Cena
I
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MANUEL
Praxedes, EULÁLIA,
MARIA e Doutora
LUÍSA
Praxedes.
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MANUEL.- (Entrando pela porta da
direita de calça e colete pretos, gravata branca, em mangas
de camisa e segurando a casaca.) Eulália!
Eulália!
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MARIA.- (Falando dentro.) Oh!
Eulália?
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EULÁLIA.- (Entrando
apressada.) O que é, meu amo? Esta casa hoje
está impossível, não sei para onde me
virar.
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MANUEL.- Onde meteste a minha escova de roupa?
Que horas são? Onde está a senhora? O carro já
veio?
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LUÍSA.- (Falando
dentro.) Eulália!
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EULÁLIA.- Lá está a outra a
chamar-me! Jesus, fico doida!
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MANUEL.- O que direi eu então? O dia da
formatura de minha filha.
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MARIA.- (Dentro.)
Eulália!
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MANUEL.- (Segurando a mão de
EULÁLIA que quer
sair.) A Luísa, lembras-te? Aquela criança
que ainda ontem saltava no meu colo em fraldinhas de camisa, com as
bochechas rosadas!
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EULÁLIA.- Pois não me hei de
lembrar, meu amo! Parece-me que estou a vê-la a dizer adeus
à gente com os dedinhos miúdos, assim:
(Imita.) Ai! que gracinha!
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MANUEL.- Pois bem. (Caindo num choro
convulso.) Aquela criancinha, Eulália, é
hoje a Doutora Luísa Praxedes, formada em ciências
médicas e cirúrgicas pela Faculdade de Medicina do
Rio de Janeiro. (Mudando de tom.) Vai buscar a
escova.
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MARIA.- (Entrando de vestido decotado
e flores na cabeça, a EULÁLIA.) Pois eu
estou lá dentro a chamar-te há mais de meia
hora...
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EULÁLIA.- O culpado foi meu amo.
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MARIA.- Vai ver o que quer a Luisinha.
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(EULÁLIA
sai.)
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Cena
II
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Os mesmos, menos EULÁLIA.
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MANUEL.- Luisinha! Luisinha!... A senhora
é incorrigível.
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MARIA.- Como acha então o senhor que devo
tratar a minha filha?
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MANUEL.- A Doutora Luísa Praxedes. A
doutora, sim, senhora! A mim parece-me também um sonho; mas
é o título a que ela tem direito, que foi ganho
à custa do seu trabalho e que é uma honra para a
família e para a sociedade.
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MARIA.- Havemos de ver em que dá tudo
isto.
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MANUEL.- Há de dar em alguma coisa que a
senhora com as suas vistas curtas não pode enxergar.
(Vestindo a casaca.) Onde diabo está a
manga desta casaca?
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MARIA.- Tens adiantado muito com as tuas vistas
largas.
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MANUEL.- (Sem conseguir vestir a
casaca.) Maldita manga...
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MARIA.- Em todas as empresas em que te meteste
tens dado com os burros n'água. Logo que nos casamos
montaste uma grande fábrica de papel.
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MANUEL.- E não era uma boa
idéia?
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MARIA.- Segundo os teus cálculos; mas o
papel que fizeste foi tão ordinário que nem para
embrulho o quiseram.
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MANUEL.- Fui infeliz, fui. Mas quem é que
não erra? Afianço-te porém, que se eu
conseguisse fazer ali alguma coisa, estava hoje com um
fortunão.
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MARIA.- Tão grande como o que ganhastes
com a exploração de mariscos, na linha de bondes para
o Morro do Nheco, na iluminação de Valença
à luz elétrica...
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MANUEL.- Isto prova, senhora, que sou um homem
do progresso, que amo a minha pátria, que quero vê-la
prosperar, engrandecer. (Sem encontrar a manga.)
Que diabo, não me dirás onde é que se meteu
esta manga? (MARIA ajuda-o a vestir a
casaca.) E a prova do meu patriotismo está nesta
menina, laureada hoje com um título.
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MARIA.- Bem contra a minha vontade.
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MANUEL.- Bem contra a sua vontade,
compreende-se; porque a senhora foi criada em uma casinha de
rótula e janela na rua do Aljube...
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MARIA.- Onde recebi a educação a
mais brilhante que se poderia ter naquele tempo. O que Luisinha, ou
antes, o que a Doutora Luísa Praxedes sabe de francês,
de inglês, de desenho e sobretudo de música, deve-o a
esta sua criada. Parece-me que não te casaste com uma
analfabeta!
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MANUEL.- Sim, mas tudo quanto sabes foi
aprendido no tempo das bananas a três por dois, do toque do
Aragão, das vilegiaturas em Mataporcos, das toalhas de
crivo, do junco do pedestre... Tempos em que o Rio de Janeiro era
iluminado a azeite de peixe.
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MARIA.- Mas em que as mulheres não se
lembravam de ser doutoras e limitavam-se ao nobre e verdadeiro
papel de mães de família.
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MANUEL.- Já tardava que não
viesses com o chavão... a mãe de família.
É sempre a figura de retórica já muito cheia
de bolor com que o carrancismo pretende esmagar no nascedouro as
aspirações grandiosas da emancipação do
sexo feminino.
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MARIA.- É por estas e outras que tudo
chegou ao estado de desorganização em que
vivemos.
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MANUEL.- Isto que a senhora chama
desorganização...
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MARIA.- É a ordem, talvez?
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MANUEL.- Não é a ordem ainda, mas
é a evolução da qual muito naturalmente ela
há de surgir. O papel da mulher de hoje não é
o da de ontem. Aquelas criaturas que viviam em casa trancadas a
sete chaves, pálidas, anêmicas, de perna inchada,
feitorando as costuras das negrinhas, começam por honra
nossa, a ser substituídas pela verdadeira companheira do
homem, colaborando com ele no progresso da grande
civilização moderna. Nós, os homens, temos a
política, a espada, as letras, as artes, as ciências,
a indústria... Por que razão seres organizados como
nós, mais inteligentes até do que nós, haviam
de se mover eternamente no acanhado círculo de ferro do
dedal e da agulha?
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MARIA.- Porque basta-nos o amor.
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MANUEL.- Mas a prova, senhora, de que o amor
está no programa de vida da mulher moderna, é o
casamento de nossa filha, hoje, no dia de seu grau, com o Doutor
Pereira, seu colega de banco na Academia.
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MARIA.- E entra, por acaso, o amor na
união de Luísa com este homem?
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MANUEL.- Certamente.
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MARIA.- Olha, Praxedes, podes gastar toda a tua
retórica, mas nunca me convencerás de que o Doutor
Pereira e Luísa se amem! Acompanho-os há seis anos
nas aulas, no anfiteatro, nos hospitais, nos exames...
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MANUEL.- E que tem isto?
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MARIA.- Nunca nos lábios daquelas duas
criaturas ouvi a palavra amor. Sempre entre eles, como que a
separá-los, a medicina, a cirurgia, a terapêutica, o
diagnóstico, a hematose, a diátese, a idiossincrasia,
a cefalalgia, os emolientes, os tônicos, a patologia e toda
esta série de nomes arrevesados que me ficaram no ouvindo
à força de ouvi-los repetir constantemente. Esse
sentimento que faz de dois corações um
só!...
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MANUEL.- Aí vem a pieguice.
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MARIA.- Sim, esta pieguice sublime nunca poderia
nascer e desenvolver-se naquele meio infecto de moléstias
hediondas ou diante do sangue coagulado de órgãos
putrefatos expostos em indecente nudez.
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MANUEL.- Bravo! No fim de contas, parece-me que
em vez de uma, tenho duas doutoras em casa. Falta-te só o
grau.
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MARIA.- O que me falta sei eu, é a
energia bastante para não ter consentido que as coisas
chegassem a este ponto. (Vai a sair.)
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MANUEL.- Mas, vem cá Maria Praxedes,
pensas tu, porventura, que os casamentos hoje fazem-se como foi
feito o nosso?
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MARIA.- Os casamentos, em todos os tempos,
são feitos do mesmo modo.
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MANUEL.- O namoro de passar pela porta, piscar o
olho; levar com a janela na cara, a loja do barbeiro da esquina
como centro de operações, o bilhete cheirando a
almíscar, os olhos requebrados, o descante de violão:
meu bem, meu amor, minhas candongas... tudo isso acabou... O que
há presentemente...
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MARIA.- É o pedido entre o
diagnóstico de um catarro crônico e a
aplicação de um vesicatório ou de uma
cataplasma de linhaça... Já sei, já sei.
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MANUEL.- O que há presentemente é
o casamento-contrato, isto é, o casamento propriamente dito
como ele deve ser. O móvel de dois seres que se ligam
é a conveniência.
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MARIA.- Então confessas com todo o
cinismo que o casamento de Luísa...
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MANUEL.- Confesso...
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MARIA.- Mas onde está a fortuna do Doutor
Pereira? Os pais são pobres... Forma-se hoje...
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MANUEL.- E a senhora sem querer compreender
nada, a confundir tudo! O casamento de conveniência, sob o
ponto de vista da evolução atual...
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MARIA.- Já tardava a
evolução...
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MANUEL.- Quer ou não quer ouvir-me?
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MARIA.- Fale.
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MANUEL.- O casamento de conveniência, sob
o ponto de vista da evolução atual, não
é o casamento de dinheiro. O homem sem ofício nem
benefício que se liga a uma mulher de fortuna para viver
à custa do que ela tem, deveria ser expulso da
comunhão civilizada. O verdadeiro casamento de
conveniência que é a aspiração da
Idéia Nova e de que a minha filha vai ser o exemplo
edificante, consiste na união de dois seres, tendo cada um o
mesmo modo de vida, a mesma profissão. O marido trabalha, a
mulher trabalha.
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MARIA.- É uma sociedade comercial.
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MANUEL.- Sim, mas vê o alcance enorme
desta sociedade. Não é só a
formação do pecúlio do casal, mas muito
principalmente o desenvolvimento das classes, a
seleção delas. O marido médico, a mulher
médica... todos os filhos médicos... O marido
advogado, a mulher advogada...
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MARIA.- Toda a prole bacharela em direito.
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MANUEL.- Justamente. O pintor ligar-se-á
à pintora e desta união sairá uma
família de pintores. Não vês o que a imprensa
costuma dizer quando trata de um sujeito que faz alguma obra de
arte importante? «É um artista de raça!».
Pois bem, esta frase vai deixar de ser doravante uma figura de
retórica. Vamos ter médicos de raça, advogados
de raça, a sociedade enfim toda de raça, desenvolvida
e aperfeiçoada nos diversos ramos da sua vasta atividade.
Compreendeste agora o alcance filosófico, político,
moral e social deste casamento? Eis porque estou aqui radiante de
alegria, cheio de emoções, quase doido.
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MARIA.- Podes tirar o «quase».
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Cena
III
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Os mesmos e EULÁLIA.
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EULÁLIA.- A menina já está
prontinha, meus amos.
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MANUEL.- A menina, não,
Eulália.
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EULÁLIA.- Desculpe-me, meu amo, a Senhora
Doutora Luísa Praxedes já pôs aquela
vestimenta. Como é que se chama aquilo?
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MANUEL.- Beca.
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EULÁLIA.- Está muito
engraçada! Ai! que reinação! Eu sempre
punha-lhe uma anquinha ou um puff: para armar mais a
saia.
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MANUEL.- Ela está contente,
Eulália?
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EULÁLIA.- Muitíssimo, meu amo.
Assim que eu lhe vesti a tal seca...
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MANUEL.- Não é seca,
é beca.
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EULÁLIA.- Como é mesmo?
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|
MANUEL.- Beca.
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EULÁLIA.- Olhem só o diabo do
nome, beca! Pois assim que lhe vesti aquilo começou a
passear de um lado para outro, no quarto... Assim, olhe...
(Imita.) muito séria. Parecia, mal
comparando, o taverneiro ali da esquina, quando põe a casaca
e a comenda.
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MARIA.- Está bem, está bem. Em vez
de estar aí contando histórias é melhor que
vá tratar do arranjo da casa.
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EULÁLIA.- Do arranjo da casa! Ora esta.
Pois quem é que tem tratado disso até agora
senão eu?
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MARIA.- Não responda, Eulália,
vá.
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EULÁLIA.- Hei de responder, sim senhora.
Estou aqui desde que cheguei da terra, há 25 anos e creio
que a patroa não pode ter razão de queixa de mim.
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MARIA.- Certamente.
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EULÁLIA.- Enquanto a senhora andava o dia
inteiro no meio da rua acompanhando a menina por toda a parte, eu
ficava aqui a pé firme, como um cão de fila
guardando-lhe a casa e a bolsa. A bolsa, sim senhora, porque se
não fosse a Eulália dos Prazeres da
Conceição de Maria, filha da Engrácia da
Porcalhota e do Manuel Tibúrcio, que Deus haja, a senhora
era depenada por toda essa súcia de criados que entravam
numa semana com as mãos abanando e saíam na outra
levando tudo quanto pilhavam.
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MANUEL.- Tens razão, Eulália.
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EULÁLIA.- Que tenho razão, sei eu!
Meu amo, não sabe da missa nem a metade.
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MANUEL.- Vai buscar a escova.
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EULÁLIA.- Olhe, quer ver como eu puxava
pela fisiolostria da inteligência como diz o Antônio da
venda, para não ser embaçada pelos tais
criaditos?
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MARIA.- É a história do
açúcar? Já a conheço de cor e
salteada.
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MANUEL.- Vai buscar a escova.
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EULÁLIA.- E não era bem lembrada?
Eles roubavam o açúcar, o que fazia eu?... Apanhava
uma mosca, (Fazendo menção de quem apanha
uma mosca.) abria o açucareiro, zás...
(Menção de atirar.) e tampava-o
com todo o cuidado. De vez em quando ia verificar se a mosca ainda
lá estava... Não é bem lembrado, meu amo?
Aprendi isto na casa de um visconde no Porto.
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|
MANUEL.- Está bem, vai buscar a
escova.
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EULÁLIA.- Na manteiga também
não me passavam a perna. Fazia-lhe em cima com a faca uma
porção de rabiscos.
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(Batem à porta.)
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MANUEL.- Estão batendo. Vai ver quem
é. (EULÁLIA sai. Para MARIA.) Eu vou lá
dentro escovar-me. Esta maldita rapariga quando começa a
falar...
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(Sai.)
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Cena
V
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MARIA,
DR. PEREIRA e LUÍSA.
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DR. PEREIRA.- (Com alguns
folhetos.) O Doutor Martins ainda não veio?
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MARIA.- Ainda não.
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DR. PEREIRA.- A cerimônia do grau
está marcada para o meio-dia...
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MARIA.- Devem ser nove horas apenas. Aí
vem Luísa.
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DR. PEREIRA.- (A LUÍSA que entra e apertando-lhe
a mão.) Colega!
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LUÍSA.- (Apertando a mão
ao DR. PEREIRA.)
Colega!
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MARIA.- (À parte;
imitando-os.) Colega! Colega!... E ali estão dois
noivos!
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LUÍSA.- Que folhetos são
esses?
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DR. PEREIRA.- São exemplares da minha
tese que pretendo distribuir por alguns amigos que vão
assistir ao grau.
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LUÍSA.- Ah! é verdade! Sabe que
esta noite fui chamada para ver um doente de febre amarela.
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DR. PEREIRA.- Caso grave?
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LUÍSA.- Gravíssimo.
Termômetro a 41 graus, ansiedade epigástrica e todo o
aparato para romperem-se as hemorragias; compreende o colega a
dificuldade de uma terapêutica apropriada para debelar-se o
mal cuja patogenia é ainda desconhecida.
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DR. PEREIRA.- Patogenia desconhecida! Pois a
colega não tem notícia do cryptococus
xantogenicus...
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LUÍSA.- O cryptococus... o
cryptococus...
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|
MARIA.- (À parte.)
Parece incrível! Isto contado ninguém acredita.
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DR. PEREIRA.- O cryptococus sim; revelado
pelo microscópico nos luminosos trabalhos do Doutor Freire.
Não sei como se possa ignorar os efeitos da
vacinação pela cultura atenuada.
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LUÍSA.- Mas quem lhe disse que eu
ignoro?
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DR. PEREIRA.- Pelo menos a colega...
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LUÍSA.- O que eu sustento, com os
conhecimentos profundos que tenho da matéria é que
esta teoria microbiana, tratando-se de febre amarela, pode ser
quando muito uma aspiração do futuro.
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|
DR. PEREIRA.- Uma aspiração do
futuro, quando o presente nos está demonstrando todos os
dias a verdade!
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LUÍSA.- Ora! colega!... Leia os trabalhos
de Stemberg, de Gibier e convença-se de que na
clínica mais vale a sintomatologia do que teorias
abstratas.
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DR. PEREIRA.- Abstratas, não; tenha
paciência.
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LUÍSA.- Abstratas sim; porque não
receberam a sanção das autoridades da nossa
ciência.
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DR. PEREIRA.- Mas foram aplaudidas pela
Sociedade Dosimétrica de Paris.
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|
LUÍSA.- Não foram tal.
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DR. PEREIRA.- Foram, sim, senhora.
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|
LUÍSA.- Não foram.
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|
DR. PEREIRA.- Foram.
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MARIA.- (Colocando-se entre
eles.) Não acham que este cryptococus
xantogenicus, na sua qualidade de micróbio, pode
infeccionar dois corações que daqui a pouco
terão de se unir à face da igreja e que aí
deverão aparecer sem rancores, sem azedumes, ungidos de
mística poesia?
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|
LUÍSA.- Aí vem mamãe com a
sua poesia.
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|
DR. PEREIRA.- Os nossos corações,
Senhora Dona Maria Praxedes, não têm rancores nem
azedumes. Estamos apenas discutindo um ponto de ciência.
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|
MARIA.- (Para os dois.)
Então amam-se deveras?
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OS DOIS.- Certamente.
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MARIA.- É um amor singular.
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LUÍSA.- Não é como o de
Julieta e Romeu, com balcão, escada de corda, cantos de
cotovia...
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|
DR. PEREIRA.- Está visto!
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MARIA.- Pois olhem, meus filhos, eu tinha
até aqui a ingenuidade de acreditar que aos 20 anos o
coração é como o cálice perfumado de um
lírio...
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LUÍSA.- O coração,
mamãe, é um músculo oco que tem as suas
funções próprias como o baço, o
fígado, os rins e outras vísceras do organismo.
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Cena
VI
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Os mesmos, bacharel MARTINS e CARLOTA.
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MARTINS.- (Cumprimentando a
todos.) Cheguei talvez um pouco tarde?
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DR. PEREIRA.- O meu amigo chega sempre em
tempo.
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MARTINS.- Hão de permitir-me que lhes
apresente a Senhora Dona Carlota de Aguiar, estudante do 5º
ano da Faculdade de Direito de São Paulo e futura bacharela
em Direito.
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CARLOTA.- (Apertando a mão de
Dona MARIA e do
DR. PEREIRA.)
Apresento à ilustre doutora a curvatura de meus respeitos.
(Apertam-se as mãos.)
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|
LUÍSA.- Já a conhecia muito de
nome como um dos mais brilhantes talentos da moderna
geração.
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CARLOTA.- E o que direi eu da mulher duas vezes
ilustre pela inteligência e pela coragem titânica com
que acaba de abater a muralha ciclópica dos preconceitos
tacanhos? Vossa Excelência é o alfa desta conquista
sociológica que veio desfraldar aos ventos sul-americanos a
bandeira imaculada da nossa redenção.
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|
MARTINS.- (Para MARIA.) Fala admiravelmente
bem.
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|
MARIA.- É uma canária!
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|
MARTINS.- Que talento!
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MARIA.- Está-se vendo que é de
força!
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|
LUÍSA.- Entretanto o passo que acabo de
dar tem sido por tal forma comentado pela opinião...
|
|
CARLOTA.- Não creia, minha senhora! Vossa
Excelência está subpedânea no conceito
público.
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|
DR. PEREIRA.- Eu assim o entendo.
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|
CARLOTA.- A minha situação
é que se vai tomando um amálgama acéfalo,
incongruente e esfacelado de lutas de direito, com pequenos
interesses masculinos.
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|
LUÍSA.- Como assim?
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|
CARLOTA.- Ainda não recebi a investidura
do meu grau, ainda não tive a posse do tibi quoque e
já o magnânimo Instituto dos Advogados levanta a
questão de nós mulheres podermos exercer a advocacia
e os demais cargos inerentes ao bacharelado em Direito.
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|
LUÍSA.- Parece incrível!
|
|
CARLOTA.- Não se admire, doutora,
não se admire. Já em Nicéia reuniu-se um
concílio para decidir se a mulher devia ou não fazer
parte do gênero humano. Tentaram expelir-nos do posto que
ocupamos na escala zoológica e pretendem agora com
miseráveis subterfúgios de retórica e uma
lógica anacrônica tirar-nos o talher a que temos
direito na opípara mesa do banquete social.
|
|
LUÍSA.- Como eles receiam a nossa
concorrência.
|
|
CARLOTA.- Em todos os pontos da atividade
humana, ilustre doutora! Mas havemos de conquistar-lhes
paulatinamente o másculo reduto.
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Cena
XII
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Os mesmos e a DIRETORA do Grêmio Feminino
Sacerdotisas de Euterpe.
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|
DIRETORA.- (Entrando acompanhada pela
banda de música de raparigas em cujo estandarte se vê
a seguinte inscrição: G. M. Sacerdotisas de
Euterpe.) A gratidão, senhora, é a moeda
dos pobres. A sociedade musical Grêmio Sacerdotisas de
Euterpe deixaria de cumprir com o mais sagrado dos deveres, se
não viesse hoje, no dia em que se realizam os vossos sonhos
dourados, dar-vos um público testemunho do quanto vos deve
pelos serviços que generosamente tendes prestado a cada uma
de nós, (MANUEL limpa as
lágrimas.) na epidemia que desgraçadamente
está assolando esta cidade. (Entregando a
LUÍSA um rolo de
papel.) Aceitai, portanto, ilustre doutora, como
homenagem ao vosso brilhante talento (MANUEL soluça.) e
às qualidades morais que vos ornam, o diploma de
sócia benemérita da nossa modesta
associação. (MANUEL soluça.) Viva
a Doutora Luísa Praxedes!
|
|
TODOS.- Viva!
|
|
(Toca a música.)
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|
LUÍSA.- Não tenho, infelizmente,
recursos oratórios para responder à
manifestação com que acabo de ser surpreendida e que
assaz me penhora. Peço à Senhora Doutora Carlota de
Aguiar que com o seu verbo eloqüente seja a intérprete
dos meus sentimentos.
|
|
DR. PEREIRA e MARTINS.- Muito bem!
|
|
CARLOTA.- Minhas senhoras! (Conserta a
garganta.) Flutua-me no cérebro um ponto de
interrogação: estará a mulher destinada nos
últimos estertores do século que finda a devassar os
arcanos de todas as atividades que lhe têm sido roubadas pelo
monopólio sacrílego das aspirações e
vaidades masculinas? Aquela que neste momento tão
indignamente represento...
|
|
TODOS.- Não apoiado.
|
|
CARLOTA.- Vós, as congregadas da
harmonia, e eu, a mais humilde paladina desta conquista santa de
direitos, poderemos responder à fatídica
interrogação? Sim! A mulher caminha, a mulher
conquista, a mulher vencerá. Um viva pois, à Doutora
Luísa Praxedes que simboliza a
consubstanciação da vitória brilhante.
|
|
TODOS.- (Menos LUÍSA e MARIA.) Viva.
|
|
(Música.)
|
|
MANUEL.- (A todos.) Vindo
assistir ao grau de minha filha, eu vos convido também, meus
senhores e minhas senhoras, para que abrilhanteis com a vossa
presença a cerimônia do casamento que terá
lugar logo depois daquele ato na Igreja de São
José.
|
|
DIRETORA.- Viva a Doutora Luísa
Praxedes!
|
|
TODOS.- (Menos LUÍSA.) Viva!
|
|
(Toca a música e desfilam todos saindo pelo
fundo.)
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(Cai o pano.)
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Cena
II
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|
A mesma e MARIA
Praxedes.
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MARIA.- (Entrando.) Sim,
senhora! É o que se chama o cúmulo da tagarelice.
Não tens com quem falar, falas sozinha.
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|
EULÁLIA.- Deixe-me, pelo amor de Deus!
Olhe que se não fosse o amor que tenho à menina,
já tinha voltado para a casa da patroa.
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|
MARIA.- Continuam as brigas?...
|
|
EULÁLIA.- Ora! Ora! Ainda ontem houve
aqui um bate-boca tremendo.
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|
MARIA.- E sempre por causa dos chamados?
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|
EULÁLIA.- Está visto, não
brigam por outra coisa. E nestas brigas sai cada nome,
patroa...
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|
MARIA.- Meu Deus! Chegam então a
descompor-se?
|
|
EULÁLIA.- Eu não sei se aquilo
é descompostura. Olhe, os nomes que eu ouço, se
não são desaforos de arrancar couro e cabelo,
lá muito bons para que digamos não são.
|
|
MARIA.- O que é que eles dizem?
|
|
EULÁLIA.- É symfostria pra
lá, milogia pra cá, raboses, coloses,
futrica. A menina muito vermelha a dar com os braços, o
patrão de olhos esbugalhados a gesticular...
|
|
MARIA.- Ah! São discussões
científicas!
|
|
EULÁLIA.- Pois olhe, senhora, eu sou
solteira, em tão boa hora o diga e o diabo seja surdo, mas,
se fosse casada, e meu marido me atirasse à cara todas
aquelas ravoses, coloses e milogias, e me chamasse
futrica, sabe o que fazia a Eulália dos Prazeres da
Conceição de Maria, filha da Engrácia da
Porcalhota e do Manuel Tibúrcio, que Deus haja?...
|
|
MARIA.- Não fazias nada, tagarela.
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|
EULÁLIA.- Arrumava a trouxa e ia procurar
a minha vida.
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|
MARIA.- Mas fora destas discussões eles
não conversam?
|
|
EULÁLIA.- A que horas? A menina, de
manhã muito cedo, vai ver doentes, o patrão mal
acorda, veste-se a toda a pressa e toca pra mesma lida.
|
|
MARIA.- Sim, mas quando estão em casa...
à hora do almoço e do jantar...
|
|
EULÁLIA.- Quando estão em casa, se
não estão brigando, a menina lê ou escreve, o
patrão escreve ou lê. À mesa do almoço
ou do jantar, cada um tem o seu livro. Comem de cabeça
baixa. Não olham um para o outro!
|
|
MARIA.- Luísa ainda toca e canta?
|
|
EULÁLIA.- Qual, senhora, no outro dia fui
abrir o piano para limpá-lo, estavam as teclas cheinhas de
bolor. (Eulália tira o chapéu de
MARIA
Praxedes.)
|
|
MARIA.- Luísa há de vir
jantar.
|
|
EULÁLIA.- Certamente. E a senhora passa o
dia conosco?
|
|
MARIA.- Olha, Eulália, o meu desejo
é que não abandones nunca Luísa.
|
|
EULÁLIA.- Fique descansada, patroa.
(Tocam o telefone.) É verdade, com o
diacho da conversa esqueci de dar a resposta ao homem.
(Batendo no telefone e falando.) Allon!
Quem fala? É o Senhor Salazar da Rua do Hospício?
Sim. Mas é para o Doutor Pereira, ou para a Doutora Pereira?
(Fica algum tempo a ouvir, falando para MARIA.) Tenha
paciência, patroa. Ponha o ouvido aqui e veja se distingue,
doutor ou doutora?
|
|
MARIA.- (Falando ao
telefone.) É Doutor Pereira ou Doutora Pereira?
(Deixa o telefone.) Ouvi bem claro: doutora.
|
|
EULÁLIA.- Ainda bem. Então
é para a menina?
|
|
MARIA.- Sim.
|
|
EULÁLIA.- Vou ver lá dentro o que
está fazendo a cozinheira. Nunca vi peste maior!
|
|
(MARIA senta-se
à mesa e lê jornais.)
|
Cena
III
|
|
MARIA Praxedes
e LUÍSA.
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|
LUÍSA.- (Entrando.)
Bom-dia, minha mãe!
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|
MARIA.- Há uma semana que não me
apareces, Luísa, vim ver-te.
|
|
LUÍSA.- Não tenho um minuto de que
possa dispor!
|
|
MARIA.- Quando se quer, minha filha...
|
|
LUÍSA.- É que a mamãe
não imagina, nem pode imaginar o que é a vida da
médica. Estou visitando doentes desde as seis horas da
manhã. (Puxando a lista.) E veja a
via-sacra que tenho de percorrer ainda hoje.
|
|
MARIA.- És na verdade muito feliz na tua
clínica!
|
|
LUÍSA.- Estou formada há um ano e
quatro meses, posso dizer com orgulho que neste curto espaço
de tempo tenho feito mais que todos os meus colegas juntos.
|
|
MARIA.- Pena é, entretanto...
|
|
LUÍSA.- Já sei a que vai se
referir. Às lutas que se dão aqui nesta casa entre
mim e meu marido. O que quer a senhora? Tenho eu porventura a culpa
de que ele procure por todos os meios prejudicar os meus
interesses, tomando doentes que são meus, exclusivamente
meus?
|
|
MARIA.- Mas minha filha, há porventura,
meu e teu num casal que se estima?
|
|
LUÍSA.- Há, sim senhora; quando
esse meu e teu representa o esforço de cada um. Eu
não sou uma mulher vulgar que veio colocar-se pelo fato do
casamento sob a proteção de um homem. A minha
posição no casal é igual, perfeitamente igual
à de meu marido sob o ponto de vista do trabalho. Mas acima
desse ponto de vista há ainda outra coisa que a senhora
não quer compreender. Sabe qual é?
|
|
MARIA.- Ignoro, minha filha!
|
|
LUÍSA.- É a minha personalidade
científica, a minha autonomia médica que meu marido
tem tentado ofuscar; mas que eu hei de obrigá-lo a
reconhecer, custe o que custar. Custe o que custar, ouviu minha
mãe?
|
|
MARIA.- (Á parte.) Meu
Deus! (Alto.) Mas vocês então
não se amam?
|
|
LUÍSA.- Amamo-nos, minha mãe,
amamo-nos. É preciso porém que cada um se conserve no
seu posto; que as nossas posições se definam; ou por
outra, é preciso que meu marido se convença de que eu
posso ganhar perfeitamente a minha vida sozinha e de que ele
não é mais inteligente do que eu! (Pondo a
mão na cabeça e sentindo como que uma
vertigem.)
|
|
MARIA.- O que tens?
|
|
LUÍSA.- Nada.
|
|
MARIA.- (Apalpando-lhe o
pulso.) Mas estás em suores frios.
|
|
LUÍSA.- Estou-me sentindo um pouco
enjoada... Mas já passou! Já passou!
|
|
MARIA.- É fraqueza talvez, minha filha.
Saíste de manhã tão cedo, sem comer nada.
|
|
LUÍSA.- Tomei ovos quentes e uma
xícara de café.
|
|
MARIA.- Não é bastante. Vou ver se
há lá dentro alguma coisa. (Vai a
sair.)
|
|
LUÍSA.- Não é preciso. Diga
a Eulália que mande entrar os doentes lá embaixo.
(Maria sai. Luísa tirando uma lista do bolso e um
lápis.) Rua das Marrecas, já fui;
Praça do Rocio Pequeno, Largo do Machado...
(Senta-se à mesa, abre um livro e escreve
assentamentos.)
|
Cena
VII
|
|
LUÍSA e
EULÁLIA.
|
|
(Ao sair a terceira doente, Luísa toca o
tímpano que está em cima da mesa.)
|
|
EULÁLIA.- (Entrando.)
A senhora quer alguma coisa?
|
|
LUÍSA.- Diz ao Antônio que
vá chamar-me um tílburi.
|
|
EULÁLIA.- Vai sair?
|
|
LUÍSA.- Vou.
|
|
EULÁLIA.- (Vai saindo e
volta.) Ah! é verdade. Recebi pelo telefone um
chamado para a senhora.
|
|
LUÍSA.- De quem?
|
|
EULÁLIA.- Do Senhor Salazar, da Rua do
Hospício.
|
|
LUÍSA.- É uma casa onde meu marido
está tratando. Ouviste bem: é para mim ou para
ele?
|
|
EULÁLIA.- Para a Doutora Luísa
Pereira, ouvi bem claro. E a mãe da menina que estava aqui
ouviu também: Doutora Luísa Pereira. Mas isto
é fácil de verificar, senhora, temos ali o
telefone... sim, porque eu não quero que venha o
patrão depois cá dizer-me como aconteceu outro
dia...
|
|
LUÍSA.- Está bom, vai chamar o
tílburi.
|
|
EULÁLIA.- Não senhora, é
que as injustiças doem muito e não há neste
mundo nada mais triste que pagar o justo pelo pecador...
|
|
LUÍSA.- Sim, sim... Mas vai chamar o
tílburi.
|
|
EULÁLIA.- Eu nunca fui apanhada em
mentiras. Graças a Deus tenho a minha consciência
muito pura e a filha de Manuel Tibúrcio, que Deus haja,
não é pra aí qualquer mulher à toa de
cuja palavra se possa duvidar.
|
|
LUÍSA.- Se não queres ir dar o
recado, vou eu.
|
|
EULÁLIA.- Vou, sim senhora, mas...
|
|
LUÍSA.- Está bom, está bom!
(Empurrando-a para dentro.)
|
Cena
VIII
|
|
LUÍSA e
GREGÓRIO.
|
|
GREGÓRIO.- (Entrando com ar meio
apalermado.) Não é aqui que mora uma
doutora que tem anunciado nos jornais?
|
|
LUÍSA.- Sim, senhor!
|
|
GREGÓRIO.- Ainda que mal pregunte,
é Vossa Senhoria?
|
|
LUÍSA.- Uma sua criada.
|
|
GREGÓRIO.- Uê, gentes!
Tinham-me dito lá na roça que era uma muié
véia e feia. Ora esta! (Pausa.) Trata
mesmo de moléstias de homens?
|
|
LUÍSA.- Por que não?
|
|
GREGÓRIO.- Descurpe, mas eu
pensava...
|
|
LUÍSA.- A consulta é para o senhor
ou para alguém de sua família?
|
|
GREGÓRIO.- É para mim mesmo,
sinhá dona...
|
|
LUÍSA.- Conte-me lá o que sofre.
(Manda-o sentar e senta-se a seu lado.)
|
|
GREGÓRIO.- Em premero que tudo tenho
muita farta de ar e muitas sufocações. Porém o
que mais me avexa é uma dor forte aqui mesmo na boca do
estambago. (Aponta para o lugar.)
|
|
LUÍSA.- Mas esta dispnéia e esta
dor.
|
|
GREGÓRIO.- Na espinhela não
tenho nada, não, sinhá dona.
|
|
LUÍSA.- Não, não é
isto. Pergunto-lhe se esta falta de ar costuma vir antes ou depois
das refeições.
|
|
GREGÓRIO.- De premero vinham
antes... mas agora vem ao despois... Já
consurtei a halipatia, homopatia, a
dosometria, tudo, tudo. Afinal disseram-me lá na
roça: -Você já foi ao Nascimento? Já foi
ao caboclo da Praia Grande? Pra que não vai vê
a Doutora? Tarvez ela te dê vorta. E aqui estou
nas mão da sinhá dona.
|
|
LUÍSA.- Tire o paletó.
|
|
(GREGÓRIO tira o paletó,
LUÍSA vai buscar
uma toalha, coloca-a nas costas de GREGÓRIO e
ausculta-o.)
|
|
LUÍSA.- Conte, um, dois,
três...
|
|
GREGÓRIO.- Um... dois...
três...
|
|
LUÍSA.- Vá contando.
|
|
GREGÓRIO.- Quatro... 5... 6...7... 8...
9... 10... 11...
|
|
LUÍSA.- Respire. (GREGÓRIO toma
aspiração.) Respire mais forte.
(GREGÓRIO
respira mais forte.) Mais forte ainda.
|
|
(GREGÓRIO fica de boca aberta
tomando uma longa respiração. LUÍSA passou a
auscultá-lo pela frente colocando a cabeça no
peito.)
|
|
GREGÓRIO.- Que banha cheirosa tem
sinhá dona na cabeça!
|
|
LUÍSA.-
(Levantando-se.) Deite-se ali naquele
sofá. (GREGÓRIO deita-se de
lado.) Não, de barriga pra o ar.
(GREGÓRIO
deita-se de barriga para cima.) Desabotoe-se.
|
|
GREGÓRIO.-
(Espantado.) Desabotoar-me?
|
|
LUÍSA.- Sim, desabotoe o colete!
(GREGÓRIO
desabotoa o colete.) Encolha as pernas.
|
|
(GREGÓRIO encolhe as pernas.
LUÍSA apalpa-lhe o
fígado.)
|
|
GREGÓRIO.- (Saltando do
sofá.) Ah! Ah! Ah!... Não faça isso,
sinhá dona, que eu sinto coscas como quê...
|
|
LUÍSA.- Deite-se, desse modo não
posso examiná-lo. (GREGÓRIO deita-se de pernas
encolhidas. LUÍSA
apalpa-lhe o fígado.) Dói aqui?
|
|
GREGÓRIO.- Ah! Ah! Ah! Que coscas!
|
|
LUÍSA.- (Sentando-se à
mesa.) Pode vestir-se! (Escreve a receita e
entrega a GREGÓRIO.) Tome as
pílulas duas vezes por dia; uma ao deitar e outra logo pela
manhã. O emplastro é para colocar sobre o
fígado. Mande fazer isto na botica do Nogueira, no Largo da
Lapa.
|
|
GREGÓRIO.- A sinhá dona
qué que eu pague já ou despois?
|
|
LUÍSA.- Depois.
|
|
GREGÓRIO.- Antão quando
é que devo vortá?
|
|
LUÍSA.- Para a semana.
|
|
(GREGÓRIO vai saindo e
encontra-se à porta com o DR. PEREIRA.)
|
Cena
XI
|
|
Os mesmos e MARIA Praxedes.
|
|
MARIA.- (Entrando com uma xícara
de caldo.) Toma este caldo, minha filha.
|
|
DR. PEREIRA.- Então a senhora quer
positivamente a luta?
|
|
LUÍSA.- Estou preparada, não me
arreceio dela.
|
|
MARIA.- Meus filhos, pelo amor de Deus, por tudo
quanto pode haver de mais sagrado neste mundo...
|
|
DR. PEREIRA.- (A MARIA.) Ah! minha senhora,
estou cheio até aqui. (Indica a
garganta.) Acha que posso, que devo continuar nesta
posição humilhante?
|
|
MARIA.- Toma o caldo, minha filha.
|
|
LUÍSA.- Não quero, minha
mãe.
|
|
(MARIA
põe a xícara em cima da mesa.)
|
|
DR. PEREIRA.- Perdi o meu nome como um
galé. Deixei de ser o Doutor Pereira para ser o marido da
Doutora Luísa Praxedes.
|
|
LUÍSA.- Logo que nos casamos, passei a
assinar-me Doutora Luísa Pereira. Tomei, por
deferência, o seu nome de família do qual
aliás, seja dito de passagem, não precisava. Com o
seu nome tenho-me anunciado, com este tenho receitado. Se o
público continua a conhecer-me pelo apelido antigo, é
porque ainda estão bem vivos na sua memória os
sucessos que alcancei na Academia e vai acompanhando
paripassu a marcha progressiva da minha carreira
científica! Tenho eu porventura culpa disso?
|
|
DR. PEREIRA.- Os sucessos da Academia!... A
marcha progressiva da sua carreira científica! A sua pomada
é que a senhora deve dizer!
|
|
LUÍSA.- Pomadas são os
agradecimentos de doentes, feitos nos jornais e à custa do
médico que os tratou. São as estatísticas
publicadas mensalmente nas folhas públicas com exagero
escandaloso de cifra e mencionando pomposos nomes, para embair o
público, as mais singulares operações.
|
|
DR. PEREIRA.- Não me provoque, senhora,
peço-lhe pelo amor de Deus que não me provoque...
|
|
MARIA.- (Entre os dois.)
Acalmem-se, meus filhos.
|
Cena
XII
|
|
Os mesmos e MANUEL Praxedes.
|
|
MANUEL.- (Entrando e ouvindo a
discussão.) Então o que é isto?
Estão brigando? Discussões científicas!...
Bravo! muito bem.
|
|
LUÍSA.- Pomada! O senhor era o menos
competente para atirar-me ao rosto semelhante nome. A minha
clínica...
|
|
DR. PEREIRA.- A sua clínica
desaparecerá, minha senhora, no dia em que as mulheres
formarem-se às dúzias e aos centos.
|
|
MANUEL.- E este dia não está
longe. Em todo caso, cabe à minha doutora a
glória...
|
|
MARIA.- (Baixo a MANUEL Praxedes.) Pois em
vez de acalmar, estás a fomentar discussões!
|
|
MANUEL.- Deixa, mulher, isto é muito
bonito!
|
|
LUÍSA.- No dia em que as mulheres
formarem-se aos centos, a medicina terá tocado o
zênite da sua glória; porque só assim
entrarão nela as aptidões científicas que
até aqui os senhores, egoisticamente, nos têm negado,
e os sentimentos de caridade que são o mais belo
apanágio do nosso sexo.
|
|
MANUEL.- Muito bem!
|
|
DR. PEREIRA.- Sinto não ter vontade de
rir; porque o que acaba de dizer só pode ser respondido com
uma gargalhada, Senhora Doutora Luísa Praxedes... Note que
eu digo Doutora Luísa Praxedes, e não Doutora
Luísa Pereira.
|
|
LUÍSA.- O grau que recebi foi de Doutor e
não de Doutora! A Faculdade de Medicina não conhece
Doutoras. Uma vez que toca neste ponto, fique sabendo que vou
mandar tirar a placa que está lá embaixo, e declarar
pelos jornais que doravante assinar-me-ei Doutor Luísa
Praxedes porque foi este o nome com que me formei.
|
|
MANUEL.- (Para MARIA.) Sim, senhora!
Lá isto é verdade!
|
|
DR. PEREIRA.- Pois bem, Senhora Doutora ou
Doutor Luísa Praxedes, como queira, eu não estou
disposto a representar por mais tempo o papel ridículo de
marido de parteira, de professora pública ou de cantora
lírica. Sou cabeça do casal. Tenho a minha
posição definida em Direito perante a família
e perante a sociedade. Ou a senhora muda de rumo ou...
|
|
LUÍSA.- Acabe o dilema.
|
|
DR. PEREIRA.- Ou eu dou-lhe uma
lição que lhe há de ser fatal.
|
|
(Sai.)
|
Cena
XV
|
|
MANUEL e
MARIA
Praxedes.
|
|
MARIA.- Já viste a tua obra. Estás
satisfeito?
|
|
MANUEL.- Satisfeitíssimo. O que querias
tu? Que um casal de doutores andasse a brigar por causa de arrufos
ou questiúnculas de governo de casa?
|
|
MARIA.- Os arrufos e questiúnculas do
governo doméstico, meu caro marido, sempre existiram no
nosso lar, mas nunca nos levaram, felizmente, ao excesso das cenas
a que acabamos de assistir.
|
|
MANUEL.- São discussões
científicas, minha mulher, muito naturais. Antigamente
brigava-se por ciúmes e faziam-se as pazes depois do
clássico faniquito. Há ainda hoje quem faça
disto, bem sei. Mas o nosso genro e Luísa não
estão nas mesmas condições.
|
|
MARIA.- Genro? Genro no nome, porque eu pelo
menos, até aqui, sogra não tenho sido.
|
|
MANUEL.- Não tens sido sogra?... Ora
esta!
|
|
MARIA.- Nas rixas que se dão
constantemente nesta casa já viste envolvido o meu nome? Sou
para o Doutor Pereira uma criatura completamente indiferente. Dos
seus lábios ainda não partiu contra mim a mais
pequena censura, ou uma palavra sequer que deixasse transparecer
embora sutilmente o veneno do epigrama.
|
|
MANUEL.- E queixas-te por isso? Queria que ele
te chamasse como costumam chamar as sogras: víbora,
jararaca, cascavel...
|
|
MARIA.- Queria ser uma sogra em regra, porque
só assim teria a certeza de que minha filha era
verdadeiramente feliz.
|
|
MANUEL.- Mas tu não vês, Maria
Praxedes, que este casamento é uma coisa completamente nova?
É a primeira experiência que se faz. As peças
do maquinismo ainda não estão bem assentadas,
não podem por conseguinte trabalhar com a regularidade de um
maquinismo já experimentado. Espera um pouco, deixa a coisa
entrar em seus eixos e verás que nisto que tu condenas
atualmente está a família do futuro, a sociedade do
futuro, a felicidade do futuro...
|
|
MARIA.- Havemos de ver este futuro.
|
Cena
XVI
|
|
Os mesmos e CARLOTA de Aguiar.
|
|
CARLOTA.- (Entrando.) Entrei
sub-repticiamente sem me fazer anunciar.
|
|
MANUEL.- Ora, seja bem-vinda, Doutora!
|
|
CARLOTA.- (Inclinando-se diante de
MARIA.) Minha
senhora, a curvatura de meus respeitos.
|
|
MANUEL.- Sinceros parabéns pelos triunfos
alcançados anteontem no júri. Li em todos os jornais
a notícia da sua brilhante defesa.
|
|
CARLOTA.- Foi um debate homérico; com
réplica e tréplica, em que derroquei à luz da
aurora bruxuleante do Direito moderno, os castelos carcomidos da
vetusta legislação, crivados de teorias incongruentes
e obsoletas.
|
|
MANUEL.- E tratava-se de um caso completamente
novo.
|
|
CARLOTA.- A esposa que surpreende o marido com a
amante e que resolve a situação trucidando os dois.
Mas deixemos o júri, a minha defesa, os meus triunfos. O que
me traz aqui é um motivo de ordem grandíloqua,
elevada e arquicivilizadora. Senhor Manuel Praxedes, apresento-me
candidato à Deputação Geral, pelo
Município Neutro.
|
|
MANUEL.- Bravo! Bravo! Muito bem!
|
|
MARIA.- Pois as senhoras querem também
ser deputadas?
|
|
MANUEL.- Por que não? Nos Estados Unidos,
as mulheres são caixeiras, empregadas nos telégrafos,
nas estradas de ferro, nos correios... são até
capitães de navios.
|
|
CARLOTA.- Até bombeiras. Amanhã
sairá em todas as folhas a minha circular. Nesta peça
estereotipo o programa das reformas sociológicas femininas
de que pretendo dotar o meu país. Vai ver, fica a mulher
equiparada ao homem em tudo por tudo. É uma
revolução.
|
|
MANUEL.- Creio bem!
|
|
CARLOTA.- O Brasil está
atrasadíssimo na ciência do Direito. Basta considerar
que esta ciência não corresponde às
aspirações grandíloquas condóricas se
é que posso exprimir-me assim...
|
|
MANUEL.- Perfeitamente.
|
|
CARLOTA.- Do nosso progresso material. O
telefone invade tudo, o telefone leva o pensamento às mais
longínquas distâncias e entretanto ainda não
temos o Direito Telegramático, a Jurisprudência
Telefonética.
|
|
MANUEL.- O telefone podia ter acabado com as
precatórias...
|
|
CARLOTA.- Justo. Entrou perfeitamente no
âmago do meu pensamento.
|
|
MANUEL.- Quando houvesse necessidade de deprecar
de um juízo para outro, para uma avaliação por
exemplo...
|
|
CARLOTA.- O juiz a quo ia ao telefone, o
ad quem ouvia...
|
|
MANUEL.- Procedia à
avaliação...
|
|
CARLOTA.- E gritava pelo telefone: está
cumprida a diligência. Quanta economia de tempo...
|
|
MANUEL.- E de papel!...
|
|
CARLOTA.- Apoiado! (Tirando do bolso
cartões e entregando a MANUEL Praxedes.) Aqui tem
para distribuir pelos seus amigos. (O mesmo a MARIA.) Peço-lhe,
minha senhora, que advogue também a minha causa; vai nela
hasteada a flâmula da emancipação feminina, que
hei de defender até a morte com o gládio
incandescente do meu humilde verbo!
|
|
MANUEL.- (Lendo os
cartões.) «Para Deputado Geral pelo Primeiro
Distrito da Corte: Bacharela Carlota Sinfrônia de Aguiar,
advogada. Telefone 2028». (A CARLOTA.) Muito bem!
|
Cena
XX
|
|
DR. PEREIRA e
EULÁLIA.
|
|
DR. PEREIRA.- Vem cá, Eulália.
(Tira do bolso uma seringa.)
|
|
EULÁLIA.- O patrão deseja alguma
coisa?
|
|
DR. PEREIRA.- (Mostrando a
seringa.) Sabes o que é isto?
|
|
EULÁLIA.- Sei, sim senhor; é uma
seringa.
|
|
DR. PEREIRA.- Mas o que tu não sabes,
é o que está dentro dela.
|
|
EULÁLIA.- Aí dentro não
vejo nada.
|
|
DR. PEREIRA.- Pois olhe, aqui dentro está
o micróbio da febre amarela.
|
|
EULÁLIA.- Cruz!!... Credo, meu amo!...
Abrenúncio! Arrede-se para lá. Mas o que vem a
ser isto de sicróbio?
|
|
DR. PEREIRA.- É um bichinho.
|
|
EULÁLIA.- Então a febre amarela
é um bicho? Ora esta!
|
|
DR. PEREIRA.- O que tu não sabes ainda
é que metendo-se este bichinho no corpo de uma pessoa fica
ela livre de ter o mal.
|
|
EULÁLIA.- Pois então a febre
é um bicho; mete-se o bicho no corpo da gente e a gente
não tem febre? Tenha paciência, patrão, eu
não engulo esta.
|
|
DR. PEREIRA.- É muito simples.
|
|
EULÁLIA.- E como se apanha o
bichinho?
|
|
DR. PEREIRA.- Com um instrumento que nós
temos, chamado chupete esterilizado.
|
|
EULÁLIA.- Chupete esterelizado,
sim, senhor. (Prestando muita
atenção.)
|
|
DR. PEREIRA.- Tira-se uma gota de sangue de um
doente de febre amarela quase a expirar. Esta gota é deitada
em caldo apropriado. Aí o bichinho prolifera!
|
|
EULÁLIA.- O que vem a ser prolifera,
patrão?
|
|
DR. PEREIRA.- Procria, desenvolve-se.
|
|
EULÁLIA.- Dentro do caldo! Tudo aquilo?
(Faz um gesto com as mãos como indicando
formigamento.) Jesus! que porcaria!
|
|
DR. PEREIRA.- Depois mete-se uma
porção daquele caldo dentro desta seringa e injeta-se
em um porquinho da Índia ou em um coelho.
|
|
EULÁLIA.- Ai! O pobre bichinho, coitado,
morre logo!
|
|
DR. PEREIRA.- Não; daí a alguns
dias.
|
|
EULÁLIA.- E depois?
|
|
DR. PEREIRA.- Depois tira-se uma gota de sangue
deste porquinho da Índia e põe-se em um caldo
idêntico. Deste caldo injeta-se ainda outros porquinhos que
vão morrendo até que injetado num, ele tenha apenas a
febre com caráter benigno. Com o caldo deste então
é que se vacina o homem.
|
|
EULÁLIA.- Quanto caldo e quanta porcaria,
meu amo. Já sei que hoje não janto com o diabo da
conversa. Se já estou aqui engulhando...
|
|
DR. PEREIRA.- Eulália, a epidemia
está grassando com muita intensidade, tu és
estrangeira, além disto forte e robusta. Estás
sujeita de um momento para outro a ter a febre...
|
|
EULÁLIA.- O que é que o
patrão quer?
|
|
DR. PEREIRA.- Vacinar-te.
|
|
EULÁLIA.- O quê? Meter essa seringa
no meu corpo? Com caldo de febre amarela? Em mim o senhor
não mete isto, não, mas é o mesmo. Chegue-se
para lá, patrão.
|
|
DR. PEREIRA.- Mas isto não dói,
é uma coisa à toa. Não vês; é uma
pequena seringa de Pravat.
|
|
EULÁLIA.- E seringa depravada ainda de
mais a mais.
|
|
DR. PEREIRA.- Dá cá o
braço, deixa-te de histórias.
|
|
EULÁLIA.- (Gritando.)
Socorro! Socorro! Aqui del Rei!
|
Cena
XXI
|
|
Os mesmos, MANUEL, MARIA e LUÍSA.
|
|
LUÍSA.- (Entrando.) O
que é isto?
|
|
MANUEL.- O que foi?
|
|
MARIA.- Eulália?
|
|
EULÁLIA.- (Para LUÍSA.) Oh! senhora,
tire aquela seringa depravada da mão do patrão, ou
arrumo a minha trouxa e vou-me embora.
|
|
DR. PEREIRA.- Está bem; não te
zangues.
|
|
LUÍSA.- (Ao DR. PEREIRA.) Acho pouco
curial que o senhor queira estender até as fâmulas
desta casa a aplicação das suas teorias microbianas
quando sabe que as não aceito. (DR. PEREIRA ri furioso.)
Venho de casa de um doente seu.
|
|
DR. PEREIRA.- Está gracejando.
|
|
LUÍSA.- De um doente seu. E vim correndo
dar-lhe esta notícia, para dizer-lhe que, declarando-me ele
que não depositava confiança no tratamento, discordei
do seu diagnóstico e receitei.
|
|
DR. PEREIRA.- E quem é esse doente?
|
|
LUÍSA.- O filho do Salazar, da Rua do
Hospício.
|
|
EULÁLIA.- O chamado foi para a senhora!
Eu ouvi no telefone. (Voltando-se para MARIA.) E a patroa
também ouviu!
|
|
MARIA.- Eu ouvi bem claro; Doutora Luísa
Pereira.
|
|
DR. PEREIRA.- (Com raiva
concentrada.) Minha senhora! Eu disse-lhe que havia de
dar-lhe uma lição. O que a senhora acaba de praticar
é...
|
|
LUÍSA.- Diga.
|
|
DR. PEREIRA.- Não digo. Tenho ainda a
generosidade de guardar para com o respeito que se deve ao seu
sexo, atenções que a senhora não teve para com
a profissão que exerce. Depois do ato que acaba de praticar
é impossível a nossa vida juntos. Vou deixar esta
casa.
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LUÍSA.- Uma separação!
Aceito-a! Mas quero que ela seja completa.
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MARIA.- Meus filhos!
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LUÍSA.- Vou mandar chamar meu
advogado.
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(Sai.)
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(MARIA
encosta-se à mesa.)
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