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Daniel Moyano: Nós continuaremos matando sapos

Cecilia Zokner





Nascido em Buenos Aires, Daniel Moyano viveu sempre no interior da Argentina. De La Rioja partiu em exílio voluntário para a Espanha onde se encontra atualmente. Sua obra compõe-se de cinco livros de contos e de três romances. Respectivamente: Artistas de variedades (1960), La lombriz (1964), El fuego interrumpido (1967), Mi música es para esta gente (1970), El estuche del cocodrilo (1974) e Una luz muy lejana (1967), El oscuro (1970) e El trino del diablo (1974) que está sendo traduzida ao francês. O contó «Tía Lila» faz parte de um livro inédito, ainda sem título e que foi escrito no exílio. As palavras de Daniel Moyano foram recolhidas por Cecilia Zokner no dia 12 de maio de 1980, em Paris. Neste texto, as palavras seguidas de um asterisco referem-se à entrevista concedida a Maria Esther Gilio, publicada na revista Crisis (n.º 22, fevereiro 1985).

Existe algo de extraordinário num homem que não receia usar as suas mãos naqueles trabalhos relegados pelos colonizadores (e que seus descendentes continuam desprezando com a mesma veemência) aos que não tiveram a sorte de nascer em berco esplêndido (ou pelo menos de viver à sombra dos que nele haviam nascido). Que não receia abandonar o que já alcançou para reconstruir uma vida longe da arbitrariedade e da violência.

Mas claro! sempre trabalhei de encanador, de pedreiro. Por que se surpreende?

Eu me tinha feito um lugar ao sol na Argentina. Era correspondente de um jornal de Buenos Aires, professor de violino no conservatório.



Daniel Moyano. Um rosto de índio, tranqüilo, feliz de poder comunicar-se com as pessoas. No dia anterior ao da entrevista havia lido num dos anfiteatros da Sorbonne, um de seus contos: «Tía Lila». Em poucos instantes, a figura da tia, vestida de branco, bondosa e confiante dominou a sala onde a voz do narrador recriava a escrita.

Eu sou, simplesmente, um contador de estórias, trato de distrair o leitor. Como dizia Julio Cortázar: é preciso não esquecer o sentido lúdico da Literatura.



Começou a escrever para entender as coisas. Uma cidade grande, monstruosa, como era Córdoba para ele, ou para compreender um tio cuja maldade era um mistério. Então, se a realidade «nega uma dimensão» o escritor a inventa como o seu avô fazia ao contar-lhe estórias num italiano mesclado com o português.

Meus avós chegaram em 1900 ao Brasil. Antes de se transladarem para a Argentina nasceu minha mãe. Ela se casou com meu pai cujo sobrenome era Moyano: o dela, Bellini. Pois bem, as canções de ninar que escutei na minha infância eram brasileiras. Por isso, ao ler Guimarães Rosa, na realidade, as coisas me são familiares porque, de alguma maneira as ouvi de minha mãe, nascida em Minas Gerais. Não sei até que ponto estórias acontecidas nas selvas do Brasil, contadas por meu avô terão influenciado minha vocação de escritor. Meu avô um pouco inventava e outro recordava. No Brasil, quando casou, era peão numa fazenda. Uma das estórias se referia a sua noite de núpcias. Que vizinhos de outra fazenda lhe deram de presente quatro tinas de vinagre. Para quê? havia perguntado. Ponha cada uma das tinas em cada um dos pés da cama, para espantar cobras, fora a resposta. Também contava que de manhã, ao acordar, dizia a minha avó: o que vamos comer hoje? carne ou peixe? Carne, respondia minha avó. Então ele, sem levantar-se da cama, com o cano da espingarda abria as cortinas da janela e atirava sem olhar. Sempre caía duma árvore um pássaro muito grande. E se lhe dizia peixe, pois ia para um afluente do Amazonas, empurrava com o pé os crocodilos que estavam aí, atirava o anzol e saía um savel de cinco quilos. De tudo isso se nutriu a minha infância. Na verdade, meu avô viveu na Argentina com a nostalgia do Brasil: o paraíso perdido. Agora, conto a meus filhos as estórias que ele me contava e cada vez faço novas interpretações, pois embora as palavras continuem as mesmas, a vivência interior é diferente.



A visão paradisíaca do Brasil confirmando (ou reproduzindo) a imagem da terra onde riqueza e abundância suprem o trabalho: o trabalho que não é mais necessário para viver neste bastar estender a mão e servir-se (noção que muito estrangeiro ao chegar no Brasil ainda traz consigo e que muitos brasileiros praticam ao desmatar, poluir, aproveitar-se):

Agora leio Guimarães. Mas é claro! Se é o mundo deles!



Guimarães, Drummond de Andrade (por quem pergunto), Clarice Lispector (escreveu um artigo sobre sua obra quando foi traduzida para o espanhol) são os brasileiros que cita. Adolescente, seu avô lia para ele o Martín Fierro e a Divina Comedia, em italiano. Um alemão, seu mestre no ofício de encanador, o iniciou, também na leitura de Novalis, Rilke, Heine. Mais tarde leu Kafka, Pavese, Céline, Rabelais, os autores que o marcaram. Escritor, faz parte de urma geração -Haroldo Conti, Antonio Di Benedetto, Juan José Hernández, Germán Rosenmacher, entre outros, igualmente escritores do interior para quem o acesso às editoriais de Buenos Aires era tradicionalmente, difícil.

Buenos Aires atua em relação às pessoas do interior de um modo absorvente, centralizador. O portenho considera que um homem do interior é um homem do interior. Condenado ao folclore e ao pitoresco. E, creio que minha geração rompeu um pouco com isso ao não fazer panfleto político nem o pitoresco. Mas tratando de inserir na paisagem o homem do interior. É deste homem que falam minhas obras.



O que significa falar, também, daquele homem que o bispo Angelli define como o que não tem voz e que para Daniel Moyano é o «que não pode falar, nem vai falar nunca». Ou seja, aquele que só está perto das classes dominantes quando é personagem de livro. Do livro que não lê. Hoje, Daniel Moyano escreve no exílio.

O que fiz nos quatro anos de exílio: um romance que se chama El vuelo del tigre, um livro de contos que ainda não tem título e ao qual pertence o conto que escutaste. Procura ser um livro positivo sobre o exílio, não um lamento. Quer dizer, faço uma reflexão sobre o exílio, mas creio, ou tento, ao menos, que esteja cheia de vida e de afirmaçao, não do fato em si, mas ao menos das circunstâncias que a ele me levaram.



As sobejamente conhecidas circunstâncias que, na América Latina, colocam, sempre colocaram frente a frente duas minorias que respondem pela maioria: aquela que tem voz e fala (eventualmente goza também de privilégios) e a outra, a detentora dos privilégios, procura conservá-los. A primeira busca a palavra e a outra, o silêncio. A palavra desejando a mudança; o silêncio, a estratificação. Estas forças desiguais a se oporem levam ao fracasso da mais débil. Aquela que possui somente a sua voz. E que silenciada, parte para construir um destino em outras terras. Um país se esvai para o outro que sabe recolher -e usufruir- a contribução. Escolha que não é fácil para o vencido. Por que sair? Como sair? Como refazer uma vida, na maioria dos casos, várias vidas?

Eu saí legalmente do país. Na minha província havia tensões. E da justiça arbitrária, também eu recebí a minha parte. Fui detido por vários dias. Como não tinha feito nada tiveram que me soltar. E nunca me disseram o porquê da prisão. Não me explicaram nada... Fui levado de minha casa, estive diversos dias numa cela de castigo, não sei porquê. Saí. Perguntei: posso ir embora? Disseram «Vá para onde quiser». Mas por que me prenderam? «Não sabemos e é melhor não preguntar».

Para mim foi uma humilhação muito grande. Uma situação de violência que eu não queria, não tinha a energia suficiente para tolerar em meu país. Eu não queria que meus filhos se criassem em meio a essa violência. E por isso viemos para a Espanha, onde já estamos há quatro anos.



Exílio. «Duro e difícil». Buscar trabalho. Adaptar-se ao ritmo da enorme cidade, ele, o homem do interior que em ha La Rioja fazia parte de um quarteto musical e que, agora, deixou que passassem quatro anos para tomar novamente o seu instrumento e tocar. Mas, nesse refazer-se, nesse refletir de exilado, a obra continua fluindo.

«Tía Lila» este conto tem estado sempre dando voltas dentro de mim. Quer dizer: a mim, como a qualquer escritor -Como vou te dizer? -me incitam determinadas situações, determinados momentos me incitam a escrever. Porém, necessito de uma resposta interna para isso. Quando comecei a escrever contos, escrevia tudo o que me ocorria. Agora, não. Seleciono. Se o considero necessário, escrevo. Sobretudo, se tenho uma resposta interna: uma pequena música, digamos. Preciso de um ritmo, algo sonoro. Então... Essa é a história de Tia Lila. Que é inventada, porém baseada num fato real: que as crianças chutam sapos. Eu chutei sapos quando era pequeno. Jogava futebol com sapos. Agora, claro que não o faria... Pensei nesse ato de crueldade muitas vezes e, sobre a razão de escrever tudo isso. Eram perguntas que eu me fazia na Argentina. Mas, depois de chegar na Espanha e pensando sobre a crueldade. Sobre a crueldade que atualmente existe no meu país e que não é com sapos, pensei: ah! mas isto pode explicar um pouco... pode explicar um pouco a crueldade; porque não vou por a culpa nem na guerrilha, nem nas forças armadas, nem em ninguém, daquilo que está acontecendo. Nós todos somos culpados de uma maneira ou de outra do que acontece em nosso país, portermos permitido isto, por termos permitido aquilo. Então, eu, que tenho tendências a adjudicar-me de culpas -não naquele grau de Gogol que acreditava ser culpado de todos os pecados- eu, de certo modo, me sinto também um pouco culpado do que se passa no meu país. Ao refletir sobre a crueldade, pensei: claro! Eu posso escrever o conto da crueldade. E a idéia começou a trablalhar e a me envolver. Não tinha nada de concreto para dizer sobre isso até que um dia, meu companheiro Osvaldo Gomariz, que é pintor, me disse: «eu tinha uma tia nas serras de Córdoba que usava um vestido branco». Ah! que bonito... Como se chamava a tua tia? «Lila». Oh! que lindo... Lila... Sim, lhe disse, não contes mais, por favor. «Por que?» Não quero que me contes mais. Vou escrever uma estória como a Tia Lila (ela sim era modista). No meu conto, todas as tecedeiras da serra vão lhe tecer o vestido branco. E, um pouco é como se a tia Lila fosse o meu país. A mancha de sangue no seu vestido é algo dessa doença que ele está padecendo. Então por isso escribi. Havia chegado o momento, era necessário fazê-lo. Além disso, me veio a musiquinha: pobre Tia Lila... Ah! pobre tia Lila... Olha, este conto se escreveu sozinho. Esta tia Lila com seu vestido branco ja existia. Eu tinha os sapos. Tudo o que fiz foi rebentar um sapo no peito de tia Lila. Nada mais. A estória se fez sozinha. E tu podes ver: o conto não está contando coisas. Nele estão acontecendo coisas. Estas crianças cruéis, estas crianças cruéis que matam sapos... Todo o livro é mais ou menos assim. Trato de resgatar coisas, lembranças. Trato de explicar-me não de uma maneira ensaística, nem sociológica, nem filosófica. Foi pensando no sentido lúdico da literatura que trabalhei Tia Lila. E não é fácil. Mais fácil seria escrever uma coisa patética. Caso se queira, Tia Lila é humor negro, não? Mas depois, quando tu refletes (ou quando o estás escutando), creio que te comunica uma realidade. O sapo, as crianças cruéis contrastando com uma Tia Lila tão religiosa, querendo que eles rezem...








Tia Lila1

Pobre tia Lila, com seu vestido branco, tão alta, tão solteira. Um vestido em que trabalharam todas as costureiras das serras para plissá-lo e dar-lhe essa forma de sino ondulante que tia Lila tinha todas as tardes quando nos chamava para rezar. Meninos, larguem já essa bola; vão lavar as mãos, esfregar os joelhos e assoar o nariz que vamos rezar. Um vestido tão plissado que ela podia levantar ou mexer para qualquer lado sem que se lhe vissem os joelhos. Nunca se acabavam as pregas; nem sequer quando ela tomava as rendas da roda e levantava o vestido com seus braços para ser um pavão real, juntando os braços em cima da cabeça, fechando lá em cima as duas pontas para ser roseta. Ou puro remoinho se dançava, o vestido se abria e gira-va e girava como o redemoinho onde se afogou o tio Jacinto. E que maneira de ter rendas e bordados o vestido de tia Lila. Fios de todas as cores formando grandes borboletas no peito, repetidas nas mangas fechadas nos punhos com tirinhas amarellas, tudo fechando a tia Lila numa grande brancura.

Meninos, hoje vamos a Cosquim visitar o tio Emílio. E comportem-se bem, não levem as fundas, não matem pombinhas da virgem, não apanhem pintassilgos; comportem-se bem com o tio Emílio que é tão bom e vai lhes dar leite de cabra, pão com torresmo e mel da sua colméia. Cuidado, meninos, se comportem bem, sejam ajuizados na casa do tio Emílio tão bom, tão formoso. Nada de caçar passarinhos nem de enfiar-lhes agulhas, vocês podem ficar cegos de um momento para outro se fizerem isso. Vejam o tio Emílio que é tão bom e nunca matou passarinhos. Por isso o melhor é comportar-se bem. Ir colher agrião, peperina2 e araçá para o tio Emílio, e não se esquecer de pedir-lhe a benção. E não podemos levar a bola? Não, isso não, diz a tia Lila, porque então jogam e gritam demais, os gritos deixam nervoso o tio Emílio e além disso espantam as suas abelhas.

Que Deus os abençoes, meus queridos, diz tio Emílio tocando-nos a cabeça. E agora venham ver minhas flores, meus apiários, meus cabritos, meus melões, minhas jaulas com Sete Cores, meus canteiros de margaridas e coroas de noiva. Não, obrigado tio Emílio, queremos ir brincar no campinho. Bem, filhos, vão com Deus; mas não se misturem com os negros, não briguem nem se insultem. Não, tio Emílio, porque Deus está em todo lugar e está vendo e de lá há de vir julgar aos vivos e aos mortos.

Do campinho fazemos sinais aos negrinhos das malocas que vêm como moscas, tchê, não têm bola? Poderíamos jogar uma partidinha. Imagine se eles vão ter bola. Mas fazem sinais com os olhos para que olhemos para o chão. E aí vemos um montão de sapos que tinham saído do arroio para procurar bichos, dê-lhe saltar pelo campinho.

O melhor disto é que a bola ajuda a driblar, se dribla sozinha. Boa bola saltante para os bons chutes de voleio. O ruim é quando se tem que mudar de sapo. Às vezes te cortam em pleno avanço dizendo, tchê, essa bola já não vale, agora é esta. Então discutimos muito, gritaria, meninos, que estão fazendo no campinho, chega a voz de tia Lila.

Carozo e Titilo formaram dois times. Eu no gol de Carozo, Beto no de Titilo. E quatro negrinhos para cada time. E um montão de sapos, que de certo modo também são jogadores, alternadamente; eles, quando não sao bola, vão saltando pelo campinho como se jogassem: um que sobe e outro que desce, sempre saltos, desde o arroio até a casa do tio Emílio, até seus canteiros de coroas de noiva, tudo é um palpitar de sapos.

Nisso há um passe alto de Titilo. Um negrinho vem na corrida com intençao de cabecear, porém bem na hora lembra que a bola é sapo e então apara com o peito, não o deixa chegar no chão, joga pacas o negrinho; amortece no joelho, controla com a esquerda e chuta com a direita a meia altura e violentamente. Eu estou bem colocado, encaixo sem problemas. Mas, logo salto, jogo para trás, por cima do travessão, está gelada esta bola, corner, gritam vários. Automáticamente vou atrás do gol buscar a bola quando chega a voz de Titilo dizendo que a deixe, já não serve. E lá do corner com as patas abertas vem girando outro sapo, a pança embranquece quando passa em frente ao arco, perigo para mim, sai atrasado, quando Carozo salva a situação tirando de sem pulo, um chute espetacular que pega de surpresa o outro goleiro, que nem vê o sapo quando passa alto junto ao poste quase no ângulo e se despedaça sabe lá onde. Já estamos de um a zero, nos abraçamos com Carozo e os negrinhos.

Meninos, não se sujem, diz tia Lila, debaixo da magnólia. E daqui a pouco venham que vamos rezar todos juntos pelo tio Jacinto que está morto pobrezinho.

Nós não queremos rezar nem que nos contem outra vez a estória do tio Jacinto. Já nos esquecemos dele. Sabemos que tinha bigodes e que usava chapéu porque assim está no quadro, na parede.

É que o remoinho o afundou e o devolveu três vezes à superfície, diz sempre tia Lila mostrando-nos três dedos brancos, e ninguém foi capaz de alcançar um pau ou uma madeira ao pobrezinho, na terceira vez já não voltou a sair mais.

Se afogou de burro, dizemos sempre com Titilo. Nós que sempre nadamos em remoinhos. É melhor que em águas mansas. A gente se deixa levar girando para baixo um par de metros, e no fundo o remoinho é um pontinho que não tem força, acaba em zero. Tudo o que se tem que fazer é apoiar um pé e com um impulso sair para o lado e já se está fora da rotação. Depois nadar até a superfície e outra vez prá dentro. Como tobogã, porém mais divertido. O remoinho não existe no fundo do rio, todo mundo sabe disso, menos tio Jacinto. E o que lá estavam lhe diziam: dê um impulso quando estiver em baixo, senhor Jacinto, leve em conta que o remoinho o levará debaixo para cima somente três vezes. Diziam-lhe com palavras e gestos no caso que fosse surdo, no entanto, ele, nada. Ele também fazia sinais que, evidentemente ninguém entendia. Os outros lhe diziam três, três dedos para que os visse e ele mostrou, cada vez que emergiu, três dedos, dedos, nove dedos. Três vezes lhe diziam es outros, porém ele nada, fazendo seu testamento, três vacas, sete ovelhas, nove canários, tudo isso deixo a meu querido irmão Emílio. Os bigodes e o chapéu pingando. Três vezes te perdoa o remoinho. Mas ele, nada. E claro, a terceira vez, o remoinho o levou ao caralho. Então que se foda, dissemos com Titilo.

Que fazes, imbecil, me grita Carozo quando deixo passar um gol, quando não vejo o sapo que passa como um relâmpago entre minhas pernas, tudo por me lembrar do tio Jacinto. Porém, é gol anulado: a bola é esta, diz um negrinho que se lança sozinho para o outro gol, e quando vai chutar sai Titilo, trombada, a arrebatar e a trocar de sapo.

Depois de um chute alto demais para mim. Titilo sabe que eu não sei pegar bolas altas e ele procura o empate como louco. Pulo tudo o que posso e consigo roçar a bola com os dedos, mas nada, me escapa, o branco para baixo, lá longe o sapo vai parar contra a jaula de Sete Cores de tio Emílio. E logo a voz de tia Lila tão boa, tão crédula, a voz que diz por amor de Deus, deixem esse sapo em paz meus queridos e venham rezar. Ela falando de um sapo e nós que já havíamos usado uns vinte.

Parem, penalti, gritaram todos. Do penalti do empate me lembro bem. Discutimos para ver quem chutava. Era um sapo grande, gordíssimo, que não ficava quieto na frente do arco, enquanto discutiam. Era colocado no lugar e sempre agarrava para o lado do arroio. No fim chutou Titilo, como sempre. Voltaram a pôr o sapo no seu lugar. Titilo olhou, pegou corrida e deu um chute a meia altura que não pude lamentavelmente pegar, enquanto ouvia o grito de tia Lila como indo-se do mundo, caindo em remoinhos, enquanto víamos que seu vestido branco mudava rapidamente de cor, enquanto ouvíamos seu grito mais suave, como se fossem sinais de grito, lânguido, como se em vez de gritar estivesse dizendo que fizeram meus queridos, não se esqueçam que Deus e o tio Jacinto os estão olhando lá do céu.

Gol, golaço, gritam Titilo e seus negrinhos que se abraçam com o Beto. Eu me retorço de raiva no chão, mordo o capim. Deixar meter o gol e além disso sujar o vestido da tia Lila. Agora ela vai pensar que não gostamos dela. O vestido tão branco, tão bordado, e tão rendinhas, entre as duas mariposas rebentou o sapo, na altura do corpinho do vestido de tia Lila pavão real e roseta.

É chatíssimo rezar quando se sua. Suando é impossível concentrar-se no retrato de tio Jacinto, iluminado com velas. Rezamos olhando de vez em quando a tia Lila que chora, so de anáguas, lavando seu vestido numa bacia. Nunca saberemos se chora por seu vestido ou pelo tio Jacinto. Titilo reza olhando o retrato, porém os olhos lhe sintilam de alegria. Eu rezo tratando de dissimular a raiva que ainda tenho. Um pouquinho mais e o encaixava, o agarrava por um pé que sei eu, e o mandava a corner. Se tivesse me esticado mais ganhávamos de um a zero. A tia Lila de quem no verão seguinte tínhamos nos esquecido como ao tio Jacinto porque depois não voltanos mais às serras. A tia Lila acreditando em tantas coisas boas. A tia Lila que, dizem, nunca pode tirar inteiramente as manchas de sangue que fizemos em seu vestido branco. A tia Lila sem saber que nos continuaríamos matando sapos.



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