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Um tédio invencível, um desânimo infindo foi se apoderando de Maria do Carmo a ponto de lhe alterar os hábitos e as feições. Começou a emagrecer, a definhar, enfadando-se por dá cá aquela palha, maldizendo-se. Tudo a contrariava agora, tinha momentos de completo abandono de si mesma, o mais leve transtorno nos seus planos fazia-lhe vontade de chorar, de recolher-se ao seu quarto e desabafar consigo mesma, sem que ninguém visse, num choro silencioso. Estava-se tornando insociável como uma freira, tímida e nervosa como uma histérica. Ia à Escola para não contrariar os padrinhos, para evitar desconfianças, mas o seu desejo, o seu único desejo era viver só, completamente só, numa espécie de deserto, longe de todo ruído, longe daquela gente e daquela casa, num lugar onde ela pudesse ver o Zuza todos os dias e dizer-lhe tudo o que quisesse, tudo o que lhe viesse à cabeça. O ruído que se levantou em torno de seu nome incomodava-a horrivelmente, como o zumbir de uma vespa enorme que a perseguisse constantemente. -Que inferno! Todo o mundo metia-se com a sua vida, como se fosse um grande erro ela casar com o Zuza! Era melhor que fossem plantar batatas e não estivessem encafifando-a. Havia de casar com o Zuza, porque queria, não era da conta de ninguém, seu coração era livre como as andorinhas. Oh!...

-Mas, menina, quem diz o contrário? perguntava a Campelinho. Eu sempre te aconselhei que o melhor partido era aceitar o amor do estudante.

Não era a Lídia, eram as outras, as invejosas, as brutas, que nem sequer sabiam conjugar um verbo. Estava cansada de ouvir pilhérias e risinhos tolos, mas à primeira que lhe dissesse tanto assim (e indicava o tamanho da unha), à primeira que abusasse da sua paciência, ela, Maria, saberia responder na ponta da língua. Umas namoradeiras que se punham a dar escândalos com os estudantes do Liceu, umas sem-vergonhas! Havia de mostrar!

Ela é que era uma tola, dizia a Lídia; as normalistas falavam de invejosas; mandasse-as plantar favas. Cada qual namora com quem quer, e, demais, não era nenhuma admiração a Maria casar com o Zuza. Por que ele era rico e ela pobre?

Muito obrigada! Napoleão I tinha-se casado com uma simples camponesa, e, mais, era um imperador!

E Maria do Carmo passava noites sem dormir, a pensar no futuro bacharel, retratando-o na imaginação, amando-o de longe. Havia já seis dias que ele seguira com o presidente, num domingo.

Que custo, que viagem sem fim! Aquela demora impacientava-a. Já era tempo de terem voltado...

Todos os dias, à noitinha, ia esperar a Província, na janela, a ver se encontrava alguma notícia dos excursionistas.

Mas, nada!

No domingo seguinte, porém, a folha oficial noticiou que «os ilustres touristes» deviam regressar à capital no dia imediato.

-Oito dias! Tê-la-ia esquecido? Oito dias na serra, tomando banho de cachoeira, passeando a cavalo, caçando, divertindo-se -que excelente vida!- Maria do Carmo sentiu uma alegria deliciosa ao saber que daí a vinte e quatro horas o Zuza estaria de volta, mais amável talvez, mais nutrido, mais gordo e mais bonito, contandolhe as minudências da viagem. Agora, sim, conversaria com ele, perguntar-lhe-ia se gostara da serra, se tencionava partir logo para o Recife, se pretendia casar no Ceará...

Nessa noite fez-se muito boa para o padrinho, chamou-o «padrinhozinho», acariciou-lhe os bigodes, alisou-lhe o cabelo, sem dar a entender o seu grande contentamento, a sua grande felicidade. Durante o víspora esteve perto dele, acompanhando-lhe o jogo, lembrando quando ele esquecia de marcar um número, dandolhe cafunés no alto da cabeça, com uma solicitude ingênua.

Quando os habitués do víspora se retiraram, João da Mata chamou a afilhada à alcova, e, muito em segredo, como se fossem velhos namorados, pediu-lhe um beijo na «boquinha». Maria ofereceu-lhe os lábios com uma passividade de escrava, sem a menor resistência, pondo-se nos bicos dos pés, porque João era muito alto, e deixou que ele os sugasse em dois tempos, às pressas, antes que viesse D. Terezinha.

Grande foi a admiração e a luxúria do amanuense. Maria entregarase- lhe sem um grito, sem um esforço! E suspendendo-a pela cintura, num ímpeto de carnalidade indomável, apertou-a contra si, com força, rilhando os dentes, nervoso, bambas as pernas, o coração aos pulos; mas soltou-a logo, D. Terezinha ali vinha pelo corredor, arrastando os velhos sapatos achinelados. João pôs-se a assobiar, de mãos para trás.

-Estavam jogando a sério? perguntou a mulher.

-Não. Por quê?

-Tão calados!...

-Querias tu que estivéssemos a gritar como doidos? fez o amanuense ainda trêmulo da comoção, enquanto Maria, sem dizer palavra, disfarçava na janela olhando o céu.

D. Terezinha começara a desconfiar das intenções de João da Mata. Via-o agora muito babado pela Maria, convidando-a sempre para junto de si, perseguindo-a mesmo e notava que a rapariga ultimamente já não era a mesma para ele, evitava-o, fugia de sua presença, esquivava-se como uma gatinha corrida pelo macho.

Um dia, vendo-a triste a um canto, perguntou-lhe o que tinha. Maria conservou-se calada e séria, sem erguer a cabeça. D. Terezinha quis atribuir aquele estado à ausência do Zuza, mas notou que havia no olhar da afilhada um como ressentimento novo, de momento. Nesse dia, justamente, João esbravejara muito contra a rapariga, ameaçandoa espancar se ela ousasse «pensar» no estudante. Desde então começaram as suspeitas de D. Terezinha que conhecia certas tendências instintivas de João. -De certo alguma coisa se passava entre eles. Esses sobressaltos, essas arrelias... -Entretanto, deixava as coisas no mesmo pé, sem dizer nada. Talvez fosse desconfiança...

E o mais curioso é que João agora tinha rusgas consecutivas com a mulher, sem motivo, por ninharias, ao voltar da Repartição ou pela manhã, antes de se ir.

Um belo dia rompeu deveras. João sentiu logo o sangue subir-lhe à cabeça, e, numa excitação violentíssima, num daqueles ímpetos de raiva que lhe eram tão comuns devido à sua natureza irascível, ao seu temperamento bilioso, desandou furioso contra D. Terezinha, arremetendo com a mão fechada, fulo de cólera. -Naquela casa quem mandava era ele, ficasse sabendo! Não aturava desaforos de mulher alguma quanto mais dela que não tinha nada com a sua vida!

-E fique você sabendo, acrescentou com a sua vozinha estridente, dando murros na mesa. Fique você sabendo que uma mulher amigada é como se fosse uma fêmea qualquer, ouviu? Se duvidar ponho-lhe no olho da rua!

Palavras não eram ditas, D. Terezinha saltou como uma fera congestionada, os olhos acesos de um fulgor fosforescente, desesperada, possessa, os braços em arco e as mãos nas ilhargas:

-Você o que quer sei eu, seu cachorro! Você quer é abusar da menina e plantar-lhe um filho no bucho, seu grandis...

Não acabou a palavra, porque o amanuense, ferido no seu amorpróprio, na sua autoridade de chefe da casa, cego, tresvairado, encheu-lhe a boca com uma formidável bofetada que fê-la rodar.

Maria ficou perplexa, cosida à janela, muito trêmula, sem saber o que fizesse, muda, como petrificada. Nos seus magníficos olhos cor de azeitona perpassou a sombra duma desgraça. O padrinho tinha enlouquecido, pensou. E um pavor infantil tomou-a toda.

Mal acordada dos efeitos da agressão, titubeante, manquejando com a mão no queixo, D. Terezinha foi estender-se lá dentro da alcova, soluçando tão alto que se ouvia fora, na rua.

Defronte, em casa da viúva Campelo, estava formada a panelinha do costume -o Loureiro, a viúva e a afilhada.

Eram quase nove horas da noite.

A Lídia com um pulo veio saber, muito curiosa, o que sucedera, tinha ouvido choro... Se precisassem alguma coisa...

Mas o amanuense tranqüilizou-a: que não era nada; coisas de mulher, coisas de mulher...

A Campelinho compreendeu que se tratava de assuntos íntimos e rodou nos calcanhares. -Não era nada, era o doido do amanuense que andava aos pontapés.

-Gente canalha! fez o guarda-livros inalterável. Que educação, que fina educação, recebia-se naquela casa!

Logo no dia seguinte à chegada do Zuza -uma segunda-feira luminosa de outubro, muito azul no alto, com irradiações no granito das calçadas e uma aragem insensível quase a arrepiar a fronde espessa dos arvoredos da praça do Patrocínio -Maria do Carmo foi recebida na Escola Normal com um chuveiro imprevisto de -parabéns- que as normalistas lhe davam à guisa de presentes de ano. -Parabéns! Parabéns! repetiam arrastando os pés para trás, abrindo alas, como se cortejassem uma princesa. -Tinham combinado saudála pela chegada do Zuza com esse espírito irrequieto de colegial despeitado que se apraz em chacotear outro, e talvez com uma ponta de inveja a mordiscá-las por dentro.

A praça permanecia numa quietação abençoada, com os seus renques de mungubeiras muito sombrias, verde-escuras e eternamente frescas, a desafiar, frente a frente, a pujança outonal dos cajueiros em flor que os liceístas castigavam a pedradas.

Meninos apregoavam numa voz clara e vibrante:

-Loteria do Pará, 30 contos!

O edifício da Escola Normal, a um canto do quadrilátero, pintadinho de fresco, cinzento, com as janelas abertas à claridade forte do dia, tinha o aspecto alegre duma casa de noivos acabada de caiarse.

Maria estava radiante! Que extraordinária alegria infiltravase- lhe na alma, que excelente disposição moral! Acordara mais cedo que nos outros dias, como se tivesse de ir a alguma festa matinal, a algum passeio no campo, espanejando-se toda numa delícia incomensurável, feliz como uma ave que solta o primeiro vôo. Mas ao entrar na Escola desapontou deveras! Seriam onze horas. O diretor ainda não havia chegado. Raparigas de todos os tamanhos, trajando branco, azul e rosa, conversavam animadas de livro na mão, formando grupos, rindo, no vestíbulo que separava a sala de música do gabinete de ciências naturais, no pavimento superior.

Maria entrou vivamente alegre, de braço com a Lídia, dando -bom-dia!- às colegas, uma bonita orquídea no peito, toda de branco, apertada por uma cinta. Mas, a sua delicada susceptibilidade estremeceu ante a insólita manifestação que se lhe fazia, e uns tons de rosa desmaiados, -um ligeiro rubor- coloriram-lhe o moreno-claro das faces. -«Aceitava os parabéns, como não? Muito obrigada, muitíssimo obrigada! Queriam debicá-la? Corujas! Fossem debicar a avó!»

Uma gargalhada irrompeu do grupo indiscreto, clamorosa e prolongada.

-Meninas! Fez a Lídia. Isso não são modos!

-Olha a baronesa!

-Como está grande!

-Sua incelência...

Maria a custo pôde abafar a raiva que lhe sacudiu os nervos. Sentou-se à varanda que dizia para uns terrenos devolutos do lado de Benfica, mordiscando a pele dos beiços, trombuda, cara fechada, a olhar o arvoredo com um ar afetado de absoluta indiferença.

Continuava o ruído. Havia um jogo contínuo de ditinhos picantes acompanhados de risadinhas sublinhadas -Uma queria um botão de flor de laranjeira, da grinalda, outra desejava apenas um copito de aluá, essa outra contentava-se com um beijo na «noiva«, aquela queria ser madrinha do «primeiro filho...»

Começaram a atirar-lhe bolinhas de papel.

Maria marcava compasso com o pé, furiosa, sem ver nada diante dos olhos.

-Já basta! disse a Lídia abrindo os braços como para afastar as outras. Tudo tem limite. Vocês estão se excedendo...

-Umas ignorantes! saltou Maria acordando. Umas idiotas que querem levar a gente ao ridículo por uma coisa à toa. Ainda hei de mostrar!...

-O diretor! o diretor! veio avisar a Jacintinha, uma feiosa, d'olho vazado, com sinais de bexiga no rosto, e que estava acabando de decorar alto a lição de geografia.

Foi como se tivesse dito para um bando de crianças traquinas: -Aí vem o tutu!

Houve uma debandada: umas embarafustaram pela sala de música, outras pela de ciências, outras, finalmente, deixaram-se ficar em pé, lendo a meia voz muito sérias. Fez-se um silêncio respeitoso, e daí a pouco surgiu no alto da escada a figura antipática do diretor, um sujeito baixo, espadaúdo, cara larga e cheia com uma pronunciada cavidade na calota do queixo, venta excessivamente grande e chata dilatando a um sestro especial, cabelo grisalho descendo pelas têmporas em costeletas compactas e brancas, olhos miúdos e vivos, testa inteligente...

Maria respirou com alívio.

Mas assim que o diretor deu as costas, entrando para o seu gabinete, recomeçou o zunzum de vozes finas, a princípio baixinho, depois num crescendo.

Maria estava no mesmo lugar, à varanda, quieta e cabisbaixa, olhando o compêndio aberto sobre o regaço.

O sol obrigou-a a fechar o livro. Ergueu-se e foi para a aula, carrancuda, extremamente bela com o seu vestidinho de casa, apertado na cinta delgada.

Ao meio-dia, pontualmente, chegou o professor de geografia, o Berredo, um homenzarrão, alto, grosso e trigueiro, barba espessa e rente, quase cobrindo o rosto, olhos pequenos e concupiscentes. Cumprimentou o diretor, muito afetuoso, limpando o suor da testa. E consultando o relógio:

-Meio-dia! São horas de dar o meu recado. Com licença...

Contavam-se na sala de aula pouco mais de umas dez alunas, quase todas de livro aberto sobre as carteiras, silenciosas agora, à espera do professor. Maria ocupava um dos bancos da primeira fila.

Ao entrar o Berredo, houve um arrastar de pés, todas simularam levantar-se, e o ilustre preceptor sentou-se, na forma do louvável costume, passeando o olhar na sala, vagarosamente, com bonomia paternal -tal um pastor de ovelhas a velar o casto rebanho.

A sala era bastante larga para comportar outras tantas discípulas, com janelas para a rua e para os terrenos devolutos, muito ventilada. Era ali que funcionavam as aulas de ciências físicas e naturais, em horas diferentes das de geografia. Não se via um só mapa, uma só carta geográfica nas paredes, onde punham sombras escuras, peles de animais selvagens colocadas por cima de vidraças que guardavam, intactos, aparelhos de química e física, redomas de vidro bojudas e reluzentes, velhas máquinas pneumáticas nunca servidas, pilhas elétricas de Bunsen, incompletas, sem amálgamas de zinco, os condutores pendentes num abandono glacial; coleções de minerais, numerados, em caixinhas, no fundo da sala, em prateleiras volantes... Nenhum indício, porém, de esfera terrestre.

O professor pediu um compêndio que folheou de relance. -Qual era a lição? A Oceania? Pois bem...

-Diga-me, senhora D. Maria do Carmo: A Oceania é ilha ou continente?

Maria fechou depressa o compêndio que estivera lendo, muito embaraçada, e, fitando o mestre, batendo com os dedos na carteira, com um risinho:

-Somente uma parte da Oceania pode ser considerada um continente.

-Perfeitissimamente bem!

E perguntou, radiante, como se chama essa parte da Oceania que pode ser considerada continente; explicou demorada e categoricamente a natureza das ilhas australianas, elogiando as belas paisagens claras da Nova Zelândia, a sua vegetação opulenta, as riquezas do seu solo, o seu clima, a sua fauna, com entusiasmo de touriste, animando-se pouco e pouco, dando pulinhos intermitentes na cadeira de braços que gemia ao peso de seu corpo.

Maria, muito séria, sem mover-se, ouvia com atenção, o olhar fixo nos olhos do Berredo, bebendo-lhe as palavras, admirando-o, adorando-o quase, como se visse nele um doutor em ciências, um sábio consumado, um grande espírito. Decididamente era um talento, o Berredo! Gostava imenso de o ouvir falar, achava-o eloqüente, claro, explícito, capaz de prender um auditório ilustrado. Era a sua aula predileta, a de geografia, e o Berredo tornava-a mais interessante ainda. Os outros, o professor de francês e o de ciências, nem por isso, davam sua lição, como papagaios, e -adeus, até amanhã. O Berredo, não senhores, tinha um excelente método de ensino, sabia atrair a atenção das alunas com descrições pitorescas e pilhérias encaixadas a jeito no fio do discurso.

Muitas ilhas da Oceania, dizia ele, coçando a barba, são habitadas por selvagens antropófagos, como os da América antes de sua descoberta...

-Imaginem as senhoras que horror! Homens devorando-se uns aos outros, comendo-se com a mesma satisfação, com a mesma voracidade, com o mesmo canibalismo que nós outros, civilizados, trincamos um beef-steak ao almoço...

Houve uma casquinada de risos à surdina.

-Agora, se o Zuza te come, disse baixinho, por trás de Maria do Carmo, uma moçoila de pince-nez. Toma cuidado, menina, o bicho tem cara de antropófago...

-E note-se, continuou o Berredo, as próprias mulheres não escapam à fúria das tribos inimigas: devoram-se também...

-Virgem! fez Maria com espanto...

-As senhoras com certeza preferem viver no Ceará a habitar a Papuasia...

-Credo! fizeram muitas a uma voz.

-E no Brasil há desses selvagens? perguntou estouvadamente uma loura que se escondia na última fila, estirando o pescoço.

O pedagogo sorriu, passando a mão cabeluda na barba; e muito delicado, num tom benévolo:

-Atualmente existem poucos... Restos de tribos extintas...

E continuou a falar com a loquacidade de um sacerdote a pregar moral, explicando a vida e costumes dos selvagens da Nova Zelândia, citando Júlio Verne, cujas obras recomendava às normalistas como um «precioso tesouro de conhecimentos úteis e agradáveis.» -Lessem J. Verne nas horas de ócio; era sempre melhor do que perder tempo com leituras sem proveito, muitas vezes impróprias de uma moça de família...

-Vá esperando... murmurou a Lídia.

-Eu estou certo, dizia o Berredo, convicto, de que as senhoras não lêem livros obscenos, mas refiro-me a estes romances sentimentais que as moças geralmente gostam de ler, umas historiazinhas fúteis de amores galantes, que não significam absolutamente coisa alguma e só servem de transtornar o espírito às incautas... Aposto em como quase todas as senhoras conhecem a Dama das camélias, a Lucíola...

Quase todas conheciam.

-... Entretanto, rigorosamente, são péssimos exemplos...

Tomou um gole de água, e continuando:

-Nada! As moças devem ler somente o grande Júlio Verne, o propagandista das ciências. Comprem a Viagem ao centro da terra, Os filhos do capitão Grant e tantos outros romances úteis, e encontrarão neles alta soma de ensinamentos valiosos, de conhecimentos práticos...

O contínuo veio anunciar que estava terminada a hora.

Dias depois o Berredo lecionava, como de costume, a seu belprazer, derreado na larga cadeira de espaldar, quando o contínuo, fazendo uma mesura, anunciou «S. Exa. o Sr. Presidente da Província», e imediatamente assomou à porta da sala o ilustre personagem, mostrando a esplêndida dentadura num sorriso fidalgo, com o peito da camisa deslumbrante de alvura, colarinhos muito altos e tesos, gravata de seda cor de creme onde reluzia uma ferradura de ouro polido, bigodes torcidos imperiosamente: um belíssimo tipo de sulista aristocrata. Estava um pouco queimado da viagem a Baturité.

O Berredo desceu logo do estrado a cumprimentá-lo com o seu característico aprumo de homem que viajara à Europa. Todas as alunas ergueram-se.

-Como passa V. Exa., bem? Estava agora mesmo...

O presidente pediu que não se incomodasse, que continuasse. Acompanhavam-no, como sempre, o José Pereira e o Zuza.

Maria, ao dar com os olhos no estudante, ficou branca, um calafrio gelou-lhe a espinha, baixou a cabeça, fria, fria, como se estivesse diante dum juiz inflexível.

S. Exa. tomou assento entre o professor e o diretor. José Pereira e o Zuza sentaram-se nas extremidades da mesa.

As alunas tinham-se formalizado, muito respeitosas, imóveis quase, de livro aberto, com medo à chamada. Houve um silêncio.

-Pode continuar, disse o presidente para o Berredo. E este, inalterável:

-V. Exa. não deseja argumentar?...

-Não, não. Obrigado...

-Neste caso...

E para as discípulas:

-Diga-me a Sra. D. Sofia de Oliveira, quantos são os pólos da terra? Veja como responde, é uma pequena recordação. Não se acanhe. Quantos são os pólos da Terra?

O Berredo lembrou-se de fazer uma ligeira recapitulação para dar idéia do adiantamento de suas alunas.

Sofia de Oliveira era uma pequerrucha de olhos acesos, morena, verdadeiro tipo de cearense: queixo fino, em ângulo agudo, fronte estreita, olhos negros e inteligentes.

-Quantos são os pólos da Terra? fez ela olhando para o teto como procurando a resposta, embatucada. -Os pólos?... Os pólos são quatro.

Risos.

-Quatro? Pelo amor de Deus! Tenha a bondade de nomeá-los.

-Norte, sul, leste e oeste.

Nova hilaridade.

-Está acanhada, desculpou o Berredo voltando-se para o presidente. Até é uma das minhas melhores alunas. -Não confunda, tornou para a normalista. Olhe que são pólos e não pontos cardeais...

Outro disparate:

-Há uma infinidade de pólos...

-Ora!... Adiante, D. Maria do Carmo.

Maria estremeceu, embatucando também, sem dizer palavra, sufocada. A presença do Zuza anestesiava-a, incomodava-lhe atrozmente. Sob a pressão do olhar magnético do estudante, que a fixava, sua fisionomia transformou-se.

-Então, D. Maria?... Também está acanhada?

-Passe adiante, pediu o Zuza compadecido.

Duas lágrimas rorejaram nas faces da normalista caindo com um sonzinho seco sobre a carteira. Estava numa de suas crises nervosas. Outras duas lágrimas acompanharam as primeiras, vieram outras, outras, e Maria, cobrindo o rosto com o seu lencinho de rendas, desatou a chorar escandalosamente.

-Sente-se incomodada? tornou o Berredo. D. Maria! Olhe... Tenha a bondade de levantar a cabeça...

-Está nervosa, disse o presidente com o seu belo ar de cético elegante.

-Pudores de donzela, murmurou o diretor. Isto acontece...

O Berredo passou a mão no bigode, desapontado, e encontrando o olhar faiscante de Lídia:

-A senhora... Quantos são os pólos da Terra?

-Dois: o pólo norte e o pólo sul.

-Perfeitissimamente! confirmou o professor batendo com o pé no estrado e esfregando as mãos satisfeito. -Dois, minhas senhoras, disse mostrando dois dedos abertos, em ângulos; dois! O pólo norte, que é o extremo norte da linha imaginária que passa pelo centro da Terra, e o pólo sul, isto é, a outra extremidade diametralmente oposta; eis aqui está! Está ouvindo, D. Sofia? Está ouvindo D. Maria do Carmo? São dois os pólos da Terra!

-Estou satisfeito, disse o presidente erguendo-se.

Arrastar de cadeiras e pés, zunzum de vozes, e S. Exa. grave, correto e calmo, retirou-se com o seu estado-maior.

O Zuza ferrou em Maria do Carmo um olhar tão demorado e comovido que chegava a meter pena. Os seus óculos de ouro, muito límpidos e translúcidos, tinham um brilho de cristal puro. Trazia na botoeira do redingote claro (o Zuza gostava de roupas claras) uma flor microscópica.

Alguém murmurou ao vê-lo passar:

-Sempre correto!

Maria deixou-se ficar sucumbida, de cabeça baixa, mordiscando a ponta do lenço, com uma lágrima retardada a tremeluzir-lhe na asa do nariz, desesperada, revoltada contra si mesma que não soubera responder uma coisa tão simples... Que vergonha, que humilhação! pensava.

Não saber quantos pólos tem a Terra! E quem havia de responder? A Lídia, logo a Lídia! O Zuza agora ficaria fazendo um juízo muito triste a seu respeito e não a procuraria mais... Ah! era muito tola, decididamente! E jurava consigo «não ter mais vergonha de homem algum».

Pediu licença ao professor e retirou-se antes de findar-se a aula para evitar os gracejos das colegas, voltando à casa sem a Lídia, sozinha, acaçapada, inconsolável.

Uma vez no seu discreto quartinho, bateu a porta com força, despiu-se às carreiras, desabotoando os colchetes com espalhafato, aos empuxões, impaciente, até ficar em camisa, e atirou-se à rede soltando um grande suspiro. Esteve muito tempo a pensar no acadêmico, na «figura triste» que fizera na aula, em mil outras coisas por associação de idéias, com o olhar, sem ver, numa velha oleografia do «Cristo abrindo e mostrando o coração à humanidade», que estava na parede.

Era uma desgraçada, suspirava tomada de desânimo. Todas tinham seus namorados, viviam felizes, com o futuro mais ou menos garantido, amando, gozando; todas tinham seu dia de felicidade, e ela?

Era como uma gata borralheira, sem pai nem mãe, obrigada a suportar os desaforos de um padrinho muito grosseiro que até a proibia de casar. Nem amigas tinha. A Lídia, essa parecia-lhe uma desleal, fingida, hipócrita; não viram como ela tinha dado o quinau na aula? Uma ingrata... Sim, está visto que havia de ter um fim muito triste...

O verdadeiro era fugir com o primeiro sujeito que lhe aparecesse, fugir para fora do Ceará, ir-se de uma vez... Estava cansada de viver naquela casa...

E revoltava-se contra os padrinhos, contra a sociedade, contra Deus, contra tudo, num desespero febril, ansiando por uma vida feliz, independente, livre de cuidados ao lado de um homem que a soubesse compreender, que lhe fizesse todas as vontades.

Por seu gosto não iria mais à Escola Normal para coisíssima alguma. Estava muito bem educada, não precisava de aprender em colégio, já não era criança.

Acudiram-lhe reflexões absurdas, idéias extravagantes, pensamentos de colegial estouvada, inquieta na rede, virando-se e revirandose, ora fitando com olhar piedoso a imagem do Cristo, ora mergulhando a vista numa telha de vidro, espécie de clarabóia, que havia no telhado, e através da qual brilhava um pedaço de céu sem nuvens.

Começou a sentir uma ponta de enxaqueca e caiu numa madorna, deitada de costas, os braços cruzados sobre a cabeça, traindo a penugem rala das axilas, respirando levemente, como uma criança. A camisa fina, quase transparente, arregaçada por descuido até à parte superior da coxa esquerda, mostrava toda a perna roliça, morena, cheia, sem depressões, arqueando-se no joelho...

O primeiro cuidado do Zuza ao regressar da excursão presidencial a Baturité foi ajustar contas com o redator da Matraca, ameaçando urbi et orbi fazê-lo engolir o número do pasquim que trazia a versalhada torpe sobre o namoro do Trilho de Ferro. No Ceará não havia outro homem que usasse flor na lapela, dizia; o estudante, filho de titular, que andava a cavalo mais o presidente da província, era ele, Zuza. Estava claro, claríssimo, que a diatribe, o insulto, a infâmia referia-se à sua pessoa, e o único meio simples, fácil e positivo de se ensinar um patife é dar-lhe de rebenque na cara. Conclusão: o redator da Matraca não só ia engolir o papelucho, mas também apanhar de rebenque no focinho, custasse o que custasse!

-Grandissíssimo canalha!

-Mas no Ceará não se faz reparo nessas coisas, meu Zuza. O insulto nesta terra é um divertimento como qualquer outro, como o entrudo, por exemplo. Cada cidadão aqui é uma verdadeira Matraca. Não te importes, não te dês cuidado...

Isto dizia-lhe o José Pereira na redação da Província; mas o Zuza recalcitrava:

-Eu?! Hei de tomar um desforço, custe o que custar. Se é costume nesta terra os indivíduos se insultarem mutuamente, com a mesma facilidade com que tomam uma xícara de café, pílulas! é preciso dar um ensino, é preciso que alguém se levante!

-É bobagem, filho. Toda a gente toma a defesa do réu e aí fica a vítima do insulto com cara de besta. É o que é. Lá diz o rifão: quem não quer ser lobo...

Esse José Pereira fisicamente dir-se-ia irmão gêmeo do Berredo da Escola Normal. Alto, cheio de corpo, trigueiro, a mesma barba espessa e negra cobrindo quase todo o corpo, os mesmíssimos olhinhos vivos e concupiscentes. Dele é que se dizia que fora surpreendido em flagrante adultério com a mulher do juiz municipal no Passeio Público, um escândalo que por muitos dias serviu de pasto a boticários e bodegueiros.

Começara a vida pública no Correio, como carteiro, e agora aí estava feito redator da Província em cujo caráter tornou-se geralmente admirado por seus folhetins alambicados, que o público digeria à guisa de pastilhas de Detan. Aos sábados publicava no rodapé do jornal fantasias literárias, contos femininos em estilo 1830, histórias dissolutas que eram lidas com avidez, mesmo com certa gula pelo mulherio elegante e pela burguesia sentimental e piegas.

Cedo José Pereira começou a inchar como a rã de La Fontaine e a julgar-se, com efeito, um grande escritor, «um talento», capaz, olá! muitíssimo capaz de fazer as delícias de qualquer sociedade inteligente e ilustrada. Daí certo ar autoritário, certa prosápia que ele afetava em toda a parte, dizendo-se «contemporâneo de Rocha Lima», «amigo de Capistrano de Abreu»; certo aprumo pedante que não condizia com a sua velha sobrecasaca de diagonal cujo estado incomodava deveras a alta sociedade cearense.

Que diabo! um sujeito inteligente, com ares de fidalgo avarento, redator de um jornal, sempre trazendo a mesmíssima sobrecasaca! E o chapéu? Sempre o mesmo também, um triste chapéu de feltro com manchas oleosas! Oh! a respeitável sociedade cearense exigia primeiro que tudo decência no trajar, e aquilo assim, aquela sobrecasaca sórdida escandalizava-a como se escandaliza uma donzela diante duma estátua nua. Pois o Sr. José Pereira não podia, sem grandes sacrifícios, comprar um fato novo? Então, que diabo! não aparecesse entre pessoas de certa ordem, ficasse em casa, fosse mais modesto. Sim, porque todo o homem de talento, na opinião da sociedade cearense, deve acompanhar a moda em todas as suas nuances, em todos os seus requintes, deve ter sempre uma casaca à última moda, uma calça à última moda, e um chapéu à última moda, conforme os figurinos, para os «momentos solenes», deve ser enfim um sujeito «correto» na acepção mais lata da palavra.

O Sr. Pereira sabia dar um laço na gravata, lá isto sabia, e também não ignorava como se calça uma luva; mas (e isto é que preocupava a sociedade cearense) o Sr. José Pereira, quer fosse a um baile de primeira ordem, quer fosse a uma festa inaugural, quer fosse ao teatro, levava sempre invariavelmente a mesma sobrecasaca surrada e o mesmo chapéu ruço! Um homem de talento sem gosto é o que não se admite. A sociedade cearense, porém, ignorava que o Sr. José Pereira era casado, tinha filhos e ganhava apenas o essencial para o seu sustento e o da família, cento e cinqüenta mil-réis por mês, uma ninharia.

Os seus amigos, às vezes, gracejando, propunham-lhe abrir uma subscrição para a compra de um paletó novo e de um chapéu idem. José Pereira, porém, tinha espírito e respondia-lhes ao pé da letra, mudando logo o rumo da conversa.

Nesse tempo o redator da Província ainda era calouro em política. Dava seu voto e nada mais. A literatura é que o absorvia. Um livro novo era para ele a melhor novidade; caísse embora o ministério, rebentasse uma revolução, ele conservava-se a ler, virando páginas, devorando a obra como um alucinado, defronte do abajur de papelão no seu modesto gabinete de escritor pobre. Conhecia Dumas pai de cor e salteado; fora o seu primeiro «mestre». Depois entregou-se a ler os Miseráveis, declarando-se hugólatra incondicional em uma apreciação que fizera do grande poeta. O artigo concluía deste modo:

«Victor Hugo é o Cristo da legenda transfigurado em profeta moderno. Ele é todo um século. Tudo nele é grande como a natureza. Os Miseráveis são a apoteose de todas as misérias humanas. Victor Hugo, o Mestre, é o Sol da Humanidade. Amemo-lo como a um Deus!»

Isso produziu efeito entre os literatos contemporâneos que não dispensaram elogios ao «valente folhetinista» da Província.

A fama de José Pereira encheu depressa toda a cidade. Dizia-se -aí vai o José Pereira! como quem diz- aí vai um gênio. E ele saudava a todos convictamente, tocando de leve a aba mole do chapéu preto de massa.

Em fins de 1886 José Pereira conservava-se ainda na Província, como um dos principais redatores. A sua fama, se não decrescera, era a mesma com uma pequena e insignificante diferença -é que ele já não era simplesmente um «talento fecundo», mas também um fecundíssimo canalha, um requintado «sedutor de mulheres casadas», o que afinal de contas não o prejudicava assaz no conceito do mulherio. Havia as viúvas, casadas e solteiras que o defendiam tenazmente.

Não, diziam elas, o diabo não é tão feio como o pintam. José Pereira podia ser um rapaz alegre, divertidíssimo, jovial e espirituoso, amigo das mulheres -vá, mas, em suma, um excelente rapaz e um belo caráter. Porque o fato de um homem apaixonar-se facilmente por muitas mulheres ao mesmo tempo ou em épocas diferentes não quer significar que esse homem seja um sedutor e um patife. Demais, José Pereira era artista, e o artista, escultor ou poeta, pintor ou músico, não pode compreender a vida sem o amor...

-Mas é um homem casado, profligavam outras.

-Bem; mas o casamento...

E demonstravam que o casamento, longe de ser um atentado contra o livre-arbítrio das partes, é, ao contrário, uma instituição que concede, tanto ao homem como à mulher, plena liberdade de amar ao próximo como a si mesmo.

Entre as que adotavam a prática destas teorias tão abstrusas quanto originais, distinguiam-se a mulher de João da Mata e a do Dr. Mendes.

-Então, decididamente queres quebrar a cara ao redator da Matraca? dizia ele ao Zuza.

-Mas que dúvida!

Quem quer que fosse o verrinista havia de ficar sabendo de quantos paus se faz uma jangada.

-Mas olha que é uma imprudência pueril, homem. Quando o insulto vem de baixo, a gente deve responder com o desprezo. O desprezo é a arma invencível dos espíritos superiores. Eu é como tenho resolvido questões desta natureza.

-Qual desprezo! Não se mata com desprezo um réptil venenoso; pisa-se-o, reduz-se a papas. Isto é o que fazem os espíritos superiores. Sabes quem é o biltre?

-Homem, francamente, confesso-te que não o conheço. Dizem ser um tal Guedes, vulgo Pombinha, um sujeito reles, troca-tintas, um miserável que nem vale a pena de um escândalo...

-Não vale a pena? Quebro-lhe a cara, ora se quebro... Onde fica a tipografia do jornaleco?

-Na rua de São Bernardo, creio eu, uma espécie de toca imunda com ares de latrina.

-Guedes (Pombinha)... rua de São Bernardo. Muito bem! E o Zuza tomou nota do seu canhenho, guardando-o resolutamente.

-Diabos me levem se eu não fizer uma estralada hoje.

Mudando de tom:

-Quero que publiques hoje o meu soneto A Volta; deve sair hoje infalivelmente.

-É dedicado à mesma?

-Certamente. Sabes que eu sempre fui muito correto nos meus amores. A pequena está pelo beicinho. Há de cair como uma mosca, eu te garanto.

-Um divertimento, hein?

-Não sou muito capaz de casar. Aquele arzinho ingênuo, aqueles olhos de madona traduzindo uma alma cheia de sentimentos bons... -tudo nela enfim, agrada-me.

-Mas é uma pobretona, filho. Aquilo é para a gente namorar, encher de beijos e -pernas para que te quero! És muito calouro ainda nisso de amores. Aproveita a tua mocidade, deixa-te de pieguismo, menino. A vida é uma comédia, como lá disse o outro...

Então o Zuza, acendendo um cigarro, disse que estava aborrecido de mulheres que se entregavam facilmente. Em Pernambuco namorara a filha de um barão, e, se não fosse esperto, àquelas horas estaria talvez às voltas com o minotauro de que fala Balzac. Era uma rapariga esplêndida, mas tão depravada, tão impoluta que acabou fugindo com um jóquei do Prado pernambucano, um negro!

Quanto às mulheres de vida alegre, detestava-as; tinha gasto muito dinheiro, precisava casar, mas casar com uma menina ingênua e pobre, porque é nas classes pobres que se encontra mais vergonha e menos bandalheira. Ora, Maria do Carmo parecia-lhe uma criatura simples, sem essa tendência fatal das mulheres modernas para o adultério, uma menina que até chorava na aula simplesmente por não ter respondido a uma pergunta do professor! Uma rapariga assim era um caso esporádico, uma verdadeira exceção no meio de uma sociedade roída por quanto vício há no mundo. Ia concluir o curso, e, quando voltasse ao Ceará, pensaria seriamente no caso. A Maria do Carmo estava mesmo a calhar: pobrezinha, mas inocente...

-É o que tu pensas, retorquiu o outro. Hoje não há que fiar em moças, pobres ou ricas. Todas elas sabem mais do que nós outros. Lêem Zola, estudam anatomia humana e tomam cerveja nos cafés. Então as tais normalistas, benza-as Deus, são verdadeiras doutoras de borla e capelo em negócio de namoros. Sei de uma que foi encontrada pelo professor de história natural a debuchar um grandíssimo falo com todos os seus petrechos...

-O quê, homem?

-É o que estou a dizer-te, por sinal acabou amigando-se com um bodegueiro de Arronches e lá vive muito bem com o sujeito. Creio até que já tem filhos.

-Ó senhor, então, ao que me vai parecendo, está muito adiantada a nossa pequena sociedade! exclamou o Zuza muito admirado, cavalgando o pince-nez. Pois olha, eu supunha isto aqui uma santidade.

-É que há muito tempo não vinhas ao Ceará. Por cá também se dão escândalos, como em Pernambuco, e escândalos de pasmar a um sacerdote da moral, como o filho de meu pai.

O escritório da Província estava quase deserto. Apenas o José Pereira e o estudante conversavam amigavelmente, sentados defronte um do outro à mesa dos redatores, fumando enquanto lá dentro, nos fundos onde ficavam as oficinas, os tipógrafos compunham atarefados a matéria do dia.

Seriam duas horas da tarde. O calor abafava.

Um rapazinho raquítico, em mangas de camisa, com manchas de tinta no rosto e um ar amolentado, veio trazer as provas do expediente do governo.

-Falta matéria? perguntou José Pereira, encarando-o. «Não sabia, não senhor, ia ver.» E saiu voltando imediatamente: que o jornal estava completo.

-Bem, disse o Zuza levantando-se, vou à casa do Sr. Guedes. Preciso acabar com isso.

-Mas olha, recomendou o redator, não vás fazer asneiras, hein?

-Não, não. A coisa é simples. Addio.

E retirou-se fazendo piruetas com a bengala no ar.

-É um criançola esse Zuza, murmurou José Pereira molhando a pena.

Imediatamente entrou o Castrinho, outro colaborador da Província, também poeta e amigo particular de José Pereira, autor das Flores Agrestes publicadas há dias e que tinham sido muito bem recebidas pela crítica indígena. Vinha trazer a resposta ao crítico do Cearense que o chamara -plagiador de obras alheias.

-Então temos polêmica? perguntou José Pereira sem levantar a cabeça, revendo as provas.

-Por que não! Hei-de provar à evidência que não preciso plagiar ninguém. Aqui está o primeiro artigo. É de arromba!

O Castrinho sacou do bolso do paletó de alpaca um calhamaço de tiras de papel gordurosas e sacudindo-as, como quem toma o peso a alguma coisa:

-Aqui está: hei-de rebater uma a uma, sem dó nem piedade, todas as asserções do meu invejoso contendor.

-Já te falo, disse o outro continuando o trabalho. Tem paciência um pouquinho. O diabo das provas...

-Sim, continua; não te quero interromper...

Plagiador ele, que tinha talento para dar e emprestar a toda a caterva de versejadores cearenses! Havia de provar o contrário, porque tanto sabia burilar um soneto como manejar a prosa.

Até estimara a provocação do Cearense, porque desse modo o público ficaria sabendo quem eram os imitadores, os parasitas da poesia nacional. Aí estava o juízo da imprensa fluminense, aí estava o juízo de toda a imprensa do Brasil, do Amazonas ao Prata, sobre as Flores Agrestes. Um jornal do Sul -O Cometa- comparara-o até a Olavo Bilac e a Raimundo Corrêa!

-Inveja, murmurou José Pereira. O verdadeiro talento é sempre vítima do despeito das mediocridades.

E terminando a revisão:

-Vejamos o que escreveste.

-Somente isto, disse o Castrinho entregando a papelada. Hei-de convencer ao zoilo do Cearense, por a mais b, que ele é o plagiador, o invejoso, o ignorante, a besta, e eu o poeta consciencioso e moderno que não se limita a cantar Elviras e a copiar Lamartine.

José Pereira derreou-se na cadeira de espaldar, um velho traste que fora da Perseverança e Porvir, «atestado eloqüente de uma luta de heróis» como dizia o Zuza, e, depois de acender a ponta do cigarro, que estava à beira da mesa, devorou com olhar protetor a série de argumentos mais ou menos esmagadores com que o outro pretendia aniquilar o articulista da folha adversa. Tinha a epígrafe -As Flores Agrestes e a Inveja Furiosa, e concluía nestes termos: «Voltarei à questão para esmagar com a lógica irrefutável da verdade o ousado e néscio criticista que me acoimou de plagiador. O público verá qual de nós tem razão; eu que tive o aplauso de quase totalidade da imprensa brasileira, ou o zoilo do Cearense, que pretendeu obscurecer o meu merecimento.»

-Magnífico! exclamou José Pereira levantando-se. Dá cá um abraço, homem.

E estreitando o Castrinho, contra o peito:

-Tens talento como um bruto, menino. Olha que quem escreveu isto vale o que escreveu, caramba! Continua, Castrinho, continua, que ainda hás de vir a ser um grande poeta. Desta massa é que se fazem os Byron e os Victor Hugo... E logo, paternalmente: -Queres jantar comigo?

-Obrigado. Hás-de permitir que te agradeça, hein? Adeusinho. Não esqueça o artigo.

-Absolutamente, não. Amanhã impreterivelmente, vê-lo-ás na segunda página, todo, inteirinho. Adeus.

Vendedores de jornais esperavam a Província, à porta da redação, inquietos, turbulentos, a questionar por dá cá aquela palha, e já se ouvia o barulho do prelo lá dentro, imprimindo a folha governista. Empregados públicos voltavam das repartições taciturnos, em sobrecasacas sórdidas, mordendo cigarros Lopes Sá, amarelos, linfáticos, o estômago a dar horas. Pouco movimento na rua do Major Facundo: um ou outro transeunte macambúzio, de chapéu de sol, caixeiros que atravessavam a rua ligeiros, em mangas de camisa, e alguns pobres-diabos arrastando-se a pedir esmola.

A cidade permanecia na sua costumada quietação provinciana, muito cheia de claridade, bocejando preguiçosamente de braços cruzados, à espera do Progresso. Suava-se por todos os poros e respirava-se a custo, debaixo de uma atmosfera equatorial, acabrunhadora. Estalava à distância, num ritmo cadenciado e monótono, o canto estridente e metálico duma araponga, cujo eco repercutia em todo o âmbito da pequena capital cearense.

Ao dobrar a rua da Assembléia, o Zuza parou, à espera que o bonde passasse, e esteve considerando um instante. -De que lhe servia ir onde estava o Guedes e quebrar-lhe as costelas a bengaladas? O rapaz podia repelir a agressão e aí estava um conflito sério, em que um dos dois necessariamente havia de sair ferido. Afinal de contas era provocar um escândalo inútil, vinha a polícia e a vergonha era dele, Zuza, unicamente dele, um rapaz de posição, amigo do presidente... Não valia a pena abrir luta com um pasquineiro. O melhor era, como aconselhara o José Pereira, dar ao desprezo o cão. Se ele, porém, o abocanhasse outra vez, então, decididamente, quebrava-lhe a cara. Apelava para a reincidência do foliculário. Província estúpida! Estava doido por se ver livre de semelhante canalhismo. E aquilo é que se chamava terra da luz!

Seguiu para casa preocupado com essas idéias com um nojo do Ceará.

O coronel divertia-se tranqüilamente com a passarada do viveiro, metido no inseparável gorro de veludo bordado a ouro e retrós. Era amigo de pássaros e tinha-os magníficos em gaiolas de arame penduradas na sala de jantar, além do viveiro, também de arame, em forma de quiosque chinês, com uma bola de vidro no alto, colocado no quintal, defronte da casinha de banhos.

Uma vidinha estúpida aquela! pensava o estudante estendendo-se na rede. Morria-se de tédio e calor. Vieram-lhe saudades do Recife. Oh! o Recife, o Prado aos domingos, os passeios, belos piqueniques a Caxangá... Lembrou-se de sua última conquista amorosa -a Rosita, uma espanhola com quem estivera seguramente seis meses. Um peixão! Morava na Madalena. Vira-a uma vez no teatrinho da Nova Hamburgo, sozinha num camarote, muito bem vestida, com um rico leque de plumas, anéis de brilhantes, esplêndida: era argentina.

Que de cerveja e ceatas e passeios de carro e pagodeiras nos hotéis! Relembrava a primeira noite que passara com a Rosita, por sinal tinha tomado muita champanha, tinha feito um figurão. A rapariga compreendeu que tratava com gente fina e entregou-se. Uma noite deliciosa! Começou por uma ceia em casa dela na Madalena, um chalezinho de porta e janela com varanda, forrado a papel sangue de boi e jardinzinho na frente. A sala de visitas era um mimo com a sua mobília mignon de assento estufado, piano, quadros do paganismo, bibelô... E a alcova? Um ninho, um perfeito ninho de amores. Zuzinha -era como ela o tratava com toda ternura, cobrindo-o de beijos, suspendendo-o nos braços como se levantasse uma criança, sentando-o no colo -ela de peignoir de fustão com fitinhas azuis, uns olhos matadores, úmidos de sensualidade, e ele à frescata, em mangas de camisa, sem colarinho- um deboche!

E uma saudade imensa invadia-o. Saudade da Rosita, saudade da república -uma troça alegre de rapazes endinheirados e limpos- saudade dos banhos de mar em Olinda...

Depois veio-lhe à mente a normalista, a cearense do Trilho de Ferro. Muito bonitinha, é verdade, mas uma tola que não sabia tratar com rapazes educados. Lá por ser pobre não; mas parecia-lhe tão atrasadinha, assim como apalermada, indiferente a tudo. Além disso um nome de matuta -Maria do Carmo. Ainda se fosse Maria Luíza, mas Maria do Carmo!...

Começou então a fazer considerações sobre Maria. Achava-a até parecida com a Francina, uma rapariga de Pernambuco, também morena e de olhos cor de azeitona, baixinha e sem-vergonha, «passada» por todos os estudantes de academia. Mas mesmo muito parecida, agora é que se lembrava: era a Francina. Um horror! No Ceará não se encontravam mulheres públicas de certa ordem. Tudo era uma récua de meretrizes imundas, carregadas de sífilis até aos olhos. Os rapazes viviam se queixando de moléstias secretas.

Levantou-se em ceroulas, para acender um cigarro, espreguiçandose.

O quarto era pequeno, mas arranjado com certo decoro e bom gosto. O Zuza herdara essa qualidade característica dos Souza Nunes -o amor à ordem. Tudo dele era arrumado e limpo. Adorava a boemia, mas a boemia que não cospe no assoalho e que toma banho ao menos uma vez por dia. Nisto de asseio, como em muitas outras coisas, era correto e o pai o louvava por essa qualidade especial de se portar com a máxima inteireza, no asseio do corpo, como no das ações. Toda a mobília do pequeno compartimento consistia numa estante envidraçada, cadeiras, um sofá e uma mesinha redonda, colocada no centro e coberta com um pano azul, de lã. Comunicava com outro quarto menor onde estava a cama de ferro e uma rede. Ma cabine à coucher, dizia o Zuza mostrando aos amigos esse interior confortável de boêmio rico. A claridade entrava pela varanda e ia morrer em penumbra lá dentro no segundo quarto. No papel claro das paredes destacavam litografias encaixilhadas de poetas célebres e o retrato de Gambeta na postura habitual em que o grande orador falava ao povo. Em política era o seu ídolo, dizia o estudante, e no auge do entusiasmo, colocava-o acima de Mirabeau. Em cima da mesa números avulsos da Revista Jurídica confundindo-se com jornais ilustrados, e um porta-retratos com as fotografias do coronel e da esposa, olhando para os lados, em sentidos opostos. Tal o «gabinete» do Zuza, o seu remanso de estudante cuidadoso.

Tinha aberto ao acaso o seu romance querido, A Casa de Pensão. Um livro importante, gabava; um livro que revelava o grau de adiantamento da literatura brasileira, não deixando a desejar os melhores dos escritores naturalistas portugueses. Este exagero do Zuza deve se levar em conta do ódio injusto que ele votava a tudo quanto cheirasse a lusitanismo.

O estudante, porém, nunca passara a vista sequer num romance de Eça ou numa crítica de Ramalho. -«Não queria, não podia tragar coisas que lhe provocassem vômitos.» Preferia um churrasco à baiana ao «tal» Sr. Camilo Castelo Branco, um sujeito inimigo do Brasil, que não perdia ocasião de nos ridicularizar. De Portugal, Camões exclusivamente, isso mesmo porque o grande épico era uma «glória universal». Certas palavras tinham um encanto particular a seus ouvidos. Gostava de frases cheias e retumbantes. Os Lusíadas? eram uma «epopéia imortal», dizia ele. Pronunciava a palavra epopéia com a boca cheia, a acentuando muito o é. Uma obra de arte reconhecidamente boa era a seu ver uma epopéia, fosse qual fosse o gênero -O Cristo e a Adúltera, de Bernardelli? Uma epopéia nacional!!!

Começou a ler A Casa de Pensão em voz alta, em tom de recitativo, pausadamente, repetindo frases inteiras, aplaudindo o romancista com entusiasmo, exclamando de vez em vez: -Bonito, seu Zuza! como se fosse ele próprio o autor do livro. Depois sacudindo o romance sobre uma cadeira, levantou-se espreguiçando-se com estalinhos nas articulações, escancarando a boca num bocejo largo. Que horas seriam? O despertador de níquel marcava quatro e meia. Ó diabo! tinha-se descuidado. Estava convidado para jantar com o presidente às cinco pontualmente. Começou a vestir-se assobiando trechos de música seródia. De repente: «-E a normalista que não lhe tinha respondido a carta!» Muito atrasadinhas as cearenses, pensava. Que mais queria ela? E defronte do espelho, pondo a gravata: -«Era um rapaz chique, dava muita honra à Sra. D. Maria do Carmo escrevendolhe uma carta amorosa, pois não? Era o que faltava, a Sra. D. Maria do Carmo não lhe dar atenção! Mas havia de cair por força. Era uma questão de tempo.»

Cinco horas. O Zuza enfiou a sobrecasaca às pressas, perfumouse, endireitou a gravata e -até logo- foi-se como um raio.

À proporção que se aproximava o dia do casamento da Lídia com o guarda-livros, as visitas deste à casa da viúva Campelo iam-se tornando de mais a mais freqüentes. A Campelinho não cabia em si de contentamento; pudera! ia enfim ver-se livre do perigo de ficar para tia. De resto o Loureiro era um ótimo rapaz, excelente empregado, natural de bom gênio, tolerante em extremo e senhor de seu nariz. Era como se fosse de casa, como se já fizesse parte da família, surdo como uma pedra aos boatos mais ou menos mentirosos que corriam sobre a vida privada de D. Amanda. Nunca se dera ao trabalho de averiguar se efetivamente o procedimento de sua futura sogra merecia censuras da gente honesta, mesmo porque o seu emprego não lhe deixava tempo para isso.

Não senhor, dizia ele, se porventura alguém procurava abrir-lhe os olhos; a viúva era um modelo de mãe de família, coitada, vivendo modestamente do minguado montepio de seu finado marido, afora um negociozinho de rendas, que tinha no Pará, e que lhe deixava para mais de cinqüenta por cento. O mais eram palavrórios, e ele no caráter de futuro genro da viúva, não podia consentir que ninguém a difamasse impunemente.

João da Mata lhe dissera uma vez, ao ouvido, batendo-lhe amigavelmente no ombro, que não se iludisse, que a Campelo recebia fora de hora o Batista da Feira; que ele, João da Mata, vira muitas vezes, com os próprios olhos, o negociante entrar cosido à parede alta noite, como um gato.

Histórias. O amanuense fazia mal andar propalando suspeitas que podiam prejudicar, muito, os créditos da pobre senhora. Absolutamente não acreditava em tais boatos. Conhecia bem o gênio e a vida de D. Amanda para desprezar semelhantes falsidades. Em suma, era da escola de S. Tomé: ver para crer.

Até então só tinha motivos para louvar o procedimento da sua futura sogra. E concluía: «-Por amor de Deus não falassem mais em tais coisas... Tinha olhos para ver.»

Todas as noites, invariavelmente, lá ia ele dar o seu dedo de palestra com a noiva, e, depois do víspora em casa do amanuense, ficavam os dois horas e horas na calçada, num aconchego muito íntimo, ela apoiada nos seus ombros, fazendo-se meiga e apaixonada, ele babando-se de satisfação ao contato palpitante das carnes rijas e abundantes de sua futura mulher. D. Amanda entrava propositalmente para os deixar à vontade naquele arrebatamento de noivos sadios e vigorosos.

Uma noite o guarda-livros quis ir mais longe nas vivas demonstrações de seu amor pela Campelinho. Com os lábios pregados à boca da Lídia, quase abraçados, procurou com uma das mãos apalpar alguma coisa que a rapariga ocultava religiosamente no templo inviolável de sua castidade.

-Não, isso não! fez ela esquivando-se, toda cautelosa, com um ar de surpresa.

Deixasse daquilo, que era muito feio entre noivos. Não havia necessidade; tinham muito tempo, depois. Tivesse paciência, sim?

E muito terna, derreando-se de novo sobre os ombros do guardalivros, beijou-o na face áspera de espinhas, sem repugnância, e começou a cofiar-lhe carinhosamente os bigodes, devagarinho, arregaçando-os, assanhando-os para tornar a alisá-los, prolongando assim a delícia de Loureiro que nesses momentos era como um escravo das mãozinhas brancas e delicadas da Lídia.

-Mas, que tem? perguntou ele com a voz trêmula, um fluido estranho no olhar terno.

-Não, meu bem, isso não, que é feio, tornou a Campelinho. Tem paciência.

Não fazia mal, continuou Loureiro. Não eram noivos? não eram quase casados? Que diabo! consentisse ao menos uma vez. Era um instantinho. Ora! uma coisa tão simples, tão natural... Ninguém via, deixasse, que tolice!

E enquanto falava muito baixo, com hesitações trêmulas na voz embargada pela sensualidade, estendia a mão por baixo, olhar fito nos olhos vivos e penetrantes da rapariga.

Nem um ruído na rua do Trilho, nem uma voz, nem o vôo pesado de um morcego: tudo silêncio, e uns restos de luar a extinguir-se esbatendo defronte nos telhados. Apenas, ao longe, vago e indistinto quase, o ruído monótono do mar no silêncio da noite calma.

-Oh! não... suplicou a Campelinho sentindo o contato da mão grossa do guarda-livros. Deixa...

Houve um frufru de vestidos machucados e o baque de uma cadeira. Momentos depois o Loureiro despedia-se triunfante, pisando devagar, caminho do HOTEL DRAGOT.

Desde então começou a retirar-se muito tarde. Havia noites em que só saía depois de uma hora da madrugada. Ultimamente almoçava e jantava em casa da viúva. Era mais econômico do que pagar no hotel, dizia D. Amanda: bastava que ele contribuísse com trinta mil-réis mensais e tudo se arranjaria ali mesmo em família; de modo que o Loureiro pouco a pouco foi-se fazendo, por assim dizer, dono da casa, chefe da família. Por fim todas as despesas corriam por sua conta e risco. Aluguel de casa, comedoria, roupa lavada e engomada, vestidos para a Lídia, tudo era ele quem pagava de boa vontade, sem tugir nem mugir porque queria e tinha prazer nisso. Muito econômico, amigo de seu dinheirinho, mas em se tratando das Campelo, não tinha mãos a medir, era de uma prodigalidade sem limites. Coitadas! lamentava-se consigo, eram umas pobres; cada um sabe de si e Deus de todos; tinha quase o dever de ampará-las, tanto mais quando estava para ser marido da pequena. E abria o seu grande coração e a sua bolsa àquelas duas criaturas, que se lhe afiguravam duas santas através do prisma azul de seu amor pela rapariga. Subscritor da Sociedade de São Vicente de Paulo, um pouco devoto, às vezes tinha rasgos de verdadeiro filantropo. D. Amanda e a filha eram aos seus olhos «duas vítimas da maledicência de uma sociedade hipócrita e torpe até à raiz dos cabelos.» Agora jantava e almoçava em casa da viúva, que já lhe sabia os gostos, as manias. Ela mesma ia preparar a comida, os ovos quentes e a lingüiça assada ao almoço, o feijão e o lombo assado para o jantar. D. Amanda estava radiante com o genro. Tratava-o a velas de libra, fazia-lhe todas as vontades, escovava-lhe a roupa, e eram cuidados de mãe carinhosa ou de criança que tem um pássaro na mão e receia que lhe fuja.

Aos domingos o guarda-livros ia logo cedo para o Trilho, às vezes com a cara por lavar, metido em calças pardas, abotoado até o pescoço. Era quando tinha algum descanso das lidas quotidianas do armazém, da escrituração do Caixa. Às seis horas da manhã já ele estava de caminho para o Trilho, muito à fresca, cigarro ao canto da boca, prelibando as delícias de um dia em companhia da noiva, sem ter que dar satisfação à Carvalho & Cia., com a consciência tranqüila de quem cumpriu religiosamente o seu dever.

Nem sequer tomava café no hotel. Pulava da rede às pressas, sem perder tempo, enfiava as botinas, as calças, o paletó surrado, e abalava por ali afora, escadas abaixo. Às vezes ainda encontrava a porta da viúva fechada. Batia devagar com a ponta dos dedos: «-Sou eu, Loureiro!» Imediatamente D. Amanda vinha abrir, embrulhada nos lençóis, cabelos soltos, em mangas de camisa. E a faina começava. Escancaravam-se as portas para dar entrada livre ao arzinho fresco da manhã que se derramava por toda a casa como um fluido que se evaporasse de repente de um depósito aberto. O Loureiro tirava o paletó, abria a toalha no ombro, e enquanto se punha a ferver água para o café, refestelava-se num confortável banho frio puxado de véspera na grande tina que havia no «banheiro». Era tempo de cajus. O guarda-livros tinha a mania dos depurativos. Antes do banho emborcava um copo de mocororó «para retemperar o sangue», dizia ele. Depois o cafezinho quente, coado pelas mãos de D. Amanda, e, finalmente, o belo dia passado, currente calamo, tranqüilamente num longo idílio naquele canto obscuro de Fortaleza, com a «sua santa». O hotel servia-lhe apenas para dormir, porque o Loureiro era filho do Rio Grande do Norte onde perdera pai e mãe, não tinha no Ceará sequer um parente em cuja casa pudesse passar as noites. Amigos capazes de merecerem toda a sua confiança também não os tinha. Pacato, concentrado e pouco expansivo, dificilmente comunicava-se a quem não o procurasse em primeiro lugar. Sua natureza egoísta aprazia-se com a vida sedentária. -Um esquisitão de força, uma espécie de urso! diziam os seus camaradas de comércio. E os dias passavam, longos e modorrentos, cheios de sol, sem nuvens no azul, iguais sempre, eternamente monótonos.

Novembro estava a chegar. Novembro, o mês dos cajus e das ventanias desabridas, com as suas manhãs friorentas e claras, em que, às vezes, nuvens sombrias acumulavam-se no horizonte e vão subindo até desmancharem-se completamente num chuvisco ligeiro que apenas borrifa de leve a superfície seca do solo, pondo cintilações diamantinas nas folhas do arvoredo; novembro, o mês dos estudantes, o mês dos exames, que passa levando consigo as ilusões cor-de-rosa dos que deixam os bancos preparatórios e dos que começam a vida pública.

O Zuza não tinha pressa em se formar. De resto era uma questão de tempo o seu bacharelato. Resolvera passar mais alguns meses no Ceará com a família, e então ir-se-ia completar o curso. Já agora o Ceará não lhe era inteiramente uma terra má. Habituava-se pouco a pouco a essa vida de província pacata em que se trabalha um quase nada e fala-se muito da vida alheia. Maria do Carmo tinha-lhe escrito uma cartinha lacônica e expressiva confessando o seu amor. Entregou-a ela mesma, no Passeio Público, numa quinta-feira, à noite, uma belíssima noite de luar. A avenida Caio Prado tinha o aspecto fantástico de um terraço oriental onde passeavam princesas e odaliscas sob um céu de prata polida, com suas filas de combustores azuis, encarnados e verdes, com as suas esfinges... Senhoras de braço dado, em toaletes garridas, iam e vinham ao macadame, arrastando os pés, ao compasso da música, conversando alto, entrechocando-se, numa promiscuidade interessante de cores, que tinham reflexos vivos ao luar: de um lado e de outro da avenida duas alas de cadeiras ocupadas por gente de ambos os sexos, na maior parte curiosos que assistiam tranqüilamente o vaivém contínuo dos passeantes.

O plenilúnio muito alto dir-se-ia uma grande medalha de prata reluzente com o anverso para a terra, suspensa por um fio invisível lá em cima na cúpula azul do céu. Defronte da avenida o mar, na sua aparente imobilidade, tinha reflexos opalinos que deslumbravam, crivado de cintilações, minúsculas, largo, imenso, desdobrando-se por ali afora a perder de vista, e para o sul, muito ao longe, a luz branca do farol tinha lampejos intermitentes, de minuto a minuto. No porto a mastreação dos navios destacava nitidamente, inclinandose num movimento incessante para um e outro lado, como oscilações de um pêndulo invertido.

-Uma noite admirável, hein, Maria? dizia Lídia de braço com a amiga, levada pela onda dos diletantes.

A normalista, porém, não deu atenção à Campelinho, muito distraída, caminhando maquinalmente, a pensar no estudante. Decididamente entregava-lhe a carta, fosse como fosse. Eram oito horas já e o Zuza ainda não havia chegado. Estava aflita, inquieta, impaciente. E se ele não fosse ao Passeio nessa noite? Ela rasgaria a carta e nunca mais havia de o procurar. O seu coração batia com força. Ia e vinha, cansada de esperar, com ímpetos de voltar para casa.

-Tem paciência, menina, disse a outra. O rapaz não tarda. Está no clube, talvez.

Qual clube. Era necessário acabar com aquilo. Começava a desconfiar do Zuza. Certo que ele queria passar o tempo folgadamente, por isto fingira aquela comédia de amor. Não era possível, não acreditava na sinceridade do Zuza. Se ele fosse outro procurá-la-ia sempre, em toda parte, nos passeios, no teatro, nos bailes. E ela é que estava fazendo uma figura ridícula a procurá-lo, como se ele fosse o único homem do Ceará com quem ela pudesse ser feliz!

E lá veio o maldito nervoso, uma vontade de fechar os olhos a tudo e viver para si, egoisticamente, como o bicho-da-seda, no seu casulo. Incomodava-lhe o zunzum de vozes e as pisadas da multidão, a própria música começou a fazer-lhe mal à cabeça. Que horror! Nem sequer podia passear!

Nisto ouviu uma voz que lhe pareceu a do estudante.

-Boa-noite, minhas senhoras!

Era realmente ele, que vinha chegando ao lado de José Pereira, muito correto, de chapéu alto, calça de casimira clara, croisé aberto, grandes colarinhos lustrosos de ponta virada e infalível flor na botoeira.

Maria voltou-se aturdida e um suspiro largo e bom escapou-lhe do peito.

Até que enfim! Ele ali estava, inteiro, completo, absoluto!

Agora, pensava em como entregar a carta sem que ninguém visse, sem escândalo.

A Lídia sugeriu-lhe uma idéia -iriam à outra avenida, mais sombria e menos freqüentada; ele naturalmente havia de ir também e então passava-lhe a carta num aperto de mão franco e amigável.

-Sim, vamos...

E dirigiram-se para a avenida Carapini, ensombrada pelos castanheiros, que formavam uma como abóbada compacta de ramagens através das quais o luar coava-se aqui e ali, pelas clareiras.

Puseram-se por ali a esperar, em pé defronte dos gnomos de louça, à beira dos reservatórios de água onde cruzavam gansos e marrequinhas vadias que grasnavam alegremente, inundadas de luar, ou caminhando devagar, iam contando os minutos, enquanto a música, no coreto, executava trechos alegres de operetas em voga. No botequim, rodeado de toscas mesinhas de madeira, abriam-se garrafas de cerveja com estrondo, e havia um movimento desusado de gente. As normalistas afastaram-se para mais longe.

-Eles não vêm, disse Maria desanimada, enquanto a outra procurava com o olhar o estudante, que se confundira na multidão.

-Tem paciência, tolinha. Por que não hão de vir?

Com efeito, daí a pouco assomou no extremo oposto da avenida a figura corpulenta de José Pereira, alta, larga, colossal, ao lado do Zuza, que lhe ficava pelo ombro, apesar de alto também, com o seu corpo fino em contraste frisante com o todo asselvajado do amigo. Vinham passo a passo, discretamente. Pararam no botequim, numa roda de rapazes que discutiam calorosamente sobre política.

De braço dado, ombro a ombro, as duas raparigas tinham procurado o lugar mais sombrio da avenida onde não podiam ser reconhecidas facilmente pelos passeantes da Caio Prado.

Esperemo-los aqui, disse Lídia, sentando-se com um vago suspiro.

E continuava a chegar gente e a encher o Passeio por todas as avenidas do primeiro plano, cruzando-se em todos os sentidos, acotovelando-se, confundindo-se. Na Mororó, mais larga que as outras, havia uma promiscuidade franca de raparigas de todas as classes: criadinhas morenas e rechonchudas, com os seus vestidos brancos de ver a Deus, de avental, conduzindo crianças; filhas de famílias pobres em trajes domingueiros, muito alegres na sua encantadora obscuridade; mulheres de vida livre sacudindo os quadris descarnados, com ademanes característicos, perseguidas por uma troça de sujeitos pulhas que se punham a lhes dizer gracinhas insulsas. Toda uma geração nascente, ávida de emoções, cansada de uma vida sedentária e monótona, ia espairecer no Passeio Público aos domingos e quintas-feiras, gratuitamente, sem ter que pagar dez tostões por uma entrada, como no teatro e no circo.

Ali não havia distinção de classes, nem camarotes, nem cadeiras de primeira ordem: todos tinham ingresso para saracotear nas avenidas ao ar puro das noites de luar.

Apenas quem não tivesse três vinténs estava proibido de sentarse, porque, nesses dias, as cadeiras eram alugadas, havia assinaturas baratas. Lia-se mesmo na Província o seguinte anúncio: «No estabelecimento Confúcio e no Clube vendem-se cartões de assinatura de cadeiras no Passeio Público, com abatimento nos preços.» Mas, ora, toda a gente possuía dois vinténs para alugar uma cadeira, e, ademais, ia-se ao Passeio Público para andar, para se mostrar aos outros como numa vitrine, não valia a pena ir para ficar sentado, casmurro, a ver desfilar o quê? o mesmo carnaval de todos os domingos e quintas-feiras, as mesmas caras, as mesmas toaletes. Não valia a pena decerto.

Quando a música parava, um realejo fanhoso, ao som do qual rodavam cavalinhos de pau, em um dos ângulos do jardim, gemia, num tom dolente e irritante, o Trovador, atordoando os ouvidos delicados do Zuza que achava aquilo simplesmente insuportável e medonho como um assassinato em plena rua.

Como é que se consentia semelhante importunação em uma capital que tinha foros de civilizada?

Oh! em Pernambuco o italiano que se lembrasse de tocar realejo à porta de uma república era imediatamente punido a batatas e a cascas de laranja. Estava muito atrasadinho o Ceará!

Gostava pouco de ir ao Passeio, o que fazia raríssimas vezes a convite de José Pereira, que comparava aquilo a um paraíso.

-O Passeio Público? dizia ele; o Passeio Público é um dos mais belos do Brasil, é a coisa mais bem-feita que o Ceará possui. Que vista, que magnífico panorama se aprecia da Avenida Caio Prado, à tarde! Nem o Passeio Público do Rio de Janeiro!

E justificava o antibairrismo do estudante.

-É que tu tens passado a melhor parte da tua vida na Corte e em Pernambuco, menino, dizia ele. Se vivesses algum tempo nesta terra, havias de gostar extraordinariamente. Mas o que te posso afirmar é que no Brasil não há uma cidade tão bem alinhada como esta, uma iluminação mais rica do que a nossa e um Passeio Público assim como este.

«-Não duvidava, não duvidava, mas o Ceará ainda estava muito atrasadinho, lá isso estava.»

Afinal, chegou o momento que Maria do Carmo aguardava com a impaciência febril de um desesperado. O redator da Província e o Zuza tinham deixado o grupo de políticos e aproximavam-se a passos lentos. Ao passarem pelas normalistas a Campelinho levantou-se e, muito desembaraçada, com esse tic indizível das raparigas habituadas à convivência dos homens e à vida elegante, dirigiu-se aos dois amigos, saudando-os rasgadamente com um belo sorriso aristocrata:

-Como passou, Sr. José Pereira?... Sr. Zuza...

-Oh! minha senhora... fizeram os dois ao mesmo tempo.

E a Lídia, depois de perguntar a José Pereira, com quem tinha alguma familiaridade, se vira, por ali, D. Amélia, e com uma ponta de cinismo, dirigiu-se ao Zuza.

-Que tal o passeio, Sr. Zuza?

-Esplêndido, minha senhora! Está de encantar!

-Isto é um inimigo do Ceará, D. Lídia, atalhou José Pereira rindo, com a sua voz muito grossa, os dentes muito brancos e pequeninos. Isto é um vândalo!

-Vândalo, não. Sou apenas um admirador, um amante do progresso. A meu ver, repito, o Ceará tem muito ainda, mas mesmo muito (e deu umas castanholas com o dedo) que andar para ser uma capital de primeira ordem.

-Eu já sabia que o Sr. Zuza não gostava da terra de Iracema, disse a normalista.

Maria tinha se deixado ficar à distância, sentada num banco de madeira encostado a uma árvore, na meia sombra que havia de um lado da avenida, quieta, imóvel, acaçapada, como uma coisa à toa... Sentia-se cada vez mais tola, mais matuta e insociável.

A presença do acadêmico punha-lhe calafrios na espinha, e vinhalhe logo um desejo vago de isolar-se e não dizer palavra. Não sabia o que aquilo era; o certo é que a presença do Zuza hipnotizava-a, fazia-lhe perder a cabeça, como se estivesse diante de um monstro, de uma criatura misteriosa, cujo poder sobre ela fosse enorme.

Zangava-se consigo mesma nesses momentos. Já estava em idade de perder todo o acanhamento, e, que diabo! atirar-se à vida, à sociedade, sem medo, sem receios infundados, sem pieguismos. Bolas! De si para si tornava a jurar nunca mais ter medo de homem algum, mas no outro dia era a mesma da véspera, fraca, impotente para dominar-se.

-Pois estamos distraindo o espírito, tornou a Lídia. A avenida Caio Prado está muito cheia; vimos apreciar o movimento daqui, da Avenida dos Charutos.

O Zé Povinho denominava Avenida dos Charutos a avenida Carapinin por ser mais freqüentada por gente de cor, e Lídia achava muita graça naquilo, não podia acertar com o verdadeiro nome da sombria aléia, ponto dileto de cozinheiras e raparigas baratas da rua da Misericórdia.

-Ah! fez o Zuza. Então V. Exa. não veio só...?

-Não, não. Vim com a minha amiga inseparável.

E voltou-se para Maria, que fingia olhar para o coreto da música.

-Quem, D. Maria do Carmo? perguntou José Pereira voltando-se também.

-Sim, a Maria...

-Oh! exclamou o redator dirigindo-se para a normalista. Está triste hoje, D. Maria? Uma moça bonita não se deixa ficar assim, na sombra. Como vai, como tem passado, boazinha? Sempre acanhada!... Venha, faz favor? quero lhe apresentar a um moço muito chique e que lhe aprecia muito.

Quem, o Sr. Zuza? Ela já conhecia. Estava descansando.

-Ó Zuza!

O acadêmico e a Lídia aproximaram-se.

E José Pereira num tom de cortesia:

-Apresento-te aqui a Sra. D. Maria do Carmo, normalista, e uma das moças mais distintas da nossa sociedade, uma flor!

Riram-se todos àquele disparate premeditado, pondo uma nota alegre nesse obscuro recanto do Passeio.

-Oh! Já se conheciam? Não sabia, por Deus! Então já conheces a moça mais bonita do Trilho de Ferro, hein? Uma coisa que não sabes: faz versos também...

Maria cumprimentou o estudante com um modo muito discreto, conservando-se sentada, aflita.

A música deu começo a um tango repinicado, saltitante e carnavalesco, espécie de Chorado Baiano, com rufos de tambor, em que sobressaía o clarinete cujas notas, muito prolongadas e queixosas, morriam languidamente.

De quando em quando os instrumentos faziam uma pausa e rompia um coro de vozes grossas. -Quem comeu do boi?... que a molecagem, lá fora, repetia numa desafinação irritante de vozes finas.

-Vamos tomar alguma coisa, insistiu José Pereira oferecendo o braço a Lídia cortesmente. Ó Zuza, você dá o braço a D. Maria do Carmo.

E, dois a dois, dirigiram-se para o botequim, José Pereira à frente com a Campelinho.

A ocasião era oportuna.

Maria a princípio desanimou completamente, mas, num ímpeto decisivo e franco, fazendo um esforço supremo sobre si mesma, nervosa, mais tímida que nunca, sacou a carta, passou-a ao estudante, com a mão trêmula, sem proferir palavra, e imediatamente veio-lhe um arrependimento profundo de se ter comprometido daquele modo, como se houvesse cometido um grande crime, como se naquela carta fosse toda a sua honra, todo o seu pudor de rapariga honesta. Estava perdida! Pensou, e já lhe parecia que toda a gente, -o Passeio Público em peso- seguia-lhe as pegadas observando-lhe todos os movimentos.

-Ah! fez o Zuza satisfeito. Pensei que não respondesse...

E sentindo-se dono daquela prenda, com um frêmito de pálpebras através dos óculos de ouro, aconchegou a si o braço roliço da normalista meio descoberto.

Maria conservou-se calada, sentindo cada vez mais forte o poder misterioso do estudante sobre seu coração extremamente sensível e bom. Deixou-se ir automaticamente, como uma sonâmbula.

Sentaram-se. José Pereira quis saber o que desejavam tomar. Havia sorvete, cidra, cerveja, vinho do Porto, chocolate...

-Cerveja, acudiu a Lídia.

Todos assentaram, depois de alguns minutos de indecisão, em tomar cerveja, e o redator da Província, sempre alegre e cortês, enfiando a cabeça para dentro do botequim, pediu três garrafas de Carls Berg, gelo e quatro copos.

O serviço do botequim era feito por um menino que entrava e saía sem descanso, numa azáfama dos diabos, suado, com os cabelos empastados na testa, sem paletó, uma toalha nauseabunda e úmida no ombro, acudindo, ele só, a todos os chamados.

Rapazes impacientes, de chapéu caído para a nuca, tresandando ixora, muito arrebitados, batiam com as bengalas sobre as mesinhas.

-Uma garrafa de cerveja, menino!

-Ó pequeno, aqui! Olha dois cafés!

O pobre caixeirinho não tinha trégua com a cara enfarruscada, resmungando.

De vez em quando, esfregava a toalha nas mesas com força, salpicando restos de bebidas nos janotas.

-Ó burro, estás cego?

O menino zangava-se e corria a outra mesa.

Vinha de dentro do quiosque um cheiro ativo de café requentado. Saíam bandejinhas com chocolate e pão-de-ló.

-Muito mal servido isto, objetou Zuza com o seu ar afetado de fidalgo, limpando os bigodes. Tenho notado mesmo que aqui, no Ceará, não se usa guardanapo...

-É objeto de luxo, disse José Pereira, atirando também o seu dichote.

E pouco a pouco a conversação foi-se animando, pouco a pouco foi-se estabelecendo uma como intimidade entre todos, ao passo que os copos se esvaziavam.

Pediram mais uma garrafa de cerveja.

A própria Maria do Carmo tinha o rosto em fogo. Foi perdendo o acanhamento e ria também com os outros quando o redator dizia uma pilhéria.

A Lídia, essa lambia os beiços a cada copo que virava de dois tragos. Era a sua bebida predileta -a cerveja. Bebera pela primeira vez ali mesmo, no passeio, por sinal o alferes Coutinho, do batalhão, é que tinha pago. Estava em meio do terceiro copo. -«Aquilo é que era bebida agradável e higiênica», dizia ela. Não gostava de licores e bebidas adocicadas. A champanha mesmo enjoava-lhe.

-E que tal acha o peru? perguntou maliciosamente José Pereira.

Isso era outra coisa: O peru era uma excelente bebida; bastava ter sido inventada pelo presidente da Província, um moço de educação muito fina, viajado. Diziam até que tinha ido à Rússia...

Então falou-se do presidente, que José Pereira não perdia ocasião de elogiar exageradamente.

Um homem superior, gabava ele, um gentleman, um fidalgo de raça, uma dessas criaturas que a gente ficava querendo bem por toda a vida. Pois não! Excelente amigo, dedicado até, jogador de florete, sabendo montar a cavalo «divinamente» e atirando ao alvo com uma perfeição ultra! E que educação, que finíssima educação social! O homem falava francês como um parisiense, entendia inglês e tinha um modo excepcional de se portar em qualquer ocasião, solene. Com tudo isto, acrescentava pigarreando, era muito bom democrata, sim senhores. Passeava sem ordenança, a pé; ia ao mercado pela manhã «ver aquilo» como qualquer plebeu, e jogava bilhar na Maison Moderne... Que queriam mais? De um homem assim é que o Ceará precisava. Ele ali estava na pessoa do Castro.

Tratava o presidente familiarmente, como a um amigo de muita intimidade.

Por sua vez o Zuza elevava o presidente aos cornos da lua. A sua opinião resumida era a seguinte: «Todos os cearenses juntos, trepados uns sobre os outros, não chegavam aos pés do fidalgo paulista.»

A Lídia achava os olhos do presidente «simplesmente adoráveis.»

-Eu o que mais admiro nele é o pescoço, a brancura escultural do pescoço, disse Maria.

O presidente foi analisado escrupulosamente da cabeça aos pés, como uma estátua grega, ao sabor da cerveja Carls Berg.

Já não havia quase ninguém no Passeio, quieto agora, sem o ruído tumultuoso dos passeantes, sem música, todo iluminado pela claridade branda e melancólica do luar. Apenas se ouvia o grasnar áspero dos gansos nos reservatórios, a grita estridente das marrequinhas e a toada dos soldados no quartel, rezando.

José Pereira tinha pedido mais uma garrafa de cerveja e instava para que Maria do Carmo tomasse «um bocadinho só.» A normalista, porém, cobria o copo com a mão, recusando. Que não: estava muito cheia, sentia uma pontinha de dor de cabeça. Botasse para a Lídia...

Ora, fizesse favor, aceitasse, por vida de seus magníficos olhinhos de princesa encantada, suplicou o redator da Província fixando os olhos em Maria que esperava o assentimento do Zuza.

-Por que não toma, D. Maria? perguntou este num tom quase imperativo. O José Pereira pede-lhe com tão bons modos...

Maria aceitou com um gesto de repugnância.

-À sua saúde, fez José Pereira tocando o copo no da normalista.

Houve um tilintar de cristais chocando-se de leve, e todos beberam ruidosamente.

-Agora vamo-nos chegando que se faz tarde, propôs Lídia levantando-se.

Mal sustinha-se em pé. José Pereira ofereceu-lhe o braço.

Uma languidez extrema tinha-se apoderado de Maria, cujas pálpebras pesavam como chumbo. Foi preciso amparar-se ao estudante para não cair redondamente.

-Uma tonteira! queixou-se ela fechando os olhos.

Não era nada, disse o outro passando-lhe o braço pela cintura; e enquanto o redator seguia pela avenida com Lídia, deixavam-se ficar naquela posição, em pé ambos e quase abraçados.

-Olhe, D. Maria...

A rapariga tentou abrir os olhos, e nesse momento, naquele silencioso recanto do Passeio estalou um beijo. Depois seguiram também, e, juntos, todos quatro foram tomar café no Restaurante Tristão.

Maria do Carmo chegou à casa ofegante, esfalfada, com a cabeça a arder, muito corada e alegre, o olhar cheio de meiguice, transfigurada pelos efeitos da cerveja, rindo por dá cá aquela palha. Atirou-se com todo o peso do corpo nos braços de João da Mata, fazendo-lhe festa, muito amorosa, como uma cadelinha de estima depois de uma ausência. No seu olhar aveludado e submisso havia uma súplica irresistível.

-Cheguei um bocadinho tarde, não é assim, padrinho? perguntou cosendo-se ao amanuense, a cabeça derreada para trás.

João olhou-a, olhou-a, hesitante, com um ar de extrema bonomia no rosto ainda há pouco carrancudo.

Tinha acabado de ralhar pela demora da afilhada e agora achavase sem ânimo para dizer uma só palavra áspera à rapariga, cujo olhar fascina-va-o como um abismo. Ali estava ela a seus pés, submissa e mais bela do que nunca, acariciando-lhe a barba, toda sua, como uma escrava.

-Sim, senhora, chegou um bocadinho tarde. Isto não são horas de uma moça estar passeando...

Afetava um tom repreensivo e ao mesmo tempo paternal.

Quase dez horas! Não era bonito aquilo, tivesse mais juizinho. Enfim, por aquela vez, o dito por não dito, mas por amor de Deus, não fizesse outra, senão, senão...

-Mas padrinho...

-Não tem padrinho, não tem nada. Pode ir ao Passeio, mas, por favor, não me volte a estas horas...

E afagava os cabelos de Maria, passava-lhe a mão nas faces, atoleimado, imbecil como um velho impotente, o olhar aceso através dos óculos escuros, a calva reluzente como uma grande bola de bilhar.

-Tu bebeste cerveja, aposto, tornou tomando entre as mãos a cabeça da rapariga e cheirando-lhe a boca. Ora se tomou...

-Tomei, sim, padrinho, tomei um copo assim. E indicou o tamanho do copo. Mas não estou tonta, não, padrinhozinho... Olhe, foi só um copo.

-E quem to pagou?

-Quem pagou?... Ora, quem pagou...

-Sim, quero saber quem te pagou a cerveja. Tu não levaste dinheiro...

-Quem pagou foi o Sr. José Pereira...

-Eu logo vi! Aposto em como o tal Sr. Zuza também entrou na festa.

Maria fez-se desentendida, e agarrando-se ao pescoço do amanuense, com um pulo, plantou-lhe um beijo na testa.

João da Mata desequilibrou-se.

-Ora, ora, ora, esta menina!...

Não sabia o que fizesse. Ralhar? Não. Maria estava encantadora e pagava-lhe com beijos as recriminações. Calar? Também não. A rapariga era capaz de reincidir na falta. O verdadeiro era não falar mais no Zuza. E João da Mata rematou a conversa:

-Vá, minha filha, vá dormir, que você não está boa...

Maria beijou, como de costume, a mão descarnada do padrinho, e, de um salto, recolheu-se ao seu querido quarto do meio, caindo pesadamente na rede, vestida como estava, sem ao menos lembrar-se de soltar os cabelos, tendo apenas tirado os sapatinhos e desabotoado o corpete.

Arre! Estava muito fatigada, precisava descansar.

E adormeceu imediatamente com um sorriso adorável na pequenina boca entreaberta.

Teve sonhos impossíveis e horrorosos nessa noite. Cerca de onze horas acordou sobressaltada com um pesadelo. Sonhou, coisa extravagante! que ia sozinha por um caminho deserto e interminável onde havia urzes e flores em profusão. Estava perdida, sem saber o rumo que devia tomar, caminhando, caminhando sem olhar para trás.

De repente -Arre corno! ouviu a voz aguardentada do Romão, o mesmo que fazia a limpeza da cidade, e logo surgiu-lhe em frente a figura nauseabunda e miserável do negro. Era um Romão colossal, grosso e musculoso como um Hércules, nu da cintura para cima, as espáduas largas e reluzentes de suor, calças arregaçadas até os joelhos, preto como carvão, as pernas curvas formando um grande O, os braços levantados, segurando na cabeça chata um barril enorme transbordando imundícias! -Arre corno! gania o negro no silêncio da noite clara, cambaleando muito bêbado, perseguido por uma cáfila de cães que ladravam desesperadamente. Fazia um luar esplêndido...

Assim que deu com os olhos nela, o negro atirou ao chão o barril de porcarias, que se despedaçou empestando o ar. E o Romão, cambaleando sempre, muito fedorento, atirou-se a ela, rilhando os dentes num frenesi estúpido, beijando-a, besuntando-a.

Que horror! Ela, mais que depressa, cobrindo o rosto com as mãos, quis fugir, sentindo toda a hediondez daquele corpo imundo, mas o negro deitou-a no chão com força e... E Maria do Carmo acordou quase sem sentidos, sentando-se na rede, com um grande peso no coração, aflita, sufocada, sem poder falar, porque tinha a língua presa...

-Virgem Maria! suspirou logo que pôde voltar a si. Que sonho feio!...

Suava em bicas, muito pálida, como se acabasse de sair de um forno. Só então reparou, muito admirada, que ainda estava com a mesma roupa com que fora ao Passeio Público. Riscou um fósforo com a mão trêmula, acendeu a velinha de carnaúba e começou a despir-se depressa.

Lá fora, na rua, passava uma serenata. Uma voz de homem cantava uma modinha conhecida, acompanhada de violão e flauta:

Não cho... res, querida Elvi... ra...

Maria sentia-se doente, com um sabor desagradável na boca e uma dor forte nas têmporas. Vinha-lhe uma vontade de vomitar, de deitar fora a cerveja que bebera; sentia um mal-estar geral em todo o corpo, como se estivesse para cair gravemente doente.

Que seria, Deus do céu? Aproximou a vela do espelho, um velho traste com o aço muito estragado, e achou-se abatida, os olhos fundos, uma crosta esbranquiçada na língua. Nunca mais havia de tomar a tal cerveja, uma bebida selvagem, sem gosto, repugnante como um vomitório. Só tomara naquela noite por causa do Zuza, porque ouvira dizer que «era moda nas grandes cidades», na Corte e no Recife, as senhoras tomarem cerveja. Mas credo! noutra não caía. Se soubesse teria pedido cidra.

Quis chamar a Mariana para lhe fazer um chazinho de laranja, mas era muito tarde, podiam desconfiar e, depois o padrinho agora dormia na sala de jantar...

Não, não, era melhor não incomodar a ninguém! aquilo havia de passar, se Deus o permitisse.

Tinha até se esquecido de rezar...

Ajoelhou-se, mesmo em camisa, diante da oleografia que representava o Cristo abrindo o coração à humanidade, balbuciou uma oração, persignou-se, e, mais aliviada, mais fresca, adormeceu novamente, pensando no estudante.

O amanuense, no mesmo dia da briga com a mulher, resolvera de então em diante dormir numa rede na sala de jantar. Uma figa! não estava mais para suportar o calor infernal da alcova, e, além disto, viviam ultimamente, ele e D. Terezinha, arengando consecutivamente, como duas crianças invejosas, pela coisa mais insignificante. Ele, muito bilioso, achava que tudo em casa ia muito ruim, que D. Terezinha não se importava com as coisas, que não se fazia mais economia. -«Um gasto enorme de dinheiro! um desperdício sem nome, um esbanjar sem trégua, e, afinal de contas, não passavam da carne cozida e do lombo assado com arroz. Isso assim ia mal, muito mal. Depois ninguém fosse chorar por dinheiro...»

Quem, ela, chorar? Que esperança! Estava muito enganado, seu «papa-angu de boceta». Tinha muito para onde ir, não faltavam casas de gente séria no Ceará. Socasse o seu dinheiro onde quisesse...

Toda a vizinhança, ávida de escândalos, ouvia com risinhos de pérfida satisfação aqueles torniquetes às vezes imorais, até do amanuense com a mulher. Era um divertimento.

-Deus os fez e o diabo os ajuntou, dizia a mulher de um barbeiro que morava ali perto, paredes-meias.

Quando João da Mata entrava na pinga então a coisa tomava proporções assustadoras. Ameaçava expulsar a mulher de casa a pontapés, berrava como um possesso, batia portas, quebrava louça ao jantar, rogava pragas, e a própria criada não escapava à sua cólera.

Mariana era uma rapariga muito pacata e em pouco se acostumou às impertinências ríspidas de «seu Joãozinho».

-Para que havia de dar o pobre homem, dizia ela às vezes, penalizada, cruzando os dedos sobre o ventre. Credo! a gente vê coisas! Hum, hum!...

E muito risona, muito tola com o seu ar idiota de animal dócil, lá se ia para a cozinha cuidar das panelas e da louça, porque era ao mesmo tempo cozinheira e copeira.

Quase todos os dias a mesma lengalenga, o mesmo duelo de palavrões de porta de feira, a mesma pancadaria de descomposturas. Não era raro sair da boca desdentada do amanuense uma obscenidade!

-Jesus! exclamava Maria fugindo para o seu quarto com as mãos nos ouvidos.

Ao ouvir a voz de João da Mata berrando como um danado, a vizinhança chegava às janelas ávida de escândalo. Meninos em fralda de camisa, chupando o dedo, paravam defronte da porta do amanuense, muito espantados, olhando cheios de curiosidade pelas frinchas da rótula.

E a algazarra crescia lá dentro, como se papagueassem muitas pessoas a um tempo.

As duas criaturas faziam as delícias da rua do Trilho, que se regozijava com aqueles espetáculos gratuitos de um cômico irresistível.

«-Aquilo ainda acabava mas era num escândalo badejo», resmungava a mulher do barbeiro, uma magricela com cara de quem está sempre com dor de barriga.

O Loureiro repetia indignado, dando-se ares de homem sério e reformador de costumes: «-Uma gente sem-vergonha. Uma canalha! Tomara já se casar para ver-se longe de semelhante peste. Até era feio a Lídia ter amizade com aquela gente.»

E aconselhava a rapariga que fosse, pouco a pouco, deixando de ir à casa de João da Mata, porque não lhe ficava bem, a ela «rapariga de família», em vésperas de se casar, ter relações com uma corja daquela.

Já não se jogava o víspora em casa do amanuense. As velhas coleções dormiam esquecidas no saquinho de baeta verde em cima do piano.

D. Terezinha transformava-se a olhos vistos. Pouco lhe importavam os móveis cobertos de poeira e de fuligem das locomotivas; protestara nunca mais abrir o bico para dar ordem naquela casa. Estava cansada de agüentar desaforos «do corno» do Sr. João da Mata.

E tudo por quê? Por causa de uma peste que se lhe metera casa adentro e agora andava mostrando os dentes e mais alguma coisa ao padrinho, com partes de afilhada. Não, ela é que não servia de alcoviteira a ninguém, meu bem. Estava muito enganadinho. Se quisesse fazer mal à sonsa da Maria fosse fazer onde bem entendesse, mas ela, Teté, não servia de travesseiro, não, mas era o mesmo... Estimava muito que lhe deixassem dormir só, na sua cama. Não perdia nada.

Por seu lado o amanuense encarava a mulher com um desprezo solene. Vinha-lhe agora um arrependimento profundo por ter feito a asneira de amigar-se com D. Terezinha. Tanta rapariguinha fresca e bonita vivia à procura de um homem, tanta retirante «moça» e pobre, tanta gente boa no mundo, fora amigar-se logo com quem? com quem, Sr. João da Mata? Com uma sujeita feiosa que só tinha carne nos quadris, um monstro de gordura, com pernas finas e ainda por cima estéril! Que grandíssima cabeçada! Entretanto, podia estar muito bem casado com uma mulher de certa ordem, rica mesmo, bem-educada e bonitona.

Depois que se mudara para a sala de jantar apoderou-se dele um aborrecimento inexplicável por D. Terezinha. Passava horas e horas estendido na rede, de papo para o ar, em ceroula e camisa de meia, acendendo cigarros, a pensar na vida, como um grande capitalista que sonha no dinheiro acumulado usurariamente, e Maria do Carmo aparecia-lhe na imaginação como um tesouro preciosíssimo, que ele receava fosse cobiçado um belo dia pelo rapazio galante da cidade. Estava ficando velho e era preciso aproveitar o resto da vida. É verdade que em 77, na seca, tinha desfrutado muita «bichinha» famosa. Nesse tempo ele era comissário de socorros... Mas nenhuma daquelas retirantes chegava aos pés da afilhada. Chegava o quê? Nem havia termo de comparação. Maria, além de ser uma rapariga asseada, e apetitosa como uma ata madura, tinha sobre as outras a vantagem de ser inteligente e educada.

Estas qualidades da normalista tinham um encanto extraordinário aos olhos do amanuense. Nunca em sua vida cheia de aventuras amorosas encontrara uma rapariga nas condições de Maria do Carmo, filha de família, branca, singularmente encantadora e que estivesse ao alcance de seu coração, ah! nunca.

Maria punha-o doido com os seus belos olhinhos cor de azeitona. A sua imaginação criava planos fantásticos, inexeqüíveis, por meio dos quais ele pudesse iludir a afilhada, e, zás! tirar-lhe o lírio branco da virgindade. Não queria precipitar-se com risco de um escândalo comprometedor, isso não. Preferia insinuar-se pouco a pouco, devagar, no ânimo da pequena, sem a sobressaltar, fazendolhe todas as vontades, de modo que, na ocasião oportuna, no momento preciso ela se entregasse prontamente, sem resistência.

Com efeito, Maria agora, para não desagradar ao padrinho, obedecialhe cegamente, com a resignação indolente, fria duma escrava. Que havia de fazer, ela uma pobre filha adotiva, se o padrinho era quem lhe dava de comer e de vestir? Consentia, pudera não! sem a menor resistência, que o amanuense afagasse-lhe o bico dos seios virgens e lhe passasse a mão pelas coxas tenras e polpudas...

-Está fazendo cócega, padrinho, murmurava rindo, com um riso sem expressão, que lhe vinha do fundo da alma de donzela.

-Sossega, tolinha, ralhava João.

E ela não tinha remédio senão ficar quieta, imóvel, com o olhar úmido no teto, abandonada às carícias sensuais daquele homem repugnante que a perseguia como um animal no cio, mas que afinal de contas era seu padrinho...

Muitas vezes, ah! quase sempre, vinham-lhe ímpetos de reagir com toda a força do seu pudor revoltado, mas ao mesmo tempo lembravase que era só no mundo, porque já não tinha pai nem mãe, e podia ser muito desgraçada depois... Sim, era preciso paciência para suportar tudo até que o Zuza se decidisse a ampará-la sob a sua proteção de rapaz rico. Vivia agora, sabe Deus como, entre a indiferença cruel de D. Terezinha e a vontade soberana do amanuense, por assim dizer sozinha naquela casa onde tudo tinha o aspecto sombrio e desolado da pobreza desonesta. Ah! mas aquilo havia de acabar fosse como fosse...

A própria Lídia já não a procurava como dantes, toda orgulhosa com o seu noivo. A felicidade da amiga aumentava-lhe ainda mais o desespero. Decididamente era muito infeliz. Aí vinham-lhe outra vez as lágrimas e os soluços concentrados. Recolhia-se com os olhos cheios de água ao seu quarto, com uma tristeza infinita no coração e só achava conforto nas confidências amorosas do Zuza, que ela guardava como uma relíquia no fundo de uma caixinha perfumada de sândalo. Esquecia-se a lê-las devagar, repetindo frases inteiras, admirando a bela caligrafia em que elas eram escritas, beijando-as sobre a assinatura do estudante, toda entregue ao seu amor.

Havia uma semana que se correspondiam por cartas onde a vida de ambos era descrita como num diário, minuciosamente, em todos os seus detalhes. Porque o futuro bacharel desconfiara do modo frio com que o amanuense o recebia, e, sem dizer nada a ninguém, resolvera nunca mais pôr os pés naquela casa que ele «honrara» durante quase um mês com a sua presença. Pílulas!

Todos os dias encontrava o sujeito com uma cara de mata-mouros, a pequena tinha ordem para não lhe aparecer, e mesmo era uma estopada ir ao Trilho a pé, sujeitando-se à crítica idiota dos mequetrefes da vida alheia. Estava decidido -não iria mais ao Trilho de Ferro. E cumpriu a sua palavra com a dignidade de um fidalgo.

Encontravam-se diariamente na Escola que o Zuza freqüentava agora com a pontualidade irrepreensível de um inglês. E, como não podiam conversar à vontade sem escandalizar os créditos do estabelecimento já um tanto abalados, trocavam cartinhas no intervalo das aulas.

Era voz geral na cidade que o estudante estava disposto a casar com a normalista mesmo contra a vontade de seus pais e a despeito da burguesia aristocrata que lamentava por sua vez tamanho «desastre». Um rapaz fino, com um futuro invejável diante de si, estimado, amigo do presidente, casar-se com uma simples normalista sem eira nem beira! E em toda a parte, desde o Café Java até ao Palácio da Presidência comentava-se, discutia-se ruidosamente o assombroso acontecimento. Uns asseguravam que o Zuza estava desfrutando a rapariga para depois -fuisset! pôr-se ao fresco e nunca mais pisar o solo cearense. Outros, porém, eram de parecer que o acadêmico tinha boas intenções e até fazia bem levantar da miséria uma criatura como a Maria, que estava se perdendo em companhia do amanuense. Havia outro grupo que acreditava no casamento do Zuza com a normalista porque, na sua opinião, a menina já «estava pronta», isto é, o estudante já lhe tinha «plantado no bucho um Zuzinha». E, assim, multiplicavam-se as opiniões, enquanto o Zuza, fazendo ouvidos de mercador, não se dava ao trabalho de desfazer boatos. -Que se fomentassem todos. Não tinha que dar satisfações a ninguém por seus atos.

Um belo domingo a Matraca lembrou-se outra vez de curtir o couro ao Zuza em redondilhas escandalosas que enchiam quase toda uma página. Os vendedores do pasquim atravessavam as ruas em disparada, esbaforidos, apregoando alto e bom som -o Namoro do Trilho de Ferro!

Em todas as esquinas surgiam meninos maltrapilhos sobraçando o jornaleco, arquejantes sob a luz crua do sol que incendiava a cidade nesse luminoso meio-dia de novembro.

O casarão do governo, acaçapado e informe, com o seu aspecto branco e tradicional de velho edifício português, do tempo do Sr. D. João VI, com a sua fila de janelas, alinhadas à maneira de hospital, espiando para a praça do General Tibúrcio, parecia dormir um sono bom de sesta, batido pelo sol, na mudez solene de um monumento arqueológico. Tinha dado meio-dia na Sé; ainda vibrava no espaço iluminado e azul a última nota das cornetas.

Àquela hora o estudante acabara de almoçar com o presidente, e, pernas cruzadas, reclinado numa cadeira de balanço, deliciava-se a fumar tranqüilo o seu havana, mais o José Pereira, na larga sala de recepção do palácio.

De repente:

-A Matraca a 40 réis! O namoro do Trilho de Ferro! O Estudante e a Normalista! Grande Escândalo!

Um menino passava gritando a todo o pulmão numa voz fina de adolescente, as notícias da folha domingueira.

Zuza, com o rosto afogueado pelo Bordeaux que tomara ao almoço, estremeceu na cadeira.

-Hein?

O vendedor de jornais repetia a lengalenga lá fora, na praça. Então o estudante fulo de raiva, sacudindo fora o resto do charuto, levantou-se e foi direito à janela.

-Psiu! Psiu! Ó menino da Matraca!

-Eu?

-Sim, você mesmo!

Enquanto se esfrega um olho os dois encontraram-se embaixo, na porta do palácio.

-Que está você a gritar, seu patife? perguntou Zuza segurando o vendedor pelas orelhas.

-Nada, seu doutô; é o Namoro do Trilho.

-Você ainda repete, seu grandíssimo corno!

E, depois de encher o pequeno de petelecos, o futuro bacharel tomou-lhe todos os exemplares da Matraca rasgando-os imediatamente.

O outro abriu a goela a chorar encostando-se à parede, com a cabeça entre os braços.

-E puxe! continuou o Zuza implacável, com o seu olhar de míope. Vá, vá, vá, e diga ao dono desta imundície que eu ainda lhe quebro a cara a bengaladas, hein! Vá, vá, vá...

O pequeno não teve outro jeito senão ir-se arrastando pela parede, muito triste, resmungando, protestando nunca mais vender a Matraca, enquanto o Zuza explicava o caso ao José Pereira e ao presidente, que o receberam com uma explosão de risos.

O caso não era para rir, dizia ele formalizado, limpando os óculos com a ponta do lenço de seda. O caso não era para rir, que diabo! Ainda havia de quebrar a cara do redator da Matraca. Aquilo excedia as raias do decoro e do respeito que se deve ter à sociedade. Que essa! Não era nenhum filho da mãe que estivesse a servir de judas a Deus e ao mundo. Era assim que resolvia questões de dignidade pessoal -à bengala!

-Mas vem cá, ó Zuza, disse amigavelmente o fidalgo paulista; tu perdes o tempo e o latim com semelhante gente...

-Eu já o aconselhei, interrompeu José Pereira. O desprezo é a arma dos fortes.

-Qual desprezo, homem! O desprezo é a arma dos covardes. Eu cá resolvo as coisas positivamente a bengaladas.

-Quantas já deste no redator da Matraca? perguntou José Pereira para confundir o Zuza.

-Não dei nenhuma ainda, mas pretendo, antes de me ir embora, quebrar-lhe os queixos, sabe você? O presidente para não provocar mais a bílis do Zuza perguntou, a propósito de jornais que se ocupavam da vida alheia, se tinham lido o Pedro II, e a conversa descambou para o terreno árido da política local.

-Que diz o papelucho? perguntou o fidalgo de dentro dos seus grandes colarinhos lustrosos.

-A mesma coisa de todos os dias, respondeu José Pereira com um gesto de desprezo. Que você é um péssimo presidente, que você gosta de tomar champanha e, finalmente, que você «vai encaminhando as coisas públicas para um abismo.»

-Ora, suportem-se umas coisas destas! saltou o Zuza. Eis aí: é ou não para se dar o cavaco?

-Mas, Zuza, eu vou respondendo a cada artigo com a demissão de dez funcionários amigos da oposição. Queres ver uma coisa?... Que dia é hoje?...

-Domingo...

-Pois bem, vou mandar lavrar a demissão de alguns empregados públicos que se dizem miúdos, com a data de hoje. Eis aí está como se resolvem questões desta ordem. Insultam-me, não é assim? injuriamme, acham que sou mau, que não tenho juízo, que sou indiferente à sorte do Ceará... Pois bem, hoje mesmo muita gente vai pagar pelos diretores do tal partido. Nada mais simples, não achas?

Ante a resolução pronta e decisiva do presidente o Zuza ficou perplexo. Decididamente era um grande homem aquele!

-Mas olha que vais reduzir à miséria muitas famílias...

O presidente teve um sorriso de suprema indiferença àquelas palavras do estudante e dirigiu-se para a secretaria com o passo firme de quem caminha para uma ação nobre com o seu belo porte de diplomata.

Zuza pretextou uma forte enxaqueca e abalou, a pensar no vendedor da Matraca. Tinha feito mal em esbofetear o rapazinho, porque afinal de contas o pequeno estava inocente, nada tinha que ver com os desaforos publicados. Era um simples vendedor, coitado.

Enfiou pela rua da Assembléia macambúzio, com um ar indolente, chapéu derreado para trás, riscando o chão com a bengala, muito distraído.

«-Que diabo! A gente sempre faz asneiras...»

E, pecador arrependido, entrou em casa esbaforido, soltando, logo à entrada, um bocejo de velho preguiçoso.

Entretanto a demora do Zuza na capital cearense começava a inquietar o coronel Souza Nunes. Era época de exames e o estudante nem sequer falava em tirar passagem para o Recife onde já devia se achar a fim de concluir o curso.

Se lhe entrasse na cabeça a idéia de casamento com a tal senhora normalista, então, adeus, pensava o coronel; ia tudo águas abaixo. Seria talvez preciso improvisar um passeio à Europa, do contrário o rapaz era capaz de fazer uma estralada dos diabos.

Ia falar ao Zuza como pai, ia repreendê-lo severamente, dizerlhe com a franqueza rude de um superior para um subalterno que aquilo não podia continuar, que era tempo de seguir para o Recife, que se preparasse.

Mas o filho tinha umas maneiras capciosas de convencê-lo, fazendose enérgico, revoltando-se contra a maledicência pública, provandolhe com argumentos fortes que tudo que se dizia na rua era mentira, que ele, Zuza, até desejava ir-se logo para Pernambuco, o que decididamente faria no primeiro vapor.

-O certo é que os vapores passam, e tornam a passar e tu vais ficando, objetou-lhe um dia o coronel que se abstinha de falar na normalista.

-... Mas, ora, há tempo bastante para tudo. Os exames começam tarde este ano.

-Qual tarde, meu filho! tu estás perdendo um tempo precioso quando já devias estar lá.

Havia entre os dois, pai e filho, uma familiaridade moderna, como se fossem apenas irmãos.

A esposa do coronel é que não se envolvia em questões.

Adorava o filho, é verdade, tratava-o com todo carinho, tinha orgulho nele, mas sempre muito boa, respeitava as resoluções do Zuza e evitava contrariá-lo na mais pequena coisa. Demais D. Sofia estimava até que o filho se demorasse o mais possível em sua companhia.

A formatura do Zuza era para ela uma questão secundária que havia de se resolver mais cedo ou mais tarde; de si para si achava que o estudante tinha pouco amor aos estudos, mas não revelava este seu pensamento a ninguém. Vivia constantemente incomodada, com fortes dores no útero provenientes de um parto infeliz em que fora preciso arrancar a criança a «forceps».

Era uma senhora de quarenta anos com todos os característicos de uma boa esposa: inimiga de passeios, importando-se pouco ou nada com a vida elegante, arrastando a sua enfermidade incurável pelo interior sossegado da casa. O Zuza tinha-lhe uma afeição supersticiosa. D. Sofia era a única mulher sincera e boa no mundo a seus olhos de filho agradecido. Um pedido, um desejo de sua mãe era satisfeito imediatamente, sem considerações, custasse o que custasse.

Ela por sua vez, a pobre senhora, retribuía-lhe o afeto com a mesma dedicação, com o mesmo desprendimento, não contrariando o mais leve pensamento do rapaz.

-«É o que me obriga a vir ao Ceará, dizia ele, é minha velha, do contrário jamais eu tornaria a esta província insuportável.»

Mas entravam e saíam vapores e ele deixava-se ficar com o seu tédio, preso irresistivelmente aos olhos cor de azeitona da normalista como a uma forte cadeia de ferro. -«Tinha tempo, tinha tempo...» repetia, decidido a passar o Natal em Fortaleza. Que diabo! deixassemno ao menos provar a tradicional aluá. Os exames? ninguém se incomodasse, faria-os em março; era até melhor, porque assim podia estudar mais e «fazer figura».

E os dias passavam e cada vez crescia mais no seu espírito o desejo veemente, a ambição romântica de possuir completamente aquela rapariga que tinha se apoderado de todo seu coração. Queria para esposa uma mulher nas condições de Maria do Carmo, órfã, de origem obscura e pobre. Decididamente casava-se desta vez embora isso custasse algum desgosto ao pai. Todo homem deve ter a liberdade de escolher a mulher que melhor lhe quadrar.

-Mas olha que a rapariga é normalista... lembrava José Pereira maliciosamente.

Que importava isso? Fazia muito bom juízo da sociedade cearense para não acreditar que todas as normalistas do Ceará fossem indignas de um rapaz de certa ordem. O que queria é que a pequena soubesse corresponder à sua confiança.

Foi num sábado, à noite, que se realizou cerimoniosamente, com toda a pompa de uma festa de província, o casamento da Lídia com o guarda-livros, na Igreja de N. S. do Patrocínio.

Às sete horas parou à porta da viúva Campelo um carro e saltou o Loureiro todo de preto, gravata branca, o cabelo lustroso, repartido ao meio em trunfas, empunhando o seu famoso claque. Estava glorioso dentro da sua casaca de pano fino mandada fazer especialmente para o ato.

Que festa na rua do Trilho!

No quarteirão compreendido entre a rua das Flores e a do Senador Alencar notava-se um movimento desusado de gente que se debruçava às janelas e parava na calçada e nas esquinas para esperar a saída dos noivos. Uma curiosidade flagrante estampava-se na fisionomia dos moradores que assistiam basbaques à chegada dos carros comunicando a sua ruidosa alegria àquele pedaço de rua habitualmente silenciosa e sossegada.

Havia folhas tapetando o chão defronte da casa da viúva onde reinava agora uma estranha aglomeração de pessoas de ambos os sexos, compactas, abafadas, espremidas entre as quatro paredes da pequena sala de visitas.

A noiva estava acabando de colocar a grinalda quando entrou o Loureiro muito teso com um riso amável e desconfiado que lhe arrebitava o bigode espesso. Dois sujeitos, também encasacados, de luvas, foram recebê-lo à porta -«Chegou o homem» anunciou uma voz, e a estas palavras cresceu o zunzum propagando-se por ali fora entre os curiosos que se acotovelavam à porta, na rua.

E logo toda a gente repetiu transmitindo-se a grande notícia -«chegou o noivo!»- e todos os olhares caíram de chofre sobre o guarda-livros transfigurado em herói de comédia.

D. Amanda, muito azafamada, tomou-o pelo braço e conduziu-o à sala de jantar para lhe oferecer um calicezinho de Porto.

Loureiro queixou-se do calor sacando fora as luvas, rubro, com a testa reluzente de óleo, metido num colarinho em folha, todo ele rescendendo opópanax. Nunca ninguém o vira tão bem-disposto, tão lépido, com um ar ao mesmo tempo condescendente e soberano de capitalista sem débito. -«A noiva estava pronta?» -perguntou. E, sem esperar resposta, começou a contar um incidente que lhe sucedera no hotel no momento em que se vestia. Nada, uma infâmia que não lhe atingia a sola dos sapatos. Uma carta anônima contra a reputação da Lídia, coisas do Ceará, coisas dessa terra...

Incomodara-se a princípio, o sangue subira-lhe à cabeça ao ler semelhantes torpezas, mas acalmara-se logo, porque não valia a pena a gente incomodar-se por uma carta anônima escrita em péssima letra e, o que era mais, acrescentou convicto o Loureiro, «sem assinatura!»

A viúva não se inquietou, atarefada, suando, muito apertada na sua toalete de seda escarlate, os grandes seios ameaçando romper o corpete, e uma rosa no cabelo. -Calúnias, nada mais, observou servindo o vinho. O guarda-livros emborcou o cálice à saúde da noiva, gabando a boa qualidade do Porto.

A pequena sala de jantar, caiadinha de novo, tinha agora outro aspecto mais asseado e alegre, sem manchas de gordura nas paredes amareladas como dantes, com vasos de flores no aparador, iluminada a vela de espermacete. Sobre a mesa do centro, coberta com um pano novo de riscadinho encarnado, pousavam duas lanternas antigas em forma de sino, jarros, pratos com bolos e garrafas intactas dispostas em simetria. O chão de tijolo ainda estava meio úmido da baldeação que se fizera na véspera. De resto os mesmos móveis de costume: um lavatório de ferro com espelho defronte do corredor, a mesa de jantar, o aparador de nogueira e o guarda-louça, uma velha peça que fora do tempo do marido de D. Amanda.

A verdadeira casa do Loureiro, o ninho em que ele ia passar a lua-de-mel com a Lídia era no Benfica, uma casinha também de porta e janela, mas muito fresca e alegre, nova, ainda cheirando à tinta. Resolvera não fazer festa. Um «copito» de vinho aos amigos, um taco de bolo e o deixassem em paz com a sua «querida». Tinha feito muitas despesas com o casamento. Da igreja iria diretamente «para a chácara» onde ficava à disposição dos amigos. Isso de pândega em noite de núpcias não era próprio, achava uma formidável maçada. Demais não era nenhum milionário para não contar o dinheiro que gastava.

Uma miniatura, a casinha de Benfica, um sonho de poeta lírico, assobradada, com a sua fachada azul ainda fresca, recebendo em cheio até o meio-dia toda a luz do nascente. Logo à entrada havia uma escadinha de três degraus, de onde se via, lá dentro, nitidamente, como por um cristal muito límpido, a sala de jantar e as bananeiras do quintalejo, de um verde tenro... Sala de visitas, alcova, comunicando com um quarto, casa de jantar, varanda, despensa, quarto para criado, cozinha e quintal, tudo asseado e confortável, com uns tons aristocráticos matizando a compostura graciosa dos móveis, papel claro nas paredes e lustre na sala de visitas.

Concluídas as obras da casa, o trabalho de renovação, Loureiro dera-se pressa em mobiliá-la a seu jeito, conforme as suas posses e os seus hábitos de empregado zeloso e metódico. Não pedira conselhos a ninguém: escolhera ele mesmo os móveis e os objetos decorativos, tudo novo e lustroso, como se tivesse saído da fábrica naquele instante. Mandara vir dos Estados Unidos, por intermédio da Casa Confúcio, um piano americano e uma máquina de costura. E, uma vez tudo pronto, tudo no seu lugar, passou uma revista geral na casa, desde a sala de visitas até o fundo do quintal, admirando com a alma cheia de satisfação a espécie de paraíso que ele próprio criara para si.

-«Sim, senhor, tinha cumprido rigorosamente o seu dever. Estava tudo que nem um brinco! Agora, sim, podia casar.»

Lídia pasmou diante daquele novo mundo que se lhe oferecia à vista. Nunca pensara que o guarda-livros soubesse preparar uma casa com tanta graça. Pela primeira vez na sua vida o Loureiro revelara-se um homem moderno e civilizado. Estava encantada! Já agora não invejava a sorte de Maria do Carmo: o Loureiro podia competir com o Zuza em bom gosto! Quem diria? Supunha o guardalivros mais tolo, mais ignorante e sensaborão. Agora estava convencida de que o seu homem era capaz de fazer figura em qualquer sociedade. Percorreu todos os aposentos, revistando os móveis, admirando a qualidade fina dos objetos, com exclamações de íntima alegria. Sentou-se ao piano e ensaiou uma escala, achando-o excelente.

-Esplêndido, hein, mamãe? Melhor que o das Cabrais!

Mirou-se ao espelho, numa peça magnífica, de cristal, que o guarda-livros comprara num leilão particular por um preço exorbitante. Subia de ponto a satisfação da rapariga. Esteve quase se atirando ao pescoço do noivo e beijando-o agradecida; contevese, porém. A viúva, essa acompanhava a filha, embasbacada, dando graças a Deus por ter encontrado semelhante genro -«Olha isto, menina, olha, aquilo!» dizia, muito gorda, chamando a atenção da Lídia.

Da sala de visitas passaram à alcova. O guarda-livros guiava-as, na frente, explicando os menores detalhes, a procedência dos objetos, o seu valor. -«Oh! a cama!», saltou a Lídia, sentando-se no belo leito de ferro azul com esmaltes de ouro, armado à inglesa em forma de dossel.»

Achava muito elegante as camas que se estavam usando. Experimentou o enxergão de arame calcando-o com o corpo. Magnífico! A viúva também se sentou um instantinho, e continuaram a visita.

Era quase noite quando se retiraram.

Agora, uma semana depois, num sábado, toda a gente falava no casamento da Campelinho como de um acontecimento extraordinário. A Campelinho, hein? Quem diria!... Uma felizarda! E todos comentavam o fato com ruído, recapitulando a vida inteira da viúva e da filha, lembrando episódios, cochichando malícias, prognosticando o futuro da rapariga, admirando a boa fé do Loureiro. Coitado, ele talvez ignorasse mesmo certos pormenores da vida da Lídia...

Daí quem sabia? talvez fossem muito felizes. Conheciam-se moças malcomportadas que, depois, casando-se, tinham-se tornado verdadeiras mães de família.

O Guedes, da Matraca, esse logo às seis horas começou a beber no Zé Gato mais o Perneta, vomitando todo o seu despeito contra a Lídia que ele cobria de impropérios aguardentados.

Debalde, o Perneta procurava acalmá-lo, o Guedes estava fora de si, com os olhos ensangüentados, esbravejando como uma fera.

-Deixa-te disto, ó Guedes, aconselhava o Perneta. Olha que te podem ouvir, homem!

-Que ouçam, que ouçam, cambada de infames!

E batendo no peito orgulhoso:

-Esse aqui beijou muito aquela tipa, sabes? Não preciso dela para coisíssima alguma, estás ouvindo? Aquilo é uma sem-vergonha muito grande, aquela fêmea!

-Cala a boca, menino...

-Cala a boca, por quê? Pensa você que tenho medo de caretas? Hei-de dizer o que eu muito bem quiser, fique você sabendo!

-Quem te diz o contrário, homem de Deus? O que não é bonito é estares aí a dizer asneiras.

De vez em quando aproximava-se o Zé Gato e suplicava que não falassem tão alto, que na rua se estava ouvindo. Mas o Guedes não atendia a coisa alguma, com o pensamento na Lídia, transbordando cólera, possesso.

Escureceu e ele ainda lá estava no fundo da bodega esvaziando cálices de aguardente, a falar desesperadamente.

Às sete horas dois foguetes queimados defronte da casa da viúva Campelo, no Trilho, deram sinal de que os noivos iam sair. Com efeito, daí a pouco surgiu na calçada Campelinho, caracterizada em noiva, afogada em seda branca, com uma auréola de imortalidade, cabisbaixa, pisando devagar, de braço com a firma Carvalho & Cia.

E àquela aparição levantou-se um rumor em todo o quarteirão. «Já vem, já vem!» era a voz geral.

Logo após vinha o Loureiro com a viúva, em seguida Maria do Carmo e um rapaz empregado no comércio, D. Terezinha, o Castrinho, e outras pessoas de mais ou menos intimidade, duas a duas.

O cortejo desfilou a pé, ante a curiosidade indiscreta da vizinhança que se debruçava nas janelas para ver melhor a noiva -«Como aquilo ia orgulhosa!» disse a Justina Proença, uma paraense equívoca, vizinha de João da Mata. -Tão besta é um quanto o outro -murmurou a mulher do barbeiro com um muxoxo.

Moleques com tabuleiros de doces na cabeça acompanhavam o préstito.

De repente houve um fecha-fecha na esquina onde iam dobrar os noivos.

Que é? Que foi? Recomeçou o zunzum mais forte, como um zumbido de abelhas num cortiço e os boatos circularam vertiginosamente. Toda a gente queria saber o que era, o que tinha sucedido. A verdade é que ao aproximar-se o «casamento» da venda do Zé Gato, saltou de dentro o Guedes, bêbedo como uma cabra, espumando, sem chapéu e pôs-se no meio da rua a vociferar obscenidades contra a Campelinho mais o guarda-livros.

Um escândalo. Soaram apitos; compareceram guardas de polícia; o Zé Gato saiu à rua para acalmar o borracho; foi alterada a ordem do préstito; a Lídia ficou muito branca debaixo do véu e ia tendo uma síncope; o Loureiro quis avançar contra o desordeiro, mais foi detido por João da Mata...

Afinal de contas, depois de alguns segundos, fez-se a ordem e o «casamento» seguiu em paz, direito à igreja do Patrocínio.

O Guedes forcejava por evadir-se dos braços do Zé Gato e do outro sujeito, que procuravam conduzi-lo à venda.

-Sou eu quem te pede, ó Guedes, vamos. Deixa de tolices rapaz; estás dando escândalo, homem!

-Não vou, porque não quero, está ouvindo? Não vou, porque não quero. Eu hoje faço o diabo!

E agachava-se, e caía para trás e tombava para os lados, sem gravata, os olhos esbugalhados, os cabelos em desordem, como um doido. Foi uma luta para acalmá-lo.

Por fim o Zé Gato mandou vir uma xícara de café sem açúcar, deulhe a cheirar limão, e, em pouco, o redator da Matraca dormia beatificamente, debruçado sobre a mesa de ferro onde eram servidas as bebidas.

-Coitado! lamentou o vendeiro. Um talento famoso! É um segundo tomo de Barbosa de Freitas...

Cerca de uma hora depois voltaram os noivos com o seu bizarro cortejo de amigos e amigas, mas agora vinham os dois na frente abrindo caminho, conversando baixinho, com um belo ar de velha familiaridade. Nas fileiras do préstito havia um rumor de franca liberdade. Falava-se um pouco alto, ouviam-se risadinhas gostosas, tinha-se perdido a cerimônia grave de momentos antes. A volta não se parecia com a ida. A alegria dos noivos comunicava-se instintivamente aos circunstantes como se na verdade estes compartilhassem da íntima felicidade daqueles.

Outra vez a casinhola da viúva encheu-se que nem um ovo. No meio dos convidados havia estranhos que invadiam a sala sem cerimônia, imiscuindo-se no tumulto de gente como se fossem amigos velhos, de paletó-saco e gravatas de cores espaventosas.

Ninguém os conhecia, mas ninguém ousava despedi-los, deixandoos ficar, por uma condescendência razoável. Curiosos de ambos os sexos se debruçavam da parte de fora da janela para dentro, espremidos uns contra os outros.

Os noivos tinham-se sentado no sofá, defronte da janela, aconchegados, prelibando as delícias do matrimônio na casinha de Benfica.

Loureiro limpava devagar com o lenço rescendendo opópanax o suor que lhe corria em gotas da testa, encarando com supremo orgulho a curiosidade pulha dos circunstantes.

Pousava os pés sobre o tapete deixando ver as meias de seda cor de carne com pintas de ouro.

Lídia estava divina com a sua suntuosa «toalete» de noiva comprimindo-lhe os quadris rijos e carnudos, muito séria, o rosto afogueado.

O guarda-livros contemplava-a de instante a instante com um profundo olhar apaixonado, de dono que acaricia um objeto querido, sentindo-se mais do que nunca irresistivelmente atraído pela formosura sensual da Campelinho.

D. Amanda, sempre muito solícita, veio convidá-los para a ceia: que estava pronto o chá, e logo toda a gente enfiou pelo corredor atrás dos noivos sequiosa de cerveja e vinho do Porto.

Um rubor de ocasião solene tomou as faces do Castrinho disposto já a brindar os noivos num grande rasgo de eloqüência demostênica.

A saleta de jantar resplandecia à luz dos dois castiçais de vidro com mangas em forma de sino, colocados nas extremidades da mesa. A um canto, sobre uma mesinha de pinho, uma bateria de garrafas de cerveja desafiava a ganância dos convidados. Houve um assalto à mesa. Todos acercaram-se dela com a avidez de gastrônomos, e, antes que os noivos tomassem assento à cabeceira, já havia alguém sentado no extremo oposto. O Castrinho não pôde reprimir um -oh! de indignação, que felizmente passou despercebido. «-Sentemse, sentem-se», ordenava a viúva, inquieta como uma barata à volta da mesa, indicando as cadeiras. Todos se sentaram com ruído, acotovelando-se. Ao lado dos noivos os padrinhos, Carvalho & Cia e a esposa tinham o ar modesto de quem se vê cercado de honras imerecidas. O Castrinho, que não faltava a festa alguma dessa ordem, sentou-se ao centro com uma comoção visível no olhar agitado.

Os curiosos da rua tinham invadido o corredor e assistiam em pé, ao redor da mesa, àquela cena banal, de doze pessoas que comiam bolo à guisa de pirão de farinha; ao todo eram quatorze, mas o Loureiro e a Lídia, por um escrúpulo mal-entendido, apenas provaram o delicioso manjar e cruzaram o talher.

O Castrinho não se fez demorar muito. Quando menos se esperava, ei-lo de pé empunhando o cálice.

-Silêncio, silêncio! advertiu uma voz.

O poeta das Flores Agrestes pigarreou solenemente abrangendo com um olhar vitorioso toda a saleta, e enfiando a mão direita no bolso da calça, com um grande ar de tribuno acostumado a falar às massas, começou:

-Meus senhores e minhas senhoras.

Fez-se um silêncio grave e recolhido, em que destacava apenas, muito de leve, o ruído dos talheres que continuaram a funcionar ativamente.

-Eu faltaria ao mais sagrado dos deveres...

Uma voz: -Não apoiado.

-... Se neste momento solene, em que toda a natureza veste-se de galas para receber em seu vastíssimo seio os noivos presentes... eu, o mais humilde amigo desta casa...

-Não apoiado...

-... Não erguesse a minha fraca voz para... para saudar... para saudar o himeneu destas duas criaturas (apontando para os noivos) nascidas «no mesmo galho, da mesma gota de orvalho»... como diria o nosso Casimiro de Abreu...

-Bravo! murmurou o mesmo apartista dos não apoiado numa voz cava, com a boca cheia.

O orador, visivelmente inquieto, sem tirar a mão de dentro do bolso, endireitou a gravata com pancadinhas suaves, e, mergulhando o olhar na fruteira, continuou:

-Sim, meus senhores... e minhas senhoras, o casamento é a base de toda sociedade civilizada; o casamento, como dizia certo escritor, cujo nome não vem ao caso citar... o casamento é a mais nobre de todas as instituições, e o homem que se casa dá um passo para o infinito, isto é, para Deus!...

Uma salva de palmas cobriu as palavras do Castrinho, que agradeceu comovido. No peito de sua camisa, muito alva e lustrosa, reluzia uma pedra duvidosa.

Crescia a animação da festa. Os talheres batiam nos pratos com mais força e as palavras do liceísta comunicavam ao auditório certo entusiasmo sereno que se traduzia em apetite voraz e insaciável secura nas gargantas. Ouviam-se trabalharem as mandíbulas.

Houve uma pausa depois da qual o Castrinho, tomando o cálice cheio, concluiu com ênfase:

-... Portanto, eu brindo ao ditoso par, desejando-lhe um futuro de rosas banhado pelos eflúvios do amor conjugal...

E, escorropichando o cálice:

-Aos noivos!

-Hip, hip, hurra!

Todos se levantaram.

-Loureiro...

-D. Lídia...

-Sr. Castro não quer se servir de um pedacinho de bolo de mandioca? ofereceu a viúva por trás do poeta.

-Agradecido, minha senhora, agradecido... Estou satisfeito.

-Então, mais um pouco de vinho... Aceitava, pois não.

-Não façam cerimônia, minha gente, observou D. Amanda. Já acabou, Sr. João da Mata? Um pinguinho de doce de caju, Sr. Alferes... E você, menina, coma sem cerimônia.

Maria do Carmo não podia disfarçar a tristeza, a ponta de inveja concentrada que lhe tomava de assalto a alma inteira. Sentara-se à mesa por civilidade, para corresponder aos reclamos da viúva, mas o seu único desejo era ir-se embora para casa; a festa da amiga fazia-lhe mal aos nervos, e, demais, o Zuza proibia-lhe de ir a qualquer parte onde ele não estivesse. Fora ao casamento da Lídia, porque o padrinho a obrigara, não por sua espontaneidade. E agora ali estava casmurra, silenciosa, com um arzinho recolhido de filha de Maria, vendo sem ver, ouvindo sem ouvir as pessoas e os ruídos, numa abstração infinita, no meio de toda aquela gente que festejava o casamento da amiga. Agora, mais do que nunca, por um excesso de sensibilidade nervosa, doía-lhe no coração de pomba desolada não poder, como a Lídia e como outras tantas raparigas felizes, amar livremente, sem ter que obedecer aos caprichos de um padrinho atrabiliário e despótico como João da Mata. Enquanto os outros divertiam-se sorvendo cálices de vinho, saudando aos noivos, ela, toda entregue a seus pensamentos, permanecia muda e bisonha como quando pela primeira vez apresentara-se à sociedade, logo ao chegar de Campo Alegre, menina ainda, matutinha. Ah! naquele tempo ela tinha o seu papai e a sua mamãe perto de si, não era como agora, anos depois, uma simples, uma pobre, uma desprezada órfã, assistindo com uma grande tristeza egoísta derramada nalma à felicidade alheia triunfante...

-Atenção, meus senhores! Atenção!

Desta vez ia falar o alferes Coutinho, quartel-mestre do batalhão, um moreno, de costeletas, cabelo penteado em pastinhas, certo ar arrogante de pelintra acostumado a todas as festas desde os sambas do Outeiro, aos bailes do Clube Iracema; magricela, olhos cavados. Nas horas de ócio dava-se ao luxo de fabricar sonetos no gênero piegas dos últimos trovadores de salão.

Arrastava ao piano as valsas em moda e dizia-se exímio tocador de flauta.

Convidado a toda parte, não perdia ocasião de exibir-se na poesia ou na música. Tinha fama de primeiro recitador do Ceará, ninguém como ele sabia marcar uma quadrilha, todo enfezado, sempre de lenço na mão, metido invariavelmente na sua farda de alferes com colete branco.

Houve um silêncio profundo. Todas as vistas caíram de chofre sobre o militar como se de sua boca fossem sair preciosas revelações.

Era o alferes Coutinho? Oh! magnífico! Psiu!... psiu!... Silêncio!...

-Meus senhores. Respeitabilíssimas senhoras... Não dispondo de dotes oratórios, tão úteis nas ocasiões solenes como esta, eu, que tenho a honra de pertencer à falange dos discípulos de Castro Alves, Casimiro de Abreu, Varela e tantos outros astros de primeira grandeza, que brilham no firmamento da poesia brasileira, eu vou ler uns versos de minha lavra, que tomei a liberdade de dedicar aos donos desta festa inolvidável...

Nem um aparte. O mesmo silêncio cauteloso e recolhido. A noiva abaixou a cabeça afetando modéstia e Loureiro fixou o olhar atrevidamente no orador. Mas o Coutinho, calmo e desembaraçado, sacou do bolso da farda um papel, e lendo:

-Noite de Núpcias é o título dos pobres versos...

-Não apoiado...

-... que tenho a honra de oferecer à Exa. Sra. D. Lídia, uma das estrelas mais fulgurantes que ornam o céu da sociedade cearense...

Lídia estremeceu com um belo sorriso de agradecimento.

-... e ao Sr. Dias Loureiro, inteligente e zeloso guarda-livros da nossa praça, ambos, portanto, dignos um do outro e da nossa eterna amizade...

-Apoiadíssimo, confirmou Carvalho & Cia., palitando os dentes.

Sem mais preâmbulos o alferes entrou a declamar com uma convicção admirável os tais versos de sua lavra, uma enfiada de palavrões antigos e bolorentos, que ele procurava animar com a sua voz de trovão, seca e cavernosa, brandindo o papel com a mão esquerda e a direita gesticulando como se estivesse a marcar compasso de música.

Ao terminar o último verso.

«Chovam bênçãos de amor sobre os que casam!»



Uma salva de palmas forte e prolongada ecoou na pequenina sala.

-Bravo! muito bem! muito bem!

E o poeta sentou-se agradecendo com repetidos movimentos de cabeça às manifestações de que era alvo. Diversas pessoas levantaramse e foram cumprimentá-lo de perto. Um velho calvo, que se sentava a seu lado, lembrou-se de perguntar-lhe ao ouvido «se o Sr. Alferes era cearense.»

-Não senhor, respondeu o Coutinho, voltando-se gravemente; sou guasca, nasci na cidade de Porto Alegre.

E contou quando viera para o Ceará, disse a sua grande simpatia por essa província e que pretendia se casar com uma cearense.

O «brinde de honra» feito em duas palavras por Carvalho & Cia., à D. Amanda, «encarnação de todas as virtudes domésticas, senhoras de incomparável brandura e sisudez.»

-Hip! hip! hip! hurra!

Foi um delírio esse final de banquete nupcial, em que tomavam parte o exército representado pelo alferes Coutinho, a poesia na pessoa do autor das Flores Agrestes e o comércio em grosso simbolizado no ventre obeso de Carvalho & Cia. Esgotaram-se as botelhas de vinho do Porto e de cerveja com um açodamento de quem não bebia água há três dias e depara uma piscina abundante do precioso líquido. E, ao levantarem-se da mesa, os convidados olhavam com soberano desdém a toalha manchada de nódoas de vinho sobre a qual havia uma confusão grotesca de copos e pratos em desordem, abandonados ali como restos de um festim sardanapalesco. Uma coisa tinha sido respeitada e conservava-se no mesmo lugar em que fora colocada pela mão zelosa de D. Amanda, era o paliteiro de prata representando um alcaide com chapéu de três bicos e aspecto napoleônico, de braços cruzados, numa imobilidade de objeto de luxo que se receia tocar por escrúpulo.

Os espectadores intrusos evacuaram o corredor com a mesma facilidade e ligeireza com que se tinham introduzido, e depressa a sala de jantar ficou entregue à viúva e ao criado, que se ocuparam de cobrir os restos dos bolos recolhendo-os ao guarda-comidas. O troço dos comensais, homens e senhoras, enchia a sala de visitas, cujas cadeiras estavam todas ocupadas, e palrava agora desembaraçadamente numa atmosfera pesada de fumaça e heliotrópio -umas abanando-se com os grandes leques de cetim, outros com os lenços, porque o calor crescia. Transpirava-se por todos os poros, o que fazia o alferes Coutinho trazer constantemente o lenço no pescoço, resguardando o colarinho onde já havia sinal de suor. A janela estava tomada por algumas pessoas que formavam roda ao redor do Loureiro, em pé. Senhoras entravam e saíam da alcova com o ar desconfiado, compondo discretamente os vestidos.

Deram dez horas no relógio da Sé, cujas badaladas faziam-se ouvir, graves e sonolentas, em todo o âmbito da cidade.

Dez horas! Carvalho & Cia. consultou o relógio. Havia uma pequena diferença de dez minutos. Safa! o tempo voava!

E, alto, levantando-se:

-Vamos, Quininha?

-É muito cedo ainda! acudiu a Lídia que conversava com Maria do Carmo, no sofá.

-É verdade, minha gente! saltou D. Terezinha saindo da alcova. Os noivos precisam descansar. Dez horas!

-Estávamos tão distraídos! disse o alferes Coutinho puxando os punhos.

-Vamos, vamos, repetiram muitas vozes.

-É cedo, minha gente! implorava a Lídia muito amável, com um sorriso de irresistível faceirice.

Imediatamente todos se levantaram impulsionados pela mesma idéia à procura dos chapéus, num rebuliço crescente, aos encontrões, enfiando pela alcova e pelo corredor.

Estrondou um bocejo senil e demorado, que se propagou por ali afora -era o velho calvo, de óculos, que se tinha encafuado a um canto da sala cochilando, e que despertara agora num espreguiçamento, como se estivesse em sua própria casa.

As senhoras agasalhavam-se nos fichus, defronte do espelho.

Amanda, de um lado para outro, de dentro para fora da alcova, não descansava as pernas.

Começaram as despedidas.

Que de beijos estalados à queima-roupa! Em pé no meio da sala, os noivos competentemente formalizados, agradeciam reconhecidos a chuva de felicitações que caíam sobre eles à guisa de flores desfolhadas sobre suas cabeças, ao mesmo tempo que Lídia ia distribuindo a uns e outros botões de laranjeira.

Que fossem muito felizes; que tivessem uma eterna lua-de-mel; que fossem muito unidos sempre como dois irmãos; que não esquecessem as velhas amizades...

-Olhe, minha filha, aconselhou D. Terezinha com a mão no ombro da Lídia, depois de a ter beijado. Olhe, seja sempre boa para seu maridinho, faça o que ele quiser, o que ele mandar. O homem é que faz a mulher e a mulher é que faz o homem. Adeus, ouviu?

Todos tiveram mais ou menos o que dizer aos noivos.

-Não esqueça o que lhe pedi, ouviu Lídia? recomendou de fora uma voz de mulher.

-Boa-noite!

-Sejam felizes!

-Durmam bem!...

Em pouco todos tinham-se retirado. Havia ainda alguns curiosos fora, na calçada. Loureiro mandou aproximar o carro que o esperava. A rua estava silenciosa e escura como se fosse alta noite. Defronte, em casa de João da Mata, fecharam-se as portas apagando-se completamente a última luz que clareava aquele trecho da rua do Trilho.

Amanda chamou a filha à alcova onde estiveram conversando alguns minutos, e depois, abraçando-a ternamente com os olhos úmidos:

-Deus os conduza em paz...

Lídia beijou comovida a mão da viúva e, dando o braço ao Loureiro, entrou no carro que rodou em direção de Benfica, com a sua luzinha amarela tremeluzindo no escuro.

Minutos depois D. Amanda recebia, como de costume, o Batista da Feira Nova.