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Literatura do Continente

Cecilia Zokner






ArribaAbajoMigrações

O Estado do Paraná, 17 de setembro de 1989


Houve um tempo em que o Continente era a esperança dos deserdados do Velho Mundo. Somos um número imenso de aventureiros de capa e batina que vagamos pelo Velho Mundo, a Espanha faminta e iluminada nos sacudiu de sua pele como um punhado de piolhos e aqui estamos, disse Carlos Droguett, o escritor chileno, pela boca de um de seus personagens.

E, centenas desses aventureiros atravessaram os mares, povoadas as cabeças dos sonhos mais diversos: terra para plantar, ouro para enriquecer, glória para se imortalizar.

Entre os sonhos, as lutas infindas e repetidas, avançando nos séculos até tornar impossível, para alguns, a vida no Continente. Inicia-se, então, o caminho de volta, a nova travessia dos mares feita, agora, não mais de esperanças, mas de medos.

No Zampanó, velho barco de bandeira italiana, se amontoam setecentos desses indesejáveis que o Novo Continente, repetindo a metrópole, sacode de si como se fossem piolhos e os abriga a partir. Barco imaginário ou real -fronteiras que tantas vezes se diluem- cuja travessia do Atlântico se inicia em Buenos Aires e termina em Barcelona. O exílio vai-se inscrevendo. No choro sentido do gordo ao ver Buenos Aires desvanecer-se enquanto o barco desliza mar adentro; no dar-se conta que o Cruzeiro do Sul não irá mais ser visto no céu do hemisfério norte.

Daniel Moyano é um ficcionista que relata em Libro de navíos y borrascas (1983) o talvez pequeno gesto, o quem sabe pequeno fato de uma tragédia, iniciada antes do começo da viagem. No momento exato em que o personagem-narrador é preso. Um momento que se prolongará além da chegada do barco nos cais de Barcelona. Como aconteceu com ele próprio. Sua viagem começou no dia em que foi preso pela repressão Argentina, levando-o a auto-exilar-se. Fazendo o caminho inverso daquele seu antepassado que, da Europa, veio fazer a América, Daniel Moyano se instala, em 1976, em Madrid.

No ano passado, foi convidado para a recepção oferecida pela Corte Espanhola, quando da entrega do Prêmio Miguel Cervantes ao mexicano Carlos Fuentes. Contou, depois, numa crônica que -após o terceiro uísque- sentiu uma vontade muito grande de pedir ao rei da Espanha que fizesse algo pelos habitantes do Cone Sul. Afinal, como responsável consangüíneo do descobrimento da América, podia contra qualquer dos ditadores que ainda ficam, especialmente Pinochet e Stroessner. Podia mandar uma armada ou algo assim.

Independentemente de pedidos ou armadas, os ditadores citados começam a partir. Talvez outros cheguem e partam. Enquanto isso, a América ainda será, por algum tempo, o Continente das aves migradoras.




ArribaAbajoDaniel Moyano: para isso servem as palavras

O Estado do Paraná, Curitiba, 15 de outubro de 1989


Nos três últimos meses de 1981, Daniel Moyano escreveu, em Madrid, um romance publicado com o título de Libro de navíos y borrascas. Como diz Rolando, o narrador, a intenção primeira fora contar as aventuras dos exilados do Cone Sul em Madrid e em outras cidades européias. Mas, iniciada a narrativa com a partida do navio, Buenos Aires se desvanecendo na distância, a viagem foi invadindo os demais capítulos e o romance se fez em torno dessa travessia. do Atlântico pelos indesejáveis entre argentinos, chilenos, uruguaios que algum governante do Cone Sul decidira serem «persona non grata».

No navio, iniciam o aprendizado do exílio: prescindir de tudo aquilo que faz o universo de cada um, dar-se conta que a tragédia da partida não se estava abatendo sobre um, mas sobre os setecentos que partiam..Também, dar-se conta que certas palavras passam a ter um significado distinto. Assim, adeus, nunca, voltar, desaparecer.

No momento em que o navio começa a se afastar do cais, o narrador, monologando, se interroga sobre a despedida. A despedida que não houve porque havia ordens que a impediam, havia soldados que a impediam. Em circunstâncias normais, talvez tenha algum sentido dizer adeus. Nós éramos outro tipo de adeus. Adeus definitivo? Adeus sem adeus? Mandavam a gente embora e então, como dizer adeus?

Mais adiante, um personagem se desespera com essa partida que lhe é imposta em nome de verdades que para ele e muitos outros não são mais do que mentiras, vendo que Buenos Aires se perdia na bruma, grita: somos inocentes. Ouvindo esse grito, o narrador se lembra do interrogatório a que foi submetido. Em mais de duas páginas, tece considerações sobre a maneira de responder interrogatórios: para chegar a ser tão irreal quanto o interrogador é necessário achar o tom justo. Um tom que deixe claro, ao se cruzarem as primeiras palavras, que a inocência é óbvia e que, portanto, o interrogatório não tem sentido.

Nunca, voltar e desaparecer são palavras que retornam muitas vezes, como se cada um dos personagens do romance não pudessem deixar de pronunciá-las.

Nunca, traduzindo o medo do irreparável, da viagem sem retorno. Um se dar conta de que o exílio é para valer. Então, nunca mais? Nem mesmo com a cabeça branca, dentro de vinte anos?

O verbo voltar se entrelaça com dúvidas, esperanças, interrogações. Mas, é na contaminação com o circunstancial que adquire um sentindo pungente. A frase olha, eu quero voltar e apenas estamos saindo não significa, somente, um desejo de retorno. Tratando-se de um exilado aquele que a enuncia, passa a significar a absoluta impossibilidade de realizar esse desejo.

Se, as circunstâncias que rodeiam o exílio introduzem nuanças no sentido de certas palavras, igualmente, privilegiam significados. Desaparecer passou a significar, num momento preciso, no Cone Sul, principalmente, morrer. Para alguns, porém, apoiando-se na acepção «ocultar-se», desaparecer ainda pode significar uma louca esperança. Ambigüidade extremamente dolorosa. Num certo momento da narrativa, uma definição se esboça: desaparecido, essa palavra. Ela sozinha, movendo-se como o mar, num código desconhecido. Tão vasta como o mar, mas oculta. Sozinha. Não existem relatos de naufrágios desse mar paralelo. Dessa palavra ninguém se salva, uma vez caída nela para contar a história. Talvez nessa frase do narrador possa estar contida a gênese de Libro de navíos y borrascas: a necessidade premente e absoluta de dar voz às vozes caladas pela prisão, pelo desaparecimento, pela morte.

Nesse livro de Daniel Moyano, as palavras ou se alçam muito forte ou apenas murmuram. Revelam e insinuam, aproximando-se do riso e das lágrimas. Movendo-se do real para o lúdico no desejo de resgatar do silêncio, na ânsia de deixar testemunho dessas aves migradoras do Continente cujo destino é, despoticamente, regido pelas aves de rapina.




ArribaAbajoO pudor de narrar

O Estado do Paraná, Curitiba, 14 de janeiro de 1990


Ao iniciar o seu romance Libro de navíos y borrascas, Daniel Moyano, argentino de La Rioja, queria contar as aventuras de um grupo de exilados em Madrid e em outras cidades da Europa. Num breve capítulo, a saída do porto de Buenos Aires, a travessia de quatorze dias e a chegada em Barcelona, num amanhecer brumoso.

Os aconteceres da viagem, porém, foram tomando conta da narrativa que ficou, então, inscrita entre a partida e a chegada do navio. Quanto ao tom, como diz logo nas primeiras páginas, o narrador o queria despretensioso. Logo, ele irá confessar que a sua narrativa é feita, também, para esquecer. Esquecer que até o momento do embarque e o começo da viagem para a liberdade, muitas coisas aconteceram para ele e para muitos outros. Coisas que não mais deseja mencionar.

Assim, Rolando, o narrador, escolhe o que deseja contar e, consciente de suas escolhas, explica: aquilo que foi omitido não vou dizer de jeito nenhum ainda que por causa dessa omissão tudo se deforme. Assim, se conta como aconteceu a sua prisão e o seu embarque, omite a maneira como foi transferido do interior do país para Buenos Aires e tudo o que aconteceu no cárcere; assim, também, fará Sandra, a jovem uruguaia, companheira de viagem. Quando todos, no convés do barco, olham para o Cruzeiro do Sul, talvez pela última vez, Sandra levanta o braço para, simulando alegria, despedir-se de sua constelação. A manga da blusa presa no punho se desprende e deslizando, deixa a descoberto, o braço mutilado. Rapidamente, Sandra abaixa a manga para escondê-lo, mas as palavras de outro personagem, cheio de surpresa, fixam a imagem, obrigando os demais a se lembrarem de suas próprias e experiências e a alegria ou a procura dela foi conspurcada pelo inevitável reviver da tortura. Sandra se cala aos poucos e alguém lhe diz: evitando falar no assunto não vamos suprimir a realidade. Interpelação que a obriga a explicar-se: Isto está acima das minhas possibilidades. O melhor é esquecer, pelo menos isso me dá a ilusão de que a tortura não existiu e me permite continuar a ser Sandra.

E, tanto quanto os demais personagens, também o leitor irá ignorar o que lhe aconteceu quando no poder da repressão. Mas, nem por isso será poupado. Porque, se a narrativa desse momento em que inúmeros exilados se prendem às estrelas do Hemisfério Sul como o último liame a ligá-los a seu país foi interrompida pelo pudor, ela trás em si, na sutileza das sugestões, elementos incontornáveis para levar à emoção e à reflexão.

Pelo menos, para aqueles que, no Continente, não desprezam a leitura da História não oficial.




ArribaAbajoDaniel Moyano conta uma história real de fantasmas

O Estado do Paraná, Curitiba, 13 de janeiro de 1991


Libro de navíos y borrascas seria a história de uma travessia. Argentinos, uruguaios, chilenos, embarcados num navio que, através do Atlântico, os levará ao exílio europeu.

Para Rolando, o narrador, trata-se de uma viagem iniciada em terra firme, sob as parreiras, onde o foram buscar e onde abandonou o violino que estava lustrando com óleo de nozes. Antes de entrar no furgão que o levaria, pode ver o lampejo luminoso, desprendido do instrumento. Foi a última imagem que viu de sua terra.

A mil e duzentos quilômetros para o Sul, estava Buenos Aires, o porto e o navio italiano cuja missão era levar embora do Continente setecentos indesejáveis: setecentas fotocópias de uma história igual onde não havia acasos nem diversidades. Numa rota inversa àquela feita pelos avós que vieram para fazer a América, o navio chegará à Espanha. Ao longo de seus dias e noites, os indesejáveis se depauperam nesse avançar que os separa do Continente e procuram certezas em meio ao aprendizado do exílio e do esquecimento.

Um dos setecentos, procura com desespero, uma bússola que lhe demonstre, sem enganos, que a viagem se faz para o Norte e não para as prisões do Sul, como supõe.A moça uruguaia deixa no Continente dois irmão mortos, os pais sozinhos e, para sobreviver, acredita num futuro em que terá filhos, em que levará para a Europa os pais que agora ficaram e num Deus que seja companheiro e fale a mesma língua dos humanos.

Após o abismo vivido na experiência da repressão, no navio se reinicia a vida: para o velho pintor, a necessidade de papel e de tintas; para o músico, o instrumento; para o fantocheiro, o espetáculo. Ou, algo de bem simples como reunir-se no bar para tomar uns tragos ou jogar bingo ou ver um filme.

E, viver, significa, sobretudo, o aprendizado do exílio, a falta de erva para o chimarrão, o olhar para o céu e não mais encontrar o Cruzeiro do Sul. Na tristeza, alguém reage: não vamos levar a coisa tão a sério. Mudar de estrelas é como mudar de casa, uma mudança, nada mais.

Mais difícil, porém, é esquecer. Embora seja isso uma intenção e uma esperança. Porque as lembranças sufocadas e caladas afloram numa determinada entonação de voz ouvida, numa rapidíssima imagem percebida.

Quando um dentre eles, tão solícito e tão companheiro, fala de seu irmão e diz que seus filhos estão vivos, a voz lhe sai perdida, aflautada, o que bastou para ser entendido como verdade o que era comentado como um parece que lhe mataram um filho, que não tinha vinte anos. Quando Sandra, num gesto para apontar a estrela que esmaece na passagem para o hemisfério norte, deixa a descoberto o braço por alguns segundos, o barco inteiro, de bombordo a estibordo, silencia. Cada um viu no braço marcado, a brutalidade sofrida no próprio corpo.

E, inserindo-se na trama, nas aventuras e desventuras dos embarcados, algumas palavras reinam. A palavra chuva, a palavra nunca, a palavra desaparecidos, a palavra inocência, por exemplo.

Chuva, diz o narrador, é uma palavra que se diz quase sozinha. Ela é o seu próprio verbo, o barulho da chuva começa a soar sem que ninguém o nomeie; nunca, palavra de bicho, galinácea cinzenta como coruj . Sem jurisdição, como os seres que, no Continente, ela designa, a palavra desaparecidos. Mais do que nada, precisando um tom exato diante daquele que interroga, a palavra inocência.

Outras palavras, no entanto, são eludidas: tortura, por exemplo, ninguém pronuncia: é muito feio andar ventilando essas intimidades, tirar os trapos sol, como se diz. Mas, a palavra está lá a rondar os setecentos embarcados. Presença que os acompanha numa travessia a levar paro o outro lado do mar os fantasmas que se plasmam na cruel e injusta realidade que o Continente ainda não conseguiu desbaratar.




ArribaAbajoO exílio dos que ficaram

O Estado do Paraná, Curitiba, 29 de dezembro de 1991


Desde que os ibéricos aqui chegaram, há quase quinhentos anos, o Continente foi se dessangrando. Nessa perda de riquezas, inserem-se, também¸os escritores.Muitas vezes,e desde sempre, houve os que foram obrigados a abandonar seu país, dando origem ao que passou a ser chamado de Literatura do Exílio.

Rubrica que, ao abrigar um assunto muito vasto e muito variado, irá oferecer diferentes ângulos de aproximação: razões que forçaram a a partida, o momento da partida, o desespero do cotidiano em terras estranhas, a luta pela expressão, a perda do destinatário.

As razões da partidas acontecida com menor ou maior pressa, acabam por serem sempre as mesmas. Daniel Moyano, que da Argentina partiu para a Espanha, em entrevista concedida, em 1980, em Paris, dizia que lhe era impossível viver num país onde, de repente, é levado preso, preso fica por vários dias, é posto em liberdade sem conhecer as causas de sua prisão e, ainda, recebe o conselho de não procurar conhecê-las.

Terrível, também, o momento da partida para o destino desconhecido. Os sentimentos irão explodir nesse desgarramento e terão diferentes nuanças. De Adrian Santini, jovem poeta chileno, é a voz que diz poder carregar seus «fardos nos ombros» e acrescentar que «me despedi insolente». Com certeza, ignorava ou minimizava os momentos difíceis que o esperavam e que Humberto Constantini, poeta argentino exilado no México irá definir. Um desacerto que domina aquele que teve que abandonar o seu espaço para se integrar, arbitrariamente, noutro, que precisa, então criticar: «escrupulosamente/ umas vinte vezes por dia/ isto é/ não lhe perdoar absolutamente nada/ nem o agorinha nem o smog nem o transporte/ nem a grandiosidade/ nem as cores estridentes/nem os impronunciáveis nomes das ruas/nem o seu glorioso passado revolucionário».

Desacerto no qual se engloba o martírio maior do exílio: o isolamento originado da impossibilidade de comunicação, mesmo nos casos em que a língua do país acolhedor seja a mesma do país natal.

Quem exprime esses obstáculos, que ainda no caso em que seja a mesma língua, devem ser transpostos, é, também, Humberto Costantini que no seu poema «Rosedal» se queixa de não entender quase nada do que dizem os jornais mexicanos.

Se o exílio do hispano-falante é passado na Espanha, as relações muitas vezes, se regem pela mentalidade, ainda vigente, do colonizador versus colonizado e expressa o binômio metrópole/colônia. Nela, somente é aceitável para os espanhóis a língua falada na Espanha. Todas as variantes próprias de cada país do Continente se afastam de seu padrão e, portanto, são inaceitáveis. Mas, sem dúvida, a dificuldade maior será a separação do escritor de seus leitores, quando o exílio acontece em paises cuja língua é diferente da sua língua materna e na qual ele se expressa.

A esses desesperos advém outros; o diluir-se, na passagem dos anos, a imagem do país natal, o exílio duplo ou repetidos exílios, o viver entre um passado destruído e um futuro incerto, o dividir-se entre o desejo de retorno e o medo da volta para tanta coisa que não existe mais. Emoções que fluem e são testemunhas da tragédia vivida por tantos escritores do Continente. Debruçados sobre esses testemunhos, Carlos Droguett, o romancista chileno exilado na Suíça, reflete e se surpreende. Surpreende-se que no teatro, na música, nas narrativas e nos poemas que expressam os pensamentos, os suspiros e os sofrimentos dos intelectuais chilenos, paire um silêncio sobre o outro exílio. Aqueles que nenhuma das vozes que se levantaram considerou: «O Exílio dos que não saíram, não souberam ou não puderam sair do país. O exílio dos que sucessivamente, enfrentaram a delação, a prisão, a tortura, o desaparecimento, o assassinato e o absorveram e deixaram um testemunho escrito ou oral de sua passagem pela terra, de sua vertiginosa agonia na cela no leito da tortura que também eram a sua pátria».




ArribaAbajoAs maluquices de Paula

O Estado do Paraná, Curitiba, 21 de março de 1993


Mi música es para esa gente é o título de um pequeno livro de contos que apareceu, em 1970, pela Monte Ávila de Caracas. Seu autor, o argentino Daniel Moyano, dez anos antes já havia publicado Artistas de variedades ao qual se seguiram La lombriz, Una luz muy lejana, El fuego interrumpido, El oscuro.

Oito contos compõem Mi música es para esa gente e têm em comum o espaço (uma pequena cidade do interior), a intemporalidade (lembranças de um tempo como que suspenso, indeterminado) e personagens perdidos num mundo que parece não ser o deles, em busca de algo, um quase nada tão importante que lhes alimenta os dias: o cão seguindo o raio de sol que se desloca; os dois tipos que Daniel Moyano chama de «equilibristas» à espera, somente, de que os figos caiam de maduros; os outros dois que vivem apenas para a chegada do inverno.

Nessa galeria, que é de desesperanças, se abre um parêntese luminoso: Paula, a adolescente, que percebe mais do que deve na cidade pequena «onde os homens se dedicam a viver de suas rendas e as mulheres a tomar o solzinho nas calçadas».

Para se libertar e poder olhar um mundo diferente daquele limitado e medíocre em que vive, ela rompe o equilíbrio reinante, ela altera a ordem que existe e que deve, para muitos, permanecer estática.

O pai, a cada nova travessura, joga nela o que tem à mão. Dono de um restaurante na principal rua da cidade, lhe atira ou uma cebola, ou uma beringela ou colherinhas. Quando a travessura passou dos limites, um mogango.

Não existindo legumes maiores, agressões mais violentas não poderiam, advir. Então, Paula solta os pássaros do Conservatório onde devia estudar música, tira da fonte da praça todos os peixinhos que frita e come, espalha, pela cidade, balões coloridos, inclusive na estátua do touro da qual «o pudor municipal havia despojado de sua parte mais nobre».

Por fim, acabou desfilando nua -moderna Lady Godiva com os cabelos ao vento- pelas ruas centrais da cidade, pedalando uma bicicleta e acompanhada pelo amigo que a protegia do sol com uma sombrinha aberta.

E é ele, o entregador de pão, que narra as peraltices de Paula. Espectador e companheiro, lhe serve de ajudante e segue as emoções que no seu rosto se deixam ver. Por seus olhos vemos a menina: cabelos soltos, pele branca, sentimentos assomando nos olhos, no ricto do rosto, no gesto.

Paula, uma «discordância» na pequena cidade. Uma «filha assim» a desesperar o pai, um italiano que atravessara os mares para trabalhar. Uma pequena anarquista de ações gentilmente inofensivas como «tomar de assalto o correio e organizar um show na sala principal decorada com selos».

Ainda um menino, o narrador não compreende todo o significado das ações que ela inventa. Tampouco o alcance de suas palavras.

Pobre, ele vive num bairro pobre de «pátios áridos e crianças descalças». Paula, olhando para essa realidade, que não é a sua, diz: «Minha música é para essa gente». E ele não pode entender -até porque Paula só tinha tido uma única lição de música. E essa gente, a qual Paula se refere, é diferente daquela com a qual ela convive e que mal aparece mencionada no relato: jovens que jogam baralho nos bares, Federico que empresta dinheiro a juros e que sai do Banco «como um astronauta sai de sua cápsula, intacto e como recém nascido», as damas do Clube da Beneficiência.

Contra eles é que se insurge Paula. Contra eles, lança as suas pequenas maldades, somente invólucros de uma revolta e ânsia de estar longe.

Na verdade, nada de muito terrível, nada de verdadeiramente maldoso na ingenuidade da narrativa: simples, linear ao contar fatos; velada, por vezes, ao apontar sentimentos.

Uma narrativa que não esconde, porém, uma intenção que pode parecer apenas levemente corrosiva mas que no conjunto dos contos de Mi música es para esa gente representa somente uma nuança. Um tom entre os mais fortes, os mais cruéis que Daniel Moyano sabe criar a partir da realidade do Continente.




ArribaAbajoCrueldades

O Estado do Paraná, Curitiba, 28 de março de 1993


O conto se inicia com a descrição de um vestido branco, o vestido branco de tia Lila que é «tão alta, tão solteira». Depois, nele se instala um rítmo muito rápido, à maneira de uma transmissão de jogo de futebol, para narrar a partida improvisada que disputam seus quatro sobrinhos e quatro negrinhos da favela vizinha.

Uma partida especial em que a falta de bola não é empecilho, porque foi substituída pelos sapos que saíam do arroio em busca de insetos. Uma bola cujo único problema era, naturalmente, ter que ser trocada várias vezes, provocando, com isso, discussões e gritarias entre os jogadores. E que, finalmente, num chute de meia altura, vai se espatifar, não no gol, mas no vestido branco de tia Lila.

Tia Lila, tão religiosa e que no verão seguinte, será esquecida pelos meninos que não mais voltaram para com ela passar as férias.

Outra vez, no conto de Daniel Moyano, defrontando-se um mundo de adultos e um mundo infantil. O de tia Lila e do tio Emílio feito de leis -não levar as fundas, não fazer barulho, não matar pombinhas, não aprisionar passarinhos, não se misturar com os negrinhos.

O dos meninos, como que se submetendo, mas alheio às proibições e cumprindo apenas o inevitável: pedir a benção do tio; simular uma oração; aparentemente, assentir.

Daí, ser o resultado de uma infração -jogar futebol com os negrinhos- o sapo espatifado, manchando o vestido branco ser menos grave para o narrador protagonista do que ter perdido o jogo.

A narrativa feita numa primeira pessoa, que participa ativamente da ação, se constrói com um verbo no tempo presente. Nas últimas linhas do conto, porém, ocorre, sem a menor transição, o distanciamento para o passado e a introdução de uma primeira pessoa no plural. Nesse nós, se inserem, então, os companheiros do narrador naqueles fatos ocorridos no passado e que referidos no presente se vêm acrescentados de um gerúndio que indica a continuidade da ação: «A tia Lila que, dizem, nunca pode tirar inteiramente as manchas de sangue que fizemos em seu vestido branco. A tia Lila sem saber que nós continuaríamos matando sapos».

Esse «manchar o vestido branco» e esse «continuar matando sapos», contraposto à crédula tia que prega o bem e a virtude sem poder impedir o mal, não se restringe, no entanto, a uma travessura infantil agressora da ordem lógica, tradicional e adulta.

Embora se trate, certamente, de um resgate da infância (Daniel Moyano não nega que assim seja), o ter sido e escrito num momento de grave repressão política lhe acrescenta, também, um significado metafórico que está contido na figura da tia Lila, inocente mas maculada: a Argentina que, repressiva, permitia o sacrifício de seus cidadãos.

A lembrança dessa crueldade infantil que destroçava sapos, ao fazer deles bola de futebol, se acrescenta essa outra que permitia, no seu país, a destruição de incalculável número de seres humanos.

Numa entrevista que Daniel Moyano concedeu há treze anos, no seu exílio europeu, ele dizia que as atrocidades que então se cometiam na Argentina não eram somente culpa da guerrilha ou das forças armadas mas de cada um dos argentinos ao se manterem passivos diante dos fatos.

Refletindo sobre a crueldade -a da sua infância e aquela que vê grassar a seu redor- ele assume, como indivíduo e como ser coletivo, a sua parte de culpa.

«Nós continuaríamos matando sapos» são as palavras com as quais finaliza «Tia Lila».

Querendo resistir, libertar-se de uma conivência vergonhosa, salvar-se do arbítrio, Daniel Moyano atravessou o Atlântico para viver na Espanha. E, então, poder continuar a luta contra a violência e a crueldade servindo-se da palavra.




ArribaAbajoTrocar de estrelas

O Estado do Paraná, Curitiba, 01 de junho de 1997


É apenas um episódio de Libro de navíos y borrascas de Daniel Moyano. Na história de uma travessia sem encantos, a dos sul-americanos do Cone-sul partindo de Buenos Aires para Barcelona, exilados, o momento em que mudam de hemisfério.

«Não é preciso tomar tão a sério, mudar de estrelas é como mudar de casa, uma mudança, nada mais», disse um dos personagens. E outro faz uma descrição do céu que iriam ver daí em diante como se fizesse a da casa em que iriam morar.

Claro, houve aqueles que muito pouco tinham se fixado no céu do Continente. Também, aqueles que olharam pela primeira vez para o Cruzeiro do Sul. Mas, saber que desapareceriam as suas estrelas para, no lugar delas, aparecer Cástor ou Pólux era a reafirmação da realidade do exílio a que eram destinados esses indesejáveis do Sistema.

Tentam prolongar a imagem do seu céu, tentam fazer uma cerimônia de adeus regada a vinho, tentam fazer o brinde de «feliz céu novo» enquanto o barco navega para o norte e a constelação do Cruzeiro do Sul vai desaparecendo.

Para o romancista Daniel Moyano, ele próprio um exilado dessa década de 70, a desgarradora perda de um céu estrelado faz parte de um todo de muitos sofrimentos.

O capítulo X do romance se inicia com a frase «Ontem à noite as estrelas começaram a mudar». Mas, imediatamente passa o narrador a falar do caderno no qual ele a anotou, passa a falar de lembranças de família, para, então, repetir, com uma leve mudança a frase: «A noite em que as estrelas começaram a mudar». Outra vez se dispersa, lembrando os antigos gaúchos argentinos para, então, tornar ao tema numas poucas linhas -já está tão pequenininho o Cruzeiro do Sul, é preciso trazer mais mate e mais vinho, acordem as crianças para que se despeçam -e, de novo, mudar de assunto ao narrar a mudança de casa de um dos viajantes e mais uma vez voltar a essa despedida: alguém lembra de trocar de signo de zodíaco, alguém lembra que teve um filho morto pela repressão, alguém vê descobertas as marcas de tortura no seu corpo.

E na melancolia de um céu perdido, contidos os dramas maiores num tecer romanesco feito de ricos e imprevistos recursos. A narrativa se faz em meandros e a ela se acrescem pedaços de histórias mostrando um mundo cruel -o pai procurando fugir da dor pela morte do filho, o olhar do menino para seu universo desfeito cabendo num caminhão de mudança, o querer esconder a marca da tortura- expressão de tudo o que a repressão ensejou: perseguições, seqüestros, prisões, torturas, morte.

Então, mudar de estrelas significou a salvação. Para os navegantes, deixar para trás uma vida inteira e sob um novo céu e sobre uma nova terra, tentar viver o exílio. Ainda que alimentado de saudades, de tristezas, inseguranças e de medos.




ArribaAbajoVozes da narrativa VI-Os exilados

O Estado do Paraná, Curitiba, 24 de agosto de 1997


É um músico e está ali no pátio de sua casa, no norte da Argentina, lustrando com óleo de nozes o seu violino quando eles chegam. Não lhe dão tempo de fechar a casa ou guardar o violino e o levam preso num furgão. Já havia viajado os mil e duzentos quilômetros até Buenos Aires, já havia passado muitos dias na cadeia quando foi posto, junto com muitos outros, num navio.

O navio se chama Cristóforo Colombo e deve zarpar de Buenos Aires rumo a Barcelona com 700 indesejáveis a bordo. São os indesejáveis do Sistema que assim deles se livra como poderia ter feito -e o fez muitas vezes- tirando-lhes a vida.

É gente do Chile, do Uruguai e da Argentina que deixa o Continente -alguns duramente marcados pela prisão e pela tortura sofrida- com a esperança de logo poder voltar: «Se a gente sabe que poderá voltar, um par de anos de exílio vão passar como água».

Rolando, personagem-narrador de Libro de navíos y borrascas (Buenos Aires, Legasa, 1983) é quem dá conta dessa travessia, dos muitos dramas que traz no seu bojo. Esses que antecederam a partida -o pintor, que teve seu ateliê destruído; o homem que perdeu o filho, vítima da repressão; a moça, em quem a tortura deixou o corpo marcado- e os que foram se delineando ao longo da viagem: superar o medo acumulado nas prisões, buscar com desespero uma bússola para ter a certeza de que a rota era mesmo o norte e não as cadeias do sul, sofrer as alucinações de ainda estar sendo interrogado. E o grande drama de todos: perceber que a medida que o barco avança, vai acontecendo a perda das raízes, a perda dos pontos de referência embora haja uma grande luta -o ter erva mate para o chimarrão, o fazer teatro com temas nacionais- para continuar isento de transformações.

E todo um desejo de voltar fazendo com que essa viagem de ida já signifique o primeiro passo para a volta; com que um pequeno nada suscite esperanças («Num par de anos as coisas se ajeitam ou se esquecem e vamos poder voltar»). E que o adeus da beira do cais -«como dizer adeus?»- chegue cheio de dúvidas: «Adeus definitivo?», «Adeus sem adeus?».

E, pairando sempre, ameaçadora, a palavra «nunca», ligada a um não mais voltar. Ainda que seja com o rosto enrugado, depois de vinte anos, ainda que seja com medo dos encontros ou com a humilde esperança. Como também ameaçadora, a noção de «para sempre», dando a certeza de um jamais voltar, de um morrer no exílio.

E na chegada, o carimbo «proibido trabalhar na Espanha» que nos papéis recebeu cada um dos setecentos exilados.

Libro de navíos y borrascas foi escrito entre 4 de outubro de 1981 e 13 de janeiro de 1982, em Madrid, onde o argentino Daniel Moyano vivia o seu exílio europeu.




ArribaAbajoPalavras salvadoras

O Estado do Paraná, Curitiba, 31 de maio de 1998


Em 1990, Daniel Moyano vivia na Espanha há quatorze anos. Fugira da Argentina para escapar da violência que ali se havia instaurado e, no exílio, continuara a escrever. Nesse ano, foi publicado pela Sudamericana de Buenos Aires, Tres golpes de timbal, romance que se segue a Una luz muy lejana, El oscuro, El trino del diablo e Libro de navíos y borrascas. Nele, um escriba dá testemunho do universo de Minas Altas, um pequeno povoado encravado nas montanhas. Instalado em Mirador, refúgio na cordilheira andina a mais de cinco mil metros, é dono de uma mesa de trabalho, de um candelabro, de um tinteiro e de um dicionário. Sua missão é escrever as histórias recolhidas por Fábulo Vegas, astrônomo e bonecreiro que sabe muito bem que elas estão em perigo e as deseja salvar através das palavras escritas porque as suas são apenas gestos submissos ao efêmero pois lhe custa muito falar sem os bonecos nas mãos. Ainda assim, monologa sobre o que acha serem questões «delicadas e graves»: a ilusão do Poder, o extermínio da humanidade.

«Ilusão monstruosa», assim define o Poder. Ilusão que domina de tal forma aqueles que o detém que não se privam, para preservá-lo, de destruir todas as vozes que se elevam delas se apropriando para escrever histórias mentirosas. A elas, diz o manipulador de bonecos, é preciso antepor uma vida verdadeira, uma história própria onde «a voz de um homem ou um vestido de noiva que o vento leva valham mais do que as assim chamadas façanhas dos fortes».

E as histórias que, então, o escriba irá contar são essas colmadas de pequenas coisas: a costureira a tirar medidas para um vestido, o andar descobrindo a chuva, a confecção de um instrumento musical, as mostras de alegria de um pequeno cão, o festejo do aniversário das mulas carregadeiras.

Um lirismo que se inscreve em Tres golpes de timbal entremeando-se ao maravilhoso. Espécie de exorcismo que é, finalmente, vencido pelas agruras do Continente. Nas últimas linhas do romance se pressagiam destruições: centenas de homens chegam para pisotear os girassóis, para roubar relicários, para quebrar os espelhos, para desfazer os bonecos de Fábulo Vegas. Maldades que se exercerão sobre Minas Altas mas que podem acontecer a qualquer lugar que possua riquezas. Então, a esperança de todos -na frase há um pronome plural «nós»- é sobreviver pela palavra, estar presente em «palavras salvadoras».

Mais do que esperançoso, dir-se-ia utópico esse querer porque Fábulo Vegas não ignora que neste «fim de século terrível», como ele diz, há homens e armas que podem destruir tudo. E, claro, que também as palavras.




ArribaAbajoA ilusão

O Estado do Paraná, Curitiba, 28 de junho de 1998



Porque com essas asas que nunca pode fazer
por falta de cola e de tabuinhas e de fazenda,
não teria chegado a lugar nenhum.



Libro de navíos y borrascas foi escrito entre os últimos meses de 1981 e os primeiros dias de 1982. Conta a travessia do Cristóforo Colombo, barco italiano que, entre seus passageiros, transporta setecentos indesejáveis: uruguaios, chilenos, argentinos, que tidos como «persona non grata» por seus respectivos países, partem para o exílio. Ele sai de Buenos Aires e quatorze dias depois, chega, na bruma do amanhecer, aos cais de Barcelona. Entre a partida e a chegada, para os setecentos, foi um tempo de aprendizagem. Das perdas: ver-se privado daquilo que sustenta o universo de cada um, a casa, a família e os amigos, as referências como o Cruzeiro do Sul que não mais será visto no hemisfério norte. Logo, esse pensar na eventualidade da volta, esse ensaiar as primeiras palavras em língua estrangeira.

No linear da narrativa, que dá conta da travessia, se disfarçam dramas, se escondem risos e sorrisos. Lembranças se insinuam, pouco a pouco, incompletas e terminam por compor outros relatos, novos episódios. São muitos, mais ou menos densos, se entrelaçam com perfeição ao relato principal. Entre eles, breve, aparentemente se diluindo em meio aos demais, o episódio do Flaco.

Uma dezena de referências, ao longo das páginas do romance e sem obedecer cronologias, vai compondo a sua história -e foram tantos outros- levado preso «uma noite, entre lanternas e latidos de cachorros e outras coisas».

Na prisão, ele falava em «engomar as fazendas de várias camisas e colar em pequenas tábuas muito finas». Imaginava asas, imaginava uma estranha «máquina de voar». Do quinto andar, ele se lançaria e voando precariamente ou caindo devagar, ele alcançaria, sem se machucar, o outro lado do muro.

E pedia palitos de fósforos para os companheiros de prisão e fazia os cálculos: um milhão, que ele juntasse em poucos anos, seria suficiente. Conseguiu juntar uns quinhentos e foi levado embora, numa noite em que lanternas iluminaram o escuro, em que recebeu ordem de deixar sua mala. Já, então, a roupa lhe dançava no corpo, lhe soavam os ossos quando se afastou, acenando com a mão para qualquer cela. Os companheiros, apenas, lhe escutaram os passos escada abaixo e dele nunca mais souberam.

Esse triste sonhar impossíveis, esse destino truncado, sem razões nem testemunhas, fazem dele um personagem comovente. E memorável sua presença no romance: uma lembrança que irrompe nos devaneios do narrador-protagonista para explicar, para comparar, para lamentar. Uma presença tão significativa quanto os silêncios que se lhe acrescentam e que não impedem que a sua trajetória, da prisão para o desaparecimento, fique muito clara. O que, certamente, está nos desígnios do belo romance polifônico e multi-temático de Daniel Moyano: fazer constar aquilo que muitos dos desaparecidos não puderam dizer ou contar.

Argentino asilado na Espanha, ele nada quis deixar esquecer.




ArribaCom que direito?

O Estado do Paraná, Curitiba, 16 de janeiro de 2005


Quando o que então acontecia, nos países do Continente, ainda era preciso que ficasse em segredo, houve livros que, duramente minuciosos, descreveram o que se passava nos subterrâneos

da repressão. Os romances Sesenta muertos en la escalera de Carlos Droguett, El señor Presidente de Miguel Ángel Asturias, La canción de nosotros de Eduardo Galeano, El Fiscal de Augusto Roa Bastos, Libro de navíos y borrascas de Daniel Moyano e, mais tardiamente, La fiesta del chivo de Mario Vargas Llosa, entre outros, registraram morticínios e torturas que efetivamente aconteciam nos porões das ditaduras, durante essas décadas em que elas foram toleradas (senão patrocinadas) por países do Hemisfério Norte. Depois, quando a censura já não tinha meios para impedir, o testemunho veio para reafirmar aquele que fora tido como ficção.

Em 1999 -hoje em quarta edição-, Flávio Tavares publica Memórias do esquecimento, apresentado pela Editora Globo como «o primeiro relato descarnado e cru sobre uma época tumultuada da História Brasileira -os anos da luta armada contra a ditadura e da repressão da própria ditadura».

Um texto impecável em que o lirismo e a crença na utopia dão a medida do homem que por sua crença na ação para mudar o país e fazê-lo diferente do que era -nas suas mazelas de subdesenvolvimento- o sistema procurou destruir.

Flávio Tavares conseguiu sobreviver às torturas e às humilhações. Novamente, num ato de coragem, trinta anos passados, enfrenta as lembranças desse tempo de horror em que deixou de ser considerado um ser humano para passar à condição de bode expiatório, cujas culpas aqueles que aplicavam as penas não sabiam mensurar. Possuídos, somente, de uma raiva doentia, não tinham idéia do que era seu próprio país, muito menos como deveria ser, prendiam e torturavam para defender interesses que nem sabiam quais eram e, muito menos, de quem.

Um exemplo disso foi a prisão do coronel Nicolau José de Seixas que, em 1940-45, fizera parte da Força Expedicionária Brasileira, demonstrando, na Itália, uma imensa bravura. No Exército, todos sabiam que nunca tinha sido comunista, tampouco subversivo o que fora invocado, em 1964, para afastá-lo, da vida militar. Num dos interrogatórios a que foi submetido, Flávio Tavares soube que tinha sido levado de Brasília para o Rio de Janeiro, tido como guerrilheiro. Ele, que sete anos antes, como Chefe do Serviço de Repressão ao Contrabando, desbaratara o campo de treinamento militar de Dianópolis, a primeira tentativa da guerrilha da esquerda no Brasil. Preso, devia responder às perguntas feitas por um de seus antigos companheiro de armas na Segunda Guerra Mundial, admirador da coragem com que ajudara os tanques do V Exército norte-americano que a ofensiva alemã estava a ponto de fazer recuar. Flávio Tavares então pergunta: «Agora, 25 anos depois, que direito tinham esses oficiais, que faziam a guerra com aparelhos de tortura, de prender e interrogar a quem de fato guerreara num campo de batalha?». Uma pergunta válida, também, em relação a todos os demais que foram presos e muitas vezes absolutamente sem razão -se razão houvesse por parte daqueles que prendiam. Como foi o caso do rapaz, filho de um pastor batista do bairro da Tijuca, preso por engano, porque era loiro e eles procuravam um loiro e a quem barbaramente torturaram. Ou a prisão e tortura das duas mulheres que não pertenciam a qualquer movimento de resistência. Elas «eram acusadas, porém, de cumplicidade familiar», um «crime» não previsto sequer na totalitária Lei de Segurança Nacional, mas constante dos manuais de tortura elaborados na School of the Américas, mantida pelo Exército dos Estados Unidos, na zona militar do Panamá e, como tal, executado ao pé da letra pelo militarismo brasileiro e latino-americano em geral: se algum «suspeito» fugisse ou não fosse encontrado, em seu lugar prendiam-se os parentes mais próximos, para forçá-lo a entregar-se. Então, uma por ser irmã, outra por ser mulher de um suspeito de subversão, nuas, elas foram torturadas noite adentro.

A resposta para essa pergunta de Flávio Tavares, e, certamente, para a de muitos outros brasileiros, está contida na prática da lei do mais forte. Que, na verdade, em certos países, é a única vigente, sempre a permitir perenes desajustes sociais: concessão de privilégios, os mais absurdos para uns, e recusa, à maioria, das mais básicas necessidades para viver com dignidade. Assim, a leitura das Memórias do esquecimento, além da indignação que provoca, diante do que foi vivido por Flávio Tavares (e outros), se acrescenta, e, não menos cruel, a certeza de que pouco ou nada mudou.





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