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Filomena Borges

Aluísio Azevedo

Flores de Laranjeira

O Borges não cabia em si de contente no dia de seu consórcio com a filha de d. Clementina.

Estava a perder a cabeça -ia e vinha por toda a casa, radiante, cheio, abraçando os convidados, forçando-os a participarem daquela felicidade, que marcava a melhor e a mais extraordinária época de sua vida.

Era homem de meia idade, quarenta a quarenta e cinco anos, robusto, socado, fisionomia franca e extremamente bondoso, movimentos acanhados de quem não convive em alta sociedade, e um perene sorriso de dentes puros e perfeitos.

Usava o bigode raspado e uma barbinha de orelha a orelha, por baixo do queixo-o que o fazia parecer mais feio e mais velho. Nunca saía de suas calças de brim mineiro, do seu invariável paletó de alpaca, dos seus sapatões de bezerro e do seu chapéu do Chile. Um enorme guarda-chuva sempre debaixo do braço.

Todo ele estava a revelar a sua infância no campo, descalço, o corpo à vontade, as madrugadas feitas de pé, ao primeiro sol.

Nascera em Paquetá, onde se criou à larga com leite de jumenta, e onde residiu até a ocasião de perder o pai, um afamado e rico mestre de obras, português, antigo, econômico e ríspido, que, ao morrer lhe legou uma dúzia de prédios bem edificados, alguns terrenos, que mais tarde valeriam muito, e o inestimável hábito de ganhar a vida.

Borges sucedeu ao pai no trabalho, fez-se construtor como ele, e, em poucos anos, tornou-se um dos proprietários mais ricos da Corte. Todavia, o muito dinheiro, se não conseguiu fazer dele um extravagante, muito menos logrou precipitá-lo no orgulho e na avareza -o coração do bom homem continuou tão franqueado às virtudes, quanto sua bolsa fechada às loucuras e às vaidades.

Além desses dotes, tinha uma saúde de ferro e dispunha de uma força física de tal ordem, que se tornou legendária entre as pessoas que o conheciam de perto.

Citavam anedotas a esse respeito: um dia, estando a administrar umas obras, escapara dos andaimes um dos pedreiros, e o Borges apanhou-o no ar, como quem apanha um chapéu de palha, outra vez, tratando-se de safar um pobre diabo, que ficara entalado entre uma andorinha e uma parede -o nosso Borges arranjou um ponto de apoio, meteu os ombros contra a andorinha, e esta virou e caiu imediatamente para o lado oposto.

E como estes, muitos outros fatos, verdadeiros ou não, corriam de boca em boca, a respeito do possante mestre de obras.

Verdade é que bastava observar aquela carne transpirante e sadia, aqueles pulsos rijos e cabeludos, aquele peito largo, aquele pescoço nervoso e duro, para que a gente fizesse logo uma idéia justa do que seria capaz o Borges em matéria de força muscular.

Contudo, ninguém era menos amigo de questões. Nunca se metia em barulho; às vezes até, coitado, suportava em silêncio certos desaforos: mas também, quando lhe chegasse a mostarda ao nariz, o contendor podia entregar o seu ao boticário, porque o esborrachamento havia de ser memorável.

Devido a essa pujança excepcional, davam-lhe a alcunha significativa de João Touro.

João Touro era geralmente tido e havido pelo mais completo modelo de bondade e de bom senso. Ninguém lhe fosse pedir manifestações brilhantes de talento, concepções artísticas, descobertas científicas; ele, coitado! não era «homem de estudos» e nunca também lhe «puxaram muito pela memória». Aos doze anos saíra da aula de primeiras letras para se meter logo no trabalho; mas tinha muito «bom pensar» e um tino admirável para os negócios. Seu único vício consistia no rapezinho Paulo Cordeiro -nada de charutos!!- nada de bebidas! -e grande aversão às mulheres que não fossem tão puras como ele.

Antes do casamento, ninguém lhe conheceu uma inclinação amorosa, uma fraqueza; e nunca ninguém lhe descobriu outra preocupação que não fosse a do seu trabalho e a do -«seu Urso».

Urso vinha a ser um enorme cão de São Bernardo, que o acompanhava, havia muitos anos. Animal bonito, todo negro, e de uma aparência tão feroz, que lhe dava inteiro direito de usar do nome.

Todavia, o mestre de obras fora algumas vezes requestado pelas mulheres. Várias trintonas lhe lançaram a rede, mas ele sempre se desviara sorrindo e corando.

Entre essas, distinguia-se d. Chiquinha Perdigão, mulher de firma comercial, negociante, muito rica, com um bonito nome na praça -Viúva Perdigão & Cia.

O Borges, porém não queria outros negócios com ela, além dos de puro interesse pecuniário, e embalde o demônio da viúva empregava todos os meios para obrigá-lo a desistir de tal resolução.

Uma vez chegou a tomar-lhe as mãos, confessar que o amava, que só a ele podia fazer feliz; e o bom homem, sem ter uma resposta, pôs-se a suar, a suar até que fugiu, atônito e espavorido, como se levasse uma fera atrás de si.

Só a filha de d. Clementina, a flor das moças do Catete, a bela Filomena, teve o dom de acordar naquele coração encruado as fibras adormecidas do amor.

Ele próprio não atinara como «aquilo» se dera: um dia, a convite de Guterres, foi à casa de d. Clementina, viu a pequena, ouviu-a cantar ao piano um romance de Tosti, e desde esse momento não ficou mais senhor de si.

E o amor, o desejo, a paixão, rebentaram-lhe por dentro, como um monstro que se levanta, espedaçando a velha calma de quarenta anos.

Era a primeira vez que amava. O Borges, que até aí vivera para as suas propriedades e para os seus prédios em construção, desde que viu Filomena, desde que concebeu a idéia de possuí-la, nunca mais pôde compreender a existência sem a companhia dessa formosa criatura, por quem logo se sentiu capaz de todos os sacrifícios.

Lamentava, contudo não ser mais novo; não dispor de mais atrativos, para melhor merecê-la. Desejava ser mais fino, mais terno, mais civilizado; temia assustá-la com a sua medonha figura de touro. Receava o contraste formidável de sua grossa corpulência, de seu abdômen redondo e farto, de suas mãos curtas e vermelhas, de seus pés enormes, postos em confronto com aquele corpinho tão delicado, tão bem feito, com aquela pele tão branca, com aqueles pezinhos tão sutis.

Oh! aquele casamento realizava o melhor sonho de sua vida! Ele queria-a tanto!...

Os amigos ficaram pasmados quando tiveram notícia do fato:

-Quê?!... Pois o Borges, o João Touro, aquele pax vobis ia casar! e logo com quem?!..., com a filha de d. Clementina -a moça mais romântica e mais cheia de fumaças que havia no mundo!... Oh! -O João Touro com certeza não estava em seu juízo! -Ninguém lhe dizia que não casasse; mas, que diabo! fosse buscar uma mulher mais própria para isso e não uma cabecinha de vento, que só cuidava em patacoadas e maluquices!

O seu amigo mais íntimo e mais antigo, o Barroso, não se pôde conter, quando o Borges lhe falou nisso:

-Enlouqueceste, homem de Deus?! Não vês que vais fazer uma reverendíssima asneira?! Não vês que aquilo não é mulher que te convenha?! Não desconfias pedaço d'asno, que aquela sirigaita e mais a raposa da mãe estão a farejar-te os cobres?!... Não compreendes que elas te querem, porque tens para mais de quinhentos mil contos?! Ora vai deitar um cáustico na nuca?!

João Touro, porém, não estava em circunstâncias de pensar. Todo ele era pouco para a sua paixão e, depois de uma conversa agitada com o Barroso, concluiu, perdendo a paciência:

-Homem! queres saber de uma coisa?! Vocês podem rosnar como entenderem; o que lhes afianço é que só a própria d. Filomena seria capaz de me fazer desistir do casamento. Só ela! Entendes tu?! só ela!

-Bem filho! respondeu o Barroso com o gesto de quem solta alguma coisa das mãos. -Tua alma, tu palma! Assim o queres, assim o terás. -Ora essa! Na certeza de que -para mim- se levares a cabo a tua doidice -perdeste tudo!

-Pois que perca! É boa!

-E desde então não contes comigo para coisa alguma!

-Vai para o diabo! gritou-lhe Borges, enterrando o chapéu na cabeça, e saindo furioso.

Entretanto, a Filomena custou bastante resolver-se a dar o «sim».

Muito sonhadora, muito saturada de romantismo, não se conformava com a idéia de se ligar a um burguês ratão como o Borges.

Tinha lá o seu ideal, seu tipo e, só com muito sacrifício, desistiria da esperança de encontrá-lo no mundo.

Sempre fora muito dessas coisas. Aos quinze anos perdia noites a ler novelas, várias vezes foi a mãe encontrá-la assentada no jardim, olhos no céu, a cismar, a cismar, perdida nos seus devaneios.

Era então franzina, muito descorada, e tinha grandes pupilas negras de um rebrilhar de tísica. Quase nunca expunha o colo, e seus vestidos, sempre afogados, cosidos à garganta por um estreito colarinho de rendas, davam-lhe o ar passivo e contrafeito de uma pensionista das irmãs de caridade.

Quando ria, o que era raro, mostrava dentes grandes, alinhados e extremamente claros. De perto, bem examinada, notava-se-lhe no canto dos olhos, estalando o pó de arroz, uma redezinha de pequenas rugas trêmulas, que se espalhavam pelas frontes, até à entrança dos cabelos. Em torno das sobrancelhas, finas e delgadas, nas mucosas das pálpebras, das orelhas, do nariz e da boca -um tom arroxeado de umidade serosa e doentia. As pestanas, muito escuras e ramalhudas, pareciam despregar e cair a cada movimento dos olhos.

Nas soirées fazia impressão vê-la assentada horas esquecidas a um canto da sala; muito direita no seu espartilho, o corpo teso, os longos e vagarosos braços cruzados sobre o ventre, os ombros empinados e contraídos, como por uma sensação de medo, trazia sempre o cabelo com singeleza; quando não era solto, apenas enrodilhado na nuca, acentuado o desenho puro de sua cabecinha redonda e deixando lobrigar parte do pescoço, que já então principiava a ser belo na sua cor de camélia fanada.

Perdera o pai por essa idade, e sua mãe d. Clementina de Araújo, uma senhora magra e comida de desgosto, impacientava-se silenciosamente por ver casada «aquela filha que Deus lhe dera».

Era essa toda a sua preocupação e também toda a sua esperança: -«Só um bom casamento as salvaria da triste situação em que se achavam».

O chefe da casa -o defunto conselheiro- não fora homem previdente, e gastara-se quase todo em procurar luzir; os bens, que sobejaram da política, caíram na voragem do jogo e das confeitarias. Ainda assim durante a vida, nunca lhe perceberam sombra de dificuldades, nem houve jamais, quem melhor soubesse guardar as conveniências de sua posição social. Os chás do defunto conselheiro eram deliciosos.

Quando uma apoplexia veio chamá-lo para a cova, os amigos tiveram que se cotizar para o fim de lhe pagarem as dívidas, a viúva teve que trabalhar para manter decentemente a filha -essa pobre filha, que da existência apenas conhecia alguns noturnos ao piano e alguns romances traduzidos do francês; essa filha, que crescera à luz do gás, dançando desde os quatro anos, e arruinando o estômago com os mesmos doces que arruinaram a fortuna do pai.

Trabalhar! Trabalhar seria o menos; esconder a precisão do trabalho é que era mais difícil! Felizmente o prédio em que moravam pertencia à orfã, e o imperador, que fora amigo do defunto -amigo e compadre- havia de ajudá-la.

Assim foi: Sua Majestade não negou o seu augusto auxílio à comadre, e esta, por sua vez, tratou de alugar o prédio e refugiar-se com a filha em uma casa mais em conta.

-Não seria, porém, metida entre quatro paredes, que a menina arranjaria um bom casamento! -Era preciso aparecer! -Mas os bailes, os teatros, os passeios, custavam tanto!- As modistas e os armarinhos «pediam os olhos da cara por qualquer trapo mais no tom!»

Todavia, não desertaram da boa sociedade.

Mas quanto sacrifício! Quanta luta! Quanto heroísmo ignorado! Que de lágrimas não havia escondidas naqueles vestidos enfeitados pela quarta vez! Quanta amargura naqueles penteados, naquelas capas, naqueles chapéus! Quanto sofrimento, quanta resignação naqueles leques, naqueles sapatinhos e naqueles sorrisos de amabilidade?

Às vezes tinham ambas que passar pior de boca, para não faltarem ao baile do sr. conde de tal ou à soirée do sr. barão de tal e tal. Uma verdadeira campanha! Um verdadeiro martírio, principalmente para a rapariga, que, em constante revolta com a realidade, estava sempre a sonhar coisas extraordinárias e regalias de alto preço.

A longa peregrinação pelas salas e pelas ruas dera-lhes um grande tato, uma grande experiência. Conheciam a gente à primeira vista. Mãe e filha entravam já familiarmente pelas almas dos indivíduos e iam devassando o que lá estava por dentro, como se bisbilhotassem uma gaveta franqueada.

Para a velha, então, não havia coração, por mais fechado, que se não traísse. Embalde procuravam outros, em idênticas circunstâncias, dissimular a falta de certos recursos; embalde se endomingavam caixeiros pobres, literatos necessitados, doutores sem meios de vida, procurando iludir, aparentar grandezas: -era bastante que d. Clementina corresse por qualquer deles uma olhadela de alto a baixo, para ficar sabendo quanto o sujeito pesava ao certo- quanto ganhava, quanto possuía, que lugar, enfim, devia ocupar na bitola de sua consideração.

Porque, é preciso notar, a viúva do conselheiro tinha já uma bitola para aferir os pretendentes da filha. Essa bitola marcava desde o marido «ótimo» até ao marido «péssimo». Quando a velha se referia a algum deles dizia secamente «regular» ou «bom», «sofrível para bom», etc. E essas simples palavras, ditas à socapa, determinavam as maneiras que Filomena devia usar para com o tal sujeito, se este se apresentasse.

O fato é que muita gente a cortejava. d. Clementina de vez em quando abria a casa aos seus amigos.

Que talento desenvolvido nesses modestos chás de família! Nada deixava perceber o mecanismo posto em ação para que não viesse a faltar coisa alguma no melhor da festa. Havia sempre piano, canto, recitativos, e às vezes dança, muita dança.

Mas tudo isso era por conta, peso e medida. Não se gastava um fósforo que não estivesse inventariado. Acabada a festa, procedia-se a um balanço minucioso; guardava-se com todo o cuidado o que pudesse servir para outra vez, e, antes de se deitarem, as duas senhoras arrumavam tudo, escovavam as roupas, acondicionavam as botinas, os leques e as jóias falsas.

Filomena lançava-se depois aos travesseiros, devorada por um estranho desgosto da vida, por uma vaga necessidade de horizontes largos, um desejar pungente de coisas imprevistas e grandes, uma sede indefinida de empresas arriscadas e situações transcendentes, que sua louca imaginação mal podia delinear.

E chorava muito, aflitivamente, sem saber porque. No outro dia eram suspiros e mais suspiros, queixas, tristezas, e um fastio e um tédio de causarem dó.

A mãe caía-lhe em cima, a ralhar, a aconselhar. Filomena que se deixasse de bobagens, que os tempos não davam para isso! E dizia-lhe tintim por tintim o que lhe convinha praticar, como devia proceder. Ensinava-lhe os segredinhos de agradar a todos, de prender, de «prometer sem dar, de negar, sem desistir».

-Agüenta-te, minha filha! Agüenta-te como vais, e um belo dia, quando menos o esperares, cai-te do céu um noivo «dos bons», que nos indenizará de todos estes sacrifícios.

O belo dia chegou com efeito, e o Borges caiu.

-Hein? que te dizia eu?... perguntou a velha, abraçando-se à filha, com as lágrimas nos olhos. -Chegou ou não chegou a tua vez?

Filomena abaixou o rosto e fez um gesto de descontentamento.

-Ora, deixa-te dessas coisas, minha filha! observou a mãe, apanhando no ar a intenção daquele desgosto. Quem dera a muitas a tua fortuna!

A outra soltou um grande suspiro.

-Que mais querias tu, então?!... volveu d. Clementina, entre meiga e repreensiva. -Quem sabe se preferias por aí algum bonifrates, que nos viesse atrapalhar ainda mais o capítulo?...

A filha emplumou-se com altivez, franziu o nariz, e estalou um muxoxo desdenhoso.

-Então?! prosseguiu a viúva do conselheiro.

-O Borges não é de certo nenhum Adonis; mas é um maridão, que vale quanto pesa!

E engrossando a voz, respeitosamente:

-Muito benquisto, muito bem relacionado... não é nenhum pé de boi... tem sua educaçãozinha... e, olha, filha, que aquilo tudo é sólido!

-Ora, faça-me o favor!..., disse a rapariga, impacientando-se -sólido será, mas não me venha dizer que o Borges tem educação!... É um bruto! É mesmo um «João Touro»!

-Não é tanto assim, menina!

-E o que fez ele outro dia aqui em casa?! Aquilo é de quem tem educação?! Um homem que come com a faca! Ora, minha mãe!...

-De acordo, de acordo, mas tu também deves fechar os olhos a umas certas coisas, oh!... Os bons maridos fazem-se, preparam-se -os diamantes não se encontram já lapidados! E, então aquele, coitado! Que a gente o leva para onde quer... Ali, é teres um pouco de paciência e o porás a teu jeito!

-Não acredito que daquele lorpa se possa fazer alguma coisa! retrucou a menina com desdém.

-Parece-te agora, verás depois que é justamente o contrário!... Em questões de casamento, minha filha, as aparências quase sempre enganam muito! Em geral os maridos que nos parecem mais fáceis de tragar, são justamente os mais amargos: ao passo que os outros, os tipos, os «Borges», esses são os bons, os doces! Cá por mim, nunca aconselharia mulher alguma a unir-se a um homem, que julgasse o seu espírito superior ao dela. Nada! Para haver perfeito equilíbrio num casal, é sempre indispensável que o marido conheça alguma superioridade na mulher: seja essa superioridade de fortuna, de inteligência, de educação ou mesmo de força física. Desgraçada da tola que não pense sobre isso antes do casamento -não será uma esposa, será uma escrava!

E d. Clementina, depois de dar uma pequena volta na sala terminou, batendo com ternura no ombro da filha: -Não te queixes da sorte, ingrata! O que no Borges agora se te afigura defeitos, são justamente qualidades muito aproveitáveis! Não avalias o tesouro que ali está! Digo-te com experiência! E, se duvidas, deixa correr o tempo, e dir-me-ás depois!

Filomena não se decidiu logo; porém, daí a poucos dias, a morte inesperada da mãe obrigou-a a tomar uma deliberação. Seis meses depois, voltava ela de uma igreja, casada com o Borges.

Seguiram logo para Botafogo, onde iam morar, segundo exigira a noiva. João Touro não poupara esforços para festejar o seu casamento, e, como sujeito considerado, que era, conseguiu reunir uma sociedade bem escolhida. Só o Barroso não quis comparecer:

-Tinha lá a sua opinião sobre o fato e não havia quem o demovesse daí.

Os convivas, não obstante, estavam todos de acordo em que o Borges não poderia encontrar mulher mais formosa e mais simpática.

Filomena, com efeito, apesar dos dissabores, já não lembrava aquela rapariga seca e descorada de outros tempos. Toda ela se carneara: a pele, atufada pela gordura, estendeu-se numa transparência macia e provocadora: o colo abriu-se em deliciosas curvas; a garganta enformou-se completamente; os braços encheram-se; os quadris ampliaram-se; a voz acentuou-se, e os olhos amorteceram com os cruentos mistérios da puberdade.

-E que ar de inocência! Comentavam em voz baixa, a contemplá-la no seu rico vestido de chamalote branco -que candura!...

-Não! dizia o Borges, que estava perto. -Não! nisso não tenho que invejar ninguém! -fui feliz!...

E esfregando as mãos:

-Fui muito feliz! A respeito de gênio, não há outra: dócil, meiga, modesta, incapaz de uma exigência, de uma recriminação! Nunca lhe vi o narizinho torcido, nunca lhe ouvi uma palavra mais áspera, um arremesso, uma impertinência! Sempre aquele mesmo sorriso de bondade, aquele mesmo arzinho de santa! É um anjo! É uma pomba de doçura a minha filoca! a minha rica filoquinha!

E o Borges, sem poder conter os ímpetos da felicidade, andava de um lado para outro, a contar os segundos, dando repetidas palmadinhas na barriga.

A casa tinha dois andares. Estava combinado que, à meia-noite, os noivos fugiriam para o de cima, enquanto no primeiro a festa continuaria, até entrar pela madrugada. Mas os ponteiros do relógio se reuniram nas doze horas, o Borges, impaciente, aproximou-se da esposa e, com a voz trêmula, o olhar suplicante e o hálito em brasa, disse-lhe ao ouvido:

-Podemos fugir... são horas... não acha?!

Ela ergueu os olhos e sorriu; depois levantou-se, deu-lhe o braço, e ambos desapareceram pelos fundos da sala de jantar. A madrinha já estava à espera da noiva, para a cerimônia do despojamento das roupas.

Mas o Borges, quando atravessava a sala contígua à alcova nupcial, ficou muito surpreendido com a mudança brusca, que acabava de se operar na desposada. O tal arzinho de santa fora substituído por uma expressão dura de má vontade. E a surpresa de João Touro aumentou ainda na ocasião em que, tentando segurar Filomena pela cintura para dar-lhe o primeiro beijo, ouviu-lhe dizer com um repelão enérgico: -Deixe-se disso, homem!

E ainda aumentou quando, depois que a madrinha a deixou só no quarto, ele -o noivo- querendo também recolher-se, levou com a porta no nariz, e ouviu ranger um ferrolho que a fechava por dentro.

-Ora esta! resmungou o Borges, sem saber que fizesse.

E bateu, a princípio devagarinho, depois mais forte, mais forte ainda. Só resolveu abandonar o posto, quando Filomena lhe gritou da cama:

-Com efeito! O senhor não tenciona acabar com isso?! Vá dormir, e deixe-se de imprudências! Se espera que eu lhe abra a porta, perde o seu tempo. Boa-noite!

-Bonito! disse o pobre noivo, cruzando os braços.

O Ferrolho

O Borges passou toda a noite na tal saleta contígua à alcova da mulher, estirado num divã, a ouvir o coaxar insuportável de um velho relógio suspenso na parede, justamente sobre sua cabeça.

Que noite, coitado! Que terrível situação para um pobre homem que, durante os seus calmos quarenta anos, nunca passou uma noite fora de sua cama, nunca dormiu menos de sete horas, deitando-se invariavelmente às onze e acordando às seis.

Ele! Ele, que nunca entrara numa pândega, passar uma noite inteira enfronhado em calças pretas, camisa bordada e gravata branca!

E o pior é que o infeliz, no cego empenho de parecer agradável aquela noite à esposa. metera-se num banho de perfumes, e sentia por todo o corpo, atabafado na roupa preta, uma comichão desenfreada.

Pobre noivo! Quanto não sofreste essa noite!

O Borges, mesmo no tempo de rapaz fora o protótipo da ordem, do arranjo e do método. Gostou sempre das coisas no seu lugar -o almoço às tantas, o jantar às tantas, o seu chá com torradas antes de dormir- e nada de se afastar desse regime.

Não podia compreender como houvesse no mundo quem, por gosto, perdesse as horas sagradas do sono, vergado sobre uma banca de jogo, a beber numa taverna, ou a fumar em companhia de mulheres.

Santo homem! Uma simples palavra mais decotada era bastante para fazer refluir-lhe às faces o mais pronto e legítimo rubor. Por isso alguns amigos lhe faziam troça, às vezes; mas, no fundo, todos o respeitavam, todos o amavam. Sabiam já que daquela boca cor de rosa, de dentes imaculados, daquela boca sem vícios, não sairiam a calúnia ou a intriga. Tinham certeza que daquele coração, virgem de paixões, não poderiam brotar o ódio, a inveja e a perversidade.

Conheciam, por longa experiência, a sinceridade daqueles olhos doces e compassivos, que muita vez se umedeceram com as desgraças alheias, e que, aos domingos, nos espetáculos da tarde, iam chorar três horas ao S. Pedro de Alcântara, defronte de um dramalhão de D'Ennery.

Pobre homem! Foi preciso que te casasses para passares mal a tua primeira noite! Tu! que vias no casamento «a última expressão da paz e da estabilidade» tu! que procuravas no matrimônio «o sossego completo, a dignidade do teu lar e o cumprimento de teus deveres de homem com a sociedade e para com a natureza»! Oh! como não te devias sentir indignado!

Não estava, porém, no seu gênio o revoltar-se.

-Não gostava de contendas -não queria estrear por uma desavença a sua vida de casado.

Além disso, amava-a tanto!..., adorava-a de tal forma, que se sentia perfeitamente incapaz de reagir.

-Não fez aquilo com má intenção!..., pensou ele. -Foi talvez por pudor, coitada! ou, quem sabe? talvez tivesse medo desta minha figura!

-É isso! com certeza não foi outra coisa!... concluiu de si para si, a coçar-se, quando a aurora já lhe invadia a sala pelos vidros da janela.

E foi nas pontas dos pés acordar um criado.

-Arranja-me um banho morno quanto antes! gritou -e vê se descobres por aí alguma roupa, aquilo lá por cima está ainda tudo fechado! Olha! vê também se me dás café e algumas bolachinhas; estou a cair de fraqueza! O criado, tonto de sono, porque o baile havia acabado pouco antes, ergueu-se a roncar, resmungando, muito intrigado por ver o amo já tão cedo às voltas com ele e, o que era mais ainda com a roupa da véspera e a dar ordens com uma tal impertinência que não parecia o mesmo.

Já vai! Já vai! respondeu, ouvindo novas reclamações do Borges. E pôs-se em movimento, a parafusar no que diabo teria sucedido ao amo, para andar tão cedo à procura de banhos mornos, de roupas e cafés com bolachinhas! -Aquilo foi grande espalhafato lá por cima! resolveu ele, tratando de executar as ordens. Ora, queira Deus que este casamento ainda não lhe venha a dar na cabeça!... Eu nunca achei grande coisa a tal senhora d. Filomena! Pode ser que me engane... mas aquela boneca de engonços há de dar água pela barba do patrão!

Daí a pouco o Borges, já restaurado, metido numa fatiota de brim branco, a barbinha feita, o seu farto cabelo bem penteado, lia o Jornal do Comércio, no salão do segundo andar, à espera de que a mulher se levantasse.

Quando Filomena, às dez horas da manhã, saiu do quarto para o salão, encontrou-o repimpado na cadeira de balanço, dormindo de papo para o ar, a boca aberta, a barriga espipando por dentro do colete e do rodaque de brim, os braços soltos, e numa das mãos o jornal.

Schocking! exclamou ela, arrevesando um olhar de nojo.

O marido bocejou, despertado por aquela exclamação. E, ao dar com a mulher, endireitou-se atrapalhadamente, contendo os bocejos, as carnes a tremerem-lhe e os olhos sumidos na rápida congestão do estremunhamento.

Ela vinha formosa a mais não ser. O sono completo dera-lhe às feições a olímpica serenidade das Vênus antigas. Trazia a rastros um longo penteador de linho bordado; o cabelo preso ao alto da cabeça, como dantes, mas agora enriquecido, à moda japonesa, por um gancho encastoado de pedras preciosas. Em volta do mármore sem brilho de seu pescoço, reluziam pérolas e toda ela respirava um cheiro bom de saúde e de asseio.

-Como passou? disse, aproximando-se do marido e estendendo-lhe a mão.

Borges adiantou-se cerimoniosamente para cumprimentá-la. Um acanhamento espesso tolheu-o dos pés à cabeça. Quis responder e apenas gaguejou algumas palavras sem sentido. Naquele instante lhe passava pela idéia o receio de que a mulher desconfiasse do ressentimento, que porventura nele tivesse produzido o fato da véspera. -Como chegara a imaginar, pensou num relance -que aquela mulher, tão delicada e tão altiva, consentisse em recebê-lo ao seu lado, na sua cama, logo na primeira noite do casamento! -Onde tinha ele a cabeça para esperar semelhante coisa?!

Filomena, como se adivinhasse o pensamento do marido, expediu-lhe generosamente um sorriso de indulgência e disse-lhe, devagar, enfiando o seu braço no dele:

-O senhor seria muito amável se quisesse fazer-me companhia ao almoço...

E vendo um gesto de surpresa no Borges. -Isto significa que desejo almoçar aqui, no segundo andar, sozinha com o senhor, sem a presença de estranhos, nem mesmo a dos criados -um verdadeiro tête-à-tête... não acha boa a idéia?

-Oh!... se acho!... Eu não ousava ambicionar tanto!... Sim, quero dizer..., eu...

-Pois então tenha a bondade de dar as providências para isso. Quanto às nossas visitas de hoje -só me pilharão ao jantar.

E no fim de uma pausa, tocando-lhe no ombro:

-Então! Vá!! Mexa-se!

O Borges, encolheu a cabeça e precipitou-se de carreira para o primeiro andar.

Só se tornaram a ver à mesa do almoço.

-É bom que esteja tudo à mão para não termos de chamar pelos criados, observou ela, acomodando-se na sua cadeira, defronte uma pilha de ostras cruas.

E desdobrando o guardanapo sobre o peito:

-É uma providência dispormos deste segundo andar; fica-se aqui perfeitamente à vontade. É tão desagradável mostrar-se a gente a visitas logo pela manhã, depois de um casamento!

O Borges sorriu. -É desagradável... é! disse ele corando levemente.

-É brutal! emendou Filomena, passando o copo de vidro verde, para que o marido lhe servisse o sauterne que tinha ao lado.

E depois de beber:

-Não compreendo como ainda se conservam na sociedade moderna certos costumes verdadeiramente bárbaros. As cerimônias do casamento estão nesse caso. Nada há mais grotesco, mais ridículo, do que essa espécie de festim pagão em que se celebra o sacrifício de uma virgem. Horroriza-me, faz-me nojo, toda essa formalidade que usamos no casamento -a exposição do leito nupcial, os clássicos conselhos da madrinha, o ato formalista de despir a noiva, e, no dia seguinte, os comentários, as costumadas pilhérias dos parentes e dos amigos... Oh! é indecente! Mas agora reparo; o senhor não come!...

De fato, enquanto Filomena falava, o marido era todo olhos sobre ela, não se fartava de contemplar aquele adorável busto que tinha defronte de si. Causavam-lhe estranhos arrepios o modo desembaraçado, a graça natural, com que a mulher prendia uma ostra na pontinha dos dedos cor de rosa para levá-la à boca, numa riqueza de braços arremangados, onde tilintavam dois porte-bonheurs de metal branco.

-Ao menos beba! replicou ela, vendo que o Borges não se resolvia a comer.

E encheu-lhe o copo.

O pobre homem teve acanhamento de confessar que nunca em toda a sua vida, bebera o mais pequeno trago de vinho.

-Então... fez a mulher. -Vamos! E tocando o seu copo no dele: -Ao nosso casamento!

Borges emborcou o seu de um fôlego com uma careta.

Filomena não se pôde conter, e soltou uma dessas risadas retumbantes, que chegam para encher toda uma casa. Aquele ar esquerdo do mestre de obras, engasgado, roxo de tosse, fazia-lhe cócegas pelo corpo inteiro. E ela ria, ria, ria, sem se dominar, cobrindo o rosto com as mãos, torcendo-se como uma cobra, enquanto o Borges, muito enfiado, procurava posições na cadeira, ardendo por sair daquela situação que o torturava.

-Coma sempre alguma coisa! disse-lhe por fim a esposa, fazendo inúteis esforços para reprimir a hilaridade -olhe que não é cedo!... uma hora, creio eu.

-Obrigado! Não tenho apetite... respondeu ele, cada vez mais confuso, a limpar o suor que já lhe sobrevinha ao rosto.

Ela continuava a rir.

-Há de ser porque passei mal a noite... acrescentou o Borges. Não preguei olho!... Isto para quem nunca saiu de seus hábitos...

-Mas, meu amigo, acudiu Filomena, solicitamente, tornando-se séria -para que faz o senhor loucuras dessa ordem? Isso pode causar-lhe mal! Lembre-se de que já não tem vinte anos, e a sua saúde, na sua idade, é coisa muito preciosa!

O Borges desta vez perdeu de todo o bom humor. Ou fosse por efeito do vinho, que ele bebia pela primeira vez, ou fosse que as palavras da mulher o irritassem deveras, o caso é que fechou o rosto e respondeu quase com azedume:

-Eu não perdi a noite pelo gostinho de a passar em claro! Não foi minha a culpa!..

-De quem foi, nesse caso?..., indagou Filomena, já com o riso a espiar pelos cantos da boca.

-Ora, minha senhora!...

-Quer dizer que foi minha?!

-A senhora bem o sabe...

-Perdão, meu amigo, convém que nos entendamos! O senhor terá bastante bom senso para compreender o que lhe digo: ouça..

-Tenho até para mais... aparteou o Borges, encavacado.

-Tenho para compreender o papel ridículo que a senhora quer me fazer representar!...

-Ridículo? Por quê?!

-Por quê?! Porque eu não tinha a menor necessidade de passar a noite no sofá e ainda por cima servir de galhofa! Ora aí tem porque!

-Mas que queria o senhor que eu lhe fizesse?!... .

-Ora, minha senhora! Por amor de Deus!

Pois acha que devo ter plena confiança em um homem que mal conheço?! Um homem que eu não sei se me ama, ou que, pelo menos ainda não me deu provas disso?!...

-Não dei provas!!! exclamou Borges ofendendo-se. -Não dei provas!... Homessa!..., Quer então uma prova superior ao casamento... Então o fato de me fazer seu esposo, não vale nada?!

-Vale tanto como o de fazer-me eu sua esposa. Foi uma permuta, uma troca. E por ora é só o que há -estamos quites- nem o senhor por enquanto tem direitos adquiridos, nem eu!! Salvo se entende que o noivo vale muito mais que a noiva!...

-Eu não entendo nada! respondeu ele, triste; -sei apenas que me casei com a senhora porque a estimo muito...

E abaixando a voz, ainda com mais amargura:

-A senhora, sim! é que nunca me teve afeição, e princípio a duvidar que isso venha a suceder algum dia...

-Depende unicamente do senhor, meu amigo!..., retrucou Filomena.

Agora parecia comovida. Estava muito séria; o olhar ferrado no prato.

Houve um silêncio. Ela, afinal, continuou a falar, imóvel, sem descravar os olhos donde estavam, e a bater compassos na mesa com a faca.

-O coração de uma mulher nas minhas condições, disse, medindo as palavras e recitando, como se tivesse os períodos decorados -não é coisa que se conquiste assim com um simples casamento: não haveria nada melhor! O senhor, se quer ter a minha confiança plena, a minha dedicação, a minha ternura, faça por merecê-las... Não será de certo com esses modos e com essa cara fechada, que conseguirá abrir-me o coração! Eu, até, se soubesse que o senhor havia de se portar desta forma, não o teria convidado para almoçar em minha companhia... O senhor fala de farto!... Em vez de agradecer à sua boa estrela a bela ocasião que lhe faculto para principiar a conquistar-me, põe-se nesse estado e parece disposto a incompatibilizar-se comigo por uma vez!

Borges ouviu tudo isso, vergado na cadeira, sem um movimento, os olhos corridos, o rosto anuviado por uma funda expressão de mágoa resignada. Quando a mulher terminou, ele estendeu-lhe um olhar de súplica e tentou agarrar-lhe as pontas dos dedos.

Filomena retirou a mão com um movimento rápido, e voltou-se para o outro lado, dando as costas ao marido. Este arrastou-se com a cadeira para junto da esposa, e, em segredo, a voz medrosa e submissa, perguntou-lhe o que então queria que lhe fizesse?...

-Tudo! respondeu Filomena na mesma posição, a sacudir uma perna, que havia dobrado sobre a outra.

-Mas tudo, como?... perguntou Borges, tentando acarinhá-la.

Ela ergueu-se, demovendo o corpo, e acrescentou, encarando-o:

-Ouça! -Por ora, meu amigo, pertenço-lhe de direito, porque nos casamos, e isso tornava-se inevitável na situação em que o senhor me achou; mas declaro-lhe abertamente que só lhe pertencerei de fato no dia em que o senhor tiver conquistado o meu amor à custa de dedicação e de perseverança! Só lhe pertencerei de fato no dia em que o senhor se houver cabalmente habilitado para isso! Compreende agora?...

O marido deixou cair a cabeça e ficou a pensar, enquanto a mulher atravessava o gabinete, depois a saleta, e fora assentar-se no divã do salão. No fim de cinco minutos, Borges levantou-se resolutamente e foi ter com ela:

-De sorte que a senhora tenciona continuar com a porta do seu quarto fechada, até que eu...

- A porta e o coração, acudiu Filomena -até que o senhor os consiga abrir com os seus desvelos!

-Quer então que lhe faça a corte?...

-Decerto.

-Pois tomo a liberdade de declarar a V. Exª que foi justamente por não ter jeito para essas coisas que me casei! Se eu tivesse gênio para atirar-me aos pés de uma mulher e fazer-lhe a minha declaração com palavreados de romance, se eu tivesse queda para falante, não procuraria uma esposa, bastava-me ter uma...

Filomena não lhe deu tempo de concluir a frase. Ergueu-se num só movimento, e, depois de medi-lo de alto a baixo com um olhar de rainha ofendida, afastou-se lentamente em silêncio, os passos firmes, a cabeça altiva.

Borges correu logo atrás dela e segurou-lhe uma das mãos.

-Solte-me! exclamou Filomena, arrecadando o braço.

E fugiu para a saleta, atirou-se sobre o divã em que o marido passara a noite, e aí rompeu a soluçar com um frenesi histérico.

Borges ajoelhou-se-lhe aos pés e cobriu-lhe as mãos de beijos e de lágrimas.

-Não leves a mal aquilo, minha santa! Desculpa, exclamou ele, escondendo o rosto no colo da esposa. -Reconheço que não fui muito delicado -excedi-me, mas não sei onde tenho a cabeça- não estou em mim! É que me pões doido com tuas palavras! Oh! mas não fiques zangada, não chores; tudo aquilo prova justamente o bem que eu te quero, minha vida, minha mulherzinha do coração!

Filomena não respondia e continuava a chorar, toda prostrada no divã: a cabeça vergada para trás, o rosto encoberto por um lenço de rendas, que ela segurava em uma das mãos, ao passo que abandonava a outra aos beijos apaixonados do marido. Agora os soluços eram espaçados e mais secos, como os últimos rumores de uma tempestade que acalma.

De repente ergueu-se. Fitou por instantes o marido, que jazia a seus pés ajoelhado, a encará-la lacrimoso e súplice; depois estendeu os braços, deu-lhe um empurrão e fugiu para o seu quarto, fechando-se logo por dentro, violentamente.

O Borges ficou meio assentado e meio deitado no chão, amparando-se às mãos e aos pés.

-E esta -balbuciou ele daí a pouco, erguendo-se de mau humor. -É gira ou não é gira?...

E pôs-se a percorrer todo o pavimento, rondando o quarto fechado da mulher, como um gato que fareja o guarda-petiscos... No fim de uma hora de exercício, indo e revindo incessantemente, de lá para cá, as mãos nas algibeiras das calças, o olhar cravado na esteirinha do soalho, Borges estacou no meio do salão:

-É demais! pensou ele. -É para um homem perder a cabeça!

E atirou-se prostrado à cadeira de balanço, passando uma revista mental a todas as contrariedades e decepções que o afligiam desde a véspera.

-Ora aí estava para que se tinha casado!... Passar por tudo aquilo... Ele! Ele, que em sua longa vida de solteiro nunca amargara uma noite tão má e um dia tão levado da breca! -Quem te mandou, João Borges, meter-te em camisas de onze varas?... Maldito fosse o Guterres, que o levou à casa da defunta Clementina! Antes tivessem ambos quebrado as pernas nessa ocasião! Maldito Guterres!

E, acabrunhado por esses raciocínios, sentindo perfeitamente que não tinha forças para arrancar de si a paixão enorme que lhe inspirava a esposa, levantou-se de novo, foi e veio por todo o segundo andar, suspirando e tossindo todas as vezes que passava defronte da porta de Filomena. Afinal, no fim de outra hora de passeio, convencido de que a mulher não aparecia, desceu ao primeiro pavimento.

Os amigos já lá estavam para o jantar. Guterres foi o primeiro que correu ao seu encontro, abrindo-lhe os braços.

E, discretamente, enquanto o estreitava:

-Você está abatido, seu maganão!

Borges sorriu, protestando vagamente:

-Uma enxaqueca!... Uma pequena enxaqueca!...

-E sua senhora?..., perguntou um dos amigos.

-Vem já, vem já... Ela, também, coitadinha!..., não passou lá para que digamos!...

-Outra enxaqueca?...

-Naturalmente! Considerou um terceiro a rir.

-Ah! estes noivos! estes noivos!... volveu o Guterres a bater no ombro do Borges. -Não precisa fazer-se vermelho, que diabo! Já sei o que isso é, meu amigo, já passei duas vezes por esses transes!...

O Borges teve um novo sorriso, ainda mais amarelo que o primeiro, e foi continuando a receber os parabéns dos outros convidados, cujas pilhérias, cujas pequenas frases de sentido dúbio e malicioso, ditas aliás com a intenção de lisonjeá-lo, mais e mais o indispunham e frenesiavam.

Começam as provações

O jantar correu melhor do que se podia esperar; Filomena mostrou-se muito amável às suas visitas e, sem se dar mais a uma do que a outra, sempre risonha, afável e cheia de espírito, dividindo-se por todas elas a um só tempo, mostrou quanto era profunda na complicada ciência de agradar em casa, na mesma ocasião, muita gente reunida.

Fez-se música; houve canto e conversou-se a valer.

Ao retirarem-se às dez e meia, iam todos penhorados pela dona da casa e plenamente convencidos de que não havia no mundo inteiro um marido mais feliz do que João Touro.

O que, entretanto, não obstou que o pobre homem três dias depois caísse numa melancolia taciturna e pesada, que lhe tirava o gosto para tudo, até para o trabalho. Emagrecia a olho visto, e com as suas gorduras fugiam-lhe as belas cores do rosto e escapava-lhe dos lábios aquele calmo sorriso de felicidade, seu bom companheiro de tantos anos.

É que a portinha do quarto da esposa continuava fechada por dentro.

-Aquilo não era mulher para o Borges! murmuravam os maldizentes, ao vê-lo tão puxado e abatido.

-Olhe que ela o tem derreado! considerava outro.

E a verdade é que o infeliz estava apaixonado e apaixonado deveras. Para fazer as pazes (restritas, bem entendido) com a mulher, depois do primeiro arrufo do almoço, teve que lançar mão de todos os recursos da humildade e da súplica.

-Procure ser-me agradável! aconselhou Filomena, e o senhor obterá de mim tudo quanto quiser!...

-Mas em que lhe posso ser agradável, minha querida... A senhora bem vê que faço para isso tudo que está nas minhas mãos!...

-Talvez assim lhe pareça, mas juro-lhe que o não é! Por exemplo -por que razão não se resolve desde já o meu caro esposo a abandonar esse hábito insuportável de rapé... hábito, que, só por si, é quanto basta para o incompatibilizar comigo?

Borges corou e prometeu nunca mais tomar rapé:

-Não fosse essa a razão!...

-Aí tem já o senhor por onde principiar: -Eu tanto abomino o vil e baixo rapé, quanto gosto do aristocrático perfume do charuto. Experimente fumar um! Eu mesma posso encarregar-me de prepará-lo. Já vê que não sou tão má -até lhe aponto os meios, que o seu coração devia ser o único a descobrir para conquistar o meu.

E, depois de fazer vir uma caixa dos melhores charutos que se encontraram, tomou um, trincou-lhe fraciosamente a ponta, e disse, passando-o ao marido:

-Vamos lá! Sente-se aqui ao pé de mim... Muito bem.

E, riscando um fósforo: -Principiemos!

Borges hesitava.

-É que eu nunca fumei, filhinha... objetava ele timidamente.

-Oh! que grande sacrifício! E encheu a boca com a frase -«Nunca fumou!» E os outros?..., os que fumam?..., acenderam o primeiro charuto só depois de habituados a fumar?!...

-Isto pode fazer-me mal...

-Pois então não fume! Ora essa! respondeu ela, erguendo-se já amuada. Quando para fumar é isto, quanto mais...

-Vem cá, menina, vem cá! Oh! Tu também te esquentas por qualquer coisa! Eu não disse que não fumava!...

-Pois então vamos lá! tornou a formosa mulher com uma pontinha da faceirice.

-Acenda...

-Tu és os meus pecados!... disse o Borges obedecendo.

-Acenda direito..., recomendou Filomena, fazendo-se amável. -Não chupe com tanta força! Assim... assim! Veja como vai bem agora!

E o Borges fumava afinal, interrompendo-se a cada momento para tossir sufocado, sem dar vencimento à saliva que lhe acudia.

-É horroroso! afirmava ele alguns minutos depois, segurando o charuto com ambas as mãos. -Faz-me vir água aos olhos!

-É delicioso! contestava a mulher ao lado, derreada para trás, aspirando voluptuosamente o fumo que o marido expelia da boca.

Borges, quando se levantou, sentia tonturas, vontade de vomitar e suores frios.

-Continue, continue, que em breve se habituará! disse-lhe a mulher, enquanto ele se afastava para o quarto muito pálido, cheio de calafrios, agarrando-se às cadeiras.

E desde então Filomena não consentiu que o marido se aproximasse dela, sem vir fumando.

-E promete que me deixa depois dar-lhe um beijinho na face?..., perguntou ele na ocasião de submeter-se ao sacrifício do segundo charuto.

Prometo que lhe consentirei beijar-me a testa -a testa!- no dia em que fumar o último charuto da caixa.

Filomena cumpriu a promessa; o Borges, depois de fumar cem charutos, beijou pela primeira vez a fronte da esposa.

Ela, porém, tornava-se mais exigente de dia para dia. O marido teve que pôr abaixo a sua barbinha à portuguesa e deixar crescer o bigode; teve que abandonar as suas queridas calças de brim mineiro, de que tanto gostava, teve que suportar cosméticos e brilhantinas, contra os quais protestava o seu delicado olfato de homem puro. O que, porém, mais lhe custou, o que atingia as proporções de um verdadeiro sacrifício, foi ter de submeter-se a «usar pastinhas». Ele! o Borges! de pastinhas! -Que não diriam os seus velhos e respeitáveis amigos do comércio?!... Que não suporia o Barroso?!...

Mas enfim... usou.

-Ah! o amor! o amor! gemia ele, quando no seu quarto entregava a cabeça aos ferros quentes do cabeleireiro.

-Deus me dê paciência!

A dois passos, o criado observava-o em silêncio, com um ar de compaixão.

-A que bonito estado o reduziu aquela mulherzinha dos demônios. Quando eu digo as coisas!...

E de uma feita, vendo os esforços que o amo fazia por disfarçar o abdômen com um espartilho, ficou tão indignado, que saiu do quarto, para não cometer alguma imprudência. Embaixo foi desabafar a sua indignação com o copeiro e o cozinheiro.

-Eu é que já não estou disposto, disse este, a suportar as impertinências da patroa! Tenho servido em casas muito mais ricas do que esta, e nunca sofri o que me fazem aqui. Todo o dia são reclamações e mais reclamações. Não há meio de agradar! Se faço assim, é mau; se não faço, é pior! E nada presta! e «tudo é uma porcaria»! Hoje é com a sopa, amanhã com o assado! Vá para o diabo um tal sistema!

-Além disso, acudiu o copeiro -não há horas certas para a comida! Uma vez querem o almoço às sete da manhã e já no dia seguinte só o reclamam às duas da tarde. O jantar, tanto pode ser às quatro, como às seis, como às oito e até como às onze da noite! E eu que me amole! Não! Assim também não se atura!

-E comigo então?! perguntou a criada, que se havia metido já na conversa -comigo é que são elas!- Falte água no jarro, falte qualquer coisa, não corra eu ao primeiro chamado, para ver como fica a bicha! Outro dia, porque quebrei o braço de uma pestezinha de figura que ela tem sobre a cômoda, deu-me um tal pescoção que me fez cair de encontro à quina da secretária! Ainda estou com este quadril todo roxo! Bruta!

O jardineiro, que também se achegara do grupo, contou que, não havia uma semana, a senhora varrera com um pontapé os vasos da escada do jardim, só porque uma das begônias parecia mal tratada. -É uma mulherzinha de gênio!...

-E agora vão ver! tornou a criada. -Para ralhar e atirar com as coisas na gente, é isto que se sabe; entretanto, a casa pode cair aos pedaços que ela não se incomoda. Se o patrão que é aquele mesmo, não der as providências ninguém as dará!

-Não! Que ela tem pancada na bola, não resta dúvida!

E os comentários da criadagem foram-se desenvolvendo de tal forma, que chegaram aos ouvidos de Filomena.

-Tudo na rua! Já! disse esta, sem se alterar.

-Não quero semelhante súcia nem mais um instante em casa! acrescentou ao marido. -Despede-os, e anuncia, quanto antes, que precisamos de nova gente! Preferem-se estrangeiros!

O Borges tratou de executar as ordens da mulher.

-Então o senhor põe-me fora?... perguntou-lhe o criado, quando recebeu a intimação para sair.

-É verdade, Manuel, sustentou o Borges -tem paciência, mas não há outro remédio... Reconheço que és um bom rapaz, mas não podes continuar ao meu serviço. Vai-te e acredita que não é por meu gosto.

-Mas por que sou despedido? Há seis anos que estou ao serviço de vossemecê, e creio que até agora ainda não dei motivos para ser posto na rua como um cachorro.

-Tens razão! tens razão, mas, já te disse, filho! Não há outro remédio!...

-É que é duro ficar a gente assim desempregado de um momento para o outro, quando aliás...

-Eu recomendar-te-ei aos meus amigos. Não ficarás desamparado. E se te vires em algum aperto, procura-me...

-É duro! insistia Manuel. -É muito duro! Ah! mas vossemecê me despede por que lhe foram encher os ouvidos a meu respeito!

-Homem, rapaz, é melhor que te vás logo e não me estejas a causticar a paciência. Só te despeço é porque assim o entendo, sebo!

-Qual o quê! vossemecê despede-me a mandado da patroa!

-Ó seu mariola! gritou o amo. -Ponha-se já na rua!

-Isto é uma casa de S. Gonçalo... principiou ainda o criado, quando o Borges, perdendo de todo a paciência, saltou sobre ele, e tê-lo-ia rachado com um pontapé, se o respondão não tratasse de ganhar a porta da rua.

-Atrevido! rosnou o Borges. -Insolente! Faltar-me ao respeito! A mim!

No dia seguinte principiou a escolha do novo pessoal. O Borges, já bastante importunado com ter de suportar comida de hotel, viu-se tonto no meio da chusma de cozinheiros, copeiros, jardineiros, serventes de ambos os sexos e de todas as nacionalidades, que choviam de Sul e Norte, entre uma algazarra infernal.

A coisa durou dias. Filomena vacilava na escolha; -queria gente especial, fora do comum e pronta a cumprir estritamente os seus caprichos, sem tugir nem mugir; ainda que com isso custasse muito mais cara.

Para a cozinha preferia um chim; para o serviço da copa um inglês, um groom legítimo, e para sua criada grave alguma coisa de francesa ou russa ou espanhola, uma criada, enfim, que não fosse de cor, nem tivesse a menor sombra de portuguesa.

-Oh! os portugueses eram incompatíveis com a sua fantasia!

Mas não encontrou gente nessas condições, e, enquanto esperava por ela, resignou-se a tomar para seu serviço uma Cecília, tão brasileira como um Roberto, que foi substituir o Manuel e também como o novo jardineiro, e como o novo copeiro, e como o novo cozinheiro. -Uma lástima! -todos brasileiros!

-Está agora mais satisfeitinha com seu marido?!... perguntou-lhe o Borges meigamente.

-Sim, respondeu ela, deixando-o beijar-lhe a mão. Vais muito bem. Continua, continua dessa forma, que um dia, talvez.., consigas captar-me a estima.

-Ora!... balbuciou o mestre de obras, já meio desanimado. -É só «continua continua!» e as coisas é que vão continuando na mesma!...

E o bom homem, no desespero de merecer as graças da esposa, transformava-se pouco a pouco.

O Guterres, indo visitá-lo, três meses depois do casamento, soltou um grito de estupefação e abriu grandes olhos espantados:

-Que! Pois é o João Borges?!... que metamorfose, meu Deus! que mudança!

E contemplando-o de alto a baixo. -Sim senhor! sim senhor! -Está moço e bonito! Onde foi você, seu maganão, arranjar esses bigodes tão pretos e tão petulantes?!

-É que aquela barba por debaixo do queixo principiava a incomodar-me... respondeu o marido de Filomena, abaixando os olhos e enrubescendo.

-Mas agora reparo! tornou o outro, -fraque à inglesa! colarinho da moda! prastron! meias de cor! polainas! sapatos de verniz! flor à gola! -Bravo! seu João! Bravo! Não há como uma mulherzinha bonita para fazer desses milagres!

E vendo o amigo acender um charuto. -Também fuma?!... Ó senhores! estou maravilhado!

-É... gaguejou o janota à força; -o rapé ultimamente, não me fazia bem... Dou-me muito melhor com o charuto!...

-E digam mal do casamento!..., considerou o Guterres. -Queria que se mirassem neste espelho!

E em resposta a um gesto de impaciência do Borges:

-Não, meu amigo, isto tenha paciência! Em três vidas que você vivesse não me pagaria o serviço que lhe prestei, levando-o à casa da defunta d. Clementina!

-Sim, sim..., respondeu o outro, cortando a conversa. -Mas que ordena afinal, o meu amigo?

O Guterres, mudando logo de aspecto, disse então o motivo de sua visita; -se o outro lhe pudesse adiantar ainda uns duzentos mil réis seria um grande favor...

O Borges coçou a cabeça. -Era o diabo!... As coisas não iam lá muito bem... O casamento trouxera despesas consideráveis!... agora o negócio ficava mais fino; tinha de pensar no futuro!... os filhos não tardariam por aí...

-Bom, senhor! Retorquiu o Guterres, transformando-se de novo. -Bom! Eu também não exijo sacrifícios!...

E deixando escapar aos poucos como o vapor comprimido de uma caldeira, a raiva que se lhe desenvolvia por dentro.

-Desculpe! Desculpe! -Pensei que você fosse o mesmo homem!... ou que pelo menos o fosse para mim... a quem... digo então!... devia trazer nas palminhas, se... se soubesse ser mais reconhecido!

-Ora, vá plantar batatas! exclamou o Borges, contendo a custo o que tinha para dizer a respeito dos tais favores do Guterres.

-Não esteja aí a dizer barbaridades!

-Você nega então que só a mim deve estar casado?

-Homem! não me amole, homem de Deus! Se, para o ver pelas costas, tenho de dar duzentos mil réis -aqui estão! mas, por quem é, deixe-me em paz!

-Ingrato!

-Aí os tem, leve-os e não se incomode em voltar cá para restitui-los! Vá, vá com Deus!

-Sim! disse o Guterres com ênfase, tomando o chapéu e a bengala -sim! levo comigo o vil dinheiro, porque desgraçadamente não tenho outro remédio; mas também sabendo que, de sua parte, é uma covardia aproveitar o aperto em que me acho, para injuriar-me desse modo!

-Fomente-se! respondeu o Borges, dando-lhe as costas.

O outro, desde aí, não o poupou mais. Logo no dia seguinte, em uma roda onde se falava do mestre de obras teve ocasião de lhe meter as botas. -Além de um grande pedaço d'asno, é um impostor! bradou ele. Pensa, lá por ter os seus mil réis, que é superior a todo o mundo! Um tolo!

E apontou as tolices do Borges, as transformações que sofrera o basbaque depois do casamento. Mas quase todos lançaram esses comentários à conta da inveja, e o mando da encantadora Filomena ia, cada vez mais, ganhando a reputação de um homem completamente feliz.

Entretanto, as exigências daquela multiplicavam-se, e o Borges continuava a submeter-se, estribado sempre na grata esperança de possui-la um dia.

Vieram as festas, os bailes; Filomena principiou a luzir nas salas, a ofuscar. Sua beleza, sua vivacidade espiritual e romanesca, postas agora em relevo pelos mil réis do marido, tomaram proporções dominadoras. Era sempre a rainha dos lugares onde se achava; a mais querida, a mais falada, a mais desejada.

Todos viam no Borges um cúmulo de fortunas -Os homens invejavam-no, mas nenhum deles se podia gabar de ir um ponto além de sua inveja. Filomena a todos prendia igualmente na mesma rede de atrações, sem dar a nenhum direito de avançar, nem ânimo de fugir. Se o sorriso prometia -o olhar negava; e se de seus olhos escapava porventura uma dessas faulas satânicas, que acendem no coração mil esperanças a um tempo -era uma frase, enérgica e pronta, que vinha destruir de chofre a indiscreta promessa dos olhos.

E o Borges, apesar de marido, não estava ileso dessas condições; feliz aos olhos de todos, ia arrastando ele o seu desgosto, sem poder confessar a pessoa alguma os tormentos que o devoravam. Esta circunstância ainda o fazia sofrer mais.

-És um felizardo! Repetiam-lhe a todo o instante. E essa maldita frase produzia-lhe o efeito de um ferro em brasa. Evitava já ficar a sós, nas janelas ou nos cantos da sala, com os amigos mais chegados, para não ouvir a constante glorificação daquela felicidade, que só existia na imaginação deles.

-Para você é que é esta vida!..., diziam-lhe.

-Meu caro, quem nasce sob uma boa estrela, não tem que se apoquentar com a sorte!

E o Borges sacudia os ombros, sorrindo contrafeito. Mas a sua tristeza aumentava; o seu vigor decrescia, e todo ele ia parecendo vitima de uma grande enfermidade.

-Você precisa ter um pouco de cuidado, segredou-lhe uma vez o médico. -Olhe que o mundo não se acaba, meu amigo! Isso pode prejudicar mesmo a sua senhora, que, em todo o caso, é uma mulher e tem a constituição mais delicada! Não convém abusar! Não convém abusar!

-E isto é dito a mim! a mim! exclamava o Borges, a bater no peito, chorando, logo que se achava só. Mas não desanimava, certo de que os sacrifícios dedicados à cruel deusa de seus sonhos teriam, mais cedo ou mais tarde, uma recompensa.

-Oh! só de pensar em tal, o coração saltava-me por dentro.

Não obstante, as exigências continuavam a surgir, e ele continuava a render-se, cada vez mais submisso e mais vencido.

Agora já lhe não custava a suportar os bailes de cerimônia, e recebia duas vezes por mês. Aquele homem, que dantes, ao bater das onze, se recolhia invariavelmente aos seus travesseiros, passava agora todas as noites em uma roda viva de etiquetas, a cortejar para a direita e para a esquerda, a rir, a lisonjear, a fazer-se fino. Suas reuniões tornavam-se famosas pela suntuosidade, profusão bem escolhida dos vinhos, excelência dos bufetes, boa música e esplêndida variedade de convivas de ambos os sexos.

-Não há dúvida! É um felizardo! insistiam os amigos!

-Que mulher possui o ladrão! -Formosa, distinta, elegante, inteligente e, além de tudo, honesta! Parece que só vive para o marido! Definitivamente não há outro mais feliz!...

Só o mísero esposo não pensava dessa forma. Agora os caprichos da mulher impunham-lhe uma provação terrível para ele, e a pior de todas que até aí cometera; Filomena exigiu que o desgraçado aprendesse a valsar.

Valsar o Borges! O Borges! o homem mais incompatível com a dança!

Foi preciso arranjar um professor discreto, que lhe desse as lições em casa, às ocultas, todos os dias, das três às cinco da tarde.

Que luta, santo Deus! Que longas horas de tormento! Que heroísmo para não desanimar no meio da empresa!

Foi uma campanha formidável! Seus vastos e pesados pés não se queriam sujeitar àquela violência implacável dos passos e dos saltinhos; seus nodosos tornozelos, grossos como troncos de árvore, protestavam energicamente contra os inquisitoriais ritornelos das valsas puladas. Recalcitravam-se os joanetes, revoltavam-se os calos; tremia o soalho; vinham abaixo as bugigangas que estavam sobre os consolos da sala; o Borges suava, afogueava-se e não conseguia passar das primeiras figuras.

Mas Filomena estava ali para lhe dar coragem -como nos cavalheirescos torneios da Idade-Média. A imagem dela 'animava-o, como a presença de um grande prêmio ambicionado. Só valsando conseguiria transpor o limiar daquele paraíso. Pois bem! Valsaria, custasse o que custasse!

-Oh! ela adorava a dança! Não podia sofrer um homem que não soubesse valsar. A dança foi sempre uma de suas paixões mais fortes; em pequena chegou a imitar vários passos difíceis que vira no teatro. Sabia o solo inglês, a gaivota, o minuete, a cachucha e muitos outros.

O Borges, no fim de cinco meses de estudo acérrimo, conseguia dançar, não só a valsa, como a polca; a mazurca, o schottisch, e as quadrilhas francesas. Filomena então exigiu que ele, enquanto descansava da última campanha, se entregasse à leitura escolhida de certos poetas e romancistas. Apresentou-lhe os livros e marcou as lições que o marido havia de decorar.

-Quero que tenhas de memória um bom repertório de versos, para mos recitares nas ocasiões de aborrecimento. A prosa todos os dias fatiga muito!

O Borges obedeceu, como de costume, e daí a pouco tempo atroava nas salas a sua voz de baixo profundo, recitando os trechos mais declamatórios de Marília, de Gonzaga.

Um amigo, que ia visitá-lo, não se animou a tocar a campainha, intimidado por aquela gritaria, e desgalgou a escada, benzendo-se. A criada bispou-o e foi logo contar o fato à senhora.

-Pois de hoje em diante quero a porta da rua fechada, enquanto durar a declamação, ordenou Filomena; e, a partir desse momento, fechavam-se sempre ao meio-dia e caiam no recitativo.

Filomena, que tinha muitos versos de memória, lembrou-se de dialogar com o marido as poesias mais próprias para isso. Depois veio-lhe a idéia de recorrer às tragédias de Gonçalves Dias e fazer a coisa mais ao vivo, tomando cada um o trajo e o característico que exigia o papel.

-Queres saber de uma coisa?!... disse ela afinal. O verdadeiro é arranjarmos um teatro.

O Borges levou as mãos à cabeça.

-Um teatro! Pois eu tenho de representar?...

-E que há nisso de extraordinário?... Na Europa o teatro em família é um divertimento da melhor sociedade. Convidam-se algumas pessoas para nos ajudar -o Barradinhas, por exemplo, serve, que tem muito jeito. Vê-se também o Chico Serra, Gonçalves, o Morais; chama-se a viúva Perdigão...

-A viúva Perdigão?!... perguntou o marido, sentindo um arrepio.

-Sim! há de dar uma excelente dama central. É muito desembaraçada e tem graça. Enfim, não faltará quem nos ajude. O teatro pode ser na chácara; estende-se mais aquele pavilhão que lá está e rouba-se um pouco do jardim para a platéia.

O Borges ainda tentou algumas objeções; mas no dia seguinte vieram os trabalhadores, e as obras principiaram.

Veremos quem vence

Foi esse um tempo magnífico para a Filomena; vivia muito entretida com a construção de seu teatrinho. Era ela própria quem dirigia as obras; quem arranjava os desenhos decorativos da sala e do frontispício; quem administrava e conduzia os trabalhos do cenógrafo.

Quinze dias depois, estava em ensaios a primeira peça. A casa tomou um caráter boêmio de atelier; encheu-se de amadores dramáticos, de músicos. Havia certo movimento, certa agitação alegre, feita de conversas em voz alta, de risadas, de afinações de instrumentos. Viam-se carpinteiros, de cachimbo ao canto da boca, trabalhando e cantarolando em mangas de camisa; panos enormes, estendidos no chão, cobertos de tinta; costureiras, aderecistas, operários de todos os gêneros, a entrar e a sair numa atividade ruidosa.

O Borges andava muito atrapalhado com tudo aquilo, e principalmente com o seu papel.

-Ora que diabo me havia agora de cair na cabeça!...dizia ele consigo. Eu nunca tive queda para ator. Esta só a mim sucede!

Mas a peça ficou ensaiada; expediram-se os convites, e no dia do espetáculo o teatrinho de Filomena encheu-se de amigos.

O Barradinhas era o melhor dos curiosos, e fazia de galã. Devia ir muito bem; tinha enorme talento para a cena; «uma figura de arrebatar»! «Bonito, cabelos crespos e uma voz que nem um tenor italiano»! Filomena representava a sua amante; ele caia-lhe aos pés, várias vezes, e dizia-lhe longas frases retoricamente apaixonadas.

O Borges é que não ficava muito satisfeito com a história. -Ele, para que o havia de negar?... não morria de amores por aquele gênero de divertimento!...

E cuidava muito mais em vigiar o galã do que em estudar o seu papel. Pode ser que se enganasse... mas ia jurar que aquele pelintra não tinha por ali muito boas intenções!.. . Ah! ele sabia perfeitamente que a mulher não era das mais fáceis... (Oh! se sabia!) não estava, porém, em suas mãos afastar os olhos de cima do tal galã! Era lá uma cisma!...

-Também! Pobrezinho dele se me cai na arara de tentar alguma! jurava o mestre de obras. Racho-o de meio a meio!

E rachava. Mas o bonito curioso, bem a contra-gosto, não tinha achado ainda uma boa ocasião para dizer em particular a Filomena o que lhe repetia todos os dias, ajoelhado a seus pés, defronte do marido. Por várias vezes estivera até «vai não vai», chegara a supor que a coisa se decidia; mas o diabo do Borges apresentava-se de repente, e... lá se ia a ocasião.

-Por ela, coitada! estou garantido! Considerava o Barradinhas, pensando nos olhares prometedores de Filomena. Está caidinha! Assim dispusesse eu de um momento!... Não queria mais que um momento!... Dizer-lhe uma palavra; entregar-lhe uma carta; fazer-lhe um sinal -bastava!

Mas o demônio do marido nem isso permitia!

A peste não fazia outra coisa senão vigiar a mulher! -Cacete!

Chegou o dia do espetáculo, sem que o Barradinhas tivesse oportunidade de ouvir dos lábios de Filomena aquilo que havia tanto tempo diziam os olhos indiscretos da formosa criatura.

-É para maçar! pensava ele indignado. É para fazer um homem perder a paciência! Sei que sou amado por uma mulher que adoro; caio-lhe aos pés, tomo-lhe as mãos, bebo-lhe nos olhos a confissão de sua ternura, e, a despeito de tudo isso, não consigo estar com ela um só instante; porque essa mulher tem um marido impossível, um marido único, um marido que não a larga, um marido que não vai cuidar de seus negócios, um marido-calamidade! Diabo leve quem inventou semelhante homem!

E o lindo curioso dramático, quando fazia esses raciocínios, ficava colérico, furioso, a passear no lugar em que estivesse, com as mãos nos bolsos, o coração oprimido como por uma injustiça.

-Oh! ela será minha! Isso juro eu! Para que serve então ter talento e ser moço e bonito?...

Às oito horas da noite estava o teatrinho completamente cheio; a orquestra havia já tocado a sua sinfonia, e esperava o sinal para lançar a música com que tinha de principiar a peça. Corria nos espectadores um sussurro de impaciência. Filomena, nervosa, trêmula, esperava atrás de um bastidor que o pano subisse, para mostrar-se ao público, esplêndida na sua roupa de caráter, com o seu papel na ponta da língua. O contra-regra corria de um para outro lado, perguntando se todos estavam prontos e declarando que ia principiar o espetáculo. «Fora de cena! Fora de cena!» O ponto correu a esconder-se no seu buraco. E, na confusão que se fazia na caixa, cada um tratou de tomar o seu lugar. Mas ninguém sabia dar notícias do Borges.

-Ora, onde, diabo, se foi meter este homem?!... perguntou o contra-regra aflito.

Por esse tempo, o Barradinhas, que vira Filomena pela primeira vez sem o marido, meio oculta no vão sombrio de um bastidor, concebeu logo a idéia de aproveitar a ocasião; deu uma volta pelo fundo da caixa, e, surgindo misteriosamente por detrás dela, ia a segurar-lhe a cintura e ferrar-lhe um beijo, quando a bela mulher vira-se de súbito, recua dois passos e solta em cheio no lindo rosto do galã a mais sonora bofetada.

O regente, supondo ser aquela palmada o sinal que ele esperava, rompeu a orquestra, o pano ergueu-se logo, e os espectadores viram o seguinte:

Filomena, sem poder conter as gargalhadas, torcia-se num divã; e Barradinhas, vestido de calção e meia, procurava uma saída, perseguido pelo Borges que, em mangas de camisa e botas de montar, numa cabeleira a escapar-lhe pelo pescoço, cercava-o por toda a parte, a dardejar bengaladas. No meio do palco uma das amadoras escabujava com um ataque de nervos, entre o grupo assustado dos curiosos, que iam e vinham, num fluxo e refluxo de encontrões promovidos pelo Borges.

O público defronte daquela cena tão agitada e tão ao vivo, tomou a resolução de aplaudir; enquanto o dono da casa, repetindo as bengaladas, bramia possesso:

-Pensavas que eu não te via, grande velhaco? Não sabias que trago há muito a pulga atrás da orelha, grande maroto?!

O Borges, com efeito, não perdera de vista o galã, na ocasião em que se vestia no camarim, farejou-lhe os planos e tanto bastou para ir, munido de bengala, esconder-se sorrateiramente perto da mulher, por detrás de uma empanada, sem mais pensar no drama, e surdo completamente aos reclamos do contra-regra.

Entretanto, o Barradinhas, vendo que não conseguia fugir pelos fundos do teatro, arremessa-se sobre a orquestra, salta por cima dos rabequistas, enfia pela platéia e ganha a chácara, e afinal a rua, onde se lançou de carreira, na frente do populacho, que a sua estranha roupa de veludo chamava e atraía.

É inútil acrescentar que este fato cortou pela raiz a idéia das representações, e induziu o Borges a fazer um bom conceito da mulher. Esta circunstância em parte o consolou de seus duros infortúnios; mas... desgraçado! uma nova provação já o esperava.

Filomena descobriu que o Urso lhe fazia mal aos nervos, e declarou positivamente não estar disposta a sofrer em casa semelhante bicho.

-Porém, que mal te fez o pobre cão?... perguntou o Borges, sobressaltado com a idéia de separar-se daquele fiel amigo de tanto tempo.

-Ora! respondeu ela. É um animal feio! feio, e está sempre a pregar-me sustos! Ainda não há dois dias, achava-me eu descuidada na sala de jantar, quando o maldito surge-me pelas costas. Não imaginas que susto apanhei! Demais, só gosto dos cães em certas e muitas determinadas circunstâncias: -como acessório pitoresco de uma paisagem, não são maus; na qualidade de guia de cego, ao longo da rua, num dia chuvoso, também não desgosto; ou então dentro de casa num gabinete de trabalho -um cãozinho felpudo, asseado, muito gordinho, um kingcharles esquecido sobre as cadeiras- tem sua graça. Mas o Urso não está em nenhum desses casos, é um cão detestável, feio, sem pitoresco, sem razão de ser, sem pés nem cabeça de cão; parece um monstro, é grande demais, é bruto, não se lhe vêem os olhos, não vai bem em parte alguma; tão mal fica sobre o tapete da sala, como sobre a grama da chácara. Além disso, enche-me a casa de pulgas e tem uma morrinha insuportável! Se soubesses como ficas repulsivo depois de brincar alguns instantes com ele!...

Esta última consideração resolveu o Borges separar-se do querido Urso. Mandá-lo-ia para a casa de um amigo, morador do Engenho Novo, visto que na ocasião não dispunha em Paquetá de alguém que se pudesse encarregar disso.

Foi com os olhos cheios d'água que o bom homem viu no dia seguinte partir o seu fiel companheiro.

-Vai! disse consigo. Vai, meu pobre Urso! Não contavas naturalmente que eu te enxotasse de casa, como se enxotam os Guterres e Barradinhas.

-Tu! que sempre foste bom e verdadeiro!

-Pobre animal! pobre animal! dizia o Borges, fechando-se no quarto. Como tudo se vai transformando em minha vida! Já não possuo os meus dois melhores amigos, os únicos que me restavam -o Barroso e o Urso!

E chorava. O Barroso fora o seu companheiro de infância, em Paquetá. Principiaram a vida trabalhando no mesmo serviço e às ordens do mesmo patrão, pois que o Barroso era nesse tempo caixeiro do pai de Borges; antes do casamento, nunca tinham tido a mais ligeira rusga -foram sempre unha com carne, unidos- inseparáveis; mas depois... esfriaram, nunca mais se deram, e por conseguinte só restava o outro -o Urso, o fiel, o sempre o mesmo, o único que lhe não fazia recriminações...

E agora era este que se ia também... talvez para sempre!

Oh! quantas vezes não passaram juntos, horas esquecidas, como dois iguais!... Com que prazer o Borges, ao voltar do trabalho, não recebia no ombro as patas do companheiro e não lhe corria a mão pelo enorme lombo felpudo?...

Ah! Mas ele sem que Filomena o soubesse, havia de ir visitá-lo, pelo menos duas vezes em cada mês.

E desde então, efetivamente, o Borges, quando lhe apertavam as saudades do Urso, metia-se no trem e lá ia passar com ele alguns instantes. Que idílios nessas curtas visitas clandestinas! Que festas não trocavam entre si os dois amigos!

O animal parecia compreender aquela afeição do Borges, porque, mal o via apontar ao longe, disparava a correr para ele, grunhindo, a sacudir a cauda, a fazer-lhe negaças, a cercá-lo, a pular, a morder-lhe os calcanhares, num alvoroço de prazer. Mas um belo dia em que o mestre de obras foi visitá-lo, disseram-lhe que o dono da casa havia na véspera fugido aos credores, e ninguém sabia dar notícias dele, e muito menos do Urso.

O Borges voltou muito triste, e assim se conservou durante o resto do dia. A mulher veio a saber a causa dessas mágoas, e, para o consolar, tomou-lhe a cabeça, entre as mãos, e deu-lhe um beijo em plena boca; mas fugiu logo, deixando o marido na doce esperança de ver terminar ali as suas provações e com elas o longo suplício de Tântalo, que o devorava.

Assim não sucedeu.

Nem só o trinco permanecia corrido, como a paixão de Filomena pelas festas e pelos requintes de luxo exacerbava-se de um modo assustador. Agora, não se passava um dia, uma hora, que lhe não acudissem novos meios de gastar «carradas de mil réis». Ela quis carruagens, parelhas de raça, lacaios gordos à moda parisiense, grooms de cara raspada, que servissem o chá de gravata branca e casaca; quis as esquisitices do gosto, os sévres, as sedas de Macau, os móveis caprichosos e as jóias empobrecedoras para quem as dá.

O Borges principiava a temer uma ruína. Ele era rico..., mas, afinal, que diabo! não tinha à sua disposição as Índias inglesas! Daquele modo onde iriam parar?... Verdade é que ultimamente, instigado pela mulher, que desejou sentir as comoções comerciais, arriscara na Bolsa grandes quantias que lhe trouxeram lucros consideráveis.

-Mas a fortuna também cansa! refletia o capitalista. E se me desanda a roda, posso dar com os burros n'água.

Por esse tempo exercitava-se ele no bilhar. Já sabia tomar grogues, dizer mal dos cantadores do lírico, e perder dinheiro nas corridas do Prado.

-Contudo, ainda te falta uma coisa, observou-lhe a mulher uma vez em que ele queria fazer valer os seus progressos.

-Ainda! Qual?

-Um título.

-Mas para que um título?

-Não posso compreender um homem sem qualquer distinção. Um título serve para disfarçar a nulidade do nome. Creio que não terás a pretensão de imaginar que possues um nome!

-Como assim?! Pois eu não...

-Teu nome não existe; não tens uma individualidade, não tens por onde te possas distinguir dos outros! Se se disser o -João Borges- é como se se dissesse -o José da Silva; ninguém sabe quem é, ninguém conhece!

-Mas, filha, cada um é conhecido na sua roda. Eu sou conhecido na praça!...

-Que praça!...

-A praça do comércio.

-Ora! fez a mulher com desdém -isso não é ser conhecido; ainda se fosse na praça pública, vá!

O Borges fez um gesto severo.

-Se tivesses talento, acrescentou a mulher, lançar-te-ias na literatura, ou na política, ou no teatro, ou na guerra de qualquer país. Mas nem é bom pensar nisso! Tuas ambições limitam-se a uma patente da guarda-nacional, a uma faixa de subdelegado ou à presidência de alguma irmandade religiosa; coisinhas que eu abomino, como a expressão mais chata e mais ridícula da estupidez burguesa!

-Mas, filha, nem eu sou subdelegado, nem nunca prestei serviço à guarda-nacional; e, desde que torceste o nariz às irmandades, nunca mais aceitei cargos, tanto da ordem de Nossa Senhora da Candelária, como do Sacramento e da de S. Francisco!

-Grande fúria! exclamou a mulher. O que sei é que não tens um título, e é preciso que o tenhas!

-Isso é o que menos custa! disse o Borges. Serei comendador, arranjarei a comenda da Rosa!

-Comendador! Estás doido! Isso não é um título! Eu só aceito de barão para cima. Comendador! Comendador todo o mundo o é! Ora, comendador! Com efeito!

-E se eu arranjar um baronato? Heim?! Se eu o arranjar, prometes ser mais condescendente?...

Filomena respondeu passando-lhe os braços em volta do pescoço, e dando-lhe um beijo na face.

-Pois juro-te que serás baronesa ou coisa que o valha. Hoje tudo isso se obtém com muita facilidade do governo português...

-Mais receio a demora! volveu Filomena. Ardo de impaciência por ser alguma coisa -baronesa! condessa! viscondessa! oh! como é bonito! como é poético. «A sra. condessa quer se dar ao incômodo de entrar?. . . A sra. baronesa já se retira?... Oh! É excelente! É encantador! Lamento apenas não me ter lembrado disto há mais tempo; a estas horas podíamos estar já no gozo do título! Receio a demora»!

-Não; talvez não demore muito, sra. viscondessa! disse o marido galhofeiramente, tomando as mãos da mulher.

-E se fôssemos a Portugal tratar disso?... Lembrou ela. Ainda não fizemos uma viagem!..

-Pois vamos lá a Portugal! disse o Borges. E ficou resolvido que partiriam, logo que estivessem dadas as providências necessárias para a compra do título.

Durante o resto desse dia, Filomena mostrou-se muito chegada ao marido. À noite, às costumadas visitas, não se cansaram de falar na próxima viagem. Borges estava radiante, a mulher nunca o tratara tão carinhosamente. Os amigos chegavam a estranhá-lo. Abriram-se garrafas de um Tokai magnífico, que o futuro titular recebia diretamente da Hungria, e o mestre de obras bebeu entusiasmado à sua felicidade.

-É agora! dizia consigo esfregando as mãos. É agora que se decide o negócio!

Mas o ferrolho ainda não se abriu dessa vez.

-Pois veremos quem vence, exclamou ele, atirando-se furioso na sua cama de solteiro. Ou eu conseguirei, quanto antes, entrar naquele quarto, ou leva tudo o diabo nesta casa! Arre! Nem sei até o que me parece semelhante coisa!

Não pôde dormir o pouco que lhe restava da madrugada, e, mal surgiam no horizonte os primeiros raios do dia, já o Borges estava de pé.

-Cecília! gritou ele, vendo passar a criada por defronte da porta do seu quarto. Espere aí, que tenho o que lhe dizer.

A criada fez um gesto de surpresa, vendo o marido de sua ama tão sobressaltado.

-Você é uma boa rapariga! principiou ele. É fiel, bem procedida e diligente!...

Cecília olhou-o espantada.

-Eu sempre tive boas intenções a seu respeito, continuou o Borges. Minha mulher está satisfeitíssima com o seu serviço!

-São bondades... balbuciou a rapariga. abaixando os olhos.

-Não! A verdade diz-se!... Sou-lhe grato, sou! Para que negar?..., E fique sabendo que hei de ajudá-la no seu casamento!...

A fisionomia da criada iluminou-se, e sem dizer palavra, ela pôs-se a torcer e destorcer o seu avental de algodão.

-Sei das suas intenções com o Roberto, e estimo que se casem. Pode contar com o enxoval!

Cecília quis beijar-lhe a mão.

-Não tem que agradecer. Olhe! guarde isto para comprar um vestido novo.

E o Borges meteu-lhe nos dedos uma nota de vinte cruzeiros.

-Oh! meu rico amo! Exclamou ela, com os olhos úmidos de comoção -como vossemecê é bom! Eu e mais o Roberto havemos de lhe agradecer por toda a vida!

-Bem, bem! disse o Borges, mas preciso que você me preste um serviço, um pequeno serviço...

Cecília adiantou-se mais, cheia de solicitude.

-É quase nada!

E abaixando a voz, depois de olhar cautelosamente para os lados:

-Desejo penetrar hoje no quarto de minha mulher.

A criada recuou estupefata. Agora o seu rico amo lhe parecia simplesmente doido. Que diabo queria dizer aquilo?!...

O Borges compreendeu o espanto da rapariga e disfarçou:

-Sim, sim! Não era uma simples questão de lá ir. . . Isso seria o menos! Puf!

-Então? animou-se a perguntar Cecília.

-Mas é que eu queria entrar sem que minha mulher contasse comigo, percebe?... A criada fez-se vermelha.

-Vossemecê então desconfia de minha ama?! Que aleive, meu Deus! Uma injustiça assim! Desconfiar de uma senhora que é mesmo um anjo! Uma senhora que...

-Não! Não é isso, filha! Quem lhe falou aqui em desconfianças?! Ninguém desconfia de sua ama. Está a tomar o pião à unha! -ninguém conhece melhor minha mulher do que eu!

-Ah! respirou a criada, credo! até me deu uma coisa na boca do estômago!

-Está claro que sua ama, nesse sentido, é o beijinho das esposas! Não tenho que me queixar, graças a Deus! Mas eu queria lá ir, sem que ela me esperasse; percebe? É uma fantasia como outra qualquer!... Vossemecê nem tem que se comprometer com isso... Ela, no fim de contas, é minha mulher, que diabo!

-Meu amo quer que eu lhe arranje a chave do quarto?...

-Qual! Isso não adianta nada! Ela tem um ferrolho, fechadinho por dentro.

-É exato, é! disse a criada, lembrando-se de já ter visto o tal ferrolho.

-Pois aí é que bate o ponto! Trata-se de arranjar os modos de abri-lo por dentro, sem que ela o saiba, compreende?

A criada ficou a pensar. Mas para que exigia o amo semelhante coisa?... A senhora podia ficar maçada e voltar-se contra ela!...

-Não tenha receio! disse o Borges. Eu respondo por tudo! Valha-me Deus! não é nenhum crime querer um homem entrar no quarto da sua mulher!...

-Vossemecê então promete?...

-Que a não deixo ficar mal? Ora! nem tem que saber!...

-Não é isso... digo: ajudar-me no meu...

-No seu casamento?... Pode ir descansada, contanto que arranje o que lhe disse.

Ficou assentado que Cecília nessa noite se esconderia no quarto da senhora, e, quando esta já estivesse dormindo, abriria cautelosamente o tal ferrolho, que ela, por cautela, untaria previamente com azeite. E se a criada guardasse bem o segredo de tudo isso, nem só teria o seu enxoval prometido, como ainda havia de chimpar um par de brincos à moda.

-Mas veja lá agora se vai dar com a língua nos dentes!

Foram as últimas palavras do Borges.

A criada saiu dali para ir ter com o Roberto.

-Esta noite não te posso aparecer senão mais tarde, disse-lhe ao vê-lo. Tenho que ficar no quarto da senhora.

-Há alguma novidade?

-Não! É cá uma coisa. É cá um negócio com o patrão! -E ria-se. -Eu não te posso dizer mais nada!...

-Olé! Então é coisa de segredo?...

-Estou a dizer que é, homem!

-Segredo! Você tem segredos com o patrão?!

-Mau, que me tomas o pássaro no ar! Eu nada tenho com o patrão! Tenho é de ficar no quarto da senhora!

Roberto mordeu a ponta do bigode:

-Tu premeditas alguma, raio de uma peste! Já! desembucha pr'aí, se não queres que eu te faça falar por outro modo!

-Mas é, que eu não te posso dizer nada! Só o que te afianço, é que as coisas vão mudar de figura! Não tens mais razão de demorar o nosso casamento; o amo cai com o enxoval e ainda com uma ajuda de custas! Hein? Que te parece?

-Parece que tudo isso me cheira a patifaria! Donde saiu agora essa bondade do patrão?!

E vendo que a criada não respondia:

-Não tencionas desembuchar, criatura?!

-É que se dou com a língua nos dentes, vai tudo por água a baixo!

-Ora, deixa-te de tolices e conta lá o que houve! Bem sabes que entre nós não há segredos!

-E antes houvesse! Mal fiz eu em permitir umas certas coisas antes do casamento!... Se não fosse isso, você com certeza não me trataria desse modo, e já me teria levado à igreja!

O Roberto sacudiu os ombros.

-É! fez Cecília, muito queixosa. Até aqui toda a dificuldade era o enxoval; venho dizer-lhe que o patrão se encarrega disso, e você, em lugar de despachar-se por uma vez, ainda me dá muxoxos e põe-se a desconfiar de mim! Tola fui eu em ir atrás de cantigas! Diabo do traste!

-Deixa-te tu de cantigas e vamos ao que interessa!... Despeja pr'aí o que houve!

-Não despejo nada! Você não me merece coisa alguma, é um velhaco; enquanto eu me fiz tesa, não lhe faltaram maneiras; agora é isto que se vê!.

E começou a chorar:

-É preciso não possuir um bocado de consciência para enganar desta forma uma pobre rapariga, que nunca teve pecha que lhe botassem.

-Guarda as lamúrias para outra ocasião, filha!

-Pois se é como eu digo!... Ingrato! Se eu não o quisesse tanto, não estava agora aqui me arreliando!

-Deixa-te de asneiras.., fez o criado, passando-lhe por condescendência a mão na cabeça. Não te podes queixar -eu também gosto de ti!

-Sim, sim. Mas o casamento não ata nem desata! dizia ela, soluçando.

-Ora! E que teríamos lucrado nós em nos termos já casado?...

-Que teríamos lucrado! Olha o disparate! Você talvez não lucrasse nada, mas eu?! Penso nisso todos os dias! Até estou mais magra! Lembrar-me só de você é muito capaz de deixar-me neste estado... dá-me venetas de acabar com a vida!

-Não digas asneiras, toleirona! O que tem de ser teu, às mãos te chegará!

E depois de beijá-la, sem carinho:

-Mas vamos lá. Conta o que houve entre vocês, tu e o basbaque do patrão!...

-Prometes guardar segredo?... perguntou Cecília, fazendo por esticar as carícias do noivo!

-Ora!

-Então lá vai! O patrão quer entrar, sem ser esperado, no quarto da patroa!

-Com que fim?!

-Sei cá! Diz ele que é uma fantasia como outra qualquer!...

-Mas dai?... Que diabo tens tu a ver com isso?...

-Pois aí é que bate o ponto. A patroa fecha-se por dentro; eu fico escondida no quarto para abrir a porta ao marido! Creio que aquilo é arrufo entre os dois!

Roberto coçou a parte inferior do queixo:

-Hum-hum! resmungando. Não sei, não sei! Queira Deus que essa história não te dê na cabeça!... Olha que não se encontram duas casas como esta!... Isto aqui, filha, vale mais que o céu!...

-Ora o que! fez a criada. -Não é crime introduzir um marido no quarto de sua mulher!... Aquilo foi arrufo com certeza; ela não quer dar o braço a torcer; mas eu que a conheço, sei que não lhe vou cair em desagrado, ao contrário -verás como me agradece!

-Isso é lá entre vocês, mulheres, que se entendem! Em todo o caso, é bom pensar antes no que vai fazer!

-Deixa correr o barco por minha conta!

Entretanto, o Borges, à proporção que a noite se aproximava, sentia o coração pulsar-lhe com mais força. Ah! desta vez, sem dúvida, iam acabar os seus tormentos. Aquele novo plano não poderia falhar!

Namorado algum, dos mais ardentes, palpitou com tanta febre no antegozo de uma aventura. Nunca uma alma apaixonada ansiou tanto pela entrevista de seu ideal; nunca os segundos foram contados com tanta impaciência; nunca o momento supremo da ventura foi atraído com tanta sofreguidão.

Borges, assim que viu a casa completamente recolhida, tratou de tirar as botas e subiu pé ante pé ao segundo andar.

Não se pode conceber o sobressalto em que ia o pobre homem; tremiam-lhe as pernas; a cabeça andava-lhe à roda; o sangue afluía-se-lhe ao coração, que parecia querer saltar-lhe pela boca.

-Filomena já devia ter pegado no sono, ou pelo menos estar adormecendo.

Esperou mais um instante. Nada, porém, de aparecer a criada!

Decorreu mais algum tempo -um quarto de hora, uma hora talvez; ele não o podia determinar: sua impaciência fazia parecer uma noite inteira, uma eternidade.

-Oh! Como o torturava aquela tardança!

E Cecília nada de aparecer; Borges principiava a desesperar. Haveria alguma novidade... ela teria ido contar tudo à senhora? pensou o namorado, rangendo os dentes e fechando os punhos!

-Se me traístes, miserável, verás o que te sucede! Verás o que te sucede!

Mas um rumor quase imperceptível veio nesse instante do lado do quarto de Filomena; a porta abriu-se muito de mansinho, e a criada saiu cautelosamente, às apalpadelas, como se não quisesse tocar com os pés no chão.

-Está dormindo?..., perguntou-lhe o Borges em segredo, indo ter com ela.

-Está, respondeu Cecília no mesmo tom. Pode entrar. Mas veja se me vai comprometer...

-Descansa. Aí tens para os teus alfinetes... Deu-lhe mais dinheiro.

A rapariga afastou-se, pensando no pobre noivo, o Roberto, que àquelas horas já devia estar farto de esperá-la; e o Borges, cheio de mil cautelas, penetrou no quarto perfumado e virginal de sua esposa.

Uma dúbia claridade de lamparina aquarelava meias sombras vagas e transparentes em torno do leito, onde Filomena se aninhava entre nuvens de linho branco. Ouvia-se um respirar tranqüilo e cadenciado, que vinha da cama.

Quando o marido sentou o primeiro pé no tapete da alcova, a mulher estremeceu, encolhendo-se toda com um suspiro.

Borges retraiu-se maquinalmente, e procurou esconder-se atrás do reposteiro da porta; mas o arfar ansiado de seu peito denunciou-o.

Filomena virou-se em um novo arrepio, e, depois de algum silêncio, perguntou com a voz alterada:

-Quem está aí?...

Borges não tugiu nem mugiu.

-Quem está aí? Não ouve?! tornou ela, erguendo a cabeça e fitando a porta.

O marido viu-a levantar a meio, desembaraçar um braço dos lençóis e procurar tateando alguma coisa na gavetinha do velador; ele porém, não respondeu, e apenas se traiu por um estalo seco das juntas do joelho.

-Quem está aí, fale com os diabos, se não quer receber uma bala nos miolos!

E engatilhou um revólver, fazendo pontaria ao reposteiro.

Luta aberta

-Sou eu! disse o Borges, correndo para ela.

-Não dispares! É teu marido!

Filomena, ao senti-lo perto da cama, repeliu a arma e, embrulhando-se no lençol, saltou pelo lado contrário, prestes a fugir.

-Não sairás! gritou o esposo, cortando-lhe a passagem.

-É então uma violência?! perguntou a mulher.

-Seja o que for, mas não me escaparás desta vez!

-Socorro! gritou ela. Socor...

Não pôde continuar, porque o marido tomara-a nos braços e abafava-lhe com os beijos a voz.

Filomena debatia-se violentamente; afinal, soltou um grito desesperado, e caiu sem sentidos.

-Ora, mais esta!..., resmungou o Borges, depondo a mulher sobre um divã. Filomena! Filomena! Então?! Que é isso?!

Ela não respondia.

-Ora senhores! -Ó filoquinha! Anda! Volta a ti!

Filoquinha estrebuchava. Borges corria à procura de sais. Acudiram os criados. Cecília, aflita, andava de um para outro lado, sem saber que fizesse, a olhar espavorida para o amo, como quem olha para um bandido.

No entanto, o pobre esposo não saía de ao pé da mulher. Só no fim de meia hora, esta voltou a si, olhando estranhamente para os lados e a passar a mão repetidas vezes pela fronte.

-Ah! exclamou, dando com o marido. E escondeu o rosto, gritando entre soluços -que estava perdida, desonrada, chamando-se infeliz, pedindo a morte.

-Mas, meu amor, dizia-lhe o marido. Lembra-te de que sou teu esposo! Lembra-te de que não estou cometendo um crime!

-Deixa-me! Deixa-me! respondia Filomena desorientada, em soluços, -Fuja! Retire-se! Já! Não quero que o vejam aqui! Vá! Vá-se embora! Siga esta mesma noite para longe! Saia do Rio de Janeiro! do Brasil! da América! Saia, se não quer que eu lhe dê cabo da vida! Infame! Sedutor!

E chorava, desesperada, como se lhe tivesse sucedido uma grande desgraça. O marido dizia-lhe palavras de ternura, animando-a; ela, porém, não se queria conformar com a situação, e soluçava cada vez mais fortemente.

-O Borges, afinal, também se pôs a chorar. O dia veio encontrá-los numa orgia de lágrimas.

-Aí tem a minha bela vida de casado!..., dizia ele entredentes, na ocasião de abandonar a alcova de sua mulher. Esta, ainda em cima, o queria ver pelas costas!... Que vida a sua! Que vida, santo Deus!

Retirou-se para o seu quarto, desesperado, e atirou-se à cama, sem se despir, soluçando, escondendo o rosto entre os travesseiros.

Ia a pegar no sono, quando foi surpreendido por alguém, que chorava e gritava desesperadamente ao seu lado.

Era Cecília, que acabava de entrar no quarto, dizendo a berros que o Borges havia causado a sua desgraça; que a senhora pusera-a no olho da rua e que ela, pobre de si! desse momento em diante não tinha onde cair morta! Que o patrão fora a causa única de tudo aquilo! Que, infeliz que era! ia separar-se do Roberto, do homem destinado a ser seu marido e a quem dera por conta o seu coração e a sua ternura! E que agora...

Uma explosão de soluços sufocou-a.

-Sou muito desgraçada! berrava. -Sou muito desgraçada!

-Ora, não me amoles tu também! gritou o Borges, erguendo-se da cama.

-Mas é que a senhora me despediu!

-Pois que a despedisse! Vão todos para o diabo! Eu também estou despedido e não me queixo! Arre!

-Mas a questão é que, se eu me for embora, o Roberto será muito capaz de...

-Pois o Roberto que se vá também! Está despedido! Sou eu que o ponho na rua!

Roberto, que escutava tudo isso atrás da porta, entrou por sua vez no quarto e correu ao patrão, implorando-lhe piedade. -Que seria uma revoltante injustiça pô-lo na rua! Ele! que cumpria tão bem com os seus deveres! Ele! que, por amor dos amos, era capaz de ir às profundas do inferno! -Oh! Uma coisa assim até bradava aos céus!

E cada um dos criados agarrou-se a um dos braços do Borges, e principiaram ambos a choramingar, implorando-lhe compaixão por tudo que ele mais amasse nesta vida.

-Olhem que vocês me estão fazendo um berreiro nos ouvidos! bradou o amo, querendo arrancar-se daquela posição. -Arre! Pois tenho também de aturar este par de galhetas?! Vão para o diabo! Deixem-me! Deixem-me! Súcia de doidos!

E o Borges de um salto agarrou o chapéu, enterrou-o na cabeça, e ganhou em três pernadas a porta da rua.

-Safa! Safa! dizia ele a marche-marche pela calçada. -Que inferno! Isto lá é vida!

E assim andou até às dez horas pela cidade; tonto, sem destino, furioso, a abalroar com todo o mundo, a dar encontrões nas quitandeiras, e meter os pés no que encontrava, a praguejar, a promover barulhos.

Num restaurante, onde entrou para almoçar, à primeira réplica do servente, atirou-lhe com o sifão e fez voar a mesa diante de si com um soco. Um sujeito, que a recebeu pelas pernas, desafrontou-se, arremetendo contra o Borges o prato que tinha mais à mão.

Levantou-se grande desordem, e a coisa teria acabado na polícia, se o marido de Filomena, depois de lançar uma nota de cem cruzeiros ao dono do hotel, não distribuísse vários pontapés para os lados e não ganhasse a rua, levando na sua frente todos os obstáculos que se lhe antepunham.

Chegou a casa ao meio-dia, esbaforido, aniquilado, sem querer a presença de ninguém, disposto a fechar-se no quarto e deixar que aquela maldita vida girasse em torno dele, como bem entendesse.

Mas o aspecto revolucionado de seu «lar doméstico» o surpreendeu logo à entrada. Tudo estava em reviravolta. Cecília e Roberto arrastavam malas, despejavam a roupa dos gavetões da cômoda, empacotavam objetos de uso, acumulavam trouxas.

-Que é isso? perguntou o Borges.

-A senhora deu-nos ordem de preparar o necessário para uma viagem...

-Viagem de quem?!

-Nossa não é com certeza, porque nós já estamos despedidos.

-Quem vai viajar?! Desembuchem, com os diabos!

-A senhora, naturalmente; pelo menos esta roupa é dela.

Borges subiu ao segundo andar; encontrou a mulher muito tranqüila, assentada no divã, a ler.

-A senhora tenha a bondade de explicar que desordem é aquela lá embaixo? Que significam aquelas malas, aqueles preparativos de viagem?!

-O que vê. Trata-se justamente de uma viagem.

-Viagem de quem?

-Minha. Vou, uma vez que o senhor não quis ir. Juntos é que não ficaremos por coisa alguma! Não me quero arriscar a uma segunda agressão! Não posso ficar numa casa, onde não tenho a menor garantia, onde nem o meu quarto de dormir é respeitado!

-Mas a senhora esquece-se de que é minha esposa? A senhora não vê logo que eu não a deixo sair assim, sem mais nem menos?...

Filomena ergueu-se em silêncio, sacudiu os ombros e retirou-se da sala.

O Borges acompanhou-a.

-Filomena! disse ele.

-Que é?

-A senhora não tencionará acabar com essas coisas por uma vez?...

-Que coisas?

-Esses caprichos! Então está sempre resolvida a fazer a viagem?

-Estou.

-Pois nesse caso irei também! Acompanhá-la-ei ainda que seja para o inferno! Roberto! ó Roberto do diabo! Corre! arranja-me uma mala!

-Bem! Nesse caso não irei, disse Filomena, fechando o livro que tinha entre mãos.

É; então um propósito firme de contrariar-me em tudo?! perguntou o marido, trêmulo de raiva.

-O senhor é que está nesse propósito! Parece que anda inventando meios e modos de mortificar-me! É bastante que eu mostre gosto em qualquer coisa para o senhor fazer logo justamente o contrário! Isso prova que o senhor não me ama! Que o senhor não deseja ter uma esposa; deseja é ter uma mulher às suas ordens! Animal! Bruto! Estúpido.

E, possuída de um violento sobressalto de nervos, atirou-se de bruços no divã a soluçar, a morder-se.

Borges correu para junto dela; tomou-a nos braços, fê-la encostar a cabeça no seu colo, e, com muita ternura, os olhos úmidos, começou a acarinhá-la, a dizer-lhe todas as meiguices que lhe inspirava o amor..

-Oh! Mas para que havia de se mortificar daquela forma?... Para que se maltratar assim? Para que nodoar com os dentes aquelas mãozinhas tão formosas?... O fato da véspera não justificava semelhante desespero! Se algum dos dois devia estar ressentido, era ele de certo, porque...

-Não! Não! Tu procedeste como um selvagem!... Tu foste violento! Tu foste brutal!

-Porque te adoro, minha vida!

-E juras que me amas?! Juras que não conheces outro ideal, outra preocupação, que não seja eu?! Juras que serás capaz de todos os sacrifícios por minha causa?!

-Ainda o duvidas?!

-Bem! Iremos juntos nesse caso; faremos os dois a viagem!...

-Sim, mas não é bonito, nem há razão para sairmos tão precipitadamente!!!

-Mau! Já principias tu com as objeções do costume!... Dessa forma não teremos nada feito!

-Mas, vem cá, minha santa, é que não há a menor necessidade de irmos como dois criminosos, que fogem à justiça! Para que havemos de nos sujeitar a umas certas coisas, quando, graças a Deus, não nos faltam recursos para termos todas as comodidades?...

-Oh! Eu mesmo faço muito caso das comodidades!...

-Sim, mas hás de confessar que...

-Ah! meu amigo! se tens medo de sair de teus hábitos, o melhor é desistirmos da viagem! Quem quer estar a gosto fica em casa!...

-Não é isso! não é isso! Já cá não está quem falou! Oh! Tu também te espinhas por qualquer coisa...

-Pois então, nem mais uma palavra sobre o assunto, e, no primeiro vapor que sair para a Europa...

-Estamos de partida!

-Ora muito bem!

Primeira desilusão

Não obstante, o Borges ainda não se podia considerar feliz. A mulher, depois da cena da alcova, tornou-se mais esquiva; enquanto que a paixão dele, como se recebesse um novo impulso, recrudescia de um modo fantástico. Mas continuava a ser o seu amante platônico, o seu namorado, disputando um sorriso, um olhar de ternura, à custa de enormes sacrifícios.

Durante os dias que precederam à viagem, o mísero não fez outra coisa além de procurar meios engenhosos de seduzir a esposa. Certo de que a violência não produzia bons resultados, tentou captá-la com presentes de grande valor; punha, a todo o momento, à disposição dela, jóias caríssimas, cortes de seda do que havia de melhor. Depois, desiludido também por esse lado, lançou mão de outros recursos -Tentou fasciná-la com a grandeza, falou-lhe em belas posições sociais, falou no seu título, que não devia demorar muito; mas, ainda assim, nada conseguiu: o maldito ferrolho estava, inabalável e frio, como uma lei da natureza.

Ele, porém, em vez de sucumbir, redobrava de coragem. Procurou afinar os seus gostos pelos dela; fazia-se triste, propenso às melancolias e aos êxtases; apertava muito a roupa ao corpo para figurar mais magro: fingia-se poeta -roubava versos dos almanaques, torcendo-lhes os nomes e às vezes o sentido, versos que ele copiava pacientemente durante a madrugada e que deixava, como esquecidos, no seu escritório, sobre a pasta, molhados de pingos d'água que representavam lágrimas arrancadas do coração. Outras vezes, quando a via de bom humor, fazia-se muito estouvado, cheio de rapaziadas, risonho, alegre, com fumaças de estroinice fidalga.

-Creio que agora se decide o negócio!... pensava ele, esfregando as mãos -desta vez parece que vai.

Efetivamente, se tudo isso não conseguia logo a abolição do tal ferrolho, não deixava, entretanto, de modificar as reservas de Filomena e de faze-la mais dócil e mais chegada ao esposo. Mostrava-se agora muito agradecida às finezas que dele recebia; mostrava-se amável e prometedora; ao jantar, tocavam os pés por debaixo da mesa; tinham apertos de mão ligeiros e assustados, beijinhos furtados e longos idílios ao luar, nos bancos do jardim ou debruçados no balcão da mesma janela.

-A bordo é que eu te quero pilhar!..., dizia o Borges de si para si, mentalizando planos de ataque.

-A bordo é que serão elas!

E tratou de realizar a viagem. A casa ficaria entregue aos criados.

Dias depois, embarcavam num paquete francês, que seguia para Lisboa.

-Ora até que afinal!..., considerou ele, quando viu a mulher já instalada no beliche.

-Ora até que afinal estou livre do maldito...

E, de fato, pelo seu ar condescendente, por sua linguagem doce e pelas maneiras de tratar agora o esposo, Filomena parecia muito pouco disposta a morrer de saudades pelo ferrolho.

Mal, porém, começou a caminhar o paquete, que um terrível enjôo apoderou-se do pobre marido apaixonado e o prostrou no fundo de seu beliche, inútil e arquejante.

Filomena não lhe perdoou semelhante coisa. Enjoar!..., enjoar em sua companhia! Oh! o Borges acabava de perder todo o prestígio que ultimamente havia conquistado!

-Mas não é culpa minha!!! lembrou ele, sem ânimo para erguer a cabeça.

-Reagisse! Tivesse mais domínio sobre si! Os espíritos fortes governam a matéria! Enjoar! Oh! Shocking!

E só acalmou um pouco a sua indignação, lembrando-se de que d. Juan, de Byron, enjoara também na primeira viagem que empreendeu. Todavia, em Lisboa, foram ocupar aposentos separados no Hotel de Bragança.

Apenas se demorariam o tempo necessário para tratar do título e seguiriam logo caminho de Espanha, porque Filomena declarou que aquela cidade lhe fazia mal aos nervos.

Todo o seu ideal era a Itália; sonhava-a através das descrições que lhe depararam centenas de romances. Queria Nápoles, com o clássico Vesúvio em plena erupção, o seu golfo legendário, o seu famoso céu azul, estrelado de pombos.

Exigia Veneza. Veneza com todos os seus acessórios pitorescos -as suas serenatas em gôndola, o seu palácio dos Doges, os seus romances debaixo de velhas e melancólicas abóbadas, consagradas pelos séculos. Reclamava excursões ao Lido, às ilhas decantadas da Laguna, a S. Lázaro dos Armênios, a Murano, a Torcelo. Queria saturar-se bem da «filha gentil do Adriático»; mergulhar nas sombras azuis de seus canais, onde rebrilham de espaço a espaço as competentes lanternas dos gondoleiros; não morreria sem passar algumas horas de concentração mística e deliciosa sob a melancólica ponte dos Suspiros.

-Oh! a ponte dos Suspiros!

Depois Gênova, «cidade do mármore!», com a sua acumulação de palácios célebres, seus jardins silenciosos, suas colinas fortificadas! -Oh! a Itália, a Itália era então toda a sua ambição, todo o seu viver!

E deixam-se os dois seguir o itinerário comum das viagem à Europa. Atravessaram a Espanha a ruidosa França, percorreram a Suíça, «a livre Helvécia», como poeticamente a classificou Filomena, e, afinal, depois de uma semana de Mônaco, onde ela teve a fantasia de ver o marido perder dinheiro ao jogo, acharam-se em caminho de Nice, da qual, mediante nove horas de mar, passaram-se a Gênova.

Chegaram às oito da manhã, quando um sol esplêndido punha em relevo as magnificências da cidade de mármore. Filomena, porém estava sequiosa de Nápoles e, como seu vaporzinho seguia para aí, mal deu um passeio em terra, tornou a embarcar com o esposo.

-Oh! Nápoles! Nápoles dizia ela, entusiasmada, ao chegar à famosa cidade. Como desejava eu viver e morrer sob o teu sol dourado, passando os dias e as noites a contemplar o teu céu azul, o teu golfo da cor do teu céu!... E ter perto de mim, ao alcance de meus olhos, Capri, Ischia e o Vesúvio, e essa extensa costa, que vai de Portici a Castellamari e aos belos penhascos de Sorrento! Ó Nápoles!

O Borges escutava essas e outras declamações com um profundo silêncio de respeito.

-Sim senhor! Não fazia a mulher tão entendida em geografia!..., pensava ele, ensoberbecendo-se.

Não obstante, a romântica senhora sofreu uma triste decepção ao saltar na desejada cidade. Não era o seu Nápoles que tinha defronte dos olhos; não o reconhecia; faltava-lhe fosse o que fosse -um certo pitoresco, um certo encanto, que ela, por mais que procurasse, não encontrava ali.

-Não! decididamente não era aquele o Nápoles de seus sonhos! O que ela via defronte de si era uma população maltrapilha e desordeira, que a acotovelava grosseiramente, obrigando-a a segurar-se ao braço do marido, o qual, por mais de uma vez, esteve a cair com os encontrões que recebia de todos os lados.

-Safa! gritou o Borges, tonto. -Assim nem a praia do Peixe!

Sobre o cais e nas longas ruas, agitadas, que vão a Chiaja, a Santa Luzia, à rua de Toledo, ao Forte de Sant'Elmo o mesmo formigar, o mesmo burburinho impertinente e grosseiro.

E que confusão de pescadores, camponeses, frades, mercadores, garotos nus e lazarones de todos os feitios e de todas as cores.

-Isto parece uma cidade de doidos! observou Filomena ao marido -isto nunca foi Nápoles.

E aquela multidão irrequieta parecia justamente um bando enorme de doidos, que iam e vinham em vertigens, empurrando-se uns aos outros, metendo-se pelas pernas dos estrangeiros, invadindo-lhes a bolsa e as algibeiras com olhares de ganância, e, às vezes, com os dedos. Vendedores d'água, de frutas e de peixe, passavam a gritar como perdidos; burros carregados de legumes seguiam a trote, chocalhando guizos barulhentos; transeuntes de todos os matizes sociais, conversavam e gesticulavam agitadamente. E carruagens a galope cortavam as ruas, em várias direções, num estardalhaço febril de matracas, ferragens e campainhas. E tudo, até as casas, as árvores e as pedras da rua, parecia gritar, mover-se, espolinhar-se num frenesi estrepitoso, sem tréguas.

Filomena declarou que estava roubada!

-Qual! Pois aquilo era lá um Nápoles! Impossível! Bem longe estava de ser o Nápoles que ela queria -o seu rico Nápoles!- Aquele era um Nápoles de segunda mão! Um Nápoles pulha! Antes não tivesse lá ido! Mil vezes antes!

Que lhe mostrassem as belas cenas napolitanas, que ela vira em pequena nas litografias coloridas! Que lhe apontassem os bem conhecidos e muitos pitorescos pescadores napolitanos, com as suas calezoni, a perna nua, a facha e o gorro vermelho, e o amuleto ao pescoço.

A excursão ao Vesúvio, como um passeio que fez à Torre dei Greco, impressionou-a mediocremente. No Vesúvio não viu erupção de espécie alguma; não percebeu vestígios de salteadores. -A Calábria desacreditou-se para ela. Nada encontrou de tudo aquilo que reclamava a sua terrível sede de comoções.

-Experimenta a tal Pompéia! aconselhou o marido, incomodado por vê-la contrariada. Pode ser que te dês bem... E lembrou também Herculanum -de cujo nome não se recordava.

-Qual Pompéia, nem qual histórias! respondeu a mulher, furiosa contra os seus poetas e romancistas. Canalhas! Súcia de empulhadores!

E, muito indignada, abandonou Nápoles, para tomar a direção de Veneza, à qual sua imaginação insistia em agarrar-se como a um recurso extremo.

Mas a bela filha do Adriático, a pátria do amor e do arrepio, a sede da comoção e da poesia, a cidade dos palácios de abóbadas mouriscas, a terra, enfim, das patrícias apaixonadas, também não correspondeu à expectativa de Filomena.

Lá estava a ponte triangular do Rialto; o cais dos Escravos; as cúpulas de S. Marcos; os indispensáveis pombos; as ramalheteiras, que vendem flores aos estrangeiros; os oficiosos cicerones; os gondoleiros, encapotados como monges, que passeiam tristemente por baixo das pontes; lá estava tudo isso de que constavam as notas de Filomena, mas, valha-me Deus! -nada a satisfazia, nada a saciava, nada correspondia ao que ela julgara encontrar, nada realizava o que antevera nos seus sonhos cheios de impaciência e de sobressalto.

Passearam em carruagem de Burgano a Leco, sobre as margens do lago de Como; foram depois a Menaggio, na margem oposta, e daí partiram resolutamente para a calma Suíça, fartos de Itália, cujos nomes de grandes e pequenas cidades, aqueles mesmos que dantes arrebatavam Filomena e lhe punham no espírito uma nostalgia doce e melancólica, já nem ao menos tinham para ela a mesma sonoridade de então. Livurnia, Civita-Vechia, Chija, Bellinzona, lschia, Gaeta, nada, nada possuía já o primitivo encanto!

E um grande vácuo abriu-se nas suas aspirações; um de seus sonhos acabava de esfacelar-se como uma nuvem dissolvida pelo vento. E Filomena, desde que se convenceu de que, se quisesse a comoção e a aventura, tinha de prepará-las por suas próprias mãos, caiu num estado sombrio de atonia e desânimo.

O Borges, sobressaltado com essas tristezas, procurava cercá-la de mil cuidados, fazia-se meigo, muito seu camarada, seu amigo, adivinhando-lhe as vontades, correndo ao encontro de seus caprichos.

-Que tens tu, meu anjo, minha vida? Fala! Conta-me tudo.

Ela em vez de responder, atirava-se-lhe nos braços e escondia entre soluços o rosto no peito dele.

O rapto

Mas uma noite, achavam-se então em Sevilha -sultana do Guadalquivir- como lhe chamava Filomena, sempre fecunda nas suas paráfrases poéticas; Borges, familiarizado já com os gostos românticos da mulher, resolveu pôr de parte uns certos escrúpulos e assaltar-lhe o quarto pela janela.

-Era impossível que Filomena resistisse ao encanto de uma violência tão pitoresca!...

Moravam em Triana, num modesto e confortável hotelzinho. A caprichosa, segundo o louvável costume, exigira que o marido alugasse dois quartos bem separados, e não teve grande empenho em declarar-se casada; ao Borges, por outro lado, também não convinha dizer a verdade, receoso de que esta o tornasse ridículo aos olhos de todos, como havia já sucedido em várias partes.

O terno marido, depois de bem estudar o seu plano de ataque, tratou de realizá-lo. Vestiu-se como os do povo, arranjou uma escada e, logo que só ouviu em todo o quarteirão a voz longínqua dos serenos, meteu mãos à obra.

E, com certeza, teria obtido o melhor êxito, se alguém, que o vira tentando penetrar de um modo tão suspeito no hotel, não fosse denunciar o fato aos tais serenos, que sem demora acudiram armados de suas lanternas e de seus chusos.

Houve escândalo; reuniu gente, e o Borges escapou de ser catrafilado, graças à lógica de sua algibeira, que conseguiu provar ao honesto estalajadeiro a conveniência de arranjar-lhe em menos de dois minutos um esconderijo no próprio hotel.

Por esse tempo, Filomena, tendo chamado em vão pelo marido, e talvez 'até desconfiando ser ele o autor do malogrado assalto, exigia do oficial de ronda (estavam em épocas revolucionárias) que lhe deparasse um lugar decente, onde uma estrangeira honesta ficasse ao abrigo do primeiro malfeitor que lhe quisesse entrar pela janela.

O oficial tinha família e pôs a sua casa à disposição da queixosa, até que o juiz designasse, com as devidas formalidades, o sítio onde ela devia ser depositada judicialmente.

O fato ganhou logo circulação no bairro e, a falta de esclarecimentos verdadeiros, inventou-se toda a sorte de legendas. Uns juravam que Filomena não era mulher e sim um grande sonso que namoriscava a esposa do oficial e usara daquele expediente para ir ter com ela; outros afiançavam que a tal estrangeira era pura e simplesmente uma cocotte, sequiosa por chamar sobre si a atenção do público; outros lhe atribuíam intenções políticas. Este notara que ela trazia no corpo as mais belas jóias do mundo, que lhe vira nas orelhas e no colo brilhantes de um tamanho fabuloso; aquele protestava que nunca ouvira uma voz tão estranha e todavia tão melodiosa, como a dela; outro dava a sua palavra de honra em como a tal sujeitinha era de uma formosura e de uma graça, que nem as vírgenes de Murilo.

Porém a opinião mais seguida rezava que a encantadora e misteriosa estrangeira era nada menos do que a filha de rico negociante português, de cuja companhia desertara por não querer casar com um fidalgo velho e debochado que o pai lhe impunha. Pelo menos era esta a versão que mais se compadecia com o que noticiavam a esse respeito os jornais do dia seguinte:

«GRANDE ATENTADO CRIMINAL, dizia um. -A noche a las doce poco mas o menos, un malhechor de los muchos que infelizmente infestam esta hermosa ciudad, intentó introducirse por la ventana, de una de nuestras mas acreditadas fondas, con el fin perverso de raptar una joven estrangera que ali residia esperando su anciano padre, hidalgo portuguez, cuyo nombre nos abstenemos de publicar por motivos faciles de comprender.

La bella niña, que casi fue victima de tanta atrocidad, halasse, a su ruego, depositada en caza del oficial Sr. D. José Nuñez, hasta que el competente juiz decida de su destino.

Debido al delicado estado de natural sobre-excitacion nerviosa, la señorita aludida aun no ha podido explicar los pormenores del crimen de cual fue objeto.

El malvado desapareció, pera la policia emplea todos los medios para alcanzarlo y cremos que sus esfuerzos no seran defraudados.

A medida que nos lleguem nuevos pormenores los transmitiremos a nuestros lectores.»

Outros jornais iam mais longe. Um chegou a fazer engenhosas considerações sobre o fato estranho de se achar «desacompanhada num hotel já por si suspeito (o dono do hotel era federalista e o jornal apoiava o governo) uma senhora tão distinta, tão bem tratada e com todas as aparências de donzela! Não estaria aí a ponta de algum importante enigma político?... Em épocas de revolução é preciso desconfiar de tudo e de todos».

Estas notícias excitaram a curiosidade geral. Não faltou quem deixasse de enxergar no misterioso homem da escada um malfeitor ordinário, como diziam algumas folhas, e atribuir-lhe fins de grande alcance político.

O dono do hotel foi um desses, e, como bom cantonalista que era, não lhe podia passar despercebido que o seu misterioso hóspede usava um lenço de seda encarnada, uma gravata ainda mais encarnada que o lenço; não podia deixar de notar que nas caixinhas de fósforos do seu protegido encontrara sempre o retrato de alguns dos chefes dos cantões -encontrou o retrato do general Contreras, o de Antonio Galvez e de Duarte e o de Rafael Gruilleu.

-Não há dúvida! pensou ele. Não há dúvida que o homem é dos nossos!

E o fino estalajadeiro, considerando o modo despejado pelo qual o seu correligionário gastava ouro, notando a riqueza de suas bagagens e atentando para o incógnito em que se fechara esse homem, estrangeiro sem dúvida, mas estrangeiro amigo e respeitável, não vacilou em descobrir nele um vulto importante da causa federal, e resolveu pôr-se discretamente ao seu serviço.

-Talvez, quem sabe?... considerou o cantonalista com os seus botões. -Mais tarde, quando subirem os nossos homens, isto até me venha a render um lugar importante na política!

E foi logo ter com o Borges.

-Cidadão! disse-lhe resolutamente. Escusa negar; sei que tenho a honra de refugiar em minha casa um dos cantonalistas mais distintos do mundo!...

Borges recuou de boca aberta.

-Descanse! volveu o outro em tom de mistério. Pode ficar tranqüilo! Não tem que temer aqui -eu sou seu correligionário.

-Mas, senhor!... ia a protestar o Borges.

-Não quero que me diga quais são as suas intenções -as intenções de um cantonalista são sempre as melhores! O que eu desejo é saber em que lhe posso ser útil! Tenha confiança em mim e fale com franqueza.

E o estalajadeiro, sacando do bolso um barrete frígio, que ele possuía para as ocasiões de levantamento, meteu-o na cabeça e perfilou-se defronte do Borges.

-Bem vejo, bem vejo... respondeu este, compreendendo a situação e hesitando, na qualidade de homem sério, se devia ou não aproveitá-la em seu favor. Bem vejo, mas...

E franziu o sobrolho. -Era o diabo! Aquilo não lhe podia ficar bem!...

-Compreendo! tornou o outro, guardando o barrete e fazendo um gesto de arrependimento. Fui indiscreto!...

-Certamente! confirmou o Borges. Imagine se, em meu lugar, estivesse aqui um inimigo!...

-Este federal é chefe com certeza de algum cantão! disse consigo o estalajadeiro. E sabe Deus qual não será a importância de sua presença por estas alturas!

-Em todo o caso..., acrescentou o Borges, tomando uma resolução, não me despeço de seus favores, talvez precise deles.

E chegando-se por sua vez ao ouvido do outro, em tom de segredo:

-Preciso fazer chegar uma carta às mãos daquela senhora que...

-Já sei de quem se trata, interrompeu o estalajadeiro. Trata-se da fidalguinha portuguesa. Bem tinha eu cá um pressentimento!... Preparai o amigo a carta, que eu a farei chegar ao seu destino, custe o que custar! E vou daqui ver mais cinco companheiros, tão bons como eu, com os quais podemos contar para a vida e para a morte!

-Obrigado, respondeu o Borges, pondo-se a jeito de escrever.

E logo que terminou a carta, chamou o seu correligionário, e entregou-lhe juntamente com algumas libras esterlinas.

O cantonalista repeliu energicamente o dinheiro, dizendo frases de abnegação heróica. E, com tão boa vontade se pôs em ação, de tal modo providenciou as coisas, que pouco depois uma correspondência cerrada se estabelecia, entre o Borges e a mulher.

Eram belas cartas de amor, escritas com entusiasmo de parte a parte. O marido, nas frases mais poéticas que conseguiu arranjar, suplicava à esposa que desistisse do abrigo em que se achava e fosse ter com ele ao hotel, para fugirem juntos daquela maldita cidade, que só lhe trazia canseiras e dissabores.

Filomena, porém, exigia um rapto. Estava disposta a acompanhar o marido, mas não queria ir ao encontro dele, queria que ele a fosse buscar.

«Ë; inútil insistires», terminava a visionária, em seguida a uma exposição minuciosa do que o Borges tinha a fazer para alcançá-la.

«Se me amas, como dizes, prova-mo, arrancando-me daqui violentamente. O verdadeiro amor não conhece dificuldades! Não encontra obstáculos quando se precipita em torrentes vertiginosas de um coração apaixonado! Vem! Vem conquistar-me à força de intrepidez e coragem, vem disputar-me com o risco de tua vida, e eu serei tua, eu viverei para beijar os grilhões com que me prenderes ao teu destino! Tua, P.»

O Borges ficou irresoluto, coçou a cabeça, passeou longas horas com as mãos cruzadas atrás. -Faltava-lhe mais essa, resmungou furioso: -ter de perpetrar um rapto! Eu!- Diabo leve tal viagem e mais quem me meteu na cabeça a idéia de casar! Ah! que se não fosse a esperança de que as coisas não durarão neste belo gosto por muito tempo, eu... eu nem sei o que faria!...

Mas, afinal, impaciente por sair do seu esconderijo, farto daquela situação que o tornava ridículo aos seus próprios olhos, deliberou fazer a vontade à mulher. -Já agora seria o que Deus quisesse!...

Entretanto, o estalajadeiro, mal teve conhecimento das intenções de seu ilustre protegido, tratou de dar as providências para o rapto.

Chegado o momento, armou os seus homens: vestiu-se de cocheiro (profissão que exercera por muito tempo), muniu-se de um par de tiros, preparou a bagagem do raptor pela maneira que mais convinha à conjuntura, isto é, reduzindo-a o melhor que pôde, e meteu-a dentro de um coche apropriado, do qual tomaria a boléia; e, depois de erguer com os outros vários brindes ao cantonalismo, à Espanha, à liberdade; e depois de embolsados os protestos de gratidão que o Borges lhes apresentava na forma de moedinhas de ouro, puseram-se todos a caminho da casa do oficial, dispostos a derramar a última gota de sangue em prol da gloriosa empresa que cometiam.

E quem os visse, tão formidáveis nos seus capotes de conspiradores, os colones convictamente puxados sobre a orelha, os gestos ameaçadores e trágicos, não seria capaz de supor que se tratava de raptar uma donzela, mais que ninguém senhora de seu nariz.

Filomena, ébria de prazer com a idéia de ser furtada, palpitando de comoção, fez a trouxa em segredo e retirou-se ao quarto, pretextando incômodos para dissimular os seus projetos de fuga.

À meia-noite chegava o terrível grupo dos conspiradores, acompanhando o coche que devia conduzir o precioso fruto daquela empresa delicadíssima. Borges separou-se de seus companheiros, mudo e sombrio. E, com o passo firme, a mão armada, penetrou resolutamente no jardim da casa em que estava a mulher. Não foi difícil, porque, felizmente, o portão achava-se apenas encostado.

Ao chegar debaixo de certa janela tirou da algibeira um pequeno assobio de metal e apitou devagarinho. A janela abriu-se logo e, ao doce clarão da lua, apareceu o vulto romântico de Filomena, toda de branco, os cabelos soltos, os braços nus.

-Vamos com isto! segredou-lhe o Borges, levando as mãos à boca em forma de porta-voz.

-Trouxeste a escada?..., perguntou Filomena no mesmo tom.

-Trouxe. Arreia o barbante.

-Aí vai.

-Pronto, disse o Borges, depois de amarrar a escada no cordão.

Filomena daí a pouco lançava-se nos braços do marido, a exclamar: -Fujamos, meu amor! Fujamos!

-Não grites! ralhou o sedutor. Olha que te podem ouvir!

E, com efeito, alguém abria já uma janela.

-Estamos perdidos! bradou a fugitiva.

O Borges, porém, havia já alcançado a rua com a mulher nos braços, quando o sujeito da janela berrou com uma voz de trovão:

-Ó da guarda! Ó da guarda!

Ouviu-se um estardalhaço de portas que se abrem precipitadamente, fechaduras que rangem e vozes que altercam.

Mas Filomena, trêmula e sobressaltada, achava-se já dentro do carro, ao lado do raptor, e os cavalos galopavam fustigados a valer pelo estalajadeiro.

Enquanto fugiam, os cinco cantonalistas, no meio de grande algazarra, de gritos e de apitos, simulavam uma alteração na rua, atraindo sobre si os serenos, que acudiam de vários quarteirões.

O carro, entretanto, voava pelas ruas de Triana, para os lados de Lora-del-rio. A cidade desaparecia atrás deles, vertiginosamente. Mal avistavam já o cume quadrado da Giralda, que o luar fazia sobressair no horizonte.

No fim de três horas de carreira, penetravam no campo.

-Estamos salvos! exclamou Filomena. No campo não seremos alcançados!

-Ao contrário, respondeu o estalajadeiro, o campo é menos favorável à fuga, porque temos de evitar os guardias civiles, muito mais perigosos que os serenos.

Não tardou a surgir ao longe o primeiro par de tais guardias.

-Quem vai lá?! gritou um deles.

O estalajadeiro em resposta fustigou melhor os cavalos e precipitou-se em direção contrária ao lugar donde vinha aquela voz.

-Alto! gritou o guarda campestre.

Novas e mais fortes chicotadas.

-Faça alto! gritou o outro guarda engatilhando a sua espingarda.

O estalajadeiro, que conhecia muito bem as prerrogativas da sentinela do campo na Espanha, apertou o galope de seus animais e vergou-se todo para a frente, sobre as coxas.

Uma bala veio cravar-se na traseira do carro. Em seguida outro tiro, depois outro; mas as bestas não afrouxaram e o carrinho sumiu-se por entre as sombras de um olival que nascia a algumas braças daí.

-Ânimo! gritou o intrépido cocheiro aos fugitivos. Dentro em pouco estaremos livres de perigo; trata-se apenas de ganhar a outra margem do rio!

E fustigou as bestas com energia.

Mas no fim de meia hora de galope cerrado, o estalajadeiro soltou um grito que aterrou os companheiros. Na sua precipitação, invadira, sem dar por isso, as terras de um tal marquês de Saltillo, e agora, auxiliado pela aurora, que ia repontando, via-se no meio de uma vasta defesa, cujos touros gozavam da fama dos mais perigosos de toda aquela redondeza.

-Ira de Dios! bradou ele, enquanto o Borges e Filomena, estarrecidos de medo, espiavam pelas portinholas.

-Que é?! que é?! perguntaram.

-É que podemos ser assaltados pelos touros! explicou o cantonalista, tratando de fugir ao perigo.

A defesa era enorme, estendia-se até muito longe; nessa ocasião, por felicidade, os touros achavam-se entretidos para o lado contrário ao do carro, e o estalajadeiro não precisou puxar muito pelos cavalos, porque estes, fariscando logo o risco que corriam, abriram a rinchar e, malgrado da fadiga, desembestaram para as bandas do campo.

Malditos rinchos! Um touro acabava de despertar ao seu fragor e, encapotando a cabeça nas pernas dianteiras, corria assanhado na direção do carro.

O federal chicoteou os cavalos com toda a força e o pobre coche rodou por entre o mato como uma bola perdida.

-Anda! Anda! berrava o Borges de pé, a tocarolar as costas do cocheiro. -Olha que o diabo do bicho aí vem!

Com efeito, o touro perseguia-os na distância de uns cinqüenta passos.

-Preparem as armas! bramiu Filomena. Aqui o recurso que há é lutar.

Mal terminava essa frase, quando se sentiu descair com o marido para a direita; uma das rodas do carro estava por terra, em pedaços.

-Jesus! fez ela, agarrando-se à portinhola.

-Já aí vem o conocedor e já ouço o chocalho do cabestro. Estamos salvos!

De fato, três homens a cavalo e seguidos de um boi velho e manso, vinham com os seus cajados em punho à pista da rês que se desgarrara da defesa. O touro logo que ouviu o chocalho, parou, sorveu o ar por alguns segundos e foi humildemente emparelhar-se ao cabestro.

-Diabos te consumam! rosnou o federal, considerando o estado de seu pobre carro e de seus pobres animais. Como hei de agora arranjar-me para a volta?!...

Felizmente já não estavam muito longe da estação de Lora, e o Borges, se não quisesse tomar aí o caminho de ferro, podia ficar em algum hotel, onde com facilidade arranjaria meios de condução para o lugar que melhor entendesse.

Mas Filomena declarou logo que não se sentia disposta, por coisa alguma, a passar a sua lua de mel enterrada num quarto de hospedaria. Não foi para isso que viera à Espanha! Queria um sítio pitoresco, ignorado, poético, silencioso. O marido que tivesse paciência; ela, porém não descansaria antes de encontrar um lugarzinho nessas condições.

-Pois tranqüiliza-te, que, custe o que custar, havemos de descobri-lo, respondeu o Borges. Já agora, com mais um empurrão leva-se a caixa ao porão!

Durante esse diálogo, o estalajadeiro carregou pelo melhor os seus animais com a bagagem dos fugitivos. E os três, seguidos das cavalgaduras, puseram-se corajosamente a caminho, dispostos a não acampar, sem terem descoberto o tal sítio indispensável para os amores de Filomena.

Enfim

Foram dar com os ossos a Córdoba, num destroço de castelo árabe, construído à margem de um braço do Guadalquivir, ainda nos tempos do domínio muçulmano, e em cujas ruínas aboletavam-se agora os pescadores do lugar e um ou outro gitano, que a fome e a fadiga trouxessem de rastros até aí.

Filomena ficou arrebatada: confessou que o lugar não podia ser melhor para uma lua de mel e resolveu instalar-se nas ruínas.

-Que?! exclamou o Borges, assustando-se. Ficar aqui?! Ficar neste covil de vagabundos?!... Ora, qual! A mulher com certeza estava gracejando!

-Não! disse ela, sem se alterar, não gracejo, nem admito que te queiras fazer insensível a estas magnificências do belo! Olha! Contempla estas abóbadas lascadas pelo tempo! Vê como tudo isto é esplêndido! como tudo isto é maravilhoso! Onde irias tu descobrir um lugar mais propício aos nossos amores?

Borges ainda tentou despersuadi-la de semelhante idéia. Opôs-lhe os mais sensatos argumentos -apresentou-lhe com todo o peso de seu bom senso os inconvenientes que os esperavam- o sol, a chuva, os mosquitos, os insetos venenosos, talvez a morte nas mãos daqueles bárbaros! -Filomena que pensasse um instante, que refletisse um momento, antes de dar aquele passo! Porém nada obteve -a mulher não cedia uma polegada; e o infeliz, disfarçando o seu desgosto e auxiliado pelo cantonalista, procurou entrar em bom acordo com os pescadores.

Tudo arranjado pelo melhor que foi possível, o estalajadeiro descansou um pouco, depois embolsou a recompensa de seus trabalhos e a indenização de seus prejuízos, abraçou o suposto correligionário, jurou ainda uma vez que estaria sempre disposto a derramar a última gota de sangue pela pátria e afinal retirou-se.

O Borges então cuidou de resignar-se às circunstâncias. Aquele capricho da mulher não poderia deitar muito longe!... Que a deixassem lá com as suas ruínas, o primeiro pé d'água que caísse havia de ensiná-la!...

Contudo, aí ficaram três semanas, expostos ao sol e ao sereno, quase ao relento, alimentando-se sabe Deus como, e dormindo sob as velhas abóbadas lascadas e cheias de verdura. Felizmente tinham consigo alguma roupa, uma boa mala e ainda bastante dinheiro.

Foi aí, nesse canto ignorado da velha Espanha despojada, ao ciciar das brisas do Guadalquivir e à sombra murmurosa dos gigantescos loureiros e dos sicômoros, que Filomena se identificou pela primeira vem com o marido. E fê-lo sem a mais leve reserva, nem o mais ligeiro rebuço, chegando até a amá-lo com transporte, com delírio, chamando-lhe «seu raptor, seu amante!» refugiando-se nos braços dele, cheia de ternura e de medo, unidos, sobressaltados, como dois criminosos que ardessem na chama da mesma paixão clandestina.

O bom homem não desejava melhor; «assim não fosse ela tão caprichosa!»

Filomena agora o obrigava a longos passeios por entre canaviais bravios, por entre matagais de cactus, escolhendo lugares difíceis, quase intransitáveis, onde às vezes era preciso que ele a carregasse nos ombros para vadear pequenos regatos, coalhados de nenúfares, ou levá-la ao colo pelo meio de barrancos perigosos, cobertos de limo e salsas espinhosas. Outras vezes lhes sucedia perderem-se, e os dois tinham de descansar sobre a relva, sofrendo sede e fome, sempre foragidos, evitando as vistas de quem quer que fosse, como se fugissem de inimigos implacáveis.

Borges, temendo contrariá-la, submetia-se a tudo isso de cara alegre. Fingia desfrutar o mesmo encanto que ela desfrutava; fazia-se entusiasmado pela natureza, amando as águas do regato, admirando os passarinhos, correndo atrás das borboletas e deitando-se de bruços à beira do rio; o queixo na palma das mãos, a balbuciar versos; os olhos perdidos no serpentear monótono da corrente.

Mas no fundo sentia-se muito pouco à vontade e extremamente contrariado. -Por que não haveria sua mulher de ser como as outras?... Seria tão bom que os dois, àquela hora, estivessem gozando juntos, numa boa casa, em plena segurança e em plena dignidade do lar, a mais completa e a mais doce felicidade a que tinham direito por todos os motivos! Oh! ele, porém, amava-a tanto, tanto, que seria capaz de todos os sacrifícios para vê-la alegre e satisfeita! -Além de que, Filomena com o tempo havia de mudar de gênio!... Estava ainda muito moça, muito cheia de fantasias, porém tinha o principal, que era -boa índole e bom coração.

E ele subordinava-se, abafando os seus ressentimentos, sem um olhar de queixa, sem um gesto de desgosto, sem nunca desmentir aquele bom humor primitivo, aquela mesma condescendência delicada e simples, aquela mesma extrema amizade leal e generosa.

Mas os caprichos de Filomena multiplicavam-se a cada momento. Era já a idéia de acompanhar os pescadores ao rio, à noite, munidos de archotes e vestidos como eles; era já a fantasia de uma caçada pela Serra-Morena, em horas de calor, ou então a mania de uma pastoreada nos vales sombrios e pacíficos, acompanhando o gado, a cantarem de mãos dadas pelas ribanceiras, ou então deitados na grama. nos braços um do outro, à espera que o sol acabasse de descer no horizonte a sua escadaria de fogo.

De repente veio-lhe uma febre de viajar -viajar muito, sem destino, não pelas cidades muito conhecidas e palmilhadas cotidianamente por centenas de estrangeiros taciturnos, encapotados nos seus ulters, de binóculo em bandolina e chapéu de sol encapado de verniz. -Não! Nada disso! Queria lugares totalmente imprevistos, que ainda não tivessem sido muito decantados pelos poetas como a sua Itália e que lhe deparassem comoções inesperadas.

-Queria os verdadeiros perigos, as fadigas dos desertos arenosos, a cólera dos simouns, o risco das florestas virgens, as jornadas por ínvios sertões desconhecidos, os horizontes eternos e as longas noites perdidas nos cumes silenciosos das montanhas, ouvindo o sanhudo sibilar dos ventos e os roncos desesperados das feras que têm fome!

O Borges sentiu um calafrio percorrer-lhe o corpo inteiro ao receber dos lábios da mulher aquela terrível sentença.

-Precisamos de uma vida mais agitada! explicou ela, vendo o gesto surpreso do marido.

-Mais agitada?!... Oh!... balbuciou este.

-Sim! mais agitada! Sinto-me morrer de inação! Basta de repouso! É preciso dar começo a uma nova existência!

O Borges esteve a perder os sentidos.

-Pois agora é que ia principiar o exercício?! pensou ele numa verdadeira vagabundagem?! ... Mas então que não será ela?!

-Se até aqui descansei, qual não será minha pobre vida de hoje em diante?!...

Filomena não percebeu o sobressalto do marido, porque estava já a cismar no Oriente.

Julgava-o numa desordem de impressões recebidas de Antony Rich, René Menard e principalmente de Lady Anna Brunt, cuja originalidade e cujo espírito másculo a fascinavam. Não lhe era estranho também o Dicionário Arqueológico de E. Bosc, e por mais de uma vez folheara o itinerário do dr. Emilio lsambert.

Com todo esse combustível a fumegar-lhe dentro da cabeça, via-se já dentro das muralhas venerandas de Jerusalém; sonhava o consagrado Sinai, a Abissínia, Malta, a Núbia e -o Egito.

O Egito! O longo e tortuoso Egito, cheio de passado e deslumbrante de tristeza.

Imaginava-se já de sandálias e bombachas de brocado, assentada à japonesa no dorso empírico de um camelo, ao lado do Borges, que sumido no seu albornoz característico, as mãos esquecidas sobre o adequado kandyjar, e também de canelas em cruz, toscanejava orientalmente sobre o macio shedad. À imitação de sua querida Lady Brunt, sentia-se já preada por um formidável ghazu e conduzida aventurosamente ao castelo de Djot.

No dia seguinte estavam de partida.

Vôos altos

Desde então foi um peregrinar sem tréguas.

Viram muito, atravessaram regiões inóspitas, extensões selvagens, participando de caçadas temerárias, fazendo léguas sobre elefantes, experimentando o enjôo de mil paquetes, a indiferença de mil povos diversos, a monotonia das cidades desconhecidas, a dura insociabilidade dos hotéis, e o tempestuoso embate de todas as paixões humanas.

E Filomena Borges tomou notas, escreveu memórias, fez apontamentos, criou gosto pelas investigações, pelo estudo; enfim, tornou-se filósofa e sentiu necessidade de compendiar em volume as impressões que recebia.

«O Egito», contava ela, depois de longas considerações filosóficas, «desenrolou-se debaixo de meus pés, triste como um sudário. Ajoelhei-me com o meu companheiro (o companheiro era o Borges) defronte dos Spéus arruinados de Ibsambul e dos esborcinados templos d'Efu! Percorri os imensos labirintos subterrâneos de Silsilis, o templo d'Ombos; vi os monumentos da ilha de Philoe, contemplei a esfinge de Gizeh, surgindo da areia ardente do deserto, como um fantasma de granito, que se ergue a meio de um estranho oceano, com os olhos de pedra fitos no levante, o ar atento e concentrado de quem escuta e de quem espera! Que esperas, tu, sentinela do passado?! Monstro! que perscrutas com esse teu olhar imóvel de pedra?!»

«Minh'alma», afirmava ela em outro ponto das memórias «como que se dilatou ao sopro embalsamado das melancólicas legendas do Oriente. Pareceu-lhe ouvir ainda, perdidos no espaço, os últimos ecos dos coros religiosos dos sacerdotes de Horus e o cântico venerando dos escribas reais...»

Ouvisse ou não ouvisse, o fato é que, uma vez, depois da costumada excursão pelas ruínas, ela tomou de repente as mãos do marido e perguntou-lhe em segredo, com a voz trêmula de comoção:

-Meu amigo. não sentes alguns sons doces e lamentosos, que rumorejam neste vasto e profundo azul do deserto?...

O Borges vergou a cabeça para o lado donde vinha o vento, concheou as mãos nas orelhas e, depois de escutar durante alguns minutos, disse que sim, por condescendência. -Que sim, supunha ouvir, qualquer coisa -assim como uma espécie de zunido!

Que vinha a ser isso?... perguntou ele, estimulado pelo olhar estranho da mulher.

-É, respondeu Filomena muito grave -é a alma errante do passado que chora as suas grandezas extintas, ou talvez sejam as notas derradeiras dos lamentosos salmos das adoradoras de Hathor!

-Ah!... fez o marido, fingindo interesse, mas sem compreender patavina.

E enfronhados nas suas roupas egípcias, já iam aquelas duas almas perdidas, a jornadear dia e noite, de sol a sol, de ruína em ruína; ela em busca de comoções; ele em busca de coisa alguma, aborrecido, cansado, pedindo a Deus de instante a instante que fizesse a mulher desistir daquela terrível mania de andar a trocar as pernas, pelo mundo e fosse com ele repousar a um canto feliz e calmo de sua terra.

Contudo não se revoltava, nem lhe fugia às mais caras exigências. Na ocasião em que visitavam a quase extinta Mênfis, ela mostrou desejos de que o marido chorasse defronte do colosso mutilado de Ramsés II, que jazia estendido na areia, e o Borges choramingou para fazer-lhe a vontade. Quando desembarcaram no Luqzor, à margem direita de Tebas «a cidade de cem portas, decantada pelo sublime cego de Smyrna» como parafraseava ela, cheia de entusiasmo, o pobre homem já estava mais morto que vivo; Filomena, entretanto, não admitiu que se esbanjasse o precioso tempo com o repouso e exigiu que o Borges prestasse suma atenção às maravilhas que surgiam defronte de seus olhos.

-Sabes?..., disse-lhe ela, atravessando com um passo solene o corpo principal do despojado templo de Luqzor -foi daqui que o solitário de Santa Helene levou o obelisco que orna hoje a praça da Concórdia, em Paris!

-Boa pedra para construção! respondeu o mestre de obras, batendo com a ponta ferrada de seu cajado no granito vermelho das velhas e consagradas esculturas de Secos. Boa pedrinha! Isto deita séculos!

Felizmente a mulher não o ouvia, graças ao encanto melancólico daquelas relíquias, que a arrebatavam para as épocas esplendorosas de Sesostris e a faziam reconstruir mentalmente toda a extinta grandeza da margem ocidental de Tebas.

Neste dia não houve um momento de descanso. Filomena não tinha ânimo de abandonar as ruínas, e como que as queria ver todas ao mesmo tempo. -Oh! Ó Karnak! Ó Karnak com a sua avenida de esfinges decimbradas e os monólitos gloriosos de Amenhotep III!

No fim de cinco horas de êxtases e exclamações desse gênero, o Borges cujo estômago reclamava os seus direitos, disse, batendo-lhe meigamente no ombro:

-Não te apetece agora uma costelazinha com batatas?... Creio que não será mal lembrado... hein?...

-Não! disse Filomena, repreensivamente. -O que me apetece neste instante é o Medinet-Abu na outra margem do Nilo. Creio que esse prodígio de sete séculos valerá sempre mais alguma coisa que uma costeleta!...

-Oh! de certo, de certo! apressou-se a confirmar o Borges, pronto já a seguir a esposa, sem o menor vestígio de oposição.

Mas, pelo caminho, indiscretos suspiros partiam-lhe amiúde dos lábios.

-Triste fado o meu! resmungava o pobre homem com os seus botões. -Triste fado!

E lá ia caminhando, de cabeça baixa, a puxar pelo cabresto o seu burrico e o da mulher.

O desgraçado esteve a desfalecer, quando, no fim da estafadora peregrinação pelo Egito, Filomena tratou com assombro de Babilônia, na qual, segundo vagas recordações de Heródoto e Deodoro da Sicília, pensava encontrar panos para as mangas nas estátuas de ouro e nos palácios de Korsabad e Nemrod e nos baixos-relevos e nos caracteres da escritura assíria,

Ah! só encontrou de tudo isso, indícios, quase apagados -ruínas e deserto! sempre o deserto! sempre o deserto!

Veio-lhe então a idéia de recorrer à Grécia: «aí com certeza encontraria alguma coisa; pelo menos os sublimes destroços do Acropólio, do Partenão, do Ágora!».

-Já vejo que não é tão cedo que isto acaba!... considerou o Borges, quando a mulher lhe falou nas riquezas descobertas pelo professor Ihlismann, na Argólida.

-E, custasse o que custasse, ela havia de fazer um almoço no tesouro de Atréu como fizera seu padrinho!...

-Que padrinho é esse? perguntou o Borges.

-D. Pedro II, o nosso imperador.

-Ah!...

Coitada! Mal então sabia ela a influência que o monarca estava destinado a exercer na sua vida!...

-Bem! disse o Borges, depois do passeio à Grécia. Agora, creio que basta de ruínas e que podemos voltar para o nosso canto! Ah! se soubesse, Filomena, as saudades que tenho de meu querido Paquetá!... Aquilo, sim, é que é terra! Estou aqui a ver-me debaixo de uma mangueira, contigo ao lado, depois do jantar... que bom, meu Deus! que coisa boa!...

-Enlouqueceste?! exclamou ela. Pois nós havemos de voltar sem conhecer a Índia?!... A fanática! A terra das superstições brutais! dos faquires sobre-humanos! A Índia, com todos os seus formidáveis budas! A Índia, com o seu Both-Jattrá, essa deslumbrante festa dos carros! Oh, não! isso seria impossível.

O Borges empalideceu.

-E depois da Índia, acrescentou ela -por que não um pouco da Arábia, onde faremos belas peregrinações ao Nedjed, onde percorreremos aldeolas e lugarejos singulares, estudando a vida das mulheres de Hail, com o seu uso original de trazer argolas de ouro nas ventas e nas orelhas; onde teremos ocasião de apreciar os dançados das donzelas de Shakik?!... E a África?! A África então?!! Esquecia-se o Borges de que a África era a única paragem do mundo, em que ainda se podiam encontrar regiões desconhecidas? E, além disso, não valeriam a pena de alguns passos as famosas cascatas de Samba-nagoshi, a aldeia de Mayolo, tão estimada pelos naturalistas?! E as caçadas dos elefantes pretos na terra dos Aponos, e a caçada dos leões de Mogiana e dos gorilas de Olenda?!... Acaso não reconhecia o Borges a necessidade urgente de ver e experimentar todas essas coisas?!...

-Lá se vai tudo quanto Marta fiou!..., disse o pobre homem, gemendo debaixo daquele bombardeamento.

Mas não reagiu. E, no fim de algum tempo, ia-se já habituando ao viver boêmio que a mulher lhe impunha. Dócil, como era, para escravizar-se aos hábitos, afez-se pouco a pouco àquele duro vagabundear, e estaria disposto a seguir Filomena ao inferno, contanto que esta nunca mais lhe fechasse o ferrolho sobre o nariz.

De volta à pátria

E assim se transformava completamente sem dar por isso. Não parecia o mesmo; sabia montar a cavalo, atirar várias armas, bater-se em duelo, andar em velocípede, correr no gelo, jogar o soco e a bengala e até servir-se do terrível bowie-knife de dois gumes.

E no fim de algum tempo, quem o visse à tolda de um paquete inglês, numa dessas madrugadas cor de pérola, enluvado no seu ulster de xadrezinho, o chapéu ao lado, a toalha caída sobre as costas, o bigode retorcido, monóculo no olho, binóculo a tiracolo, e tão pronto ao prazer como ao perigo, lépido, terrível, namorador; quem o visse -seria capaz de acreditar que ali estava aquele mesmo Borges, aquele pacato João Touro, que alguns anos antes atravessava as ruas comerciais do Rio de Janeiro, agenciando a vida, muito atarefado, dentro de suas calcinhas de brim mineiro?!...

Onde iria já o casto, o puro, o doce João Touro do outro tempo?...

As repetidas viagens, o atrito com as populações estranhas, a familiaridade com os costumes de mil povos diversos, a experiência das comoções transcendentes, deram-lhe grande desembaraço aos movimentos, certa elegância máscula de trappeur, que de alguma forma dizia bem com os seus músculos atléticos. Agora tinha exclamações em todas as línguas, anedotas de toda a espécie, termos e frases de todo o mundo. E as correrias, os exercícios, os perigos, fizeram-no intrépido, aventuroso, despejado de maneiras, enérgico como um herói do romantismo.

Por outro lado, o constante entusiasmo de Filomena pelas coisas do espírito acabara por dominá-lo: ensinara-lhe a ter, ou pelo menos suportar de cara alegre certos prazeres delicados, como a música dos clássicos, a conversa sutil das senhoras de boa sociedade, os segredos da literatura, as linhas misteriosas da arquitetura, os primores da estatuária e o valor dos quadros célebres.

Ele! O Borges, aquele mesmo que, em Tebas, classificara o granito vermelho do Syena -boa pedra para construção! -Quem o diria?...

Alguns olhos femininos principiavam de voltar-se para ele com certa insistência; as mulheres descobriam-lhe já na elegância do todo e no espírito da conversa, pretextos de amor e elementos de sedução.

De volta ao Rio de Janeiro, os amigos mal o reconheceram. Acharam-no transformado em tudo; descobriam-lhe novos dotes e novos defeitos, porém estes em número muito maior que aqueles. Fizeram-lhe boas e más ausências.

O Borges, o querido Borges, que até aos quarenta anos não conhecera o gostinho de uma inimizade sequer, ficou pasmado quando, alguns dias depois de sua chegada à pátria, começou de redemoinhar em torno dele um enxame de maledicentes, que o intrigavam, descompunham e malqueriam, tecendo intrigas, publicando mofinas, remetendo-lhe cartas anônimas, cheias de injúrias, procurando covardemente, por todos os meios e modos, injetar-lhe o fel e a amargura no coração, como se, ofuscados pelas aparências, não pudessem admitir um tão completo exemplo de felicidade. As injúrias versavam principalmente sobre o caráter da mulher.

Então um desgosto sombrio principiou a persegui-lo; abominou a pátria -esse covil de maus e de invejosos- qualificou ele, revezando o seu tédio!

Em breve, qualquer maledicência a seu respeito, que lhe chegava aos ouvidos, punha-o num estado lastimável de irritação. E, no despenhadeiro de seu azedume, tudo foi aos poucos lhe parecendo mau e mesquinho; chegou a desconfiar da mulher; a supô-la sem amor, sem gratidão, capaz talvez de uma deslealdade; suspeitou de todos que o cercavam, detestou a sociedade; e, por não encontrar sobre quem descarregasse diretamente o seu ressentimento, bramou contra o atraso do Brasil, contra a falta de distrações, contra a ignorância geral do público, contra a incompetência dos poderes, contra toda a «podridão social enfim»!

-Uma terra de bugres! dizia e repetia ele aos amigos, que o visitavam todas as noites. Uma terra de bugres! Aqui, um homem, para não morrer de tédio, para divertir-se um bocado, precisa atirar-se aos vícios, ou não sair de casa! -País de lama!

E para esquecer-se de seu desgosto, jogava.

De resto, o governo português acabava de o fazer barão de Itassu, e o Rio de Janeiro fariscava em torno de sua casa, atraído pelo som da música e pelo barulho dos pratos.

A casa! A casa, ou antes o museu do Borges, que outra coisa não era esse ninho de raridades de que se falava em toda a corte, dessas magnificências do luxo antigo e moderno, desses ricos objetos de arte de todos os tempos e de todas as paragens. A casa transformara-se, como o dono.

Tudo foi reformado. Exibiram-se novos trastes, novas cortinas, tapeçarias, peles, cachemiras, bronzes, faianças, cristais, porcelanas, quadros, estatuetas, aquários, álbuns, mosaicos, vasos florentinos, lustres de vermeil, espelhos venezianos talhados à biscau, cariátides de Jean Goujon, servindo de peanhas a esculturas de Germain Pilou e uma variedade interminável de tetéias e relíquias, que a baronesa colecionara por todo o mundo. Expuseram-se velhas cadeiras com espaldar e assento de couro de Córdoba, lavrado, e tacheado de metal amarelo; leitos à Renascença de colunas retorcidas e métopes talhados em madeira fusca; jarras do Oriente, sarapintadas de hieróglifos; objetos preciosos de marfim, manufaturados na China; molduras delicadíssimas de porcelana, à Luís XIV, representando grinaldas coloridas; consolos de brèche-antique, sustentados por delfins de olhos e barbatanas douro, luzido; sem contar as otomanas asiáticas, os divãs, os fauteuilles, os étagères de xarão, de palissandra, de ébano; enfim o que podia haver de raro, de singular, de extraordinário. Não era uma casa, era um prolongamento do Hotel Cluny. Cada objeto, cada móvel, cada peça representava uma época, um reinado, uma escola.

Mas o barão, quando ficava a sós no meio de tudo isso, sentia-se acabrunhar por uma espécie de remorso; afigurava-se-lhe fugir debaixo dos pés o chão sólido e áspero do dever, para dar lugar aos tapetes felpudos e voluptuosos; parecia-lhe ouvir uma voz austera, que se levantava de tudo aquilo para o argüir e reprovar.

-Pois foi nisto que esbanjaste o teu dinheiro, João Borges?!... Foi nestas quinquilharias que enterraste essa fortuna, que teu pai, à custa de tanto sacrifício, conseguiu juntar para ti, insensato? Perdulário!... E agora vão ver!... Tudo por quê? -Porque o pedaço de asno adora cegamente uma mulher, um demônio, a quem se entrega de corpo e alma e que faz dele o que bem entende, sem talvez lhe dedicar um pouco de afeição, pois, se dedicasse não seria a primeira a cavar-lhe deste modo a ruína!... Oh, sim! dizia o infeliz, deixando-se cair em uma de suas cadeiras preciosas. -Oh, sim! sou um miserável, mas amo-a tanto! adoro-a tão extremosamente, que ainda seria capaz de muito mais para conservá-la sempre ao meu lado!

E procurando fugir ao ferretear dessas considerações, refugiava-se no entorpecimento da embriaguez, nos sobressaltos do jogo e na conversa agitada dos amigos, que o iam cardando e descodeando todas as noites.

Filomena, por outro lado, não se mostrava, apesar do título, completamente feliz.

-Mas que te falta ainda?... perguntou-lhe o marido, sem se poder conter, uma vez que a viu mais triste e desconsolada. -Creio que até hoje tenho cumprido à risca, e com sacrifício de nosso futuro, todos os teus desejos e todos os teus caprichos! Possuis uma casa como ambicionaste; és requestada pela melhor sociedade; ostentas um título, e tens plena certeza de que eu, teu marido, teu amante apaixonado, só vivo por ti, e para ti! Sabes perfeitamente que não há em todo o mundo, por toda a parte onde estivemos, uma única mulher, escrava ou rainha, que me fizesse esquecer um instante de ti, minha querida Filomena! E, no entanto, tu, tu! que és a minha única preocupação, o meu cativeiro, tu, nem por isso te mostras mais satisfeita e mais agradecida! Mas com todos os demônios! Se te falta ainda alguma coisa, fala com franqueza! Exige! Ordena! Mas por amor de Deus não me tortures com essas tristezas e com esses suspiros que me desesperam! Bem sabes que és tudo quanto possuo! És a minha vida! a minha felicidade! Vamos! Fala! fala! diz o que te oprime, Filomena de minh'alma.

-Nada! Não tenho nada! respondia a mulher com um esgar fastidioso. Quero apenas que me deixem!... Que me não apoquentem com perguntas!...

-Tudo isso prova que nunca me amaste!... disse o Borges retraindo-se.

-Aí temos outra! observou Filomena, e, depois de um novo gesto de tédio, afastou-se, resmungando -que não estava disposta àquilo!

Borges atirou-se sobre uma das tais cadeiras, e escondeu o rosto nas mãos.

-Que desgraça a sua! Que desgraça!... pensava. Ora vissem se era possível haver um homem mais infeliz do que ele!... Pois a despeito de tudo que fazia pela mulher, ainda não lhe merecia amor! Mas então Filomena estaria disposta a ser sempre a mesma ingrata?...

-Não! bradou ele, erguendo-se. Não, decididamente é preciso fazer-me forte! É preciso reagir! Talvez até seja este o meio de lhe cair em graça por uma vez!

Mas daí a duas horas, vendo que a mulher não saía do quarto, foi ter com ela.

-Então? Ainda dura a rabugem?

-Deixe-me! respondeu Filomena com uma voz de choro.

Mas o que te aflige, meu amor? Fala, fala com franqueza! Não sou eu porventura o teu amiguinho, o teu confidente, o teu íntimo?... Olha, se estás aborrecida, procura meios de distrair-te; bem sei que aqui não há muito onde ir, mas inventa! Vê se descobres alguma idéia. É verdade -tu ainda não festejaste o nosso titulo... aí tens! Por que não dás tu um baile, um jantar ou coisa que o valha?...

Filomena abraçou e marido, balbuciando palavras de reconhecimento.

-Ainda bem! Ainda bem! disse ele, sem mais se lembrar das apoquentações. E, sentindo que a mulher animava-se-lhe aos beijos. -Assim! assim é que te quero ver sempre!...

Começaram a falar, muito amigavelmente sobre os projetos da festa. Aproximava-se o entrudo. -E se dessem um baile de máscaras?!...

Esta idéia trouxe a Filomena uma alegria convulsiva. -Um baile de máscaras! um baile de máscaras! exclamava ela fora de si. -Mas como já não me tinha eu lembrado disto?!...

E saltou ao pescoço do Borges, radiante.

-Que belo! que belo! Um baile de máscaras!

Deram logo principio aos preparativos da festa, e durante esses dias, Filomena não deixou transparecer sinal de aborrecimento. Ao contrário, muito animada, muito contente de sua vida, era ela própria quem tomava as providências para a grande função.

-Ah! mas havia de ser uma festa sem exemplo no Brasil! Uma festa que desse que falar por muito tempo.

Todavia, Borges andava meio atrapalhado nos seus negócios, e, para não desgostar a mulher, escondia-lhe, sabe Deus com que heroísmo, certas dificuldades de dinheiro, que o principiavam a perseguir.

-Em todo o caso, Filomena teria o seu baile de máscaras!...

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