
Cantigas de Martim Codax, presumido jogral do secolo XIII
J. J. Nunes
Entre os poetas cujos nomes e composições nos foram transmitidos pelos Cancioneiros da Vaticana e Colocci-Brancuti figura Martim Codax com sete cantigas, que ali teem respectivamente os números 884 a 890 e 1278 a 1284. Em 1914, numa fôlha de pergaminho que, dobrada ao meio, servia de fôrro interior às capas de um manuscrito do século XIV, o qual continha o De Officiis de Cícero e havia sido encadernado por algum monge, no século XVII ou XVIII, depois de descolada, descobriu o livreiro- antiquário de Madrid, Pedro Vindel, as mesmas cantigas e para mais, o que lhes dava valor inestimável, acompanhadas da respectiva notaçaõ musical, com excepção apenas da 6.ª em que só se escrevera a pauta. Essa fôlha, que no ano imediato o mesmo deu a lume em facsimil e com oito fotogravuras, foi por D. Carolina Michaëlis de Vasconcelos, que dela e do seu conteúdo se ocupou na Revista de Filologia Castellana do mesmo ano, em artigo intitulado A propósito de Martim Codax e das suas Cantigas de amor, atribuída ao século XIII; Eládio Oviedo y Arce, que, no Boletin de la Real Academia Gallega dos anos 1916 e 1917, publicou um substancioso e erudito estudo sôbre El genuino Martim Codax, trovador gallego del siglo XIII, classifica-a igualmente de trecentista e tem-a na conta de apógrafo.
Pertencem essas cantigas ao número das que a Poética fragmentária, que precede o Cancioneiro de Colocci-Brancuti, chama de amigo, isto é, as que os trovadores costumavam pôr em bôcas femininas, como se por mulheres tivessem sido compostas, consideradas, porém, mais especialmente e em harmonia com o assunto de que tratam, poderão as 1.ª, 3.ª, 5.ª e 7.ª ser classificadas de barcarolas ou marinhas. Tôdas elas apresentam cunho popular, assim no ritmo, fácil e harmonioso, como no paralelismo de expressões que as caracteriza, similhante ao que se observa noutras do mesmo tempo e posteriores, embora o seu autor por vezes não o tenha seguido com todo o rigor1. As estrofes e versos são os empregados nas composições do mesmo género e feitio: dísticos aquelas e estes de cinco (a IIª), seis(Iª), sete (VIª), oito (VIIª) e nove (IVª e Vª) sílabas; apenas os da IIIª julgo pertenecerem à espécie chamada pelos antigos arte-maior, isto é, constantes de dois hemistíquios, ambos femininos ou terminados por palavras graves, compostos os primeiros de seis versos e os segundos de cinco; os estribilhos, com excepção da primeira e segunda, se, como penso, se fundir a conjunção e com a vogal seguinte, ou antes, se a considerarmos acrescento posterior2, divergem, segundo o uso mais em prática, dos outros versos no número das sílabas, sendo trissílabo agudo o da sexta, pentassílabo, setessílabo e octossílabo, todos graves, respectivamente os da quarta, terceira e quinta, apenas o da sétima se compõe de dois versos, um grave, outro agudo, aquele setessílabo, êste bissílabo. A rima é em geral toante, mas estrofes há em que as últimas palavras dos dísticos são concordes nos finais dos versos.
Mas não é só a letra e contextura das cantigas que teem aspecto popular, possui-o também a música que as acompanha e o distinto músicografo, o cónego Tafall Abad, transplantou para anotação moderna e publicou no referido Boletin3. Como outros, entre os quais o próprio rei D. Denis, foi nos cantares do povo que o seu autor se inspirou, foi dêles que tomou a forma e o canto que lhes deu, mas, ao contrário de quási todos, a êles se cingiu exclusivamente, afastando-se assim da moda, então dominante entre os freqüentadores da côrte, de imitarem de preferência modelos estranhos, oriundos da Provença.
Não só do número, relativamente grande, que delas há nos Cancioneiros trovadorescos, mas ainda das que se encontram em Gil Vicente o das que actualmente existem na província de Trás-os-Montes, parece deduzir-se que oram as cantigas chamadas paralelísticas ou talvez antes retornadas, como o D.or Leite de Vasconcellos diz ter ouvido lá chamar-se-lhes, as que gozavam de especial predilecção entre o povo, de-certo por mais do que outras traduzirem o seu modo de pensar, tornando-se assim verdadeiramente populares. Não quer isto dizer que elas tivessem por autor o povo, no seu conjunto massa bruta e incapaz de inspiração poética, mas sim que alguns dos seus membros, mais cultos e dotados de maior engenho e aptidão poética, soubessem traduzir os seus sentimentos por forma tão perfeita que o povo perfilhou as suas composições. É o que ainda hoje sucede com os próprios poetas cultos. Pois não sabemos de poesias dêstes que, caindo nos ouvidos da gente inculta, de tal maneira lhe agradaram que as acolheu e por vezes mesmo as alterou, embora nem sempre com felicidade?4 É o que se observa sobretudo nos romances. Portanto, se damos às peralelísticas e mesmo outras cantigas que se lhes assemelham na forma e estilo o nome de populares, não queremos com isto significar que elas hajam sido compostas «colectiva e contemporáneamente pela nação inteira»5, mas antes que tenham tido por autores indivíduos que com arte e inteligência souberam exprimir a maneira de ser o pensar do povo. Não vemos ainda hoje em bailes populares um ou outro dos que neles tomam parte, quer homens, quer mulheres, improvisarem cantigas? E das que correm entre o povo e são constantemente cantadas por êle, em tal quantidade que dão para um bom volume, quem as compôs? De uma ou outra conhece-se o autor, ruas na sua quási totalidade são criações dêste ou daquela, que os outros abraçaram, propagando-as de geração ou geração. O mesmo a respeito das paralelísticas em especial. Sabe-se que o paralelismo não é exclusivo da antiga poesia portuguesa, encontra-se quási por tôda ã parte. Adoptado por antigos e desconhecidos poetas, foi continuado pelos que se lhes seguiram e cujos nomes os Cancioneiros nos transmitiram, os quais, caminhando na esteira dos seus antecessores, por essa fo rma cantaram, como êles, os sentimentos mais vulgares do coração humano, sobretudo os dominantes na gente môça de ambos os sexos, isto é, o amor e as alegrias o tristezas que o acompanham.
Pode ser que essa maneira do construir os versos, repetindo-os apenas com a troca, no fim de cada um, de uma palavra por outra sinónima, e o leixa-pren, que são as características de tais cantigas, não tenham origem popular e sim liter ária (eclesiástica, como alguns pensam), mas no assunto não vejo nada mais popular do que esta, por exemplo, encontrada com outras pelo D.º Leite de Vasconcellos no concelho de Bragança
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a qual ficaria semelhante às paralelísticas dos Cancioneiros trovadorescos e de Gil Vicente, se disposéssemos os seus versos pela maneira seguinte, isto é, não separando as duas vozes:
Quem fósse Martim Codax nada sabemos, apenas o seu nome, constituído pelo de baptismo e outro mais, que bem pode ter sido alcunha7, e a singeleza das suas cantigas o denunciam como pertencente à classe dos jograis e delas parece deduzir-se que era natural de Vigo ou dali perto; a inserção das mesmas no Livro das Trovas, mandado coleccionar pelo Conde de Barcelos e por êste legado em 1356 a Afonso XI, rei de Castela e Leão, leva-me a crer que êle tivesse freqüentado a cõrte de Afonso III.
Vejamos agora o seu conteúdo.
Na Iª e na VIIª o seu autor apresenta-nos uma mulher, certamente nova e namorada, a qual, pungida de saüdades do ausente amigo, vem até às praias de Vigo, em cujas cercanias, parece, morava, na esperança de ver talvez surgir o navio que o há-de trazer e, dirigindo-se às ondas8, pede-lhes que lhe doem notícias dêle. Na IIª ela exulta de prazer, por ter sido informada de que êle em breve estará de volta o declara à mãe que irá esperá-lo a Vigo. Na IIIª e na IVª convida a irmã e todas as namoradas a irem contemplar as ondas ou a banharem-se nelas, mas no intuito e desejo de lá encontrar o dilecto do seu coração. Na IV, a sós consigo, lamenta a sua ausência e a lembrança do amado inunda-lhe as faces de lágrimas. Finalmente na VIª conta-nos o jogral como, andando a bailar com outras no adro da igreja de Vigo9, ela pela primeira vez sentiu no coração os rebates do amor e, cheia de satisfação por tal descoberta, exclama para as que a acompanhavam amor ei, expressão que pelo sentido equivale a estoutra: já tenho namorado
D. Carolina Michaëlis de Vasconcelos, não obstante ver nas cantigas codacianas «scenas isoladas e não de evolução progressiva, episódios da vida de uma menina que vivia perto de Vigo o simultâneamente da do jogral», estribada nas palavras amigo d'el-rei, que na IIª a donzela aplica ao seu predilecto, supõe tratar-se de algum nobre namorado que, não sabendo fazer versos, encarregara disso o nosso jogral: eu, porém, levado pelas referências que algumas cantigas trovadorescas teem com a vida dos seus autores, penso que estas também descrevem scenas passadas com o próprio Martim Codax e explico aquelas palavras pela sua habilidade poética e musical, que o tornaria muito apreciado na côrte- de Afonso III, se é que por ventura alguma vez lá esteve, ou talvez antes nas hostes de S. Fernando, que levaram nobres e plebeus galegos à conquista de Sevilha, a ponto tal que um ou outro dêstes monarcas lhe dispensasse especial protecção e amizade, sobretudo o segundo, que, no dizer da Cron. General, não só apreciava os fidalgos que sabiam trovar o cantar e até os jograis bons tocadores de instrumentos, mas êle próprio cultivava a poesia, não vou contudo tão longe que creia que elas constituem um poemeto com sua unidade, como quer o referido Oviedo y Arce, que nessa suposição as divide em cinco quadros, a que dá estes títulos: 1.º Conquista do namorado; 2.º Uma entrevista; 3.º Horas tristes; 4.º A boa nova e 5.º Dia feliz, incluindo no 1.º a cantiga VIª, entendendo que uma donzelinha dos arredores de Vigo, andando a dançar e a cantar com outras raparigas no adro da igreja, encontra o seu primeiro amor; pertencendo ao 2.º a IIIª, que se referiria ao encontro dela com êle no mesmo lugar onde pela primeira vez se haviam visto, encontro que ela própria teria aprazado, mas dando como pretexto à irmã, para que a acompanhasse, o desejo de gozar o formoso espectáculo das águas da baía e confessando à mãe, só depois de lá chegar, o verdadeiro motivo que ali a levava; no 3.º metendo a IVª, Iª e VIIª, persuadido de que elas se referem às saüdades que a devoram durante a ausência dêle, fazendo entrar no 4.º a IIª, que exprimiria a imensa satisfação que lhe trouxera a notícia, acabada de receber, que o seu amigo estará de volta muito em breve, e o seu intento de ir esperá-lo ao pôrto de Vigo, pondo finalmente no 5.º a Vª, por ver nela um convite às amigas a que a acompanhassem à chegada do amigo e ao banho de amor10 nas águas da ria, faltando só, para remate do pequenino poema, que êle baptiza de A Enamorada de Vigo, uma cantiga referente às bodas dos dois amantes.
As expressões tão sentidas que em tôdas estas cantigas se encontram revelam, a meu ver, que elas só poderiam sair de um coração verdadeiramente apaixonado; só quem, por experiência própria, soubesse quanto custa a separação a dois entes que se estremecem saberia compôr a 1.ª, 4.ª e 7.ª, que são verdadeiros gritos de uma alma, despedaçada pela saüdade. Ao contrário, na 2.ª sente-se palpitar o júbilo da protagonista, ante a ideia de que em breve tornará a ver aquele que era, por assim dizer, o sol da sua existência e cuja vista só lhe enxugaria as lágrimas que de contínuo lho marejavam os olhos. Por estas razões penso que o seu autor, ao compô-las, extravasou nossas cantigas os próprios sentimentos e que portanto Martim Codax deixou-nos aí parte da sua biografia, apenas um episódio da sua vida amorosa.
Que elas não datam tôdas do mesmo tempo vê-se claramente do seu conteúdo. E evidente que a 1.ª, 4.ª e 7.ª foram compostas, quando o seu autor se achava longe da terra natal, separado portanto da namorada, ou nalguma das duas côrtes de Espanha ou Portugal, ou talvez antes na Andaluzia, fazendo parte das hostes que cercavam Sevilha; a 2.ª vê-se bem que foi feita em vésperas de regresso à pátria, onde ansiosa o aguardava aquela de quem êle era o constante pensar, a mais antiga parecendo ser a 6.ª, seguindo-se-lhe a 3.ª o 5.ª, isto é, o comêço dos amores de ambos e seus encontros nas margens da tão poética e formosa ria de Vigo.
É pouco o que até nós chegou do jogral de Vigo, mas nesse pouco êle mostra-se verdadeiro poeta. A maneira como pinta as saüdades da namorada (I-IV o VII) e inversamente a alegria intensa que lhe causa a notícia recebida da próxima chegada do ausente amigo (II) revela bem o seu profundo conhecimento do coração humano. Na sua extrema simplicidade as cantigas de Martim Codax retratam tanto ou melhor do que qualquer poema em frases estudadas, a dor que tortura a mulher que se encontra longe do ente que adora o a satisfação imensa que sento ao tornar a vê-lo san' e vivo, após tanto tempo do separação. E que grande ingenuïdade se não contem na expressão amor ei, que o trovador põe na bôca da cantora, quando esta, ao dançar com as companheiras, sente, pela primeira vez, o coração palpitar-lhe de amor (VII) «Destácanse sus cantigas __diz Oviedo y Arce__11 por la nobleza y serenidad del sentimiento amoroso, sano y puro, que las inspira, sentimiento íntimo e intenso, pero sin tempestades de celos ni desconfianzas, que en cierto modo, dramatizan las Cantigas en otros trovadores; destácanse también por la espontaneidad con que la pasion se desborda, ingénua y mansa, de los rotundos disticos y selectos estribillos y expresada en ideas simplistas y llanas, sin sombra de aquella sutileza y transcendencia __por ventura conceptismo__ que caracteriza las épocas adultas, vecinas de la decadencia del arte, y en forma extraiga a la pompa __talvez artificiada__... destácanse finalmente por el realismo con que en ellas se produce el sentimiento de la natureza exterior y psíquica e n los dialogos de la Enamorada con las olas del mar (Cantigas I y VII), en la canción de su triste soledad (Cantiga IV) y en la interrogacion que hace en el estribillo de la cantiga VII:
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Ei-las, essas cantigas, tais quais chegaram até nós, nos três diferentes manuscritos que no-las transmitiram
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Do confronto dos três manuscritos deduzo que, com excepção do v por u, dos acentos e pontuação, a primitiva seria aproximadamente esta, por isso chamada:
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I. Enquanto o se dos versos 2, 5, 7 e 10 serve de introduzir uma oração subordinada a um dizei-me ou expressão equivalente, o do estribilho, aliás independente, exprime ao mesmo tempo a incerteza, a dúvida e a ansiedade que dominam o coração da protagonista; o futuro simples, mas interrogativo, parece-me, teria igual sentido, é possível contudo que aqui queira significar o mesmo que nos versos 2, 5, etc., dirigindo-se a pergunta a Deus. Em prosa e na língua de ho je dir-se-ia: ai, meu Deus, se virá (ou só virá êle) em breve?
Verso 4. Sôbre mar levado, veja-se a cantiga V, verso 5.
Versos 8 e 10. A antiga língua usava o relativo que no mesmo sentido em que a actual emprega quem.
II. A oração ca ven, etc. (versos 2, 5, etc.), explica a palavra mandado, equivalente a notícia, recado (assim a frase aver mandado o mesmo quer dizer que: chegar notícia ou saber) à qual serve de aposto ou continuado. A par de que, o português arcaico servia-se de ca em igual sentido (integrante).
Versos 8, 11, etc. A forma sano e estoutras: irmana, la, salido, que ocorrem na cantiga seguinte e, contra o uso do tempo, manteem o n e l intervocálicos, serão talvez arcaismos, conservados no povo, ou empréstimos do castelhano, se não se admitir antes, como se me afigura preferível, que, naquelas em que há __n__, esta consoante serve de nasalar a vogal precedente, estando em vez do til, o que não é raro na grafia antiga; quanto a lo e la (artigos), deve notar-se que êles ainda persistem em frases estereotipadas e, quando pronomes demonstrativos, depois de formas verbais (e do advérbio eis), terminadas em r, s ou z.
III. Versos 1, 3, 8 e 11. A antiga forma treides, que deve ser a 2.ª pessoa do plural do ind. presente, representante da latina tragais, com valor de imperativo, é exclusiva da poesia arcaica; quanto ao sentido, equivale ao actual vinde. Também desapareceu do uso o advérbio u (v. v. 2, 5), etc., sendo substituido por onde. O possessivo mia, pela nasalização comunicada ao i pelo m inicial, evolucionou em mia, donde minha.
Versos 2 e 7: mar salido é expressão paralela a mar levado (v. 5 o 10) e aplica-se ao mar que se levanta e sai fora de si em virtude da elevação da maré.
Verso 4. A expressão de grado vive ainda, mas acompanhada do adjectivo bom, isto é, de bom grado ou gostosamente.
Versos 8 e 11. Parece que a protagonista, que a princípio se dirige à irmã, volta-se agora para a mãe; assim pensa Oviedo y Arco, que diz: «A mi entender, la frase mia madre está en vocativo: el futuro verrá, en singular, lo reclama pero lo reclama mas urgentemente el sentido. La protagonista cantora dirige-se en las dos primeras estrofas a su hermana, Mia hermana fremosa (vocativo), para que la acompañe a la iglesia de Vigo y en las dos ultimas habla a su madre, mia madre, como pidiendole autorización para entrevistarse con el amante que va a emprender viaje»; no entanto, D. Carolina Michaëlis, que diz poder ler-se madre (vocativo) ou madr'e (nominativo), acha estranho «que a namorada, acompanhada da irmã, se encontre na igreja de Vigo com o amado, e juntamente com a mão dela (nossa madre portanto), a fim de admirarem o espectáculo imponente do mar embravecido, como seria o caso de ela se dirigir à irmã numa estrofe o à mãe na outra», estranheza de que não partilha o comentador, acabado de citar. O antigo futuro verrá (também I, v. v. 3, 6, etc), desapareceu ante o actual virá, formado sôbre o infinitivo
IV. Versos 1 a 4. Sôbre o sentido da partícula se (cf. 1, 3, 6, etc.).
Versos 2, 5, 7 o 10. __Ao lado da forma senlheira15 acusada pelos Cancioneiros da Vaticana e Colocci-Brancuti, existia senheira, empregada na fôlha pergaminácea a que atrás me referi; uma e outra, que aliás constam de outros
textos e tinham o sentido de só ou sózinha, são peculiares da língua arcaica.
Versos 3, 6, etc. Aqui vou vale tanto como estou, ando.
Versos 5 e 10. A forma manho, 1.ª pessoa do singular do presente do indicativo de um antigo verbo maer, que hoje apenas vive nos compostos permanecer, remanescer, desapareceu também do uso; a sua sinónima o paralela é estou.
Versos 8, 11, 13 e 16 As gardas, forma constante da citada fôlha pergaminácea, representante de-certo da pronúncia do tempo, que ainda vive no povo, ou guardas, como teem os Cancioneiros, a que a namorada se refere devem ser a irmã e a mãe, sentinelas vigilantes, sobretudo a última, da sua honestidade. O pronome-adjectivo nulhas, que acompanha o vocábulo gardas e foi talvez tomado do provençal, é exclusivo da antiga poesia; corresponde-lhe hoje: nenhumas.
Versos 14 e 17. Porque a forma ergas só ocorro nesta cantiga, na seguinte e no n.º 1112 do Canc. da Vaticana enquanto ergo é a única usada pelo Canc. da Ajuda (cf. v. v. 405, 719, 767, 1494, 1700, 3504, 7148, 7357, 7713, 7706, 7835, 7838 7851 o 7864), por antigos documentos notariais, tanto galegos, como portugueses (por exemplo nos Doc. gal., de Salazar pág. 17, linha 5) e em Viterbo, por um códice que reputo do século XV (cf. Rev. Lusitana, XVIII, pág. 35), a que predomina no C. V. (cf. n.º 235, 297, 301, 357, 823), apesar da concordância dos três manuscritos, parece-me que se deverá corrigir ergas em erg'os, entendendo que o copista trocou o o por a e na imediata regulou-se pelo que acabava de escrever.
V. Versos 1 e 4. Quantas saberles amar amigo (amado) vale o mesmo que (vós) tôdas as que tendes amores ou andais namoradas.
Versos 2, 4, 7 e 10. Sôbre treides o lo (cf. III, 1, 4 o II, 8, 11, etc.).
Versos 8 e 11. A antiga língua dizia veer, que a moderna contraiu em ver.
VI. Versos 1 e 4. Com a actual forma no coexistia no português arcaico eno, tendo sido desta, que resultou de en no, que proveio aquela.
Versos 1, 4, 14 o 17. Sagrado, a concordar com o substantivo oculto, lugar, ainda hoje se chama àquele espaço, nos cemitérios, prèviamente santificado pela benção do sacerdote, no qual se sepultam os católicos, e, como dantes, as jazidas eram dentro e no adro das igrejas, veiu aquele têrmo a tomar-se por êste; igual sentido tem sacrato em italiano cf. Körting, Lateinisches Romanisches Wörterbuch.
Versos 2, 5, 7 e 10. Corpo velido (=belo) ou delgado (= delicado, elegante) o mesmo é que uma formosa. Já em latim a palavra corpus se tomava no sentido de pessoa; cf. entre outros passos, Virgílio, Eneida, VI, 21-22.
Versos 8, 11, etc. Que nunca ouvera amigo (arnado), vale tanto como: que ainda não sabia o que era amar, que até aí não tivera namorado.
Versos 14 e 17. Pelas razões expostas na cantiga IVª (v. v. 14 e 17) e de harmonia com os versos 1 e 4, entendo que estes se devem corrigír em:
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O poeta dá à cantiga feição narrativa, mas ao mesmo tempo presta à bailarina a exclamação amor ei, como se tôda ela fõsse um solilóquio da namorada.
VII. Evidentemente as palavras tarda... sem ini (v. v. 3, 4, etc.), parecem significar: se demora em vir alegrar-me com a sua companhia.
Em todos os três apógrafos, Cancioneiros da Vaticana, Colocci-Branculi e fôlha publicada por P. Vindel, se encontram divergências, mesmo esta última, por nalgumas partes se achar deteriorada pelo tempo, carece de ser completada por aqueles, no entanto a lição que nos ministra é superior à dos outros códices, dá-se todavia nela uma circunstância que atribuo a obediência às notas musicais, isto é, a 1.ª estrofe de tôdas as sete cantigas acha-se copiada defeituosamente, tendo o primeiro verso sòmente, na mesma linha, palavras que fazem parte do outro; fora de aí, a disposição é perfeita. Também a grafia aí adoptada é a castelhana, como se vê da representação do l e n molhados por ll e nn (hoje ñ) respectivamente, enquanto os outros códices usam lh e nh, à portuguesa, de-certo em harmonia com o original donde foram transcritos. Confrontando, pois, os três manuscritos, nota-se o seguinte16
I. A lição de C. B. concorda com a de V., o C. V., em vez de e ay, tem cay em todo o estribilho, que só aparece escrito por inteiro na primeira estrofe nos apógrafos italianos, mas em tôdas em Vindel. É possível que a conjunção e, nele contida, a-pesar-de existir em todos os manuscritos, seja um acrescento, pois o sentido não a exige.
No verso 11, C. V. e C. B. toem mais que V. o artigo o antes da prop. por, artigo que excede a medida do verso e de certo o copista escreveu por analogia com o que se encontra em igual verso da precedente estrofe, onde é necessário. Enquanto aqueles dizem cuydado, emprega êste coidado, forma peculiar ao galego, que continua a mantê-la.
II. C. B. tem no 1.º verso mandadey..., mas a 2.ª estrofe diz:
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isto é, o copista saltou para o 2.º verso da 3.ª estrofe, deixando portanto de escrever a 2.ª C. V. omite sempre, C. B. mantem só na 1.ª estrofe a conjunção e, que em V. precede hirey do estribilho; cabe aqui dizer o mesmo que na 1.ª cantiga.
III. Em C. V. e C. B. o 1.º verso tem disposição idêntica à seguida por V. em tôdas as estrofes, com excepção da 1.ª, em que ela foi alterada, segundo já ficou dito, os restantes, porém, estão escritos de modo que formam dois versos, com excepção das estrofes 3.ª e 4.ª cujos segundos versos C. B. dispõe como V. Enquanto C. V. diz madre meu (verso 11), e C. B. madro meu, tem V. madre o, a mais, nos versos 8 e 11, mia, antes de madre e escreve miraremos, isto é, não faz a assimilação do s ao l, e depois a sua simplificação, como é de uso. No mesmo os dísticos 3.º e 4.º estão invertidos, contrãriamente a C. V. e C. B., que seguem a ordem exigida pelo paralelo.
IV. Em vez de nó, só (verso 8) e nó é (verso 13) de C. V. e C. B. tem V. nó ei. Do certo por lapso os copistas de C. V. e C. B. escreveram nélhas (verso 8, mas nulhas, verso 11), enquanto V. mantém a verdadeira forma.
V. O copista de C. V. trocou o t por c em treydes, mas só nos versos 2 e 5. Tanto êste apógrafo como C. B. teem ao (versos 5, 7 e 10), mas V. a lo. No 4.º verso aqueles dizem damar, mas êste damor.
VI. No 1.º verso teem C. V. e C. B. sagrade, mas V. sagrado en. No 4.º verso a lição é igual em todos, falta contudo uma sílaba para completar o verso e por isso substitui no por eno. C. V. e C. B. teem a mais que V. hu, no verso 7, antes de baylaua. Ao nunc ouuer (versos 8, 11, 13 e 16) de V. corresponde em C. V. e C. B. nunca (omitido porém, no verso 13 em C. V.) ouuera. O verso 17 em C. V. e C. B. diz ergas no uigo sagrado, mas em V. ergas en vigo no sagrado. Porque, a manter-s e a forma ergas, o verso ficaria com uma sílaba a mais, substitui-a pela mais vulgar: ergo.
Como na cantiga IIIª, os mesmos dísticos acham-se invertidos também em V.
VII. À grafia errada de C. V. no verso 5,
uin uirar (em lugar destas duas palavras tem C.
B. uma cruz) corresponde em V. u mirar.