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Quarta parte

Resgate

- I -

Havia baile em São Clemente.

Aurélia ali estava como sempre, deslumbrante de formosura, de espírito e de luxo. Seu trajo era um primor de elegância; suas jóias valiam um tesouro, mas ninguém apercebia-se disso. O que se via e admirava era ela, sua beleza, que enchia a sala, como um esplendor.

O baile em vez de fatigá-la, ao contrário a expandia. Semelhante às flores tropicais, filhas do sol, que ostentam o brilhante matiz nas horas mais ardentes do dia, era justamente nesse pélago de luz e paixões, que Aurélia revelava toda a opulência de sua beleza.

Seixas a contemplava de parte.

As outras moças, de meia-noite em diante, começavam a fanar-se; o cansaço desbotava-lhes a cor, ou afogueava-lhes o rosto. O talhe denunciava o excesso da fadiga na languidez das inflexões ou na rispidez do gesto.

Aurélia ao contário, à medida que adiantava-se a noite, desferia de si mais seduções, e parecia entrar na plenitude de sua graça. A correção artística de seu trajo ia desaparecendo no bulício do baile. Como o primeiro esboço que surge afinal do cinzel impetuoso do artista, ao fogo da inspiração, sua estátua recebia da admiração da turba os últimos toques.

Quando em torno se revolvia o turbilhão, ela conservava sua inalterável serenidade. O colo arfava-lhe mansamente, ao influxo das brandas emoções; o sorriso coalhava-se em enlevos nos lábios entreabertos, por onde escapava-se a respiração calma. Desprendia-se de seus olhos, de toda sua pessoa, uma efusão celeste que era como a sua irradiação. Quando completou-se esta assunção de sua beleza, o baile estava a terminar.

Aurélia fez um gesto ao marido, e envolvendo-se na manta de caxemira que ele apresentara-lhe, trançou o braço no seu. No meio das adorações que a perseguiam, retirou-se orgulhosamente reclinada ao peito desse homem tão invejado, que ela arrastava após si como um troféu.

O carro estava à porta. Ela sentou-se rebatendo os amplos folhos da saia para dar lugar ao marido.

-Que linda noite! exclamou recostando a cabeça nas almofadas para engolfar os olhos no azul do céu marchetado de estrelas.

Com esse movimento sua espádua tocou no ombro de Seixas e os cachos de cabelos castanhos, agitados pelo movimento do carro, afagaram a face do mancebo desprendendo perfumes de inebriar. De momento a momento, a claridade do gás entrava pela portinhola do carro, em frente ao lampião, e debuxava o mavioso semblante de Aurélia e seu colo, que a manta escorregando, tinha descoberto.

Na posição em que estava, olhando por cima da espádua da moça, ele via na sombra transparente, quando o decote do vestido sublevava-se com o movimento da respiração, as linhas harmoniosas desse colo soberbo que apojavam-se em contornos voluptuosos.

-Como brilha aquela estrela! disse a moça.

-Qual? perguntou Seixas inclinando-se para olhar.

-Ali por cima do muro, não vê?

Seixas só via a ela. Acenou com a cabeça que não.

Aurélia distraidamente travou da mão do marido, e apontou-lhe a direção da estrela.

-É verdade! respondeu Fernando que vira uma estrela qualquer.

Retirando a mão Aurélia descansou-a no joelho, não advertindo sem dúvida que ainda tinha presa a do marido.

-Não sei que tem o luzir das estrelas!... murmurou a moça. É uma cousa que notei desde menina. Sempre que fico assim a olhar para elas e a beber os seus raios sinto uma vertigem, que me dá sono. Quem sabe se a luz que elas cintilam, não embriaga? Parece-me que bebi um cálice de champanha, mas feito do sumo daqueles cachos dourados que lá estão no céu.

Estas palavras, o olhar de Aurélia dirigiu-as ao marido envoltas em um sorriso feiticeiro.

-Então foi de ambrosia, que é a bebida dos deuses, tornou Fernando correspondendo ao gracejo.

-Mas, fora de graça? Que sono me fez! Será cansaço?

-Talvez! Dançou tanto!

-Pois reparou?

-Que queria que eu fizesse?

Aurélia esperou um momento para não interromper o marido; vendo que este calava-se, conchegou-se com o gracioso movimento dos passarinhos quando se arrufam para dormir.

-Não posso mais! Estou tonta!

Derreou-se então pelas almofadas; a pouco e pouco, descaindo-lhe ao balanço do carro o corpo lânguido de sono, sua cabeça foi repousar no braço do marido; e seu hálito perfumado banhava as faces de Seixas, que sentia a doce impressão daquele talhe sedutor. Era como se respirasse e haurisse a sua beleza.

Fernando não sabia que fizesse. Às vezes queria esquecer tudo, para só lembrar-se que era marido dessa mulher e que a tinha nos braços.

Mas quando queria ousar, um frio mortal trespassava-lhe o coração, e ele ficava inerte, e tinha medo de si.

Todavia, ninguém sabe o que aconteceria se o carro não parasse tão depressa à porta da casa; Aurélia sobressaltou-se; caindo em si, retraiu-se para deixar que Seixas saltasse e lhe oferecesse a mão.

-Nunca me senti tão fatigada! Creio que estou doente, disse ela descendo do carro.

-Não devia ter ficado até tão tarde! observou Fernando com solicitude.

-Dê-me seu braço! murmurou a moça com um gesto abatido.

Seixas começou a inquietar-se, ainda mais quando a viu suspensa a seu braço, arrastar-se para a escada.

-Está realmente incomodada?

-Estou doente, muito doente! respondeu com a voz alquebrada.

Nos olhos porém e nas covinhas da boca, cintilou um raio de malícia que desmentia aquelas palavras.

Seixas retribuiu o gracejo.

-É uma enfermidade muito grave, não é? Que ataca-lhe todas as noites e a deixa sem sentidos por muitas horas? Chama-se sono.

-Não sei, nunca a tive, volveu a moça abaixando as pálpebras e velando os lindos olhos.

Chegados à saleta, onde costumavam despedir-se, Aurélia dirigiu-se para o toucador. Na porta, Fernando parou.

-Leve-me que eu não posso comigo, disse Aurélia atraindo-o a si brandamente.

O marido levou-a ao divã onde ela deixou-se cair prostrada de fadiga ou de sono. Não tendo soltado logo o braço de Seixas, este reclinou-se para acompanhar-lhe o movimento, e achou-se debruçado para ela.

Aurélia conchegou as roupas fazendo lugar à beira do divã, e acenando com a mão ao marido que se sentasse. Entretanto com a cabeça atirada sobre o recosto de veludo, o colo nu debuxava sobre o fundo azul um primor de estatuária cinzelado no mais fino mármore de Paros.

Seixas desviou os olhos como se visse diante de si um abismo. Sentia a fascinação, e reconhecia que faltavam-lhe as forças para escapar à vertigem.

-Até amanhã? disse ele hesitando.

-Veja se não tenho febre!

Aurélia procurou a mão do marido e encostou-a na testa. Debruçando-se para ela com esse movimento, Seixas roçara com o braço o contorno de um seio palpitante. A moça estremeceu como se a percutisse uma vibração íntima, e apertou com uma crispação nervosa a mão do marido que ela conservara na sua.

-Aurélia, balbuciou Fernando que a pouco e pouco resvalara do divã, e estava de joelhos, buscando os olhos da mulher.

Ela ergueu de leve a cabeça, para vazar no semblante do marido a luz dos olhos, e sorriu. Que sorriso! Uma voragem, onde submergiam-se a razão, a dignidade, a virtude, todas essas arrogâncias do homem.

Seixas ia precipitar-se; mas os olhos de Aurélia o queimavam; escapava daquelas pupilas cintilantes um fogo intenso que penetrava-lhe n'alma como lava em ebulição. Ele voltou o rosto para o lado da porta, como receoso de que estivesse aberta.

Aurélia cerrara as pálpebras e atirara de novo a cabeça sobre a almofada, com esse delicioso abandono, em que o corpo remite-se depois de um excessivo exercício. Fernando na mesma posição contemplava a formosa mulher, que ele tinha ali, palpitante sob o seu olhar e ao contato do peito onde fervilhavam os frocos de renda do talhe do vestido, aflando ao vivo ofego da respiração.

E todavia não ousava. Nunca, nos tempos em que ele fazia o contrabando do amor, mulher alguma, por mais defesa que fosse a seu desejo, inspirou-lhe o respeito, ou antes o susto, que o tolhia naquele momento junto de sua esposa.

A moça levantou o braço com um gesto de enfado e deixou-o sobre o recosto do divã, donde foi deslizando fracamente para o ombro de Seixas. À doce pressão dessa cadeia que o cingia, ele vergou a cabeça e chegou a embeber a flor dos lábios nas tranças de cabelos que borbulhavam em anéis pelas espáduas e refluíam pela face de Aurélia.

Mas a moça voltara a cabeça escondendo o rosto no acolchoado de veludo, com um gesto rápido, ao passo que retraía a mão para velar a face. Bastou este movimento que não passava talvez de frágil resistência da castidade, para reprimir o impulso de Seixas.

Depois de um instante de perplexidade ia levantar-se, quando Aurélia surgiu arrebatadamente do torpor e languidez que a prostravam, e sentando-se no divã, obrigou o marido a ajoelhar-se de novo a seus pés. Apoiando-lhe então a mão na fronte, vergou-lhe a cabeça, e cravou-lhe no semblante um olhar longo, penetrante, que parecia submergir-se na consciência daquele homem, e sondar-lhe os arcanos.

-Não me engana? Ama-me enfim? perguntou ela com meiguice.

-Ainda não acredita?

-Venceu então o impossível?

-Fui vencido por ele.

-Essa felicidade não a tenho eu!... exclamou a moça erguendo-se do divã, e caminhando pela sala com o passo frouxo e a cabeça baixa.

Fernando que a seguia com o olhar surpreso, viu-a aproximar-se de um quadro colocado sobre um estrado e contra a parede fronteira.

A cortina azul do dossel correu; à luz do gás que batia em cheio desse lado, destacou-se do fundo do painel o retrato em vulto inteiro de um elegante cavalheiro.

Era o seu retrato; mas do mancebo que fora dous anos antes, com o toque de suprema elegância que ele ainda conservava, e com o sorriso inefável que se apagara sob a expressão grave e melancólica do marido de Aurélia.

-O homem que eu amei, e que amo, é este, disse Aurélia apontando para o retrato. O senhor tem suas feições; a mesma elegância, a mesma nobreza de porte. Mas o que não tem é sua alma, que eu guardo aqui em meu seio e que sinto palpitar dentro de mim, e possuir-me, quando ele me olha.

Aurélia fitou o retrato com delícia. Arrebatada pela veemência do afeto que intumescia-lhe o seio, pousou nos lábios frios e mortos da imagem um beijo férvido, pujante, impetuoso; um desses beijos exuberantes que são verdadeiras explosões da alma irrupta pelo fogo de uma paixão subterrânea, longamente recalcada.

Seixas estava atônito. Sentindo-se ludíbrio dessa mulher, que o subjugava a seu pesar, escutava-lhe as palavras, observava-lhe os movimentos e não a compreendia. Chamava a si a razão, e esta fugia-lhe, deixando-o extático.

Aurélia acabava de voltar-se para ele, soberba de volúpia, fremente de amor, com os olhos em chamas, os lábios túrgidos, e o seio pulando aos ímpetos da paixão:

-Por que meu coração que vibra assim diante desta imagem, fica frio junto a si? Por que seu olhar não penetra nele, como o raio desta pupila imóvel? Por que o toque de sua mão não comunica à minha esta chama que me embriaga como um néctar?

Aurélia parou de repente. Uma onda de rubor banhou-lhe o rosto mimoso. Atalhada no ímpeto da paixão por um assomo de pudor, ela confrangeu-se como a flor da noite ao raiar da luz. Suspendeu a capa de caxemira que lhe tinha resvalado dos ombros para a cintura, e envolvendo-lhe com o estremecimento de um calafrio, encolheu-se no canto do divã.

Seixas aproximou-se, fazendo-lhe a cortesia do costume; com a voz já tranqüila, e o modo natural disse:

-Boa noite.

A moça entreabriu a caxemira quanto bastava para tirar os dedos afilados da mão direita, que estendeu ao marido.

-Já? perguntou ela erguendo os olhos entre súplices e despóticos.

O marido estremeceu ao toque sutil dos dedos, que calcavam-lhe docemente a palma da mão:

-Ordena que fique? disse com a voz trêmula.

-Não. Para quê?

O que exprimia essa frase, repassada do sorriso que lhe servia por assim dizer de matiz, ninguém o imagina.

Seixas retirou-se levando n'alma a mais cruel humilhação que podia infligir-lhe o desprezo dessa mulher.

- II -

Aconteceu uma noite cair a conversa em assunto de literatura nacional.

Fato raro. Entre nós há moda para tudo nos salões; menos para as letras pátrias, que ficam à porta, ou quando muito vão para o fumatório servir de tema a dous ou três incorrigíveis.

Nesse dia fez-se uma exceção. Alguém, que tinha a prurir-lhe nos lábios a condenação dogmática de um livro que lera recentemente, apesar de publicado desde muito, aproveitou o momento para essa execução literária.

-Já leram a Diva?

Respondeu um silêncio cheio de surpresa. Ninguém tinha notícia do livro, nem supunham que valesse a pena de gastar o tempo com essas cousas.

-É um tipo fantástico, impossível! sentenciou o crítico.

Acrescentou ele ainda algumas cousas acerca do romance, cujo estilo censurou de incorreto, cheio de galicismos, e crivado de erros de gramática. O desenlace especialmente provocou acres censuras.

A crítica, por maior que seja a sua malignidade, produz sempre um efeito útil que é de aguçar a curiosidade. O mais rigoroso censor mau grado seu presta homenagem ao autor, e o recomenda.

Pela manhã Aurélia mandou comprar o romance; e o leu em uma sesta, ao balanço da cadeira de palha, no vão de uma janela ensombrada pelas jaqueiras cujas flores exalavam perfumes de magnólias.

À noite apareceu o crítico.

-Já li a Diva, disse depois de corresponder ao cumprimento.

-Então? Não é uma mulher impossível?

-Não conheço nenhuma assim. Mas também só podia conhecê-la Augusto Sá, o homem que ela amava, e o único ente a quem abriu sua alma.

-Em todo o caso é um caráter inverossímil.

-E o que há de mais inverossímil que a própria verdade? retorquiu Aurélia repetindo uma frase célebre. Sei de uma moça... Se alguém escrevesse a sua história, diriam como o senhor: «É impossível! Esta mulher nunca existiu». Entretanto eu a conheci.

Mal pensava Aurélia que o autor de Diva teria mais tarde a honra de receber indiretamente suas confidências e escrever também o romance de sua vida, a que ela fazia alusão.

Nessa noite, entre as novidades do dia que deram tema à palestra, houve uma que bastante afligiu Aurélia. Corria que Eduardo Abreu estava dominado pela idéia do suicídio. Um de seus camaradas que vinha com ele de Niterói, o impedira de precipitar-se ao mar da borda da barca; outro o surpreendera com um revólver no bolso.

No dia seguinte houve espetáculo no teatro lírico. Aurélia escreveu a Adelaide Ribeiro um bilhete oferecendo-lhe o seu camarote e prometendo-lhe sua companhia. As duas senhoras não tinham relações íntimas; apenas haviam trocado entre si as visitas de rigor depois do casamento.

Aurélia aproveitou o pretexto da ópera nova não para estreitar essas relações cerimoniosas, mas ter ocasião de falar com o Dr. Torquato Ribeiro.

Às oito horas, quando Aurélia entrou no camarote pelo braço de Seixas, já encontrou Adelaide com o marido.

As duas moças lembrando-se que iam passar a noite face a face, instintivamente sem propósito, por uma irresistível emulação, haviam-se esmerado. Ambas estavam no esplendor de sua beleza. Mas curiosa antítese: Adelaide, a pobre, vinha no maior apuro do luxo, com toda a garridice e requintes da moda. Aurélia, a milionária, afetava extrema simplicidade. Vestiu-se de pérolas e rendas; só tinha uma flor, que era a sua graça.

Ao levantar-se o pano, a dona do camarote como de costume ocupou o lado da cena, reservando o lugar de honra para sua convidada. Os maridos revezaram-se, ficando Ribeiro perto de Aurélia, e Seixas da parte de Adelaide.

Passada a primeira curiosidade que desperta sempre as decorações e trajos de uma cena ainda não vista, Aurélia voltando-se para atender à amiga que lhe falava, notou a posição e atitude de Seixas.

Este recostara-se à divisão do camarote, e observava a cena por cima do ombro de Adelaide; mas à moça pareceu que a vista do marido não chegava à rampa, e refrangia-se como uma réstia de sol diante do obstáculo que se lhe antepunha à menor oscilação do talhe esbelto da mulher de Ribeiro.

Se Adelaide inclinava-se à frente para trocar alguma observação, bombeava graciosamente diante de Fernando as espáduas que a luz do gás esbatendo-se em cheio jaspeava. Se a moça apoiava-se indolentemente à coluna, era o seu lindo colo vazado por decote de ninfa, que se oferecia aos olhos de Fernando.

Aurélia agitava o leque de madrepérola com um movimento rápido e nervoso, que fazia crepitarem as aspas violentamente batidas umas contra as outras. Duas ou três espedaçaram-se entre os dedos crispados.

Às vezes dardejava um olhar imperioso ao marido para adverti-lo de sua inconveniência. Outras examinava a fisionomia de Ribeiro, com o sentido de observar o efeito que nele produzia aquela faceirice da mulher. Mas Seixas estava completamente absorvido na cena, ou no que lhe ficava ao rumo da cena, e Ribeiro passava revista de binóculo aos camarotes.

Quanto a Adelaide, toda a satisfação de brilhar, nem reparava na impaciência da amiga, nem se apercebia que o excessivo esvazamento de seu corpinho, com o requebro que imprimia ao talhe, desnudava-lhe quase todo o busto aos olhos do homem a quem voltava as costas. Sente a estátua o olhar que insinua-se entre os véus transparentes? A mulher da moda tem a cútis da estátua quando se veste para o baile.

Aurélia não pôde conter-se afinal.

-Troquemos de lugar, Fernando? A luz do gás está incomodando-me a vista.

-Venha para aqui! disse Adelaide querendo ceder-lhe a cadeira.

-Não: ali estou melhor; fico na sombra.

No intervalo saíram a passear no salão. A lembrança foi de Aurélia que desejava uma ocasião de dizer algumas palavras em particular ao Torquato. Antes de sair, porém, insistiu com Adelaide para que pusesse a capa.

-Pode-se resfriar. Está úmido.

-Ao contrário; faz um calor!

-Não facilite.

E cobriu-lhe os ombros com sua própria capa que agasalhava mais.

Seixas ofereceu o braço a Adelaide, como era de rigor; Aurélia seguindo ao braço de Ribeiro, e sem perdê-los de vista, começou a conversar com seu cavalheiro.

-Ontem tive uma notícia que me afligiu; o Eduardo Abreu tentou suicidar-se.

-Já me disseram.

-E parece que não abandonou a idéia. Quero salvá-lo dessa loucura: é um dever para mim, e um tributo que pago à memória de minha mãe. Posso contar com o senhor?

-Permita que não responda a esta pergunta. Diga-me o que devo fazer.

-Obrigada. Basta que o traga à minha casa, e faça que a freqüente. Ele foi rico; perdeu a riqueza, e com ela os amigos, a consideração, tudo que lhe tornava doce a existência. Nada mais natural do que olhar para o mundo como um inimigo a quem deve fugir. Se porém no meio desse deserto moral em que se acha surgisse uma idéia, uma vontade, um sentimento consolador, esse elo o prenderia de novo à existência.

-Mas não tem receio? observou Ribeiro hesitando.

-Pensa que ainda não esteja de todo extinta a sua paixão? É justamente com o que eu conto.

-E seu marido?

-É meu marido, respondeu a moça erguendo a cabeça com serena altivez.

Ribeiro compreendeu a palavra e o gesto. Em verdade, o homem que tinha a suprema ventura de ser o esposo querido dessa mulher, podia suspeitá-la?

-Suponha-se em seu lugar, o senhor que sabe uma parte de minha história. Depois do que lhe dei, a ele, julgar-se-ia com direito a esse triste sacrifício da vida de um infeliz?

-Não, certamente.

Nesse instante, Aurélia que distraíra-se com a conversa, viu Adelaide já sem a capa, e suspensa ou antes enlaçada ao braço de seu marido com um abandono que ela, sua mulher, não se animaria a mostrar em público.

Aurélia por um impulso que não pôde conter, apesar do império que se habituara a conservar sobre si, deixou o braço de Ribeiro para lançar-se ao encontro do outro par e separou os dois, insinuando-se entre eles. Aí recobrou-se, ao perceber a surpresa que se pintava no semblante dos outros, buscou disfarçar, afetando uma risada e trançando no seu o braço da mulher de Ribeiro.

-Escute, quero dizer-lhe um segredo, D. Adelaide!

Afastou-se levando a amiga. O segredo foi um remoque a propósito de certa loureira que passava; e depois uma indireta ao desgarro de certas senhoras, que timbram em imitar aquelas a quem mais desprezam.

-Dê-me a minha capa! disse Aurélia com rispidez a Seixas.

Antes que este pudesse satisfazê-la, tirou-lhe da mão a caxemira que Adelaide tinha dado a guardar, embrulhou-se nela, e tomou o braço do marido.

-Vamos?

Seixas admirado deixou-se conduzir, supondo que tornavam ao camarote. Ao chegarem defronte da escada, Aurélia esperou para despedir-se de Adelaide.

-Já se retira? perguntou a amiga cada vez mais surpresa.

-Prometi a minha madrinha, D. Margarida Ferreira, ir vê-la esta noite. Passei por aqui somente para gozar da sua companhia.

Aurélia tivera esta lembrança, no caminho do salão para o camarote; era uma excelente explicação de seu descaso de tomar à amiga o braço do marido, e o melhor pretexto para cortar de vez o desagradável incidente.

Seixas acompanhou a mulher, sem a mínima observação. Entraram no carro; o cocheiro que não recebeu ordem alguma, dirigiu-se a Laranjeiras. D. Margarida Ferreira morava em Andaraí.

-Não vai à casa de sua madrinha?

A resposta foi breve e seca:

-Não; já é tarde.

Aurélia revoltava-se contra si mesma, por causa daquele momento de fragilidade. Como é que ela depois de haver arrebatado à sua rival o homem a quem amava, e de haver desdenhado esse triunfo, por indigno de sua alma nobre, dava a essa rival o prazer de recear-se de suas seduções?

Descontente, contrariada, cogitava uma vindita desse eclipse de seu orgulho.

-O que é o ciúme? disse de repente sem olhar o marido, e com um tom incisivo.

Seixas compreendeu que aí vinha a refrega e preparou-se, chamando a si toda a calculada resignação de que se costumava revestir.

-Exige uma definição fisiológica, ou a pergunta é apenas mote para conversa?

-Acredita na fisiologia do coração? Não lhe parece um disparate, esta ciência pretensiosa que se mete a explicar e definir o incompreensível, aquilo que não entende o próprio que o sente, e que sente-se, sem ter muitas vezes a consciência desse fenômeno moral? Só há um fisiologista, mas esse não define, julga. É Deus, que formando sua criatura do limo da terra, como ensina a Escritura, deixou-lhe ao lado esquerdo, por amassar, uma porção de caos de que a tirou. Quanto ao ciúme, todos nós sabemos mais ou menos a significação da palavra. O que eu desejava era saber sua opinião sobre este ponto: se o ciúme é produzido pelo amor?

-Assim pensam geralmente.

-E o senhor?

-Como nunca o senti, não posso ter opinião minha.

-Pois tenho-a eu, e por experiência. O ciúme não nasce do amor, e sim do orgulho. O que dói neste sentimento, creia-me, não é a privação do prazer que outrem goza, quando também nós podemos gozá-lo e mais. É unicamente o desgosto de ver o rival possuir um bem que nos pertence ou cobiçamos, ao qual nos julgamos com direito exclusivo, e em que não admitimos partilha. Há mais ardente ciúme do que o do avaro por seu ouro, do ministro por sua pasta, do ambicioso por sua glória? Pode-se ter ciúme de um amigo, como de um traste de estimação, ou de um animal favorito. Eu quando era criança tinha-o de minhas bonecas.

Aurélia calou-se à espera da réplica; prolongando-se a pausa continuou:

-Um exemplo. Há pouco, no teatro, quando vi o modo por que a Adelaide Ribeiro lhe dava o braço, tive ciúmes do senhor. Entretanto eu não o amo, bem sabe, e não o posso amar!

-Esta prova é decisiva. E a senhora não acredita na fisiologia? Quer melhor definição? O ciúme é o zelo do senhor pela cousa que lhe pertence.

-Ou pessoa! acrescentou Aurélia com maldade.

-Pela cousa que lhe pertence, insistiu Seixas; seja essa animada ou inanimada.

-Temos ainda outra prova em favor de minha opinião. O senhor que amou tanto e tantas vezes, nunca teve ciúmes; há pouco me confessou.

-E como o ciúme é o sintoma do orgulho, ou em outros termos, da dignidade, a conseqüência...

-É lógica; mas eu a dispenso. Preferia que o senhor me recitasse alguma de suas poesias. Por exemplo, O Capricho.

- III -

As partidas de Aurélia, ou recepções, como as chamava o Alfredo Moreira, à parisiense, eram das mais brilhantes que então se davam na Corte.

Sem galopes infernais e as extravagantes figuras que fazem das quadrilhas e valsas um perfeito corrupio de idos ou um remoinho de gente tocada da tarântula, reinava ali sempre uma animação de bom gosto que excitava o prazer e derramava a alegria sem amarrotar as moças, nem espremer as damas entre os cavalheiros.

Aurélia descobrira um meio engenhoso de obter este resultado. Quando os rapazes que deviam dar o tom à reunião, se retraíam com fingidas esquivanças, e não se apressavam em tirar pares e trazê-los ao meio da sala, a dona da casa anunciava a quadrilha dos casados.

Essa quadrilha, como o nome indica, era dançada unicamente pelos maridos com suas mulheres. Ninguém escapava; não se admitia insenção alguma, nem de idade, nem de moléstia. Aurélia era inflexível, e não havia resistir à sua doce tirania. Se ela tinha desses caprichos despóticos e impertinentes, possuía em compensação um tacto superior para cativar a todos com sua fina e graciosa amabilidade.

O disparate das idades e a obrigação do galanteio entre as duas caras-metades, às vezes tão desencontradas, servia de divertimento geral, até aos próprios velhos reumáticos. As matronas gostavam interiormente desta fantasia que as remoçava, embora deitassem sua cafanga, como exigia a decência.

O mais apreciado porém era a pirraça feita aos rapazes, que além de ficarem de fora e perderem os lindos pares escolhidos entre as senhoras casadas, sofriam de ricochete os amuos das meninas solteiras, aborrecidas por não dançarem e obrigadas a fazer o papel de tias, ocupando o lugar das mães que tinham tomado os seus.

Disso resultava que os rapazes com receio da tal quadrilha jarreta, desenvolviam uma atividade exemplar à primeira arcada da rabeca, e entretinham constante animação na sala, sem que Aurélia se incomodasse em rogar a esses meus senhores o especial obséquio de dançar.

A Lísia Soares dizia que essa invenção não passava de um disfarce de Aurélia para dançar com o marido, de quem andava cada vez mais namorada; a tal ponto que dava-se a esses desfrutes.

Aparecera nessas partidas Eduardo Abreu, a quem os camaradas desde muito não viam na sociedade. Aurélia acolheu-o com afetuosa distinção, e reservava-lhe sempre uma de suas quadrilhas tão disputadas pelos inúmeros admiradores.

Acabava de dançar com ele, e passeava pelo salão ao seu braço. O Alfredo Moreira, com esse espírito de restilo que fornece a vida leviana aos leões de sala, vendo-os passar, disse para um companheiro:

-Retrospecto sentimental!

-Não entendo a charada, tornou-lhe o outro.

-Não sabes que o Abreu teve uma paixão estrepitosa pela Aurélia, e fez as maiores loucuras para casar-se com ela?

-Já percebo.

-Ela recusou o casamento porque amava o Seixas; mas agora que está casada com este, é muito capaz de transportar o amor para o jovem lírio abandonado.

-O jeito é disso!

Este trecho de diálogo travou-se na alameda artificial, que em noites de reunião, se dispunha ao longo da sala de jantar com palmeiras, acácias e magnólias plantadas em vasos de louça e caixas de madeira.

Fernando que se havia refugiado um instante naquele recanto, e fumava sentado em um sofá rústico à sombra de um plátano, ouviu a maledicência dos dous leões. Buscando com os olhos o alvo do remoque, viu sua mulher que falava ao cavalheiro com uma insistência meiga e sedutora, que lembrou-lhe a época de seus primeiros amores.

-Ama-o! murmurou.

Depois não viu mais nada, o par desaparecera da sala, e ele submergira-se em sua alma. Só deu acordo de si, quando a voz da mulher despertou-o surpreso.

-Há que tempo o procuro! disse Aurélia sentando-se a seu lado, e olhando-o inquieta. Está incomodado?

-Não, senhora: tive há pouco o prazer de vê-la dançar com o Abreu.

Aurélia lançou um olhar rápido e penetrante ao marido.

-É verdade; dancei com ele; é um de meus pares habituais, tornou com volubilidade. E o senhor, por que não dançou também?

-Porque a senhora não me ordenou.

-É esta a razão? Pois vou dar-lhe um par... Quer oferecer-me seu braço? replicou Aurélia sorrindo.

-Seria ridículo oferecer-lhe o que lhe pertence. A senhora manda, e é obedecida.

Aurélia tomou o braço do marido, e afastou-se lentamente ao longo da alameda.

-Por que me chama senhóra? perguntou ela fazendo soar o ó com a voz cheia.

-Defeito de pronúncia!

-Mas às outras diz senhôra. Tenho notado; ainda esta noite.

-Essa é, creio eu, a verdadeira pronúncia da palavra; mas nós, os brasileiros, para distinguir da fórmula cortês, a relação de império e domínio, usamos da variante que soa mais forte, e com certa vibração metálica. O súdito diz à soberana, como o servo à sua dona senhóra. Eu talvez não reflita e confunda.

-Quer isso dizer que o senhor considera-se meu escravo? perguntou Aurélia fitando Seixas.

-Creio que lho declarei positivamente, desde o primeiro dia, ou antes desde a noite de que data a nossa comum existência, e minha presença aqui, a minha permanência em sua casa sob outra condição, fora acrescentar à primeira humilhação uma indignidade sem nome.

Aurélia replicou dando à sua voz inflexão triste e repassada de sentimento.

-Já não é tempo de cessar entre nós estas represálias, que não passam de truques de palavras? Temos para separar-nos eternamente motivos tão graves, que não carecemos de estar a beliscar-nos a todo o momento com semelhantes puerilidades. Eu dei o meu exemplo; devo ser a primeira a fazer ato de contrição. O senhor é meu marido, e somente meu marido.

-O que lhe disse não é uma banalidade, mas uma convicção profunda, uma cousa séria, a mais séria de minha vida; breve há de reconhecê-lo. Não empreguei a palavra escravo no sentido da domesticidade; seria soberbamente ridículo. Mas a senhora deve saber que o casamento começou por ser a compra da mulher pelo homem; e ainda neste século se usava em Inglaterra, como símbolo o divórcio, levar a repudiada ao mercado e vendê-la ao martelo. Também não ignora que no Oriente há escravas que vivem em suntuosos palácios, tratadas como rainhas.

-As sultanas?

-Ora esse poder ou esse luxo que o homem se arrogou, por que não o terá a mulher deste século e desta sociedade, desde que lhe cresce nas mãos o ouro que é afinal o grande legislador, como o sumo pontífice?

A palavra de Seixas era acre, e queimava os lábios.

-Sou seu marido!... É verdade; como Scheherazade era mulher do sultão.

-Menos o lenço! acudiu Aurélia com um remoque.

Mas a ironia não pôde abafar a sublevação irresistível do pudor, que cerrou-lhe as pálpebras e cobriu-lhe as faces e o colo de vivos rubores.

-Poupemos aos nossos mútuos sarcasmos a augusta santidade do amor conjugal, disse ela comovida. Deus não nos concedeu essa inefável alegria, a fonte pura de quanto há de nobre e grande para o coração. Ficamos... Eu pelo menos... órfãos e deserdados dessa bênção celeste; mas nem por isso podemos recusar-lhe a nossa veneração.

Mal acabava de proferir estas palavras sentidas e vindas do íntimo, que a moça arrependida de haver cedido à emoção, desfolhou dos lábios um riso argentino, e afetou o seu costumado tom de volubilidade:

-Quer saber minha opinião? Isto que o senhor chama escravidão, não passa da violência que o forte exerce sobre o fraco; e nesse ponto todos somos mais ou menos escravos, da lei, da opinião, das conveniências, dos prejuízos; uns de sua pobreza, e outros de sua riqueza. Escravos verdadeiros, só conheço um tirano que os faz, é o amor, e este não foi a mim que o cativou.

Achavam-se nesse instante na sala, em face da cadeira ocupada por Adelaide Ribeiro.

-D. Adelaide, faz-me um favor. Guarde-me este fugitivo, e tenha-o cativo, ao menos durante esta contradança.

-É um depósito? perguntou Adelaide maliciosamente. Aceito; mas sem responsabilidade.

-Não há risco.

Enquanto a mulher de Ribeiro consertava os fofos e a cauda de seu elegante vestido para tomar o braço do par que a dona da casa lhe oferecera com tanta amabilidade, Aurélia estreitando-se ao flanco do marido disse-lhe ao ouvido e com expressão estas palavras.

-Restituo-lhe sua liberdade. Já o disse uma vez; agora o realizei.

-E eu rejeitei então como agora, respondeu-lhe o marido no mesmo tom.

-Por quê? perguntou a moça com viva interrogação na voz e no olhar.

-Não é porque desejo tolher a sua. Esteja descansada.

-Decerto! disse Aurélia com desdenhosa inflexão da fronte.

-A razão é outra.

-Quero saber.

-Espero em Deus, que a saberá um dia.

Tinham-se afastado alguns passos para não serem ouvidos. Aurélia fitara os olhos no marido, excitada pelo tom das últimas palavras; e preparava-se talvez a exigir a explicação, quando ouviu o frolo do vestido de Adelaide que se aproximava.

Soltou o braço do marido e afastou-se.

A música dava o sinal da quadrilha. Passou o Alfredo Moreira, que vinha borboleteando pela sala, como um sátiro que adeja na silva à cata de uma flor. Fernando adivinhou que essa flor era um par, e encartou-lhe a Adelaide Ribeiro em risco de infringir o código dos salões, faltando às regras da polidez.

-Não tem par, Moreira? Aqui está D. Adelaide, que sem dúvida estimará a troca, pois lhe dá por cavalheiro, em vez de um aposentado, o príncipe da elegância fluminense.

Sem esperar resposta, deixou a moça ao leão que expandia-se como uma tulipa, esticando as guias do bigode encerado. Seixas contava com a sua posição de dono da casa, empenhado em fazer dançar seus convidados para desculpar a estratégia, com que se dispensara da quadrilha.

Frustrou assim o capricho de Aurélia, o qual o incomodara? Por quê? Não poderia bem apurar a razão no encontro das impressões do momento. Desejo de convencer a mulher de sua indiferença para Adelaide; repugnância de prestar-se a esse ludíbrio; necessidade de manter a gravidade duma situação que se complicava; tudo isto passou-lhe pelo espírito.

Corria a reunião sempre animada. Tinham chegado mais convidados; e a partida transformara-se em baile, como muitas vezes acontecia.

A frauta soltou o cintilante prelúdio de uma valsa de Strauss.

Os valsistas afamados deixaram-se ficar de parte, sem dúvida para se fazerem desejar. Os caloiros e a gente de encher hesitavam em tomar a dianteira; algum mais afouto achou-se em branco; não encontrou par.

De repente correu pela sala este rumor, a valsa dos casados, e logo após ouviu-se a risada cristalina de Aurélia, esse trilo fresco, límpido, que às vezes escapava-lhe dos lábios, como se os seus dentes de pérolas se lhe desfiassem entre os rubins a roçar uns nos outros.

A formosa mulher atravessava a sala pelo braço do velho general Barão do T. que para não desmentir o seu garbo marcial, fazia naquele momento prova de um heroísmo superior ao que mostrara na última guerra do Paraguai, onde havia sido um meio Bayard, sans peur, mas não sans reproche.

O ilustre guerreiro, que nunca voltara o rosto ao canhão, fosse ele Krupp, admitia contudo a possibilidade de curvar-se alguma vez para que a bala não lhe cortasse a pluma do chapéu ou a metralha não lhe queimasse a barba resplandecente como uma nuvem iluminada pelo sol. Mas curvar o peito arcado e altaneiro, bambear a perna firme, rija e direita, quando levava ao braço a mais bela mulher do mundo, era uma cobardia, ainda mais, uma indignidade que ele não podia cometer.

A Lísia Soares acusou Aurélia da lembrança da tal valsa dos casados. Esta defendeu-se:

-A idéia é do general, que está morto por dançar uma valsa com a baronesa. Recordações da mocidade!

O famoso guerreiro não recuou; porém jamais carga de cavalaria contra um quadrado ou uma trincheira, debaixo do fogo cruzado de uma bateria de canhões, custou-lhe como aquela valsa que ele dançou decidido a morrer como um bravo.

- IV -

Aurélia estava ocupada em reunir os diversos casais e enviá-los ao meio da sala; desembargadores de todo o tope e calibre, conselheiros carunchosos, viscondes mofados, marqueses carranças: tudo tratava de executar-se da melhor vontade, que era o meio de tomar mais leve a penitência.

Nisto chegou-se a Lísia Soares ao braço de Fernando. A travessa trazia nos lábios um sorriso maligno; o olhar beliscava como um alfinete.

-Está muito entretida com os outros e não se lembra de si, disse ela.

-Como? perguntou Aurélia voltando-se.

-Não disfarce. A justiça começa por casa; aqui está seu marido. Dê o exemplo.

Aurélia compreendeu a vingança da amiga, despeitada por não valsar com o Alfredo Moreira.

Desde a primeira vez que apareceu na sociedade, depois do luto de sua mãe, Aurélia que apesar da palavra afouta e viva, tinha o casto recato de sua pessoa, resolveu não valsar para não arriscar-se a encontrar um desses pares que põem ao vivo a comparação poética da trepadeira enroscada ao tronco musgoso.

Declarou, portanto, que não sabia valsar, e que nunca poderia aprender porque o giro rápido causava-lhe vertigem. Havia nesta segunda parte um fundo de verdade. Quando valsava no colégio com as amigas, sentia tão vivo prazer nessa dança impetuosa, que deixava-se arrebatar e desprezando o compasso da música volvia uma velocidade prodigiosa até que o atordoamento a obrigava a sentar.

Convencida de que ela não sabia realmente valsar, Lísia lembrou-se de tomar uma desforra obrigando-a a fazer triste figura na sala, ou então a retratar-se de sua esquisitice e acabar com a tal valsa dos casados. O que mais estimulara a moça, fora a suspeita de que Aurélia fizera aquilo por maldade, e só para privá-la de dançar com o Moreira.

Nisto era injusta. A razão que movera Aurélia, não sei; mas que ela nesse momento não se lembrava da existência da Lísia e do Moreira, disso posso dar certeza.

-Não seja má, Lísia! disse Aurélia com um modo queixoso, que não ocultava de todo o fino motejo do olhar.

-Nada, minha cara; você não dispensa ninguém, tenha paciência.

-Eu não sei valsar!

-Aí é que está a graça. Meu pai também não sabia.

-Ela sabe, era meu par no colégio, observou uma senhora.

-Há de dançar.

-Pena de talião, dizia um velho advogado gotoso que voltava da valsa tão estafado como nunca o deixara a mais complicada defesa do júri.

-Caso de justa represália! acudiu um velho diplomata que fizera sua carreira em eterna disponibilidade, sem trocadilhos.

-A coroa cede ante a opinião! orava um ministro para quem coroa e opinião no Brasil eram a chapa e o cunho da mesma moeda em que se recebia o salário.

As senhoras insistiam para se despicarem da entrega que lhes fizera a dona da casa; as moças por pirraça; e os rapazes pelo desejo de quebrar o encanto a Aurélia, e terem-na daí em diante como par certo de valsa.

-Não é preciso essa revolução. Eu me submeto, disse Aurélia, curvando gentilmente a cabeça.

Dirigindo-se ao marido que estava defronte e a quem a Lísia não consentira que se retirasse, tomou-lhe resolutamente o braço e deixou-se conduzir ao meio da sala.

-Por que se constrange? Não quer valsar; eu tomo sobre mim a recusa, segredou Seixas.

-É questão de vaidade. Compreende a força que tem para nós mulheres, este nosso ponto de honra? tornou Aurélia também a meia voz.

-Neste momento, não; não compreendo.

-Veja a Lísia como está saboreando o meu vexame de não saber valsar, e o fiasco que me espera? Demais...

Sua voz teve uma nota vibrante.

-Demais, o senhor pode pensar que tenho medo.

Aurélia pousara a mão no ombro do marido, e imprimindo ao talhe um movimento gracioso e ondulado, como o arfar da borboleta que palpita no seio do cacto, colocou-se diante de seu cavalheiro e entregou-lhe a cintura mimosa.

Era a primeira vez, e já tinham mais de seis meses de casados; era a primeira vez que o braço de Seixas enlaçava a cintura de Aurélia. Explica-se pois o estremecimento que ambos sofreram ao mútuo contacto, quando essa cadeia viva os surpreendeu.

Balançava-se o airoso par à cadência da música arrebatadora; e todos o admiravam, menos Lísia Soares que ralava-se de despeito ao ver a silfidez e graça com que Aurélia valsava, triunfando, quando ela esperava humilhá-la.

Aurélia tinha nessa noite um vestido de tule cor de ouro, que a vestia como uma gaze de luz. Com o voltear da valsa, as ondas vaporosas da saia e a manga roçagante do braço que erguera para apoiar-se em seu par, flutuavam como nuvens diáfanas embebidas de sol, e envolviam a ela e ao cavalheiro como um brilhante arrebol.

Parecia que voavam ambos arrebatados ao céu por uma assunção radiosa.

A cabeça de Aurélia afrontara-se, atirada para o ombro com um gesto sobranceiro e uma expressão provocadora, que por certo havia de desairar outro semblante, mas tinha no seu uma sedução irresistível e uma beleza fatal e deslumbrante.

Nunca se fixou na tela, nem se lavrou no mármore, tão sublime imagem da tentação, como aí estava encarnada na altivez fascinante da formosa mulher.

Aos primeiros compassos principiou este rápido diálogo, cortado pelas evoluções da dança:

-Não sei valsar devagar.

-Pois apressemos o passo.

-Não lhe tonteia?

-Não; a cabeça é forte.

-E o coração?

-Este já calejou.

-Pois eu sou o contrário.

-O coração?

-Nunca vacilou.

A moça continuara soltando frases intermitentes.

-A cabeça é que é fraca. -Mas que singularidade! -Em tudo sou esquisita! -Devagar é que tonteio. -A casa roda em torno de mim. -Depressa não. -Quando tudo desaparece... -Quando não vejo mais nada... -Então sim! -Então gosto de valsar! -E posso valsar muito tempo!

Passavam perto da música. Seixas disse ao regente da orquestra:

-Apresse o compasso!

O arco do regente deu o sinal.

-Mais! disse Aurélia.

Amiudaram-se as pancadas do arco.

-Ainda mais! ordenou a moça.

O arco sibilou. Os instrumentos estrepitaram; as notas despenhavam-se não já em escalas, mas em borbotões. Não era mais valsa de Strauss; era um turbilhão musical, um pampeiro como saía das mãos inspiradas de Liszt.

O lindo par arrojou-se, deixando a trotar classicamente os outros que não podiam acompanhar aquela torrente impetuosa. Obscurecia-se a vista que buscava acompanhá-lo; ele passava nublado por aquela espécie de atmosfera oscilante, que a velocidade da rotação estabelecia em torno de si.

Aurélia cerrara a meio as pálpebras; seus longos cílios franjados, que roçavam o cetim das faces, sombrearam o fogo intenso do olhar, que escapava-se agora em chispas sutis, e feriam o semblante de Seixas como os rutilos de uma estrela.

A valsa é filha das brumas da Alemanha, e irmã das louras valquírias do norte. Talvez sobre essas regiões do gelo, com os doces esplendores da neve, o céu derrame alguma da serenidade e inocência que fruem os bem-aventurados; talvez que os povos da fecunda Germânia, quando vão ao baile, mudem o temperamento com que marcham à guerra, e façam correr nas veias cerveja em vez de sangue.

A ser assim, pode a valsa ter naqueles países as honras de uma dança de sala. Em outra latitude, deve ser desterrada para os bailes públicos, onde os homens gastos vão buscar as sensações fortes, que o ébrio pede ao álcool.

Há nessa dança impetuosa alguma cousa que lembra os mistérios consagrados a Vênus pela Grécia pagã, ou o delírio das bacantes quando agitavam o tirso. «É, na frase do grande poeta, a valsa impura e lasciva, desfolhando as mulheres e as flores».

Nunca a linguagem, que esse rei da palavra, chamado Victor Hugo, subjuga e maneja como um brioso corcel, prestou-se à mais eloqüente expressão do pensamento. É realmente a desfolha da mulher, a despolpa de sua beleza e de sua pessoa, o que a valsa impudica faz no meio da sala, em plena luz, aos olhos da turba ávida e curiosa.

As senhoras não gostam da valsa, senão pelo prazer de sentirem-se arrebatadas no turbilhão. Há uma delícia, uma voluptuosidade pura e inocente, nessa embriaguez da velocidade. Aos volteios rápidos, a mulher sente nascer-lhe as asas, e pensa que voa; rompe-se o casulo de seda, desfralda-se a borboleta.

Mas é justamente aí que está o perigo. Esse enlevo inocente da dança, entrega a mulher palpitante, inebriada, às tentações do cavalheiro, delicado embora, mas homem, que ela sem querer está provocando com o casto requebro de seu talhe e traspassando com as tépidas emanações de seu corpo.

O que é a valsa, mostrava-o aquele formoso par que girava na sala; e ao qual entretanto defendia dos olhos maliciosos a casta e santa auréola da graça conjugal, com que Deus os abençoara.

Fernando arrependia-se de ter cedido ao desejo da mulher e começava, ele um dos impertérritos valsistas da Corte, a recear a vertigem.

Seu olhar alucinado pelas fascinações de que se coroava naquele instante a beleza de Aurélia, tentou desviar-se e vagou pela sala. Voltou porém atraído por força poderosa e embebeu-se no êxtase da adoração.

Quando a mão de Aurélia calcava-lhe no ombro, transmitindo-lhe com a branda e macia pressão o seu doce calor, era como se todo seu organismo estivesse ali, naquele ponto em que um fluido magnético o punha em comunicação com a moça.

Depois essa estranha sensação tornou-se ainda mais intensa. Já não tinha consciência de si para perceber distintamente a pressão dos dedos em seu ombro. O que se passava nele era uma verdadeira intuscepção da forma peregrina dessa mulher, que ele via em face, mas sentia dentro em si.

Aurélia não consente, como outras, que seu cavalheiro a conchegue ao peito. Entre os bustos de ambos mantém-se a distância necessária para que não se unam com o volver da dança; e tanto que deixam passagem à claridade do gás.

Entretanto a sensação viva que Fernando experimenta neste momento é a do contato estreito, íntimo, do talhe palpitante da moça, como se o tivesse fechado em seus braços; sua calma, semelhante ao molde que concebe a cera branda, vazava em si formosa estátua e recebia o seu toque mavioso.

Se o colo de Aurélia pulsava rápido no ofego da valsa, embora os rofos do decote nem de leve roçassem o colete, ele, fechando os olhos e recolhendo-se, palpava em seu peito o rijo galbo do seio voluptuoso.

Se um retraimento lascivo, peculiar à raça felina, imprimia ao dorso de Aurélia uma flexão ondulosa, que dilatando-se no abalo nervoso, brandia o corpo esbelto, essa vibração elétrica repercutia em todo o organismo de Seixas.

Era uma verdadeira transfusão operada pelo toque da mão da moça no ombro do marido, e da mão deste na cintura dela; mas sobretudo pelos olhos que se imergiam, e pelas respirações que se trocavam.

Não há flor de aroma delicado, como a boca pura e fresca de uma moça.

Outros perfumes conheço mais vivos, alguns fortes e excitantes: nenhum tem a maga suavidade de um hálito de rosas, fragrância de sua alma, que Aurélia infundia nos lábios do cavalheiro.

Neste deleite em que se engolfava, teve Seixas um momento de recobro, e pressentiu o perigo. Quis então parar e pôr termo a essa prova terrível a que a mulher o submetera, certamente no propósito de o render a seu império, como já uma vez o fizera, naquela noite do divã, noite cruel de que ainda conservava a pungente recordação.

Para preparar a parada, conteve a velocidade do passo. Percebeu Aurélia o leve movimento, se não teve a repercussão do pensamento do marido, antes que este o realizasse. Os lábios murmuraram uma palavra súplice:

-Não!

As pálpebras ergueram-se; os grandes olhos, cheios de luz e de amor, inundaram o semblante de Seixas, e cerraram-se logo levando-lhe toda a vontade e consciência, como uma onda que depois de espraiar-se, reflui, trazendo no seio quanto encontrou em sua passagem.

Seixas abdicou de si, e arrojou-se novamente no turbilhão.

Tudo isto se passara em breves momentos, durante o espaço que o par valsante levara para descrever pelo vasto salão duas ou três elipses.

Nos quatro cantos da casa, havia para ornato altas jardineiras de bronze verdadeiro e de trabalho artístico, lembrança de Aurélia que as encomendara da Europa.

Eram grupos agrestes, onde se tinham disposto os lugares dos vasos; mas estes em vez de flores, recebiam plantas vivas, que formavam assim um bosque a cada ângulo da sala, concorrendo para dar-lhe o aspecto campestre, que tanto se aprecia agora e com razão.

Há nada mais encantador do que trazer o campo para dentro da cidade e até a casa; do que entrelaçar com as magnificências do luxo as galas inimitáveis da natureza?

No enlace da valsa, o lindo par, ansioso de espaço, e sentindo-se apertado na sala, alongara a elipse até a extremidade, voltando por detrás de uma das jardineiras, onde não estava ninguém naquela ocasião.

Houve um ápice, rápido como o pensamento, em que o par achou-se oculto pelas longas palmas de uma musácea, que se arqueavam graciosamente em umbela. Nesse momento um relâmpago cegou-os a ambos.

Duas rosas se embalam cada uma em sua haste à aragem da tarde; inclinam de leve o cálix e frisam-se roçando às pétalas. Assim tocaram-se as frontes de Aurélia e Fernando, e os lábios de ambos afloraram-se no sutil perpasse.

Foi um relance. O elegante par sumira-se atrás da folhagem, e já emergia da sombra e nadava na claridade deslumbrante da sala que ia de novo atravessar na elipse fugaz.

Mas Fernando sentiu na face um sopro gelado. Olhou: Aurélia estava desmaiada em seus braços. A gentil cabeça ao desfalecer não vergara para o peito. Como se a prendesse o ímã dos olhos que a enlevara, inclinou à espádua do cavalheiro, com o rosto voltado para ele.

Os lábios descorados moviam-se brandamente, como se a sua alma, que ali ficara, estivesse conversando com a outra alma que ali passara.

Seixas ergueu a mulher nos braços e levou-a da sala.

- V -

No meio do alvoroço causado pelo incidente, enquanto acudiam médicos, vinham os sais e corriam as amigas, umas inquietas, e outras curiosas, choviam os comentos.

-Que imprudência!

-Aquele desespero!... Eu logo vi!

-E ela que não tem costume de valsar.

-Quis fazer-se de forte!

-Não é, senhora; aquilo foi o vestido. Não vê como acocha a cintura.

-Ora! Romantismos!... dizia Lísia com um muxoxo, e acrescentou para Adelaide: Acredita no desmaio?

-Pensa que foi fingimento?

-Requebros com o marido. Queria que ele a carregasse no meio da sala e à vista de todos. Gosta de mostrar que Seixas a adora e derrete-se por ela! Pudera não! Uma boneca de mil contos!...

Nesse tema continuou a menina, que tinha a balda muito comum de falar como um realejo, pensando que assim abismava os outros com um espírito gasoso, quando ao contrário aguava o que a natureza lhe dera.

Entretanto Seixas tinha conduzido a mulher ao toucador e deitara o belo corpo desmaiado em um sofá. Estava inquieto, mas não aflito. No transportar a moça havia sentido o calor de sua epiderme e o pulsar do coração. Não passava o acidente de ligeira síncope.

Com efeito, antes que a inundassem de éter ou álcali, e que lhe desatassem a cintura, Aurélia abriu os olhos e arredou com um gesto as pessoas que se apinhavam junto ao sofá.

-Não é nada: uma tonteira, já passou.

O médico que tomava-lhe o pulso confirmou, limitando-se a recomendar além do repouso, o desafogo do vestido para respirar melhor.

-Não é preciso; basta que me deixem espaço, respondeu Aurélia.

Retiraram-se todas as senhoras e voltaram à sala. D. Firmina demorou-se com intenção de não deixar a moça; mas esta pediu-lhe que a subsituísse nas funções de dona da casa.

-Fernando fica. Vá para a sala; e faça continuar a dança. Estou boa; não tenho nada. Se constrangerem-se, é que me incomodam; cismarei que estou doente!

D. Firmina riu-se, inclinou-se para beijar a moça na testa e voltou à sala. Ao aproximar-se da porta viu alguns curiosos que espiavam para dentro, e cerrou as duas bandas fechando-as com a aldraba.

Aurélia ficara deitada no sofá, de costas, na posição inclinada em que Seixas a colocara sobre as almofadas. Quando D. Firmina afastou-se, ela cerrara outra vez as pálpebras, e engolfou-se no sonho delicioso a que a tinham arrancado.

Sua mão tateou hesitando pela borda do sofá, e encontrou a de Seixas que estava sentado junto dela, e contemplava a formosa mulher, ainda mais bela nesse langue delíquio, do que em suas deslumbrantes irradiações.

-Eu caí na sala?... murmurou Aurélia sem abrir os olhos, e corando de leve.

-Não, respondeu Seixas.

-Quem segurou-me?

-Podia eu confiá-la a outro? disse Fernando.

Os dedos da moça responderam apertando a mão do marido.

-Quando vi que tinha desmaiado, tomei-a nos braços e trouxe-a para aqui.

-Para onde?

-Para seu toucador. Não conhece?

-Não me lembro.

Seixas calou-se. Aurélia permaneceu na mesma imobilidade, com a mão do marido presa na sua, que às vezes recebendo uma ligeira vibração contraía-se.

Nisto bateram discretamente à porta. Seixas fez movimento de erguer-se para ver quem era; mas Aurélia ao fugir-lhe a mão que tinha na sua, ergueu-se em pé de um jacto, e lançando os dois braços ao colo do marido, curvou-o sob esse jugo irresistível.

Seixas foi obrigado a sentar-se outra vez; e Aurélia deixando-se cair também sentada sobre o sofá, o retinha fechado na mimosa cadeia, enquanto dardejava à porta o olhar colérico, erigindo o busto com a retração serpe que enrista-se para o bote.

Que se passava nesse momento no espírito da moça exaltada pelas comoções dessa noite?

Afigurava-se a Aurélia que achara enfim a encarnação de seu ideal, o homem a quem adorava, e cuja sombra a tinha cruelmente escarnecido até àquele instante, esvanecendo-se quando ela julgava tê-lo diante dos olhos.

Agora que o achara, que ele aí estava perto dela, que tomara posse de sua vida, parecia-lhe no desvario de sua alucinação que o queriam disputar-lhe, arrancando-o de seus braços, e deixando-a outra vez na viuvez em que se estava consumindo.

-Não!... Não quero!... exclamou com veemência.

Continuavam a bater.

-Podem abrir, Aurélia, e surpreender-nos!

Estas palavras do marido, ou antes o receio que as ditava, provocaram em Aurélia um assomo ainda mais impetuoso.

-Que me importa a mim a opinião dessa gente?... Que me importa esse mundo, que separou-nos! Eu o desprezo. Mas não consentirei que me roube meu marido, não? Tu me pertences, Fernando; és meu, meu só, comprei-te, oh! sim, comprei-te muito caro...

Fernando erguera-se como impelido por violenta distensão de uma mola e tão alheio de si que não ouviu o fim da frase:

-Pois foi ao preço de minhas lágrimas e das ilusões de minha vida, concluiu a moça, que ao movimento de Seixas soerguera-se também suspensa pela cadeia com que lhe cingia o pescoço.

Seixas dominara o ímpeto que o precipitava, e conseguiu afogá-lo no escárnio, que é uma válvula para essas grandes comoções da alma. Sentou-se de novo, e murmurou ao ouvido da mulher, que o inundava com seu olhar:

-O lenço?

-O lenço?... repetiu a moça maquinalmente.

E apanhando seu lenço de rendas que jazia sobre o sofá, olhou-o como se buscasse nele explicação daquela singular pergunta do marido.

Súbito estremeceu com abalo tão forte que a levantou em pé, soberba de ira e indignação.

Não se desmanchara um só anel de seus cabelos, que se cacheavam em torno da cerviz com a mesma correção, não se amarrotara nenhum dos folhos de seu trajo vaporoso e todavia quem contemplasse Aurélia nesse momento, acreditaria na desordem do lindo vestuário, tal era a exacerbação que perspirava de toda sua pessoa.

A aurora serena dessa beleza, ainda há pouco dourada dos níveos raios de luz coada pelo cristal fosco, transformara-se de repente na tarde incendiada pelos sinistros clarões da borrasca. A estrela fizera-se relâmpago; o anjo despira as asas celestes, e vestira o fulgor lucífero. Aurélia soltou uma gargalhada:

-Tem razão!... É o único amor que pode haver entre nós!

A mão da moça que machucava convulsivamente o lenço, ergueu-se para arremessá-lo a Seixas, com as palavras de desprezo que acabava de proferir. Mas foi apenas um simulacro; a meio do gesto a mão retraíra-se com energia.

-Se fosse possível que eu decaísse de minha virtude, e até da minha altivez, havia um homem a quem não me rebaixaria jamais! De todas as indignidades, a maior seria a profanação do único amor de minha vida!

Com o sibilo da voz da moça ao soltar estas frases, misturou-se o esgarço das rendas do lenço que ela acabava de despedaçar. Aproximando então as tiras do gás que ardia em uma arandela ao lado do espelho do toucador, comunicou-lhes a chama e deixou-as consumirem-se sobre o mármore.

Haverá quem acuse Seixas, de ter, no momento em que a mulher lhe fazia confissão de seu amor e lhe oferecia um perdão espantâneo, proferido aquela palavra que envolvia um insulto cruel.

Ele próprio, que pouco antes não achava uma expressão bastante eloqüente para sua revolta, ali estava agora arrependido, com os olhos compassivos fitos na mulher, que abria uma janela, e encostava-se à sacada para banhar-se na brisa e na treva da noite.

E não só arrependia-se. Pela primeira vez duvidava disso a que ele chamava sua honra.

Na mesma noite, em que Aurélia lhe infligira a atroz humilhação desse consórcio monstruoso do sarcasmo com a vergonha, Seixas considerou-se impossível para semelhante mulher. Não poderia amá-la nunca mais, e ainda menos aceitar seu amor.

Até o momento da revelação afrontosa, seu procedimento podia ser repreensível ante uma moral severa; mas não ia além de um casamento de conveniência, cousa banal e freqüente, que tinha não somente a tolerância, como a consagração da sociedade.

Desde porém que esse casamento de conveniência fora convertido em um mercado positivo, ele julgava uma infâmia para si, envolver sua alma e afundá-la nessa transação torpe.

Seu corpo sim estava vendido; ele não o podia subtrair ao indigno mister, desde que havia recebido o salário. Mas a alma nunca! Tivesse-o embora essa mulher na conta de um especulador sem escrúpulos, ele sentia que a honra não o abandonara; e que se outrora ia-se embotando, esse acidente lhe restituíra o vigor.

Foi este pensamento, que Seixas sob a impressão das suspeitas relativas ao Abreu, enunciou de um modo vago a Aurélia no diálogo que travara com ela no princípio da noite.

Veio, porém, a valsa, e ele subjugado pela beleza da mulher, e por sua prodigiosa fascinação, esqueceu todos os protestos de dignidade; só viveu na adoração do ídolo, a que não o conseguira arrancar sua apostasia.

O desmaio arrefeceu a exaltação do amante. Sentado à cabeceira do sofá, onde Aurélia se conservava deitada, com os olhos cerrados, apertando-lhe a mão por intermitentes pulsações dos dedos, ele não se pôde esquivar a uma reflexão, que o reclamava.

Aquela vertigem súbita na circunstância em que se dera, e tão prontamente dissipada, seria uma afetação? Não estaria a moça representando uma cena da comédia matrimonial que a divertia?

Seixas, apesar da revolução que nele se havia operado nos últimos seis meses, ainda não gastara de todo seus hábitos de homem de sociedade para quem a vida é uma série de etiquetas e cerimônias, regradas pelo uso.

A rotina da sala não conhece os movimentos impetuosos e desordenados das paixões. Ali tudo se faz com regra e medida. Uma menina que desde os sete anos se habitua a entregar os lábios às carícias dos amigos da casa, recebe o seu primeiro beijo de amor com um pudor gracioso, mas sereno.

E o homem que sugara tantas bocas travessas, como se fossem os cálices de cristal rosa onde libava goles de moscatel; esse homem que tivera em seus braços, calmas e risonhas, tantas namoradas, podia compreender que a ponta da asa de um ósculo, pois não fora outra cousa, causasse um desmaio?

Aurélia tinha em suas relações com o marido, especialmente nos instantes de animação, gestos e atitudes de uma grande expressão dramática. Esses movimentos naturais não eram senão acenos das paixões e sentimentos de sua alma; pareciam artísticos porque revestiam-se de uma suprema elegância.

Seixas, admirando-os como poeta, suspeitava-os de teatrais; por isso entrou-o a desconfiança de que Aurélia preparava-lhe com todos aqueles rendimentos uma nova humilhação, igual, senão maior, do que a da noite do baile, naquele mesmo toucador.

Foi nessa disposição de espírito que penetrou-o como a lâmina de um estilete, a frase comprei-o bem caro, que o lábio de Aurélia vibrava com viva entonação. Não ouviu mais nada; fez-se em sua consciência um imenso deserto que enchia a só idéia do mercado aviltante.

O pensamento que o dominara antes da valsa, e que um enlevo passageiro havia sopitado, ressurgiu.

Ele refugiou-se no sarcasmo, que desde o casamento era um derivativo às sublevações de sua cólera. Sem intenção de injúria, somente como acerba ironia, soltou a palavra de que se arrependera.

Entretanto Aurélia na janela derramava a vista pelo azul da atmosfera onde se recortava o perfil das montanhas. Uma nebulosa vislumbrava o seu vago lampejo.

A moça ficou olhando-a um instante; e cuidou ver o rasto de sua alma que subia ao céu.

-O ar da noite deve fazer-lhe mal, sobretudo agitada como está, disse Fernando timidamente.

Julgando que a moça não o ouvira, aproximou-se e repetiu sua observação.

-Engana-se! Estou calma; perfeitamente calma! disse a moça, e para exibir a prova de sua afirmação deixou a sacada, e expôs-se à claridade do gás.

Tinha no semblante, e em todo o aspecto, a inalterável serenidade de que sabia revestir-se, quando queria conter e domar os impulsos da paixão.

Fernando deu um passo e ia talvez pedir-lhe perdão, quando a porta abriu-se. A pessoa que batera antes, como não lhe abrissem, insistiu; mas desta vez resolveu-se a levantar a aldraba. Era D. Firmina, que vinha saber notícias da moça.

-Bravo! Já de pé?

-E pronta para dançar! respondeu Aurélia rindo-se.

Aproximou-se do psichê, compôs as ligeiras perturbações de seu traje, anelou um cacho dos cabelos, consertou os fofos da saia, e tomou o braço do marido para entrar na sala.

-Não faça imprudências, Aurélia! disse D. Firmina.

-Não tenha susto! Agora estou preservada.

A viúva não entendeu. Aurélia, afastando-se, atirou em voz rápida esta advertência ao marido, cuja fisionomia conservava os traços das comoções por que passara:

-Sejamos desgraçados, mas não ridículos. Tudo, menos dar minha vida em espetáculo a este mundo escarninho.

Todos estes incidentes foram curtos e sucederam-se tão breves, que um quarto de hora depois do desmaio, Aurélia entrava no salão pelo braço do marido, tão fresca e viçosa como no princípio do baile, e ainda mais deslumbrante de beleza.

Seus convidados ao vê-la caminharam ao seu encontro, mas não puderam apresentar-lhe suas felicitações, porque a orquestra despejava o mesmo turbilhão da valsa de Strauss, e Aurélia volteava na sala com o marido.

-Que loucura!

Foi a voz que se ouviu de todos os cantos, Seixas quisera demovê-la, mas ela o emudecera com uma palavra:

-É a reparação que o senhor me deve.

Valsaram tanto tempo quanto da primeira vez, e o mínimo alvoroço não agitou esses dois corações, que ainda há pouco se confundiam na mesma pulsação, e agora batiam isolados e cadentes, apenas agitados pelo movimento, como ponteiros de relógio. Havia entre ambos um oceano de gelo.

Acabada a valsa, Aurélia recebeu risonha as felicitações das amigas e convidados; Seixas, censuras e exprobrações por ter consentido em dançar segunda vez com a mulher.

-Podia ser-lhe fatal!

-Era preciso curar-me da vertigem, acudiu Aurélia rindo. Ele tinha obrigação.

-E agora está curada? perguntou o general.

-Oh! para sempre!

O baile continuou cada vez mais animado.

- VI -

Tinha saído o último dos convidados. Seixas voltava de conduzir ao carro D. Margarida Ferreira. Aurélia que o esperava, deu-lhe boa-noite e ia retirar-se. Fernando a atalhou:

-Desejo dar-lhe uma explicação!

-É inútil.

-Não tive intenção de ofendê-la.

-Decerto; um cavalheiro tão delicado não podia injuriar uma senhora.

-Uma cousa desagradável que ouvi e que me afligiu profundamente, tirou-me do meu natural. Não estava calmo; em todo o caso referi-me unicamente à minha posição, sem desígnio de qualquer alusão...

-É a história de ontem, que o senhor me está contando! exclamou Aurélia e apontou para o mostrador da pêndula que marcava duas horas. Tratemos de amanhã. Vamos dormir.

Fazendo ao marido uma risonha mesura, a moça deixou-o na sala e recolheu-se a seus aposentos, onde a esperava a mucama para despila.

-Podes ir; não preciso de ti.

Aurélia conservava de sua pobreza o costume de bastar-se para o serviço de sua pessoa; como não gostava de entregar seu corpo a mãos alheias, nem consentia que outros olhos que não os seus lhe devassassem o natural recato, poupava sempre que podia a mucama, a qual já não estranhava esse modo.

Fechada a porta por dentro, a moça em um instante operou a sua metamorfose. O trajo de baile ficou sobre o tapete, defronte do espelho, como as asas da borboleta que finou-se no seio da flor, surgiu dali, daquele desmoronamento de sedas, a casta menina envolta em seu alvo roupão de cambraia.

Sentou-se no sofá onde estivera poucas horas antes com Seixas, e ficou pensativa. Até que levantou-se para ir correr a cortina ao quadro e acender a arandela próxima.

Esteve contemplando o retrato e falou-lhe, como se tivesse diante de si o homem, de que via a imagem.

-Tu me amas!... exclamou cheia de júbilo. Negues embora, eu o conheço; eu o vejo em ti, e sinto-o em mim! Um homem de fina educação, como és, só insulta a mulher quando a ama e com paixão! Tu me insultaste, porque o meu amor era mais forte que tu, porque aniquilava a tua natureza, e fez do cavalheiro que és, um déspota feroz! Não te desculpes, não! Não foste tu, foi o ciúme, que é um sentimento grosseiro e brutal. Eu bem o conheço!... Tu me amas!... Ainda podemos ser felizes! Oh! então havemos de viver a dobro, para descontar esses dias que desvivemos!

A gentil senhora apoiou-se à moldura do quadro, e outra vez ficou pensativa.

-E por que não podemos ser felizes desde este momento? Ele está ali, pensando em mim; talvez me espera! Basta-me abrir aquela porta. Virá suplicar-me seu perdão, eu o receberei em meus braços; e estaremos para sempre unidos!

Um sorriso divino iluminou a formosa mulher. Ela desceu do estrado e atravessou a câmara de dormir, com o passo trêmulo, mas afouto, e as faces a arderem.

Chegou à porta; afastou o reposteiro azul; aplicou o ouvido; sorriu; murmurou baixinho o nome do marido; recordou as notas apaixonadas com que a Stolz cantava a ária da Favorita: Oh! mio Fernando!

Afinal procurou a chave. Não estava na fechadura. Ela própria a havia tirado, e guardara na gaveta de sua escrivaninha de araribá-rosa. Voltou impaciente para procurá-la. Quando sua mão tocou o aço, a impressão fria do metal produziu-lhe um arrepio. Rejeitou a chave, e fechou a gaveta.

-Não! é cedo! É preciso que ele me ame bastante para vencer-me a mim, e não só para se deixar vencer. Eu posso, não o duvido mais, eu posso, no momento em que me aprouver, trazê-lo aqui, a meus pés, suplicante, ébrio de amor, subjugado ao meu aceno. Eu posso obrigá-lo a sacrificar-me tudo, a sua dignidade, os seus brios, os últimos escrúpulos de sua consciência. Mas no outro dia ambos acordaríamos desse horrível pesadelo, eu para desprezá-lo, ele para odiar-me. Então é que nunca mais nos perdoaríamos, eu a ele; o meu amor profanado, ele a mim, o seu caráter abatido. Então é que principiaria a eterna separação.

Depois de breve pausa, continuou falando outra vez ao retrato:

-Quando ele convencer-me do seu amor e arrancar de meu coração a última raiz desta dúvida atroz, que o dilacera; quando nele encontrar-te a ti, o meu ideal, o soberano de meu amor; quando tu e ele fores um, e que eu não vos possa distinguir nem no meu afeto, nem nas minhas recordações; nesse dia, eu lhe pertenço... Não, que já lhe pertenço agora e sempre, desde que o amei!... Nesse dia tomará posse de minha alma, e a fará sua!

Afastando-se, a moça levava ainda o pensamento de seu amor que subiu ao céu na primeira frase da prece da noite.

-Concedei, meu Deus, que seja breve! dizia ela cruzando as mãos, de joelhos no escabelo, e com os olhos em um crucifixo de prata e ébano.

Terminada a prece, Aurélia fechou o gás, deixando apenas no toucador uma lamparina, cujos frouxos vislumbres esclareciam o rosto do retrato.

De sua cama, onde se acabava de aninhar como uma rola, entre os finos lençóis de irlanda, com a cabeça no travesseiro, ela via pela porta aberta, lá no toucador, a imagem querida; e com os olhos nela adormeceu, passando, como costumava, de um sonho a outro, ou antes continuando o mesmo e único sonho, que era toda sua vida.

Os choques dessas duas almas, que uma fatalidade prendera, para arrojá-las uma contra outra, produziam sempre afastamento e frieza durante algum tempo. A remissão foi mais sensível e duradoura depois da noite do baile, porque também a crise fora mais violenta.

Durante estas pausas, Aurélia observava o marido, e assistia comovida à transformação que se fora operando naquele caráter, outrora frágil, mundano e volúbil, a quem uma salutar influência restituía gradualmente à sua natureza generosa.

Ela adivinhava ou antes via, que sua lembrança enchia a vida do marido e a ocupava toda. A cada instante, na menor circunstância, revelava-se essa possessão absoluta que tomara naquela alma. Havia em Fernando uma como repercussão dela.

Sabia que a atenção do marido nunca a deixava de todo, embora a solicitassem assuntos da maior importância, ou pessoas de consideração. Na sociedade, como em família, ela descobria através dos disfarces o olhar que a buscava, muitas vezes no reflexo do espelho, ou por entre uma fresta de cortina; e quando não era o olhar, o ouvido preso à sua voz.

As flores que Seixas regava eram as hortênsias, suas prediletas, dela Aurélia. Quando aproximava-se do viveiro, os canários mimosos da senhora mereciam todas as suas carícias. No jardim, como em casa, os sítios favoritos, fora ela quem os escolhera.

Aurélia não gostava de Byron, embora o admirasse. Seu poeta querido era Shakespeare, em quem achava não o simples cantor, mas o sublime escultor da paixão.

Muitas vezes aconteceu-lhe pensar que ela podia ser uma heroína dessa grande epopéia da mulher, escrita pelo imortal poeta. No dia do casamento, sua imaginação exaltada chegou a sonhar uma morte semelhante à de Desdêmona.

Seixas renegara o poeta de seus antigos devaneios, para afeiçoar-se ao trágico inglês, que ele outrora achava monstruoso e ridículo. Lia os mesmos livros que ela; os pensamentos de ambos encontravam-se nas páginas que um já tinha percorrido, e confundiam-se. Aplaudiam reciprocamente ou censuravam.

Poucas mulheres possuíam como Aurélia, esposo tão dedicado e tão preso à sua vida. Seixas não estava ausente senão o tempo do emprego; o resto do dia passava-o em sua companhia, na intimidade doméstica, ou nas visitas e reuniões.

Desde os primeiros dias, no seu propósito de passiva obediência, o marido se impusera a tarefa de lhe dar uma conta minuciosa das horas passadas fora de casa, dos acidentes da viagem, dos encontros que fizera, e até dos trabalhos da secretaria.

Aquilo que não passava de uma ironia do marido, veio a tornar-se um costume; e ela que a princípio incomodara-se com a fingida subserviência, não pôde mais tarde dispensar essa confidência que lhe restituía a pequena fração da existência de Seixas, vivida longe de si.

Mas não era unicamente a possessão dela pelo amor, que se operara em Seixas; era também a assimilação do caráter.

Como todas as almas que se regeneram, a de Seixas exercia sobre si mesma uma disciplina rigorosa. Tinha severidade que em outras circunstâncias haviam de parecer ridículas. A desculpa, o inofensivo pretexto tomavam para ele proporções de mentira. A amabilidade constante e geral era a hipocrisia; os indiferentes não tinham direito senão à polidez, e não podiam usurpar os privilégios da amizade.

Algumas vezes, Aurélia de parte o ouvira conversando acerca de outros reprovar essa existência de negaças e galanteios, em que ele consumira os primeiros anos da mocidade. Em qualquer ocasião revelava-se o seu modo grave e austero de considerar agora a sociedade, e de resolver as questões práticas da vida.

Como uma cera branda, o homem de coração e de honra se formara aos toques da mão de Aurélia. Se o artista que cinzela o mármore enche-se de entusiasmos ao ver a sua concepção, que surge-lhe do buril, imagine-se quais seriam os júbilos da moça, sentindo plasmar-se de sua alma, a estátua de seu ideal, encarnação de seu amor.

Assim, apesar da esquivança que sucedera ao baile, o drama dessa paixão encaminhava-se a um desenlace feliz, quando um incidente veio complicá-lo, perturbando seu desenvolvimento e precipitando o desfecho.

Já se tinha desvanecido a impressão da cena violenta, e voltava aos poucos a calma intimidade.

Fernando saíra para a repartição. Ao chegar à cidade avistou-se com um negociante seu antigo conhecido.

-Estimo muito encontrá-lo. Tenho uma boa notícia a dar-lhe. Aquele privilégio afinal desencantou-se.

-Qual privilégio? perguntou Seixas surpreso.

-Ora! Já esqueceu? Não faz mais caso dessas ninharias? O nosso privilégio de minas de cobre...

-Ah! já sei! atalhou o moço um tanto perturbado.

-Pois o Fróis sempre conseguiu vendê-lo em Londres. Deram uma bagatela; cinqüenta contos de réis. Em todo o caso é melhor que nada, porque do tal cobre das minas, meu caro, eu já não esperava nem um tacho. Veio-me a notícia pelo último paquete; fazia tenção de procurá-lo todos os dias, e faltou-me o tempo. Felizmente encontrei-o. Desculpe.

-Não há de que, Sr. Barbosa.

-Deduzidas umas despesas que se fizeram, toca-nos a cada um cousa de quinze contos e pouco. Quando quiser receber sua parte, é mandar-me a cautela que lhe passei.

-A cautela?

-Aposto que a vendeu?

-Não; devo tê-la em casa.

-Pois à vista dela... Passar bem.

Despediu-se o Barbosa, e Seixas continuou seu caminho, mas distraído e perplexo. A notícia dada pelo negociante sugeria-lhe várias e encontradas reflexões.

Aquele privilégio era um póstumo da antiga existência, que findara-se com o seu casamento. Começara a desenvolver-se a febre das empresas; um espertalhão teve a idéia da exploração de umas minas de cobre em São Paulo; e para obter a concessão lembrou-se de associar à especulação um negociante que fornecesse os fundos, e um empregado que abrisse os canais administrativos.

Seixas achava-se em relações com o Fróis, e veio a ser o empregado escolhido. A seu pedido o requerimento subiu ao ministro, como um balão, cheio do gás de pomposas informações. O despacho não se demorou. O oficial de gabinete o alcançara fumando um charuto com seu ministro, e dando-lhe os mais amplos esclarecimentos, não sobre a projetada empresa, mas sobre uma bela mulher, por quem a Excelência se apaixonara.

Concedido o privilégio, tratou o Fróis de negociá-lo, muito esperançoso de obter pelo menos uns trezentos contos. Mas essas esperanças mofaram, e os três associados chegaram a acreditar que suas minas de cobre em papel valiam menos de que o tacho velho, pelo qual os carcamanos sempre dão uma meia pataca.

Seixas não pensou mais nisso, e desde então ficou na ignorância das tentativas do Fróis e de seus cálculos de probabilidade, até receber nesse momento a notícia da venda do privilégio, que lhe trazia de repente e inesperadamente um lucro de quinze contos.

O primeiro e o mais vivo movimento que em Seixas produziu a notícia foi de alegria pelo ganho dessa quantia que tinha para ele um preço incalculável. Assaltou-o, porém, certo desgosto, pela origem daquele dinheiro. A intervenção de um empregado público nestes negócios, se outrora lhe parecera lícita, já não era apreciada por ele com a mesma tolerância.

Quaisquer porém que fossem seus escrúpulos, ele carecia desse dinheiro, e julgava-se com direito de empregá-lo em serviço de tamanho alcance, como era aquele a que o destinava, salva mais tarde a restituição da quantia por um meio indireto, para descargo desses escrúpulos de consciência.

Tomada esta resolução, sobreveio-lhe um receio acerca da cautela passada pelo negociante como capitalista da empresa. Não recordava-se de ter visto o papel desde muito tempo, talvez três anos. Onde andaria? Na queima que fizera em vésperas de casar-se, teria sido poupada essa inutilidade?

Grande importância devia Seixas ligar a esse negócio, pois estando já a trabalhar na repartição, interrompeu sua rigorosa assiduidade. Meteu-se em um tílburi, e correu a casa, esperando achar-se de volta em uma hora.

- VII -

Deviam ser onze horas, quando o tílburi chegou a Laranjeiras.

Seixas embora não pensasse em ocultar-se, desejava para não despertar a curiosidade, que em casa se não apercebessem de sua volta. Mandou parar o tílburi a alguma distância, e subiu sem rumor a escada particular que levava a seus aposentos.

A porta do gabinete estava fechada interiormente, e ele esquecera essa manhã de levar a chave. Foi obrigado portanto a dar a volta pela saleta. Àquela hora Aurélia e D. Firmina costumavam estar no interior, passaria sem que o vissem.

Estranhou achar a porta da saleta cerrada, embora não fechada com o trinco; supôs que não estando presa ao rodapé pelo ferrolho, o vento a tivesse encostado.

Empurrou-a devagar e entrou, para estacar na soleira pálido e estupefato.

No sofá colocado ao longo da parede, que lhe ficava à esquerda, viu Aurélia sentada, e conversando de um modo animado e instante com Eduardo Abreu que ocupava a cadeira próxima, e tinha a cabeça baixa.

Erguendo os olhos sem animar-se a fitá-los na moça, deu o mancebo com o vulto transtornado de Seixas em pé na porta, a encará-lo; e levantou-se por um impulso irresistível.

Foi então que Aurélia avistou o marido, cuja presença imprevista e semblante demudado a perturbaram, mas rápido, quase imperceptivelmente. Com a segurança que tinha de si, prontamente recobrou-se.

-Pode entrar, Fernando! disse ela a sorrir.

-Não quero perturbá-los, respondeu Seixas desprendendo a custo a voz dos lábios secos.

-O negócio é urgente, tornou ela, mas pode bem suportar a demora de alguns minutos. Sente-se, Sr. Abreu!

Seixas dera alguns passos automaticamente pela sala adentro.

-Não foi hoje à repartição? perguntou Aurélia para disfarçar a confusão dos dous, o marido e o hóspede.

-Voltei à procura de um papel que me esqueceu. Com licença!

Seixas aproveitara o primeiro ensejo para fugir desse lugar, onde temia representar alguma cena ridícula ou medonha. Fazendo um cumprimento a esmo, retirou-se apressado na direção de seus aposentos.

Se até ali tinha necessidade de dinheiro, agora mais do que nunca. Foi direito à sua secretária; abriu a gaveta onde guardava os seus papéis antigos; espalhou-os pelo tapete de mistura com outros objetos, e encontrando afinal a cautela que procurava, saiu precipitadamente pela escada particular.

Parou na porta para deixar passar o Abreu que descia; quando o viu longe, meteu-se no tílburi e voltou à cidade.

Aurélia, logo que o marido retirou-se, estendeu a mão a Abreu dizendo-lhe:

-Não tem o direito de recusar, e espero que não me prive desta satisfação. Adeus, seja feliz.

O mancebo apertou comovido a mão gentil que lhe era oferecida com tanta sinceridade, e balbuciando expressões de reconhecimento, despediu-se.

Apenas ele desapareceu na escada, Aurélia dirigiu-se ao gabinete do marido. Bateu à porta, e chamou-o; não recebendo resposta, entrou. A primeira cousa que viu foi a gaveta da secretária escancarada, e a ruma de papéis atirada sobre o pavimento.

A moça certificou-se que Seixas não estava em casa; adivinhou que saíra pela escada particular cuja porta fechara levando a chave.

Lançando um olhar aos papéis esparsos e resistindo à ânsia de conhecer aquelas relíquias de um passado, que não lhe pertencia, encaminhava-se à porta para sair. Eis que descobriu entre maços de cartas, um trabalho de tapeçaria.

Apanhou-o para examinar, com simples curiosidade artística. Era uma fita de marcar folha de livro. Tinha bordados a fio de ouro, de um lado a palavra amor; do outro lado em semicírculo o nome Rodrigues de Seixas; no centro do qual estava um monograma composto de um F e um A entrelaçados.

Esta prenda de Adelaide Amaral, e a alusão ao próximo casamento feita na comunidade do apelido, não diziam novidade a Aurélia. Ela sabia cousas talvez mais pungentes para seu amor; porém o tempo já as tinha expungido da memória. Eram a cicatriz que essa lembrança crua veio reabrir e ulcerar.

Todo aquele passado doloroso, de que mal começava a desprender-se, surgiu de novo ante ela, como um espetro implacável. Curtiu novamente em uma hora que ali esteve imóvel todas as aflições e angústias, que havia sofrido durante dous anos. Esta fita escarlate queimava-lhe os olhos e os dedos como uma lâmina em brasa, e ela não tinha forças para retirar a vista e a mão das letras de ouro e púrpura, que entrelaçavam com o nome de seu marido, o nome de outra mulher.

Afinal prorrompeu a indignação. A seda rangiu entre as mãozinhas crispadas, que debalde tentaram espedaçá-la. Não conseguindo seu intento, a moça levou à boca a fita; num soberbo ímpeto de cólera, cortou com os dentes os fios que teciam as letras, e dilacerou a prenda de sua rival.

Atirou então de si com asco os fragmentos, mas em lugar onde não escapassem à vista do marido, e foi encerrar-se em seu toucador.

Seixas entrou à hora habitual. De ordinário passava pela saleta, onde sempre encontrava a mulher, que já vestida para a tarde, vinha esperá-lo. Trocavam algumas palavras, depois do que ele ia ao seu quarto preparar-se para o jantar.

Nesse dia subiu pela escada particular. Já estava senhor de si; mas quis evitar o encontro, naturalmente porque necessitava daqueles momentos.

Efetivamente, logo que chegou ao gabinete, sem dar-se ao trabalho de apanhar os papéis que jaziam pelo chão, nem aperceber-se dos fragmentos da fita que estavam em cima da secretária, abriu uma gaveta de segredo, tirou um livrinho de notas, de que extraiu alguns algarismos. Sobre estes começou uma série de cálculos e operações que o absorveram até o momento de chamá-lo o criado para jantar.

Aurélia não podia ocultar sua irritação. Crivou o marido de remoques e epigramas. Nem a inofensiva D. Firmina escapou a essa veia sarcástica; mas o alvo principal foi Adelaide, sobre quem choveram as alusões.

Seixas mostrou-se indiferente às provocações. Deixou passar os motejos sem redargüir; mas sua fisionomia desdenhosa e sobranceira opunha à exacerbação da moça fria e surda resistência que ainda mais a irritava.

O orgulho contrariado de Aurélia acerava o gume às suas armas, para abater aquela atitude de ameaça que a afrontava; mas não o conseguiu. As lutas constantes tinham acabado por aguerrir o caráter de Fernando e afinar-lhe a têmpera.

Ao erguer-se da mesa, a moça lançou ao marido um olhar de desafio, e foi esperá-lo ao jardim, no lugar retirado onde costumavam reunir-se de tarde para conversarem em mais liberdade.

Fernando achou-a sentada em um banco rústico, na posição altiva e imperiosa de uma rainha que se prepara a ouvir as súplicas dos súditos prostrados a suas plantas. Descansava o braço direito sobre a copa enfolhada de um bogarim, cujas flores esmagava entre os dedos.

Seixas sentou-se defronte:

-Não tenho e nunca tive, senhora, pretensões a seu amor. Seria uma rematada loucura, e eu acho-me no uso frio e calmo de toda a minha razão para ver a barreira que nos separa. Também não tenho direito de pedir-lhe contas de seus sentimentos, nem mesmo de suas ações, desde que não ofendam aquilo que o homem preza acima de todos os bens. Abdicando na senhora a minha liberdade e com ela a minha pessoa, uma cousa, porém, não lhe transferi, e não o podia: a minha honra.

-E de que serve a mim esse traste, a sua honra? Não me dirá? interrogou Aurélia com a sátira mais picante no olhar.

-Lembre-se que a senhora fez-me seu marido, e que eu ainda o sou. Vendesse-lhe eu embora esse título e as obrigações que a ele correspondem, a origem não importa; ele existe, e atesta-me esse direito reconhecido, ou antes conferido por si mesma; o direito que tem todo o esposo, se não à fidelidade da mulher, ao menos ao respeito da fé conjugal e ao decoro da família.

-Ah! Deseja que se guardem as aparências? E contenta-se com isso!

-Por enquanto!

Aurélia relanceou um olhar com o intento de surpreender o pensamento do marido na expressão da fisionomia:

-Terá a bondade de dizer-me qual é esse escândalo de que se queixa?

-Já não se recorda? Acha muito naturais as liberdades que tem deixado tomar esse moço, o Eduardo Abreu? Haverá um mês, em uma noite de partida, a senhora conversava com ele de um modo que deu tema às pilhérias do Moreira. Nessa ocasião não castiguei a insolência desse fátuo para evitar uma cena.

-Foi na noite da valsa?

-Não contente com isso, leva a inconveniência a ponto de receber aquele moço, na ausência de seu marido, e só, em colóquio reservado, como os encontrei!

-Acabou?

-Creio que é bastante.

-Bem, toca-me a vez de responder. Como o confessou, não lhe devo conta de minhas ações; só o homem a quem eu amasse teria o direito de mas pedir. Quero, porém, supor um momento que o senhor fosse esse homem, hipótese absurda, que eu figuro somente para mostrar-lhe que ainda assim, é para estranhar a sua suscetibilidade.

-Oh! pareço-lhe um Otelo! disse Fernando a chasquear.

-Não, Otelo tinha razão em todos os seus ultrajes e brutalidades; amava e com paixão. Mas o senhor não é aqui outra cousa mais do que o advogado da decência.

Fernando esmagado pelo sarcasmo, contra o qual não podia reagir, teve ímpetos de confessar a essa mulher toda a insânia do amor que sentia, e depois, quando ela exultasse com seu triunfo e a humilhação dele, abatê-la a seus pés.

- VIII -

Aurélia continuou com os olhos fitos nas alvas pétalas aveludadas de um jasmim do Cabo:

-O recato é o mais puro véu de uma senhora. Feliz aquela que vive à sombra do zelo materno, e só a deixa pelo doce abrigo do amor santificado. Sua virtude tem como esta flor a tez imaculada, e o perfume vivo. Essa ventura não me tocou; achei-me só no mundo sem amparo, sem guia, sem conselho, obrigada a abrir o caminho da vida, através de um mundo desconhecido. Desde muito cedo vi-me exposta às suspeitas, às insolências e às vis paixões; habituei-me para lutar com essa sociedade, que me aterra, a envolver-me na minha altivez, desde que não tinha para guardar-me o desvelo de uma mãe ou de um esposo.

A expressão tocante e melancólica da moça ao proferir estas palavras comoveu Seixas, que já não se lembrava de seus ressentimentos.

-Quando eu era uma menina ingênua, que não deixava a companhia de sua mãe, e nunca se achara só em presença de outro homem a não ser aquele a quem amava e, unicamente, amou neste mundo, esse homem abandonou-me por outra mulher, ou por outra cousa; e foi entrelaçar o seu nome ao de uma moça que era noiva de outrem. Mais tarde, encontrando-me só no mundo, acompanhada por uma parenta velha, mãe de aparato e amiga oficiosa, que ainda mais só me tornava, fazendo as vezes de um reposteiro, esse homem desabusado casou-se comigo sem a menor repugnância.

A moça fitou os olhos no marido:

-Confesse que os escrúpulos desse senhor e o seu pânico de escândalo vêm tarde e fora de tempo.

-Esses escrúpulos nascem da posição atual.

-Outro engano seu. Essa posição é um encargo, e não um direito. O senhor falou-me em sua honra. Penso eu que a honra é um estímulo de coração. Que resta dela a quem alienou o seu? Se o senhor tem uma honra, e eu acredito, essa me pertence; e eu posso usar e abusar dela como me aprouver.

-Assim, julga-se dispensada de guardar qualquer reserva?

-Para o senhor e para o mundo julgo-me dispensada de tudo; nada lhes devo; o que me dão, são apenas as homenagens à riqueza, e ela as paga com o luxo e a dissipação. Sou senhora de mim, e pretendo gozar da minha independência sem outras restrições, além do meu capricho. Foi o único bem que me ficou do naufrágio de minha vida; este ao menos hei de defendê-lo contra o mundo.

-Agradeço-lhe ter me desiludido a tempo. Acreditava que sacrificando a liberdade, não renunciava à minha honra perante o mundo e não me sujeitava a ser apontado como um indigno; a senhora entende o contrário; aplaudo esta colisão; ela vem a propósito para romper uma situação intolerável, e que já durou demais para a dignidade de ambos.

-Sobretudo daquele que tendo alienado sua pessoa em um casamento livre e refletido, conserva as prendas de outra noiva.

Seixas surpreso interrogou a mulher com os olhos.

-Nunca pensei ter feito a aquisição de seu amor nem contei com a fidelidade que jurou; mas esperava do senhor ao menos a lealdade do negociante, que depois de vendida a mercadoria, não substitui por outra marca à do comprador.

Seixas não podia compreender esta alusão, cujo sentido só atinou mais tarde, quando ao entrar no gabinete viu os destroços da prenda de Adelaide. Quis pedir a explicação; mas avistou um criado que dirigia-se para ali.

-Está aí o Sr. Eduardo Abreu que deseja falar à senhora.

-Bem! disse Aurélia despedindo com um gesto o criado que afastou-se.

Seixas custou a conter-se até esse momento:

-A senhora não pode receber esse homem!

-Era minha intenção. Tinha-o recebido esta manhã pela última vez; mas à vista de sua desconfiança mudei de resolução, respondeu Aurélia friamente.

-Pois saiba que hoje, depois que saiu de sua casa, encontrei-o de face na rua, e recusei-lhe claramente o cumprimento, voltando-lhe as costas.

-Razão demais para que o receba. É preciso convencê-lo de que foi uma simples distração de sua parte, para não supor ele que o senhor honrou-o com uma suspeita, que ultraja-me.

Aurélia tomou o braço do marido e dirigiu-se à saleta, onde acharam o Eduardo Abreu.

Os dois mancebos trocaram um cumprimento seco e cerimonioso; depois do qual Seixas foi debruçar-se à janela ao lado de D. Firmina, e deixou a mulher em liberdade com sua visita:

-Desculpe-me esta insistência; um dever de lealdade à justiça. Hoje tive de repelir a um leviano certa insinuação vil, e logo depois encontrando o Sr. Seixas, percebi diferença notável em seu tratamento.

-Alguma preocupação.

-Afligiu-me a idéia de ser causa involuntária, ou mesmo pretexto de qualquer desconfiança; e por isso vim desistir da promessa que me fez do segredo sobre seus benefícios, e confessar eu próprio a seu marido tudo quanto lhe devo a fim de que ele ainda mais admire a nobreza de sua alma.

-Essa confissão o senhor não a fará; seria uma ofensa grave à minha dignidade. Meu marido não carece de seu testemunho para conservar-me na mesma elevada estima, inacessível aos assaltos da maledicência. No dia em que eu precisasse justificar-me, estaria divorciada, pois se teria extinguido a confiança, que é o primeiro vínculo do amor, e a verdadeira graça do casamento. Esteja tranqüilo pois; seu segredo não lançou a menor sombra em minha felicidade.

A moça disse essas palavras com uma emoção que persuadiu a Abreu, e desvaneceu-lhe os receios.

De seu lado Seixas tinha refletido. Em véspera de uma resolução definitiva que devia operar mudança profunda em seu destino, pareceu-lhe fraqueza esse ridículo desabafo, semelhante aos agastamentos do ciúme banal, que ele acreditava não sentir. Fazendo portanto um esforço, aproximou-se do Abreu com a maneira cortês, por que o costumava tratar, e confirmou assim a explicação dada por Aurélia ao incidente da manhã.

Essa noite era de partida.

A reunião não foi numerosa, mas correu animada. Fernando esteve muito alegre; nunca se ocupou tão ostensivamente da mulher como nessa noite; não a deixava; as mais delicadas flores, as mais galantes finezas, que se disseram naquela escolhida sociedade, foram dele a Aurélia.

Aurélia pelo contrário mostrou-se preocupada.

Essa amenidade do marido depois da cena do jardim a inquietava a seu pesar. Por mais esforços que fizesse não podia arredar seu espírito das palavras proferidas por Seixas naquela tarde, acerca de um rompimento, que devia solver a suposta colisão.

Qual intenção era a sua? Nesse problema fatigou o espírito durante a noite.

No dia seguinte Seixas almoçou às oito horas conforme o ordinário e partiu para a repartição. A essa hora Aurélia ainda estava recolhida; mas seu quarto de dormir, que ficava no pavimento superior, deitava janelas para o jardim; da última delas via-se perfeitamente a parte da sala de jantar onde estava a mesa.

A moça tinha uma devoção de todas as manhãs; quando ouvia o rumor dos passos de Seixas na escada, saltava da cama, e envolta na sua colcha de damasco para não perder tempo a vestir o roupão, corria à janela. Ali escondida por entre as cortinas ficava um instante a olhar o marido algum tempo; como para dar-lhe o bom-dia. Se estava muito fatigada da véspera, se o sono lutava com ela, voltava ao ninho ainda quente, e dormia novo sono.

Nessa manhã porém apesar de ter-se recolhido tarde e sentir necessidade de repouso, demorou-se contemplando o semblante de Seixas com um sentimento de tristeza, que não podia desterrar de si. Um pressentimento vago advertia-lhe que não deixasse partir seu marido sob a impressão dos sarcasmos implacáveis, que lhe tinha lançado na véspera.

Mas triunfou a altivez de seu amor, ainda magoada pelas recordações pungentes que havia acordado em sua alma a vista do mimo de Adelaide.

Seixas saiu, e ela, para disfarçar a impaciência, logo depois do almoço meteu-se no carro com D. Firmina e foi gastar o tempo na Rua do Ouvidor, por casa das modistas e das amigas. Procurava nas novidades parisienses, nas tentações do luxo, um atrativo que lhe cativasse o pensamento e o arrancasse a suas inquietações.

Conseguiu atordoar-se até quatro horas em que chegou a casa.

Seixas não estava, o que era extraordinário. Não havia exemplo de ter excedido dessa hora. Aurélia disfarçou para não mostrar seu desassossego a D. Firmina e aos criados. Recolheu-se a seus aposentos para mudar o vestuário; mas encostou-se ao portal da janela, com os olhos no caminho.

Às cinco horas veio a mucama chamá-la:

-A senhora não vem jantar? Está na mesa.

-Quem mandou deitar?

-São cinco horas.

-E o senhor?

-Disse ao José para prevenir a senhora que talvez não voltasse hoje, senão muito tarde.

-Quando falou o senhor com José?

-Esta manhã, na cidade.

-E não disse a razão por que se demorava?

-Não sei; eu vou chamá-lo.

O José interrogado nada adiantou, de modo que Aurélia permaneceu na mesma inquietação; mas para não dá-la a perceber a D. Firmina, atribuiu a ausência do marido à conferência que ele devia ter com o ministro acerca de trabalhos importantes da repartição.

Quando sentavam-se à mesa, abriu-se a porta e entrou Seixas.

A surpresa não deu tempo a Aurélia para dominar o primeiro impulso de sua alegria que logo arrefeceu ante a fisionomia de Seixas. Ele trazia na expressão rígida e grave do rosto o cunho de uma resolução inflexível.

Entretanto não apartou-se da natural polidez. Desculpou-se delicadamente com a mulher pela demora:

-Precisava concluir um negócio urgente, que lhe comunicarei.

-E concluiu?

-Felizmente.

-Perguntei, para saber se devia esperá-lo amanhã.

-Agora creio que não há de esperar mais por mim, tornou Seixas com um sorriso fugaz.

Aurélia viu o sorriso, e sentiu a modulação especial da voz.

Terminado o jantar, quando seguiam ambos pelos meandros recortados na grama, Seixas disse à mulher:

-Desejo falar-lhe em particular.

-Vamos sentar-nos então, disse Aurélia indicando o sítio onde habitualmente passavam as tardes.

-Aqui no jardim, não; prefiro um lugar mais reservado, onde não venham interromper-nos.

-No meu toucador?

-Serve.

-Ou no seu gabinete?

-No seu toucador; é melhor.

-Já? perguntou Aurélia simulando indiferença.

-Não; basta à noite; e se não lhe incomoda, depois do chá, antes de recolher-se.

-Como quiser! disse Aurélia abrindo as folhas das violetas, à cata de uma flor.

Seixas tomou o regador da moça, guardado com os outros utensílios de jardinagem em um ninho rústico praticado no muro, e entreteve-se a regar os tabuleiros de margaridas e os vasos de hortênsias.

Uma vez na volta do repuxo onde fora buscar água, ao passar perto de Aurélia, a moça perguntou-lhe distraidamente, como se não tivessem interrompido o diálogo:

-É sobre o negócio de que falou-me?

-Justamente.

Seixas ficou parado em frente de Aurélia, supondo que ela ia fazer-lhe nova pergunta, enquanto a moça esperava uma explicação, que não queria pedir diretamente.

Vendo que o marido calava-se, voltou de novo às violetas, e ele continuou em sua ocupação.

- IX -

Eram dez horas da noite.

Aurélia, que se havia retirado mais cedo da saleta, trocando com o marido um olhar de inteligência, estava nesse momento em seu toucador, sentada em frente à elegante escrivaninha de araribá cor-de-rosa, com relevos de bronze dourado a fogo.

A moça trazia nessa ocasião um roupão de cetim verde cerrado à cintura por um cordão de fios de ouro. Era o mesmo da noite do casamento, e que desde então ela nunca mais usara. Por uma espécie de superstição lembrara-se de vesti-lo de novo, nessa hora na qual, a crer em seus pressentimentos, iam decidir-se afinal o seu destino e a sua vida.

A moça reclinara a fronte sobre a mão direita, cujo braço nu, apoiado na mesa, surgia de entre os rofos de cambraia que frocavam a manga do roupão. Estava absorta em uma profunda cisma, da qual a arrancou o tímpano da pêndula soando as horas.

Ergueu-se então, e tirou da gaveta uma chave; atravessou a câmara nupcial, que estava às escuras, apenas esclarecida pelo reflexo do toucador, e abriu afoutamente aquela porta que havia fechado onze meses antes, num ímpeto de indignação e horror.

Empurrando a porta com estrépito de modo a ser ouvida no outro aposento, e prendendo o reposteiro para deixar franca a passagem, voltou rapidamente, depois de proferir estas palavras:

-Quando quiser!

Fernando ao penetrar nessa câmara nupcial, cheia de sombras e silêncio, esqueceu um momento a pungente recordação que ela devia avivar, e que parecia ter-se apagado com a escuridão. O que ele sentiu foi a fragrância que ali recendia, e que o envolveu como a atmosfera de um céu, do qual ele era o anjo decaído.

Aurélia esperava o marido, outra vez sentada à escrivaninha. Ela tinha afastado o braço da arandela de modo que a luz do gás, interceptada por um refletor de jaspe representando o carro da aurora, deixava-a imersa em uma penumbra diáfana, que dava à sua beleza tons de maviosa suavidade.

Seixas sentou-se na cadeira que Aurélia lhe indicara em frente dela, e depois de recolher-se um instante, buscando o modo por que devia começar, entregou-se à inspiração do momento.

-É a segunda vez que a vejo com este roupão. A primeira foi há cerca de onze meses, não justamente neste lugar, mas perto daqui naquele aposento.

-Deseja que conversemos no mesmo lugar? perguntou a moça singelamente.

-Não, senhora. Este lugar é mais próprio para o assunto que vamos tratar. Lembrei aquela circunstância unicamente pela coincidência de representá-la a meus olhos, tal como a vi naquela noite, de modo que parece-me continuar uma entrevista suspensa. Recorda-se?

-De tudo.

-Eu supunha haver feito uma cousa muito vulgar que o mundo tem admitido com o nome de casamento de conveniência. A senhora desenganou-me: definiu a minha posição com a maior clareza; mostrou que realizara uma transação mercantil; e exibiu o seu título de compra, que naturalmente ainda conserva.

-É a minha maior riqueza, disse a moça com um tom que não se podia distinguir se era de ironia ou de emoção.

Seixas agradeceu com uma inclinação de cabeça e prosseguiu:

-Se eu tivesse naquele momento os vinte contos de réis, que havia recebido de seu tutor, por adiantamento de dote, a questão resolvia-se de si mesma. Desfazia-se o equívoco; restituía-lhe seu dinheiro; recuperava minha palavra; e separávamo-nos como fazem dois contratantes de boa fé, que reconhecendo seu engano, desobrigam-se mutuamente.

Seixas parou, como se aguardasse uma contradição, que não apareceu. Aurélia, recostada na cadeira de braço com as pálpebras a meio cerradas, ouvia brincando, com um punhal de madrepérola que servia para cortar papel.

-Mas os vinte contos, eu já os não possuía naquela ocasião, nem tinha onde havê-los. Em tais circunstâncias restavam duas alternativas: trair a obrigação estipulada, tornar-me um caloteiro; ou respeitar a fé do contrato e cumprir minha palavra. Apesar do conceito que lhe mereço, faça-me a justiça de acreditar que a primeira dessas alternativas, eu não a formulei senão para a repelir. O homem que se vende, pode depreciar-se; mas dispõe do que lhe pertence. Aquele que depois de vendido subtrai-se ao dono, rouba o alheio. Dessa infâmia isentei-me eu, aceitando o fato consumado que já não podia conjurar, e submetendo-me lealmente, com o maior escrúpulo, à vontade que eu reconhecera como lei, e à qual me alienara. Invoco sua consciência; por mais severa que se mostre a meu respeito, estou certo que não me negará uma virtude: a fidelidade à minha palavra.

-Não, senhor; cumpriu-a como um cavalheiro.

-É o que desejei ouvir de sua boca antes de informá-la do motivo desta conferência. A quantia que me faltava há onze meses, na noite de seu casamento, eu a possuo finalmente. Tenho-a comigo; trago-a aqui nesta carteira, e com ela venho negociar o meu resgate.

Estas palavras romperam dos lábios de Seixas com uma impetuosidade, que ele dificilmente pôde conter. Como se elas lhe desoprimissem o peito de um peso grande, respirou vivamente, apertando com movimento sôfrego a carteira que tirara do bolso.

Se não estivesse tão preocupado com a sua própria comoção, notaria de certo a percussão íntima que sofrera Aurélia, cujo talhe reclinado sobre o descanso da cadeira brandiu como a lâmina de uma mola de aço.

No sobressalto que a agitou, levara à boca a folha de madrepérola, na qual os lindos dentes rangeram.

Ao abrir a carteira, Seixas suspendeu o gesto:

-Antes de concluir a negociação, devo revelar-lhe a origem deste dinheiro, para desvanecer qualquer suspeita de o ter eu obtido por seu crédito e como seu marido. Não, senhora, adquiri-o por mim exclusivamente; e para maior tranqüilidade de minha consciência provém de data anterior ao nosso casamento. Cerca de seis contos representam o produto de meus ordenados e das jóias e trastes, que apurei logo depois do cativeiro, pensando já na minha redenção. Ainda tinha muito que esperar e talvez me faltaria resignação para ir ao cabo, se Deus não abreviasse este martírio, fazendo um milagre em meu favor. Era sócio de um privilégio concedido há quatro anos, e do qual já nem me lembrava. Anteontem, à mesma hora em que a senhora me submetia à mais dura de todas as provas, o céu me enviava um socorro imprevisto para quebrar enfim este jugo vergonhoso. Recebi a notícia da venda do privilégio, que me trouxe um lucro de mais de quinze contos. Aqui estão as provas.

Aurélia recebeu da mão de Seixas vários papéis e correu os olhos por eles. Constavam de uma declaração do Barbosa relativa ao privilégio, e contas de vendas de jóias e outros objetos.

-Agora nossa conta, continuou Seixas desdobrando uma folha de papel. A senhora pagou-me cem contos de réis; oitenta em um cheque do Banco do Brasil que lhe restituo intacto; e vinte em dinheiro, recebido há 330 dias. Ao juro de 6% essa quantia lhe rendeu 1:084$710. Tenho pois de entregar-lhe Rs. 21:084$710, além do cheque. Não é isto?

Aurélia examinou a conta corrente; tomou uma pena e fez com facilidade o cálculo dos juros.

-Está exato.

Então Seixas abriu a carteira e tirou com o cheque vinte e um maços de notas, de conto de réis cada um, além dos quebrados que depositou em cima da mesa:

-Tenha a bondade de contar.

A moça com a fleuma de um negociante abriu os maços um após outro e contou as células pausadamente. Quando acabou essa operação, voltou-se para Seixas e perguntou-lhe como se falasse ao procurador incumbido de receber o dividendo de suas apólices.

-Está certo. Quer que eu lhe passe um recibo?

-Não há necessidade. Basta que me restitua o papel de venda.

-É verdade. Não me lembrava.

Aurélia hesitou um instante. Parecia recordar-se do lugar onde havia guardado o papel; mas o verdadeiro motivo era outro. Consultava-se, receosa de revelar sua comoção, caso se levantasse.

-Faça-me o favor de abrir aquela gavetinha, a segunda. Dentro há de estar um maço de papéis atado com uma fita azul... justamente!... Não conhece esta fita? Foi a primeira cousa que recebi de sua mão, com um ramo de violetas. Ah! perdão; estamos negociando. Aqui tem seu título.

A moça tirara do maço um papel e o deu a Seixas, que fechou-o na carteira.

-Enfim partiu-se o vínculo que nos prendia. Reassumi a minha liberdade, e a posse de mim mesmo. Não sou mais seu marido. A senhora compreende a solenidade deste momento?

-É o da nossa separação, confirmou Aurélia.

-Talvez ainda nos encontremos neste mundo, mas como dous desconhecidos.

-Creio que nunca mais, disse Aurélia com o tom de uma profunda convicção.

-Em todo o caso, como é esta a última vez que lhe dirijo a palavra, quero dar-lhe agora uma explicação, que não me era lícita há onze meses na noite do nosso casamento. Então eu faria a figura de um coitado que arma à compaixão, e a senhora que pisava aos pés a minha probidade, não acreditaria uma palavra do que então lhe dissesse.

-A explicação é supérflua.

-Ouça-me; desejo que em um dia remoto, quando refletir sobre este acontecimento, me restitua uma parte da sua estima; nada mais. A sociedade no seio da qual me eduquei, fez de mim um homem à sua feição; o luxo dourava-me os vícios, e eu não via através da fascinação o materialismo a que eles me arrastavam. Habituei-me a considerar a riqueza como a primeira força viva da existência, e os exemplos ensinavam-me que o casamento era meio tão legítimo de adquiri-la, como a herança e qualquer honesta especulação. Entretanto ainda assim, a senhora me teria achado inacessível à tentação, se logo depois que seu tutor procurou-me, não surgisse uma situação que aterrou-me. Não somente vi-me ameaçado da pobreza, e o que mais me afligia, da pobreza endividada, como achei-me o causador, embora involuntário, da infelicidade de minha irmã cujas economias eu havia consumido, e que ia perder um casamento por falta de enxoval. Ao mesmo tempo minha mãe, privada dos módicos recursos que meu pai lhe deixara, e de que eu tinha disposto imprevidentemente, pensando que os poderia refazer mais tarde!... Tudo isto abateu-me. Não me defendo; eu devia resistir e lutar; nada justifica a abdicação da dignidade. Hoje saberia afrontar a adversidade, e ser homem; naquele tempo não era mais do que um ator de sala; sucumbi. Mas a senhora regenerou-me e o instrumento foi esse dinheiro. Eu lhe agradeço.

Aurélia ouviu imóvel. Seixas concluiu:

-Eis o que pretendia dizer-lhe antes de separarmo-nos para sempre.

-Também eu desejo que não leve de mim uma suspeita injusta. Como sua mulher, não me defenderia; desde porém que já não somos nada um para o outro, tenho direito de reclamar o respeito devido a uma senhora.

Aurélia referiu sucintamente o que Eduardo Abreu fizera quando falecera D. Emília, e a resolução que ela tomara de salvá-lo do suicídio.

-Eis a razão por que chamei esse moço à minha casa. Seu segredo não me pertencia; e entre mim e o senhor não existia a comunidade que faz de duas almas uma.

Aurélia reuniu o cheque e os maços de dinheiro que estavam sobre a mesa.

-Este dinheiro é abençoado. Diz o senhor que ele o regenerou, e acaba de o restituir muito a propósito para realizar um pensamento de caridade e servir a outra regeneração.

A moça abriu uma gaveta da escrivaninha e guardou nela os valores; depois do que bateu o tímpano; a mucama apareceu:

-Permita-me, disse Aurélia e voltou-se para dar em voz baixa uma ordem à escrava.

Esta acendeu o gás nas arandelas da câmara nupcial e retirou-se, enquanto Aurélia dizia ao marido, mostrando o aposento iluminado:

-Não quero que erre o caminho.

-Agora não há perigo.

-Agora? repetiu a moça com um olhar que perturbou Seixas.

Houve uma pausa.

-Talvez a senhora, para evitar a curiosidade pública, deseje um pretexto?

-Para quê?

-A viagem à Europa seria o melhor. O paquete deve partir nestes quinze dias. Uma prescrição médica tudo explicará, a separação e a urgência. Mais tarde quando venham a saber, já não causará surpresa.

Aurélia deixou perceber ligeira comoção. Entretanto foi com a voz firme que respondeu:

-Desde que uma cousa se tem de fazer, o melhor é que se faça logo e sem evasivas.

Fernando ergueu-se de pronto:

-Neste caso receba as minhas despedidas.

Aurélia de seu lado erguera-se também para cortejar o marido.

-Adeus, senhora. Acredite...

-Sem cumprimentos! atalhou a moça. Que poderíamos dizer um ao outro que já não fosse pensado por ambos?

-Tem razão.

Seixas recuou um passo até o meio do aposento, e fez uma profunda cortesia, à qual Aurélia respondeu. Depois atravessou lentamente a câmara nupcial agora iluminada. Quando erguia o reposteiro ouviu a voz da mulher.

-Um instante! disse Aurélia.

-Chamou-me?

-O passado está extinto. Estes onze meses, não fomos nós que os vivemos, mas aqueles que se acabam de separar, e para sempre. Não sou mais sua mulher; o senhor já não é meu marido. Somos dois estranhos. Não é verdade?

Seixas confirmou com a cabeça.

-Pois bem, agora ajoelho-me eu a teus pés, Fernando, e suplico-te que aceites meu amor, este amor que nunca deixou de ser teu, ainda quando mais cruelmente ofendia-te.

A moça travara das mãos de Seixas e o levara arrebatadamente ao mesmo lugar onde cerca de um ano antes ela infligira ao mancebo ajoelhado a seus pés a cruel afronta.

-Aquela que te humilhou, aqui a tens abatida, no mesmo lugar onde ultrajou-te, nas iras de sua paixão. Aqui a tens implorando seu perdão e feliz porque te adora, como o senhor de sua alma.

Seixas ergueu nos braços a formosa mulher, que ajoelhara a seus pés; os lábios de ambos se uniam já em férvido beijo, quando um pensamento funesto perpassou no espírito do marido. Ele afastou de si com gesto grave a linda cabeça de Aurélia, iluminada por uma aurora de amor, e fitou nela o olhar repassado de profunda tristeza.

-Não, Aurélia! Tua riqueza separou-nos para sempre.

A moça desprendeu-se dos braços do marido, correu ao toucador, e trouxe um papel lacrado que entregou a Seixas.

-O que é isto, Aurélia?

-Meu testamento.

Ela despedaçou o lacre e deu a ler a Seixas o papel. Era efetivamente um testamento em que ela confessava o imenso amor que tinha ao marido e o instituía seu universal herdeiro.

-Eu o escrevi logo depois do nosso casamento; pensei que morresse naquela noite, disse Aurélia com um gesto sublime.

Seixas contemplava-a com os olhos rasos de lágrimas.

-Esta riqueza causa-te horror? Pois faz-me viver, meu Fernando. É o meio de a repelires. Se não for bastante, eu a dissiparei.

* * *

As cortinas cerraram-se, e as auras da noite, acariciando o seio das flores, cantavam o hino misterioso do santo amor conjugal.

* * *