamente um para o outro.

Chovia muito uma noite, e às onze horas a tormenta recrudesceu de modo atroz.

-Foi o diabo esta chuva! dizia Alfredo, a pensar no seu romantismo.

-Temos aí o assado do jantar e uns camarões frescos, lembrou Genoveva.

E, como a criada se retirava às oito horas, andou ela mesma à cozinha para preparar a ceia; depois, a conversar, a rir, estendeu a toalha, e foi buscar uma garrafa de vinho que guardava reliosamente ainda do seu tempo de casada.

-O defunto tinha ciúmes destas garrafas... observou a viúva, a limpar as teias de aranha de uma delas com o guardanapo. Foi presente que lhe veio da terra... Uma delícia!

Alfredo sentia-se bem.

A noite estava fria, a sala fechada, a toalha da mesa era de linho claro e cheirava aos jasmins da gaveta, a fritada de camarões enchia o ar de um aroma quente e picante.

-E a verdade é que tenho bom apetite! confessava Alfredo, a abrir com mil cuidados a velha garrafa do defunto comendador.

-Ora! A gente em companhia sempre é outra cousa! disse Genoveva, expandindo a sua satisfação.

E assentou-se, garrida, defronte do conviva.

A chuva continuava lá fora a cair, cada vez mais forte. Alfredo elogiava o vinho, saboreando-o a goles pequeninos e estalados. Genoveva enchia-lhe o prato.

-Então, já vai à nossa; para que tenhamos muitos dias de boa paz, como o de hoje! disse o viúvo, a erguer o cálice, que cintilava à luz do petróleo.

-A nossa! repetiu Genoveva, bebeu, saculando as bochechas.

O tempo passava-se. Alfredo reparou que já era mais de meia-noite, e que a chuva ainda não havia cessado.

-O verdadeiro é ficar aqui mesmo por hoje. Seria imprudência arriscar-se agora por este tempo.. alvitrou a mãe de Ambrosina, com as faces coradas.

Alfredo lembrou vagamente os vizinhos; sempre havia más línguas, que em tudo achavam pretexto para murmurar!...

-Ora! desdenhou Genoveva. Estou velha!

E mudando de tom:

-Amanhã é domingo, o senhor pode levantar-se mais tarde, e ninguém reparará nisso...

Alfredo concordou alegremente. Sentia-se reanimar por aquele velho vindo do Porto. Acudiam-lhe palavras de bom humor, brilhavam-lhe os olhos, o sangue despertava-se-lhe nos membros martirizados pela vida sedentária; tinha fogo na voz e, todas as vezes que se dirigia à companheira, chamava-lhe a atenção, passando-lhe os dedos pelo braço carnudo.

Genoveva não reparava que os pés de Alfredo estavam havia meia hora encostados aos dela, e que aquilo que a boa senhora tinha junto ao joelho, não era a perna da mesa, e sim a dele.

A garrafa ficou vazia. A viúva do comendador levantara-se para fazer a cama do hóspede na sala de visitas.

Alfredo, fora dos seus hábitos, fumou três charutos, e em pouco se recolhiam ambos, cada um para o seu lado.

Mas a cama do hóspede, apesar de desveladamente, preparada com alvos e sedutores lençóis de linho, amanheceu intacta.

E daí por diante, Alfredo ficou sendo para Genoveva o que Gabriel era já para filha desta.

Tocam-se os extremos

-Vem sentar-te ao meu lado... Estás hoje tão esquiva...

-Ora!

-É a primeira vez depois da morte de teu pai, que te vejo de claro...

-Larguei hoje o luto.

-Mas parece que não estás de bom humor...

-É!

-O que tens?...

-Nada...

Queres passear? Ir ao teatro? Ao circo? Fazer visitas? Onde queres ir? Fala!

-Não quero cousa alguma. Deixa-me

-Não te mereço esses modos!...

-Não faças caso!

Este diálogo era entre Gabriel e Ambrosina, por uma tarde de fins de novembro, fartos meses depois de unidos. Estavam assentados um defronte do outro. Ela a ver distraidamente um jornal de modas, ele a contemplá-la enamorado.

Gabriel, depois daquelas palavras, levantou-se, fumou um cigarro, e foi apoiar-se nas costas da cadeira da amante. Ambrosina continuou a ver os seus figurinos, indiferentemente.

Estava mais desenvolvida e talvez mais bela, toldava-lhe, porém, a fisionomia um frio ar de desdém e de tédio.

Gabriel tomou-lhe nas mãos a cabeça, e beijou-a nos olhos.

-O que tanto te mortifica, minha flor?... perguntou ele.

-Sei cá! Só sei que estou desiludida...

-Mas, desiludida por quê?

-Aborrecida!

-Já sei! Foi a visita de Gaspar que te irritou os nervos...

-Pelo menos, ela contribuiu muito para isso. Não sei por que, aborrece-me agora aquele sujeito...

-Não tens razão... Gaspar trata-te bem... As duas únicas vezes em que ele veio cá, dispensou-te todas as atenções; não te disse uma só palavra desagradável, não te fez a mais ligeira recriminação, apesar de o haveres tu privado da minha companhia, que tem para ele grande valor....

-Não sei; ataca-me os nervos aquele ar de hipocrisia. Não posso suportar os seus modos pedantescos de mentor de chapéu alto!

-Tu exageras, coitado! O Gaspar é um excelente homem. Teve na mocidade uma boa dose de desgostos, que o fizeram triste para o resto da vida, mas é um coração de ouro.

-Todavia, nem sequer procura disfarçar a sua antipatia por mim...

-Coitado! Ele é lá capaz de antipatizar contigo! Admira-me até dizeres isso, quando gostavas tanto dele durante a tua moléstia...

-Ele nesse tempo tratava-me de outro modo.

É que ainda não se habituou à idéia de que eu o deixasse totalmente, para dedicar-me de corpo e alma a ti, minha querida Ambrosina.

E Gabriel puxou para si a amante, e fê-la assentar-se nos seus joelhos.

-Pois se tens saudades, é voltar, disse ela.

-Deixa-te de tolices! Não vês que não posso mais viver sem ti?...

-O mesmo sucede comigo a teu respeito, e é justamente por isso que aborreço aquele homem. Tenho receio que ele acabe por arrebatar-te de meus braços!

-Que lembrança!

-Enfim, vejamos ainda uma vez; mas se o Médico Misterioso continuar a tratar-me como ultimamente, tu lhe pedirás de minha parte que me dispense a honra de suas visitas...

-Ambrosina!...

-É o que te digo!

-Estás muito nervosa...

-E o que há nisso de estranhar, sabendo-se a vida monótona que levo entre estas quatro paredes?...

-Mas, o que te falta? dize.

-Falta-me tudo, Gabriel! Sinto necessidade de gozar, de esquecer as contrariedades de minha vida!

-Queres viajar?

-Não.

-Então não sei o que te faça!...

E os dois calaram-se. Ambrosina, no fim de algum tempo, levantou-se.

-Vamos dar um baile? disse ela.

-Um baile? repetiu Gabriel, a olhar espantado para a amante.

-Sim, um baile. O que achas nisso de extraordinário?...

-Nada, mas a grande dificuldade está nos convidados. Quais seriam as damas do teu baile?

-Minhas amigas...

-Que amigas?

-As amigas que eu convidasse... Ora, essa!

-Não é tão fácil como julgas... Acho, por conseguinte, infeliz a idéia. Olha, se queres uma festa, dá antes um jantar, porque, nesse caso, farei também de parte alguns convites...

-Mas haverá música?

-Não sei para quê. Haverá, se fizeres gosto nisso...

-O Melo pode encarregar-se de preparar a casa. Ele é tão diligente... lembrou Ambrosina.

-Lá vens tu com o Melo!... Queres que te diga com franqueza? Vou aborrecendo aquele tipo...

-Por quê? coitado?

-Não sei por que, mas vou, cada vez mais lhe tomando birra... As suas visitas já me fatigam.

-Creio que, no fim de contas, muito desconfiado é o que tu és...

-Eu?! Ora, essa! Desconfiado, por que e de quem?!

É um modo de dizer. Vamos formular a lista dos convivas.

E Ambrosina instalou-se na sua mimosa secretária de ébano com incrustações de madrepérola, e dispôs-se a escrever.

-Pronto! disse ela. Vai citando os nomes.

-Gaspar... lembrou Gabriel em primeiro lugar.

-Não! disse Ambrosina; não queremos festa de dia de finados.

-Mas havemos de não convidar o Gaspar?

-Nesse caso, dispenso aí festa.

-Pois risca lá o Gaspar.

Ambrosina beijou a testa de Gabriel, e continuou:

-Mamãe e Seu Alfredo...

Gabriel sacudiu afirmativamente a cabeça.

-O Reguinho e o Melo... acrescentou ela.

Foram nisto, porém, interrompidos pela campainha do corredor.

-Quem será? perguntou Ambrosina.

Era o Médico Misterioso. Precisava falar em particular ao enteado.

Ambrosina franziu o nariz, e deixou-os a sós.

Gaspar, ao tornar de Petrópolis, ficou perplexo com a notícia da nova existência de Gabriel. Correu a vê-lo e, logo à primeira conversa, compreendeu, não só que o pobre rapaz era dominado pela amante, como também que esta possuía em si todos os elementos de uma mulher deveras perigosa.

O resultado desta observação foi ficar o bom Gaspar bastante sobressaltado a respeito de seu filho querido. Ambrosina, que aliás lhe mostrava a princípio tanto respeito e parecia dedicar-lhe sincera estima, não o recebera com boa cara; de sorte que o Médico Misterioso evitou, quanto possível ter de voltar à casa dela.

Estava nestas circunstâncias, quando foi surpreendido pela inesperada visita do Sr. Windsor. O negociante inglês apareceu-lhe desarmado da sua habitual fleuma, e falou-lhe da filha com franqueza. Gabriel representava um papel importante na triste sorte daquela menina.

Gaspar principiou então a acompanhar de perto a moléstia de Eugênia.

Ao ir ter com ela, o estado da rapariga o comoveu. Entretanto, a mísera não lhe queria confessar as causas verdadeiras do seu sofrimento; tinha um como pudor da desgraça. Gaspar, embalde, fazia por merecer-lhe a confiança, ela era sempre a mesma reservada e orgulhosa.

Quando o médico lhe falava de Gabriel, a pobre enferma sorria tristemente e disfarçava as lágrimas.

Impressionava ao vê-la, tão pálida e fraca, estendida sobre as almofadas de uma poltrona; entristecia contemplar o negrume arroxeado dos seus olhos e as sinistras manchas das suas faces descoradas. Estava outra! Desaparecia-lhe a voz na garganta, e de vez em quando a tosse lhe sacudia todo o corpo, como para o despertar do marasmo que a prostrava.

Acabada a crise, ela sorria.

O Sr. Windsor andava estonteado, chorava. Ursulina fazia promessas aos santos, e até Emilia parecia triste. A casa toda se cobriu de luto e melancolia.

Gaspar persistia em lá ir, e mostrava-se incansável com a enferma.

Foi então que ele procurou Gabriel pela terceira vez.

O enteado, logo que o viu, notou-lhe a grande preocupação que lhe traía nos gestos; abaixou os olhos e corou.

-Como até agora não me apareceste em casa, disse o Médico Misterioso, decidi vir à tua procura, disposto a cumprir com o meu dever, custe o que custar.

-A meu respeito?...

-Sim, meu filho, a teu respeito, e a respeito também de uma pobre menina, a quem estás assassinando, sem consciência do crime que cometes!...

-Assasinando, eu?! Ah! trata-se de Eugênia, não é verdade?

-É justamente dela que se trata; é desse pobre anjo, cujo coração encheste de ilusões, para depois cruelmente o despedaçares.

Gabriel abaixou de novo os olhos, deixando agora pender a cabeça, intimamente aflito.

-Cumpro um dever! continuou Gaspar. Venho buscar-te, e estou resolvido a lançar mão de todos os meios para te carregar comigo. Se não vieres, Eugênia morrerá, e serás tu o seu assassino...

Gabriel não dava uma palavra. Arfava-lhe o peito.

-Além disso, considerou o outro, aonde te poderá conduzir a existência que aqui levas? Principio a temer-lhe as conseqüências. Estás um perfeito ocioso; já não estudas, já não trabalhas!... Nada mais fazes do que amar uma diabólica mulher, que te absorve o espírito e te corrompe o coração!

-Enganas-te, Gaspar!... Ambrosina não é o que supões...

-De sobra conheço a vida para me haver enganado. Jamais conseguirás ser feliz, caminhando deste modo e vivendo no meio da escória que te cerca. Não serão os Regos e os Melos Rosas que te conduzirão ao bom caminho! Estás na idade em que todo o moço decide do seu destino... Se não mudares de conduta, se te não resolveres a trabalhar, se te não fizeres homem de bem, se não tratares enfim de aceitar a responsabilidade da tua vida - virás a ser fatalmente um desgraçado! O fato de haveres nascido rico, não te dispensa dos teus deveres de homem e de cidadão, aumenta ao contrário a tua responsabilidade, porque não tens sequer a desculpa da miséria.

-Acredita, Gaspar, que as cousas mudarão!...

-Receio que não mudem, ou que mudem para pior. O que te afianço é que já representas aos meus olhos um papel bem digno de lástima!... És indecentemente explorado por meia duzia de cavalheiros de indústria, que se dizem teus amigos. Aquele Melo Rosa é um gatuno!

-Gaspar, peço-te que moderes um pouco a tua exacerbação!...

-Não! Não tenciono moderá-la. Disse que cumpria um dever, e é com a consciência dele que procedo neste instante! Não é a própria severidade que me faz esbravear contra aqueles vadios, é o amor que te voto é a compaixão que me inspiras! Tu, meu filho, não tens prática alguma da vida, nem sequer te foi dada pela sorte a inestimável faculdade de precisares trabalhar para viver. Onde queres formar o teu caráter?... Aqui, nesta casa tresandando a desordem e a loucura?! Ao menos, se me aparecesses, para que eu te guiasse com os meus conselhos... mas tu te escondes de mim e tens medo das minhas palavras! Enquanto estás aqui, encerrado no calor voluptuoso deste latíbulo, enquanto passa a vida à fralda de uma mulher, os rapazes de tua idade formam lá fora uma geração forte e trabalhadora; enquanto te amoleces com o perfume dos cabelos de Ambrosina e com o champanha da tua adega, eles, os moços de tua idade invadem o jornal, o livro, a tribuna e a vida pública! Por que não acompanhas a onda do teu tempo? Concordo que ames Ambrosina e que por ela sejas amado, mas isso não é razão para que não cumpras com teus deveres. Esta vida, que aqui levas aos seus pés, sem dignidade e sem consciência, só vos poderá conduzir ao desprezo social; a ti pela libertinagem, a ela pela prostituição!

Gabriel, fulminado pelas últimas palavras do padrasto, sentiu subir-lhe o sangue às faces, e esqueceu-se por um instante do respeito que lhe votava. Veio-lhe à boca uma injúria; mas, antes de a proferir, já Ambrosina, que tudo escutara do outro quarto, havia de improviso se colocado entre os dois, cravando no médico um olhar hostil e exclamando com voz firme:

-Basta, senhor! Foi sempre do meu costume respeitar os cabelos brancos de quem quer que seja, vejo agora, porém, que eles, escondem às vezes uma cabeça leviana e malévola! é bem triste o papel que o senhor escolheu... Introduzir-se na casa alheia para semear a discórdia entre os que vivem felizes e tranqüilos, será tudo, menos um ato digno! Sei que me vai responder que lhe tirei o seu bebê, o seu tutu... Mas, com os diabos! antes o levem por uma vez! Ai o tem! Amo-o não nego, amo-o mas prefiro privar-me dele a ter de prestar contas de meus atos à sua ama seca! Não estou com a corda no pescoço! ainda tenho uma casa para morar, e não faltará quem me queira!

-Não digas isso, que me afliges! exclamou Gabriel, procurando segurar-lhe as mãos.

-Deixe-me! repontou ela com um arranco. Sempre pensei que você fosse outra espécie de homem; no fim de contas, não passa de um maricas! Acabam de insultar-me nas suas barbas, e você não acha uma palavra para me dasafrontar! Não posso ter confiança em uma pessoa que não reconhece a responsabilidade de seus atos. Agora sou eu quem faz questão de sair desta casa; não posso ficar em lugar, onde estou sujeita a ser insultada covardemente pelo primeiro indivíduo que chega! Hoje foi este, amanhã será outro e, no fim de pouco tempo, serão todos os seus amigos. Nada! Prefiro viver com minha mãe, ou talvez com um meu amante, se encontrar um homem que souber ser homem!

-Ambrosina!... suplicou Gabriel.

-Cale-se! Não suponha que me enternece com as suas lamúrias... Confesso que lhe tenho amor, mas sou muito capaz de mudar-me hoje mesmo. Já agora, meu amigo, tanto me faz Pedro, como Paulo! Mau foi dar o primeiro passo; afinal, o senhor não é meu marido, e, amante por amante, tanto me faz o segundo como o terceiro!

-Ouviste? observou Gaspar.

-Para que dizes o que não sentes?... insistiu Gabriel, procurando acalmar Ambrosina pela meiguice. Para que te hás de fazer inconveniente e má, quando o não és?... Sabes perfeitamente quais são os laços que me unem ao Gaspar; sabes até onde vai a afeição que ele me vota e...

-Não sei, nem quero saber disso! interrompeu ela. Já disse o que tinha a dizer! Aqui não fico!

E voltando-se para o interior da casa.

-Leonie!

Veio a criada.

-Veja meus objetos e minha roupa; reuna tudo! mudo-me hoje mesmo para a casa de minha mãe!

-Retire-se gritou Gabriel à criada, e acrescentou para Ambrosina: -Tu não irás! Aqui mando eu!

-Manda? A quem? exclamou ela. Qual é aqui o seu escravo? Ora, moço, outro ofício! Se julga que recebo ordens de alguém, está enganado; sou muito senhora deste narizinho, entende! Se me der na cabeça ir já não será você, nem toda a sua geração, que me farão deixa de ir! Era também o que faltava! Que, além de tudo, estivesse eu às ordens do Nhonhô... Não! Por semelhante preço, prefiro roer o pão duro da casa de minha mãe!

-Mas, aqui quem pretende dar-te ordens? observou Gabriel, chegando-se para ela. Sabes perfeitamente que, da porta pra dentro, és tu a senhora desta casa. Exijo que fiques, não porque te governe, mas porque te amo. Estás encolerizada, bem vejo, e quero-te evitar dares um passo, que sem dúvida lamentarias mais tarde.

-Pois se não sou nesta casa uma figura de papelão, preciso pôr imediatamente este sujeito daqui pra fora!

Gaspar olhou para ela, e sorriu com sarcasmo.

-Vê! exclamou Ambrosina furiosa; escarnece de mim!...

-Ora, Ambrosina! respondeu Gabriel; para que me hás de colocar nesta posição?... Não vês logo que não posso despedir meu padrasto?...

-Deixa-te disso...

-Ou ele ou eu! Escolha!

-Não! insistiu Gabriel; nem ele será despedido nem tu irás... Vocês vão imediatamente fazer as pazes, se são meus amigos...

-Perdão! interveio Gaspar. Eu agora é que só te aceito sem ela! Escolhe entre nós dois!

Gabriel olhou agoniadamente para Ambrosina, depois para o padrasto, e afinal atirou-se a uma cadeira, escondendo o rosto nas mãos.

-Sabem o que mais?! exclamou a rapariga. Não estou para aturá-los!

E dirigiu-se para alcova.

Gabriel precipitou-se sobre ela.

-Meu amor! Escuta!

-Bem! disse Gaspar, tomando o chapéu; nesse caso, sou eu quem se retira...

-Meu amigo! exclamou Gabriel, segurando-lhe o braço.

-Acabemos com isto! gritou Ambrosina. Não me dou bem com estas cenas! Solta-me!

-Os próprios fatos se encarregarão de dar-me a resposta, resumiu Gaspar, conseguindo ganhar a porta da sala. Resolve só por ti o que entenderes! Adeus.

E voltando para Ambrosina:

-Minha senhora, quando de novo precisar de meus serviços médicos, estarei às ordens...

-Obrigada, respondeu ela, com um riso de ironia. E quando Gaspar havia desaparecido, deliberou consigo: «Caro me hás de pagar!»

Depois colou a boca contra a de Gabriel, e exclamou num estremeção de volúpia:

Não me receberás mais este tipo!... não é verdade, meu queridinho?...