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ArribaAbajo7ª sombra


Dulce


ArribaAbajoSe houvesse ainda talismã bendito,
que desse ao pântano -a corrente pura,
musgo -ao rochedo, festa- à sepultura,
das águias negras -harmonia ao grito...,

se alguém pudesse ao infeliz precito  5
dar lugar no banquete da ventura...
E trocar-lhe o velar da insônia escura
no poema dos beijos -infinito...,

certo... serias tu, donzela casta,
quem me tomasse em meio do Calvário  10
a cruz de angústias, que o meu ser arrasta!...

Mas se tudo recusa-me o fadário,
na hora de expirar, ó Dulce, basta
morrer beijando a cruz de teu rosário!...




ArribaAbajo8ª sombra


Último Fantasma


ArribaAbajoQuem és tu, quem és tu, vulto gracioso,
que te elevas da noite na orvalhada?
Tens a face nas sombras mergulhada...
Sobre as névoas te libras vaporoso...

Baixas do céu num vôo harmonioso!...  5
Quem és tu, bela e branca desposada?
Da laranjeira em flor a flor nevada
cerca-te a fronte, ó ser misterioso!...

Onde nos vimos nós?... És doutra esfera?
És o ser que eu busquei do sul ao norte...  10
Por quem meu peito em sonhos desespera?...

Quem és tu? Quem és tu? -És minha sorte!
És talvez o ideal que est'alma espera!
És a glória talvez! Talvez a morte!...

Santa Isabel, agosto de 1870




ArribaAbajoO hóspede



Choro por ver que os dias passam breves
e te esqueces de mim quando te fores;
como as brisas que passam doudas, leves,
e não tornam atrás a ver as flores.

Teófilo Braga                



ArribaAbajo«Onde vais estrangeiro! Por que deixas
o solitário albergue do deserto?
O que buscas além dos horizontes?
Por que transpor o píncaro dos montes,
quando podes achar o amor tão perto?...  5

Pálido moço! Um dia tu chegaste
de outros climas, de terras bem distantes...
Era noite!... A tormenta além rugia...
Nos abetos da serra a ventania
tinha gemidos longos, delirantes.  10

Uma buzina restrugiu no vale
junto aos barrancos onde geme o rio...
De teu cavalo o galopar soava,
e teu cão ululando replicava
aos surdos roncos do trovão bravio.  15

Entraste! A loura chama do brasido
lambia um velho cedro crepitante.
Eras tão triste ao lume da fogueira...
Que eu derramei a lágrima primeira
quando enxuguei teu manto gotejante!  20

Onde vais, estrangeiro? Por que deixas
esta infeliz, misérrima cabana?
Inda as aves te afagam do arvoredo...
Se quiseres... as flores do silvedo
verás inda nas tranças da serrana.  25

Queres voltar a este país maldito
onde a alegria e o riso te deixaram?
Eu não sei tua história... mas que importa?...
... Bóia em teus olhos a esperança morta
que as mulheres de lá te apunhalaram.  30

Não partas, não! Aqui todos te querem!
Minhas aves amigas te conhecem.
Quando à tardinha volves da colina
sem receio da longa carabina
de lajedo em lajedo as corças descem!  35

Teu cavalo nitrindo na savana
lambe as úmidas gramas em meus dedos.
Quando a fanfarra tocas na montanha,
a matilha dos ecos te acompanha
ladrando pela ponta dos penedos.  40

Onde vais, belo moço? Se partires
quem será teu amigo, irmão e pajem?
E quando a negra insônia te devora,
quem na guitarra que suspira e chora.
Há de cantar-te seu amor selvagem?  45

A choça do desterro é nua e fria!
O caminho do exílio é só de abrolhos!
Que família melhor que meus desvelos?...
Que tenda mais sutil que meus cabelos
estrelados no pranto de teus olhos?...  50

Estranho moço! Eu vejo em tua fronte
esta amargura atroz que não tem cura.
Acaso fulge ao sol de outros países,
por entre as balsas de cheirosas lises,
a esposa que tua alma assim procura?  55

Talvez tenhas além servos e amantes,
um palácio em lugar de uma choupana.
E aqui só tens uma guitarra e um beijo,
e o fogo ardente de ideal desejo
nos seios virgens da infeliz serrana!...»  60

No entanto Ele partiu!... Seu vulto ao longe
escondeu-se onde a vista não alcança...
... Mas não penseis que o triste forasteiro
foi procurar nos lares do estrangeiro
o fantasma sequer de uma esperança!...  65

Curralinho, 29 de abril de 1870




ArribaAbajoAs trevas


A meu amigo, o dr. Franco Meireles, inspirado tradutor das Melodias Hebraicas



Tive um sonho que em tudo não foi sonho!...


Traduzido de Lord Byron                



ArribaAbajoO sol brilhante se apagara: e os astros,
do eterno espaço na penumbra escura,
sem raios, e sem trilhos, vagueavam.
A terra fria balouçava cega
e tétrica no espaço ermo de lua.  5
A manhã ia, vinha... e regressava...
Mas não trazia o dia! Os homens pasmos
esqueciam no horror dessas ruínas
suas paixões. E as almas conglobadas
gelavam-se num grito de egoísmo  10
que demandava «luz». Junto às fogueiras
abrigavam-se... e os tronos e os palácios,
os palácios dos reis, o albergue e a choça
ardiam por fanais. Tinham nas chamas
as cidades morrido. Em torno às brasas  15
dos seus lares os homens se grupavam,
pra à vez extrema se fitarem juntos.
Feliz de quem vivia junto às lavas
dos vulcões sob a tocha alcantilada!

Hórrida esp'rança acalentava o mundo!  20
As florestas ardiam!... de hora em hora
caindo se apagavam; crepitando,
lascado o trono desabava em cinzas.
E tudo... tudo as trevas envolviam.
As frontes ao clarão da luz doente  25
tinham do inferno o aspecto... quando às vezes
as faíscas das chamas borrifavam-nas.
Uns, de bruços no chão, tapando os olhos
choravam. Sobre as mãos cruzadas -outros-
firmando a barba, desvairados riam.  30
Outros correndo à toa procuravam
o ardente pasto pra funéreas piras.
Inquietos, no esgar do desvario,
os olhos levantavam pra o céu torvo,
vasto sudário do universo -espectro-,  35
e após em terra se atirando em raivas,
rangendo os dentes, blasfemos, uivavam!

Lúgubre grito os pássaros selvagens
Soltavam, revoando espavoridos
num vôo tonto co'as inúteis asas!  40
As feras 'stavam mansas e medrosas!
As víboras rojando s'enroscavam
pelos membros dos homens, sibilantes,
mas sem veneno... a fome lhes matavam!
E a guerra, que um momento s'extinguira,  45
de novo se fartava. Só com sangue
comprava-se o alimento, e após à parte
cada um se sentava taciturno,
pra fartar-se nas trevas infinitas!
Já não havia amor!... O mundo inteiro  50
era um só pensamento, e o pensamento
era a morte sem glória e sem detença!
O estertor da fome apascentava-se
nas entranhas... Ossada ou carne pútrida
ressupino, insepulto era o cadáver.  55

Mordiam-se entre si os moribundos:
mesmo os cães se atiravam sobre os donos,
todo exceto um só... que defendia
o cadáver do seu, contra os ataques
dos pássaros, das feras e dos homens,  60
até que a fome os extinguisse, ou fossem
os dentes frouxos saciar algures!
Ele mesmo alimento não buscava...
Mas, gemendo num uivo longo e triste
morreu lambendo a mão, que inanimada  65
já não podia lhe pagar o afeto.

Faminta a multidão morrera aos poucos.
Escaparam dous homens tão-somente
de uma grande cidade. E se odiavam.
... Foi junto dos tições quase apagados  70
de um altar, sobre o qual se amontoaram
sacros objetos pra um profano uso,
que encontraram-se os dous... e, as cinzas mornas
reunindo nas mãos frias dos espectros,
de seus sopros exaustos ao bafejo  75
uma chama irrisória produziram!...
Ao clarão que tremia sobre as cinzas
olharam-se e morreram dando um grito.
Mesmo da própria hediondez morreram,
desconhecendo aquele em cuja fronte  80
traçara a fome o nome de Duende!

O mundo fez-se um vácuo. A terra esplêndida,
populosa tornou-se numa massa
sem estações, sem árvores, sem erva,
sem verdura, sem homens e sem vida,  85
caos de morte, inanimada argila!
Calaram-se o oceano, o rio, os lagos!
Nada turbava a solidão profunda!
Os navios no mar apodreciam
sem marujos! os mastros desabando  90
dormiam sobre o abismo, sem que ao menos
uma vaga na queda alevantassem.
Tinham morrido as vagas! e jaziam
as marés no seu túmulo... antes delas
a lua que as guiava era já morta!  95
No estagnado céu murchara o vento;
esvaíram-se as nuvens. E nas trevas
era só trevas o universo inteiro.

Bahia, 23 de dezembro




ArribaAbajoAves de arribação



   Pensava em ti nas horas de tristeza
quando estes versos pálidos compus.
Cercavam-me planícies sem beleza,
pesava-me na fronte um céu sem luz.
   Ergue este ramo solto no caminho.
Sei que em teu seio asilo encontrará.
Só tu conheces o secreto espinho
que dentro d'alma me pungindo está!

Fagundes Varela                



Aves, é primavera! à rosa! à rosa!

Tomás Ribeiro                




I

ArribaAbajoEra o tempo em que as ágeis andorinhas
consultam-se na beira dos telhados,
e inquietas conversam, perscrutando
os pardos horizontes carregados...

Em que as rolas e os verdes periquitos  5
do fundo do sertão descem cantando...
Em que a tribo das aves peregrinas
os Zíngaros do céu formam-se em bando!

Viajar! viajar! A brisa morna
traz de outro clima os cheiros provocantes.  10
A primavera desafia as asas,
voam os passarinhos e os amantes!...


II

Um dia Eles chegaram. Sobre a estrada
abriram à tardinha as persianas;
e mais festiva a habitação sorria  15
sob os festões das trêmulas lianas.

Quem eram? Donde vinham? -Pouco importa
quem fossem da casinha os habitantes.
-São noivos-: as mulheres murmuravam!
E os pássaros diziam: -São amantes-!  20

Eram vozes -que uniam-se co'as brisas!
Eram risos -que abriam-se co'as flores!
Eram mais dous clarões -na primavera!
Na festa universal -mais dous amores!

Astros! Falai daqueles olhos brandos.  25
Trepadeiras! Falai-lhe dos cabelos!
Ninhos d'aves! dizei, naquele seio,
como era doce um pipilar d'anelos.

Sei que ali se ocultava a mocidade...
Que o idílio cantava noite e dia...  30
E a casa branca à beira do caminho
era o asilo do amor e da poesia.

Quando a noite enrolava os descampados,
o monte, a selva, a choça do serrano,
ouviam-se, alongando a paz dos ermos,  35
os sons doces, plangentes de um piano.

Depois suave, plena, harmoniosa
uma voz de mulher se alevantava...
E o pássaro inclinava-se das ramas
e a estrela do infinito se inclinava.  40

E a voz cantava o tremolo medroso
de uma ideal sentida barcarola...
Ou nos ombros na noite desfolhava
as notas petulantes da Espanhola!


III

Às vezes, quando o sol nas matas virgens  45
a fogueira das tardes acendia,
e como a ave ferida ensangüentava
os píncaros da longa serrania,

um grupo destacava-se amoroso,
tendo por tela a opala do infinito,  50
dupla estátua do amor e mocidade
num pedestal de musgos e granito.

E embaixo o vale a descantar saudoso
na cantiga das moças lavadeiras!...
E o riacho a sonhar nas canas bravas,  55
e o vento a s'embalar nas trepadeiras.

Ó crepúsculos mortos! Voz dos ermos!
Montes azuis! Sussurros da floresta!
Quando mais vós tereis tantos afetos
vicejando convosco em vossa festa?...  60

E o sol poente inda lançava um raio
do caçador na longa carabina...
E sobre a fronte d'Ela por diadema
nascia ao longe a estrela vespertina.


IV

É noite! Treme a lâmpada medrosa  65
velando a longa noite do poeta...
Além, sob as cortinas transparentes
ela dorme... formosa Julieta!

Entram pela janela quase aberta
da meia-noite os preguiçosos ventos  70
e a lua beija o seio alvinitente
-Flor que abrira das noites aos relentos.

O Poeta trabalha!... A fronte pálida
guarda talvez fatídica tristeza...
Que importa? A inspiração lhe acende o verso  75
tendo por musa -o amor e a natureza!

E como o cácto desabrocha a medo
das noites tropicais na mansa calma,
a estrofe entreabre a pétala mimosa
perfumada da essência de sua alma.  80

No entanto Ela desperta... num sorriso
ensaia um beijo que perfuma a brisa...
... A Casta-diva apaga-se nos montes...
Luar de amor! acorda-te, Adalgisa!


V

Hoje a casinha já não abre à tarde  85
sobre a estrada as alegres persianas.
Os ninhos desabaram... no abandono
murcharam-se as grinaldas de lianas.

Que é feito do viver daqueles tempos!
onde estão da casinha os habitantes?  90
... A primavera, que arrebata as asas...,
Levou-lhe os passarinhos e os amantes!...

Curralinho, 1870




ArribaAbajoOs perfumes


A L.



O sândalo é o perfume das mulheres
de Istambul, e das huris do profeta; como
as borboletas, que se alimentam do
mel, a mulher do Oriente vive com as
gotas dessa essência divina.


José de Alencar                



ArribaAbajoO perfume é o invólucro invisível,
que encerra as formas da mulher bonita.
Bem como a salamandra em chamas vive,
entre perfumes a sultana habita.

Escrínio aveludado onde se guarda  5
-colar de pedras- a beleza esquiva,
espécie de crisálida, onde mora
a borboleta dos salões -a Diva.

Alma das flores -quando as flores morrem,
os perfumes emigram para as belas,  10
trocam lábios de virgens -por boninas,
trocam lírios -por seios de donzelas!

E ali -silfos travessos, traiçoeiros
voam cantando em lânguido compasso
ocultos nesses cálices macios  15
das covinhas de um rosto ou dum regaço.

Vós, que não entendeis a lenda oculta,
a linguagem mimosa dos aromas,
de Madalena a urna olhais apenas
como um primor de orientais redomas  20

e não vedes que ali na mirra e nardo
vai toda a crença da Judia loura...
E que o óleo, que lava os pés do Cristo,
é uma reza também da pecadora.

Por mim eu sei que há confidências ternas,  25
um poema saudoso, angustiado,
se uma rosa de há muito emurchecida,
rola acaso de um livro abandonado.

O espírito talvez dos tempos idos
desperta ali como invisível nume...  30
E o poeta murmura suspirando:
«Bem me lembro... era este o seu perfume!»

E que segredo não revela acaso
de uma mulher a predileta essência?
Ora o cheiro é lascivo e provocante!  35
Ora casto, infantil, como a inocência!

Ora propala os sensuais anseios
d'alcova de Ninon ou Margarida,
ora o mistério divinal do leito,
onde sonha Cecília adormecida.  40

Aqui, na magnólia de Celuta
lambe a solta madeixa, que se estira.
Unge o bronze do dorso da caboc'la,
e o mármore do corpo da Hetaira.

É que o perfume denuncia o espírito  45
que sob as formas feminis palpita...
Pois como a salamandra em chamas vive,
entre perfumes a mulher habita.

Curralinho, 21 de junho de 1870




ArribaAbajoImmensis orbibus anguis


Sibila lambebant linguis vibrantibus ora.


Virgílio                




I

ArribaAbajoResvala em fogo o sol dos montes sobre a espalda,
e lustra o dorso nu da índia americana...
Na selva zumbe entanto o inseto de esmeralda,
e pousa o colibri nas flores da liana.

Ali -a luz cruel, a calmaria intensa!  5
Aqui -a sombra, a paz, os ventos, a cascata...
e a pluma dos bambus a tremular imensa...
E o canto de aves mil... e a solidão ... e a mata...

E a hora em que, fugindo aos raios da esplanada,
a indígena, a gentil matrona do deserto  10
amarra aos palmeirasis a rede mosqueada,
que, leve como um berço, embala o vento incerto...

Então ela abandona-lhe ao beijo apaixonado
a perna a mais formosa -o corpo o mais macio,
e, as pálpebras cerrando, ao filho bronzeado  15
entrega um seio nu, moreno, luzidio.

Porém dentre os espatos esguios do coqueiro,
do verde gravatá nos cachos reluzentes,
enrosca-se e desliza um corpo sorrateiro
e desce devagar pelos cipós pendentes.  20

E desce... e desce mais... à rede já se chega...
da índia nos cabelos a longa cauda some...
Horror! aquele horror ao peito eis que se apega!
A baba -quer o leite!- A chaga -sente fome!

O veneno -quer mel!- A escama quer a pele!  25
Quer o almíscar -perfume!- O imundo quer -o belo!
A língua do reptil -lambendo o seio imbele!...
Uma cobra -por filho... Horrível pesadelo!...


II

Assim, minh'alma, assim um dia adormeceste
na floresta ideal da ardente mocidade...  30
Abria a fantasia -a pétala celeste...
zumbia o sonho d'ouro em doce obscuridade...

Assim, minh'alma deste o seio (ó dor imensa!)
Onde a paixão corria indômita e fremente!
Assim bebeu-te a vida, a mocidade e a crença  35
não boca de mulher... mas de fatal serpente!...

Rio de Janeiro, 13 de outubro de 1869




ArribaAbajoA uma atriz


No seu benefício


ArribaAbajoBranco cisne, que vogavas
das harmonias no mar,
pomba errante de outros climas,
vieste aos cerros pousar.
Inda bem. Sob os palmares  5
na voz do condor, dos mares,
das serranias, dos céus...
Sente o homem, -que é poeta.
Sente o vate -que é profeta.
Sente o profeta -que é Deus.  10

Há alguma cousa de grande
deste mundo na amplidão,
como que a face do Eterno
palpita na criação...
E o homem que olha o deserto,  15
diz consigo: «Deus stá perto
que a grandeza é o Criador.»
E, sob as paternas vistas,
larga rédeas às conquistas,
pede as asas ao condor.  20

Inda bem. A glória é isto...
É ser tudo... é ser qual Deus...
Agitar as selvas d'alma
ao sopro dos lábios teus...
Dizer ao peito -suspira!  25
Dizer à mente -delira!
A glória inda é mais: É ver
homens, que tremem -se tremes!
Homens, que gemem -se gemes!
Que morrem -se vais morrer!  30

A glória é ter com o tridente
refreada a multidão,
-oceano de pensamentos
que tu agitas co'a mão!
-Montanha feita de idéias,  35
que sustenta as epopéias
que é do gênio pedestal!
-Harpa imensa feita de almas,
que rompe em hinos e palmas,
ao teu toque divinal.  40

Mas esqueceste... Não basta
«chegar, olhar e vencer»
do gênio a maior grandeza
o ser divino é sofrer.
Diz!... Quando ouves a torrente  45
do entusiasmo na enchente
vir espumar-te lauréis;
nest'hora grande não sentes
longe os silvos das serpentes,
que tentam morder-te os pés?  50
Inda é a glória -rainha

Que jamais caminha só.
Ai! Quem sobe ao Capitólio
vai precedido de pó.
Porém tu zombas da inveja...  55
Se à noite o raio lampeja
tu fazes dele um clarão!
Pela tormenta embalada
ao som da orquestra arroubada
vais te perder n'amplidão.  60

Recife, 27 de setembro de 1866




ArribaAbajoCanção do boêmio


Recitativo da «Meia Hora de Cinismo»


Comédia de costumes acadêmicos


Música de Emílio do Lago


ArribaAbajoQue noite fria! Na deserta rua
tremem de medo os lampiões sombrios.
Densa garoa faz fumar a lua
ladram de tédio vinte cães vadios.

Nini formosa! por que assim fugiste?  5
Embalde o tempo à tua espera conto.
Não vês, não vês?... Meu coração é triste
como um calouro quando leva ponto.

A passos largos eu percorro a sala
fumo um cigarro, que filei na escola...  10
Tudo no quarto de Nini me fala
embalde fumo... tudo aqui me amola.

Diz-me o relógio cinicando a um canto
«onde está ela que não veio ainda?»
Diz-me a poltrona «por que tardas tanto?  15
Quero aquecer-te, rapariga linda.»

Em vão a luz da crepitante vela
de Hugo clareia uma canção ardente;
tens um idílio -em tua fronte bela...
Um ditirambo -no teu seio quente...  20

Pego o compêndio... inspiração sublime
pra adormecer... inquietações tamanhas...
Violei à noite o domicílio, ó crime!
Onde dormia uma nação... de aranhas...

Morrer de frio quando o peito é brasa...  25
Quando a paixão no coração se aninha!?...
Vós todos, todos, que dormis em casa,
dizei se há dor, que se compare à minha!...

Nini! o horror deste sofrer pungente
só teu sorriso neste mundo acalma...  30
Vem aquecer-me em teu olhar ardente...
Nini! tu és o cache-nez dest'alma.

Deus do Boêmio!... São da mesma raça
as andorinhas e o meu anjo louro...
Fogem de mim se a primavera passa  35
se já nos campos não há flores de ouro...

E tu fugiste, pressentindo o inverno,
mensal inverno do viver boêmio...
Sem te lembrar que por um riso terno
mesmo eu tomara a primavera a prêmio...  40

No entanto ainda do Xerez fogoso
duas garrafas guardo ali... Que minas!
Além de um lado o violão saudoso
guarda no seio inspirações divinas...

Se tu viesses... de meus lábios tristes  45
rompera o canto... Que esperança inglória!...
Ela esqueceu o que jurar-lhe vistes
ó Paulicéia, ó Ponte grande, ó Glória!...

Batem!... Que vejo! Ei-la afinal comigo...
Foram-se as trevas... fabricou-se a luz...  50
Nini! pequei... dá-me exemplar castigo!
Sejam teus braços... do martírio a cruz!

São Paulo, junho de 1868




ArribaAbajoÉ tarde!



Olha-me, ó virgem, a fronte
olha-me os olhos sem luz
a palidez do infortúnio
por minhas faces transluz;
olha, ó virgem -não te iludas-
eu só tenho a lira e a cruz.

Junqueira Freire                


É tarde! É muito tarde!


Mont'Alverne                



ArribaAbajoÉ tarde! É muito tarde! O templo é negro...
O fogo-santo já no altar não arde.
Vestal! não venhas tropeçar nas piras...
É tarde! É muito tarde!

Treda noite! E minh'alma era o sacrário,
a lâmpada do amor velava entanto,
Virgem flor enfeitava a borda virgem
do vaso sacrossanto;

quando Ela veio -a negra feiticeira-
a libertina, lúgubre bacante,
lascivo olhar, a trança desgrenhada,
a roupa gotejante.

Foi minha crença -o vinho dessa orgia,
foi minha vida -a chama que apagou-se,
foi minha mocidade -o toro lúbrico,
minh'alma -o tredo alcouce.

E tu, visão do céu! Vens tateando
o abismo onde uma luz sequer não arde?
Ai! não vás resvalar no chão lodoso...
É tarde! É muito tarde!

Ai! não queiras os restos do banquete!
Não queiras esse leito conspurcado!
Sabes? meu beijo te manchara os lábios
num beijo profanado.

A flor do lírio de celeste alvura
quer da lucíola o pudico afago...
O cisne branco no arrufar das plumas
quer o aljôfar do lago.

É tarde! A rola meiga do deserto
faz o ninho na moita perfumada...
Rola de amor! não vás ferir as asas
na ruína gretada.

Como o templo, que o crime encheu de espanto,
ermo e fechado ao fustigar do norte,
nas ruínas d'esta alma a raiva geme...
E cresce o cardo -a morte-.

Ciúme! dor! sarcasmo! -Aves da noite!
Vós povoais-me a solidão sombria,
quando nas trevas a tormenta ulula
um uivo de agonia!..

[...]

É tarde! Estrela-d'alva! o lago é turvo.
Dançam fogos no pântano sombrio.
Pede a Deus que dos céus as cataratas
façam do brejo -um rio!

Mas não!... Somente as vagas do sepulcro
hão de apagar o fogo que em mim arde...
Perdoa-me, Senhora!... eu sei que morro...
É tarde! É muito tarde!...

Rio de Janeiro, 3 de novembro de 1869




ArribaAbajoA meu irmão Guilherme de Castro Alves


ArribaAbajoNa cordilheira altíssima dos Andes
os Chimboraços solitários, grandes
ardem naquelas hibernais regiões.
Ruge embalde e fumega a solfatara...
É dos lábios sangrentos da cratera
que a avalanche vacila aos furacões.

A escória rubra com os geleiros brancos
misturados resvalam pelos flancos
dos ombros friorentos do vulcão...

[...]

Assim, Poeta, é tua vida imensa,
cerca-te o gelo, a morte, a indiferença...
E são lavas lá dentro o coração.

Curralinho, julho de 1870




ArribaAbajoQuando eu morrer...


Eu morro, eu morro. A matutina brisa
já não me arranca um riso. A fresca tarde
já não me doura as descoradas faces.
Que gélidas se encovam.


Junqueira Freire                



ArribaAbajoQuando eu morrer... não lancem meu cadáver
no fosso de um sombrio cemitério...
Odeio o mausoléu que espera o morto,
como o viajante desse hotel funéreo.

Corre nas veias negras desse mármore  5
não sei que sangue vil de messalina,
a cova, num bocejo indiferente,
abre ao primeiro a boca libertina.

Ei-la a nau do sepulcro -o cemitério...
que povo estranho no porão profundo!  10
Emigrantes sombrios que se embarcam
Para as plagas sem fim do outro mundo.

Tem os fogos -errantes- por santelmo.
tem por velame -os panos do sudário...
Por mastro -o vulto esguio do cipreste,  15
por gaivotas -o mocho funerário...

Ali ninguém se firma a um braço amigo
do inverno pelas lúgubres noitadas...
No tombadilho indiferentes chocam-se
e nas trevas esbarram-se as ossadas...  20

Como deve custar ao pobre morto
ver as plagas da vida além perdidas,
sem ver o branco fumo de seus lares
levantar-se por entre as avenidas!...

Oh! perguntai aos frios esqueletos  25
por que não tem o coração no peito...
E um deles vos dirá: «Deixei-o há pouco
de minha amante no lascivo leito.»

Outro: «Dei-o a meu pai.» Outro: «Esqueci-o
nas inocentes mãos de meu filhinho.»...  30
... Meus amigos! Notai... bem como um pássaro
o coração do morto volta ao ninho!...

São Paulo, de março 1869




ArribaAbajoUma página de escola realista


Drama cômico em quatro palavras


A tragédia me faz rir; a comédia me faz chorar.
E o drama? Nem rir, nem chorar...

Pensamento de Carnioli                




CENÁRIO


ArribaAbajoA alcova é fria e pequena
abrindo sobre um jardim.
A tarde frouxa e serena  5
já desmaia para o fim.
No centro um leito fechado
deixa o longo cortinado
sobre o tapete rolar...
Há, nas jarras deslumbrantes,  10
camélias frias, brilhantes,
lembrando a neve polar.

Livros esparsos por terra,
uma harpa caída além;
e essa tristeza, que encerra  15
o asilo, onde sofre alguém.
Fitas, máscaras e flores
não sei que vagos odores
falam de amor e prazer.
Além da frouxa penumbra  20
um vulto incerto ressumbra
-O vulto de uma mulher.


Vous, qui volez lá-bas, legères hirondelles
dites-moi, dites-moi, pourquoi vais je mourir.

Alfred de Musset                



MÁRIO

 (No leito.) 


É tarde! é tarde! Abri-me estas cortinas  25
deixai que a luz me acaricie a fronte!...
Ó sol, ó noivo das regiões divinas,
suspende um pouco a luz neste horizonte!

SÍLVIA

 (Abrindo a janela.) 


Da noite o frio vento te regela
o mórbido suor...  30

MÁRIO


Oh! que me importa?
A tarde doura-me o suor da fronte...
-Último louro desta vida morta!

Crepusc'lo! mocidade! natureza!
Inundai de fulgor meu dia extremo...  35
Quero banhar-me em vagas de harmonia,
como no lago se mergulha o remo!

E que amores que sonham as esferas!
A brisa é de volúpia um calafrio.
A estrela sai das folhas do infinito,  40
sai dos musgos o verme luzidio...

Tudo que vive, que palpita e sente
chama o par amoroso para a sombra.
O pombo arrula -preparando o ninho,
a abelha zumbe -preparando a alfombra.  45

As trevas rolam como as tranças negras,
que a andaluza desmancha em mago enleio;
e entre rendas sutis surge medrosa
a lua plena, qual moreno seio.

Abre-se o ninho... o cálice.... o regaço...  50
Anfitrite, corando, aguarda o noivo...

 (Longa pausa.) 

E tu também esperas teu esposo,
ó morte! Ó moça, que engrinalda o goivo!

SÍLVIA

 (À meia voz, acompanhando-se na guitarra.) 


Dizem as moças galantes
que as rolas são tão constantes...  55
Pois será?
Que morrendo-lhe os amantes,
morrem de fome, arquejantes,
quem dirá?

Dizem sábios arrogantes  60
que nestas terras distantes,
não por cá,
sobre piras fumegantes
morrem viúvas constantes,
pois será?  65

Não creio nos navegantes
nem nas histórias galantes,
que há por lá.
Fome e fogueiras brilhantes
cá não há...  70
Mas inda morrem amantes
de saudades lacerantes,
quem dirá?

 (Aos últimos harpejos cai-lhe uma lágrima.) 


MÁRIO

 (Vendo-a chorar.) 


Sílvia! Deixa rolar sobre a guitarra,
da lágrima a harmonia peregrina!  75
Sílvia! cantando -és a mulher formosa!
Sílvia! chorando -és a mulher divina!

Oh! lágrimas e pérolas! -aljôfares
que rebentais no interno cataclismo,
do oceano -este dédalo insondável!  80
Do coração -este profundo abismo!

Sílvia! dá-me a beber a gota d'água,
nessa pálpebra roxa como o lírio...
Como lambe a gazela o brando orvalho
nas largas folhas do deserto assírio.  85

E quando est'alma desdobrando as asas
entrar do céu na região serena,
como uma estrela eu levarei nos dedos
teu pranto sideral, ó Madalena!...

SÍLVIA

 (Tem-se ajoelhado aos pés do leito.) 


Meus prantos sirvam apenas  90
pra umedecer teus cabelos,
como da corça nos velos
fresco orvalho a resvalar!
Pra molhar a flor, que aspires
rolem prantos de meus olhos,  95
pra atravessar os escolhos
meus prantos manda rolar!...

Meus prantos sirvam apenas
pra a terra, em que tu pisares,
pra a sede, em que te abrasares,  100
terás meu sangue, Senhor!
Meus prantos são óleo humilde
que eu derramo a tuas plantas...

 (MÁRIO estende-lhe os braços) 


Mas se acaso me levantas
meus prantos dizem-te amor!...  105

MÁRIO

 (Tendo-a contra o seio.) 


Sentir que a vida vai fugindo aos poucos
como a luz, que desmaia no ocidente...
E boiar sobre as ondas do sepulcro,
como Ofélia nas águas da corrente...

Sentir o sangue espadanar do peito  110
-licor de morte- sobre a boca fria,
e meu lábio enxugar nos teus cabelos,
como Rola nas tranças de Maria,

de teus braços fazer o diadema
de minha vida, que desmaia insana,  115
esquecer o passado em teu regaço,
como Byron aos pés da Italiana;

Em teu lábio molhado e perfumoso
o licor entornar de minha vida...
Escutar-te nas vascas da agonia,  120
como Fausto as canções de Margarida!...

Eis como eu quero -na embriaguez da morte-
do banquete no chão pender a fronte...
Inda a taça empunhando de teus beijos
sob as rosas gentis de Anacreonte!...  125
 

(A noite tem descido pouco a pouco, o luar penetrando pela alcova alumia o grupo dos amantes.)

 

SÍLVIA


Que palidez, meu poeta,
se estende na face tua!...

MÁRIO


São os raios descorados,
os alvos raios da lua!

SÍLVIA


Mas um suor de agonia  130
teu peito ardente tressua...

MÁRIO


São os orvalhos, que descem
ao frio clarão da lua.

SÍLVIA


Que mancha é esta sangrenta,
que no teu lábio flutua?  135

MÁRIO


São as sombras de uma nuvem
que tolda a face da lua!

SÍLVIA


Como teus dedos esfriam
sobre minha espádua nua!...

MÁRIO

 (Distraído.) 


Não vês um anjo, que desce,  140
no frouxo clarão da lua?...

SÍLVIA


Mário? Não vês quem te chama?...
Tua amante... Sílvia... a tua...

MÁRIO

 (Desmaiando.) 


É a morte que me leva
num frio raio de lua!...  145

 (O poeta cai semimorto sobre o leito. No espasmo sua mão contraída prende uma trança da moça.) 


SÍLVIA


Teus brancos dedos fecharam
de meu cabelo a madeixa,
tua amante não se queixa...
Bem vês... cativa ficou!
Mas não se prende o desejo  150
que n'alma acaso se aninha!...
Nunca vistes a andorinha,
que alegre o fio quebrou?

 (Ouve-se um relógio dar horas.) 

Já! tão tarde! E embalde tento
abrir-te os dedos fechados...  155
Como frios cadeados,
que o teu amor me lançou.
Porém se aqui me cativas
minh'alma foge-te asinha...
Nunca vistes a andorinha,  160
que alegre o fio quebrou!...

 (Debruça-se a escrever numa carteira.) 

«Paulo! Vem à meia-noite...
Mário morre! Mário expira!
Vem que minh'alma delira
e embalde cativa estou...»  165

MÁRIO

  (Que tendo lido por cima de seu ombro.) 


Sílvia! a morte abre-me os dedos,
és livre, Sílvia... caminha!

 (Morrendo.) 

Minh'alma é como a andorinha,
que alegre o fio quebrou.

1870




ArribaCoup d'étrier


ArribaÉ preciso partir! Já na calçada
retinem as esporas do arrieiro;
da mula a ferradura taxeada
impaciente chama o cavaleiro;
a espaços ensaiando uma toada  5
sincha as bestas o lépido tropeiro...
Soa a celeuma alegre da partida,
o pajem firma o loro e empunha a brida.

Já do largo deserto o sopro quente
mergulha perfumado em meus cabelos.  10
Ouço das selvas a canção cadente
segredando-me incógnitos anelos.
A voz dos servos pitoresca, ardente
fala de amores férvidos, singelos...
Adeus! Na folha rota de meu fado  15
traço ainda um -adeus- ao meu passado.

Um adeus! E depois morra no olvido
minha história de luto e de martírio,
as horas que eu vaguei louco, perdido
das cidades no tétrico delírio;  20
onde em pântano turvo, apodrecido
d'íntimas flores não rebenta um lírio...
E no drama das noites do prostíbulo
é mártir -alma... a saturnal- patíbulo!

Onde o gênio sucumbe na asfixia  25
em meio à turba alvar e zombadora;
onde Musset suicida-se na orgia,
e Chatterton na fome aterradora!
Onde, à luz de uma lâmpada sombria,
o Anjo da Guarda ajoelhado chora,  30
enquanto a cortesã lhe apanha os prantos
pra realce dos lúbricos encantos!...

Abre-me o seio, ó Madre Natureza!
Regaços da floresta americana,
acalenta-me a mádida tristeza  35
que da vaga das turbas espadana.
Troca dest'alma a fria morbideza
nessa ubérrima seiva soberana!...
O Pródigo... do lar procura o trilho...
Natureza! Eu voltei... e eu sou teu filho!  40

Novo alento selvagem, grandioso
trema nas cordas desta frouxa lira.
Dá-me um plectro bizarro e majestoso,
alto como os ramais da sicupira.
Cante meu gênio o dédalo assombroso  45
da floresta que ruge e que suspira,
onde a víbora lambe a parasita...
E a onça fula o dorso pardo agita!

Onde em cálix de flor imaginária
a cobra de coral rola no orvalho,  50
e o vento leva a um tempo o canto vário
d'araponga e da serpe de chocalho...
Onde a soidão é o magno estradivário...
Onde há músculos em fúria em cada galho,
e as raízes se torcem quais serpentes...  55
E os monstros jazem no ervaçal dormentes.

E se eu devo expirar... se a fibra morta
reviver já não pode a tanto alento...
Companheiro! Uma cruz na selva corta
e planta-a no meu tosco monumento!...  60
Da chapada nos ermos... (o qu'importa?)
Melhor o inverno chora... e geme o vento.
E Deus para o poeta o céu desata
semeado de lágrimas de prata!...

Curralinho, 1 de junho de 1870





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