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A campanha abolicionista

José do Patrocínio

Com o coração nos lábios

«Se fosse possível reunir todos os artigos, todos os discursos, com que Patrocínio atacou a escravidão e seus defensores, o livro em que ficassem compendiados esses libelos seria o mais belo poema da Justiça [...]». Olavo Bilac.

O filho do padre João Carlos Monteiro e de sua escrava de 13 anos, Justina Maria do Espírito Santo, nascido em Campos em 1853, conhecido oficialmente como José Carlos do Patrocínio, que era Zeca para os amigos, Zé do Pato para o povo, Proudhomme para os combatentes da abolição, foi um homem complexo que viveu na fronteira de mundos distintos, se não conflitivos. A começar pela fronteira étnica: pai branco, mãe negra, um mulato, como se dizia na época, cor de tijolo queimado, em sua própria definição. Depois, a fronteira civil: mãe escrava, pai senhor de escravos e escravas. A fronteira do estigma social, a seguir: oficialmente registrado como exposto, só mais tarde constando o nome da mãe, nunca legalmente reconhecido pelo pai. Mais: a fronteira entre o mundo interiorano em que se criou e viveu até os 15 anos e o mundo da corte em que exerceu a atividade profissional e política. Ainda: a fronteira intelectual de uma formação superior mas de baixo prestígio, a de farmacêutico, convivendo com a formação dos bacharéis em direito, medicina e engenharia. Por fim, a fronteira entre o reformismo e o radicalismo políticos.

A marca dessas determinações variadas, às vezes contraditórias, combinava-se em Patrocínio com um temperamento apaixonado e explosivo. Momentos de grande cólera eram seguidos de outros de imensa ternura. Sua reconhecida generosidade era tisnada por acusações de desonestidade e venalidade feitas com insistência pelos inimigos. A absoluta coerência e a constância na luta pela abolição não se repetiam em relação a outras causas, como a da República, e com amigos e inimigos. O produto de tudo isto era uma apurada sensibilidade para captar as contradições da época e a capacidade para encarná-las na própria personalidade. Patrocínio era um vulcão de paixões que despertava grandes entusiasmos e grandes aversões. Como ele próprio confessou, falava e escrevia com o coração nos lábios. Do coração brotavam a crítica devastadora e o ataque impiedoso mas também o apelo dramático e o aplauso entusiástico. Ninguém podia ficar indiferente a sua ação e ninguém ficou. Teve amigos incondicionais como Olavo Bilac e Angelo Agostini e inimigos irreconciliáveis como Medeiros e Albuquerque.

Acima de tudo, estava sua paixão pela causa abolicionista, nascida talvez já em Campos no convívio com a mãe escrava. Esta paixão deu sentido a sua luta e a sua vida, sobretudo desde que passou a redator do jornal abolicionista, a Gazeta de Notícias, de Ferreira de Araújo, em 1877. A luta ganhou nova dimensão a partir de 1878 quando Joaquim Nabuco foi eleito deputado pela primeira vez e deu início à batalha parlamentar do abolicionismo. Neste ano os liberais voltaram ao poder depois de dez anos de ausência. Embora as duas grandes leis abolicionistas do Segundo Reinado, a de 1850 e a de 1871, tivessem sido aprovadas por gabinetes conservadores, a bandeira do abolicionismo era dos liberais. Era lógico que os abolicionistas pusessem grandes esperanças na nova situação. A expectativa em relação aos liberais era ainda justificada pela morte do grande abolicionista conservador, Rio Branco, em 1880. Patrocínio fez o elogio fúnebre do visconde, afirmando que ele minerara cidadãos nas jazidas negras da escravidão (artigo de 8 de novembro de 1880).

O ano de 1880 foi ainda particularmente importante por outras razões. Na Câmara, Nabuco provocou os escravocratas pedindo urgência para a discussão de projeto de abolição imediata. O pedido foi derrotado por 77 votos a 18. A luta extravasou, então, do Congresso. Foi criada por Nabuco, Rebouças, João Clapp, Patrocínio e outros a Sociedade Brasileira contra a Escravidão, inspirada na British and Foreign Society for the Abolition of Slavery. Como produto da Sociedade, começou a ser editado o jornal O Abolicionista. Surgiu ainda nesse ano a Gazeta da Tarde do abolicionista negro Ferreira de Meneses, mais militante do que a Gazeta de Notícias. Do ponto de vista da propaganda, a iniciativa mais importante de 1880 foi o início das Conferências Abolicionistas organizadas pelos mesmos lutadores da Sociedade. Não era ainda a rua, mas eram os teatros do Rio que se tornavam arena de luta, ampliando e democratizando o que até então se passara dentro do limitado espaço das Câmaras. Nesse contexto mais popular, assim como posteriormente nas ruas da cidade, Patrocínio sentia-se à vontade e foi aí que desenvolveu sua vocação oratória, responsável por seus maiores triunfos. Lembre-se ainda que 1880 foi o ano da Revolta do Vintém que trouxe de volta o povo às ruas da capital. Entre os oradores que arengavam o povo estava o republicano José do Patrocínio.

De 1880 a 1889, Patrocínio dedicou-se integralmente à causa da libertação dos escravos e à luta contra os que exigiam indenização. Primeiro na Gazeta de Notícias (1878), depois na Gazeta da Tarde (1881), finalmente na Cidade do Rio (1887), jornal que comprou com a ajuda do sogro. A passagem de um jornal para outro significava sempre uma escalada no radicalismo da luta. A campanha desenrolava-se ainda nos teatros, nos banquetes, nos comícios, nos leilões. Tentou também eleger-se para a Câmara dos Deputados em 1884 pelo terceiro distrito da corte mas foi derrotado. Elegeu-se, no entanto, vereador em 1886, em seguida à campanha feita em cima do tema da abolição à qual não faltaram comícios populares. Chegaram até nós seus artigos de jornal. Eles são retrato fiel do pensamento de Patrocínio e da tática de campanha desenvolvida ao longo da década. É possível que nos discursos em que arengava platéias populares sua linguagem fosse algo distinta, talvez mais incendiária. Mas como nunca o acusaram de jogo duplo, é provável que as idéias e a tática não fossem muito distintas das que aparecem nos artigos de imprensa.

Ao ler os artigos, é necessário que se levem em conta, além da personalidade de Patrocínio, as circunstâncias em que foram escritos e a finalidade a que se destinavam: eram armas de combate esgrimidas no calor da refrega. O objetivo final de Patrocínio nunca variou: abolição imediata sem indenização, a ser conquistada no máximo até 1889, centenário da Revolução Francesa. Quatro anos antes da abolição, ele chegou a indicar com antecipação profética o texto da Lei Áurea: «Fica abolida, nesta data, a escravidão no Brasil» (artigo de 11 de abril de 1885). Mas se o objetivo não mudava, a tática variava, as alianças variavam, assim como variava o julgamento de pessoas e instituições. Ele próprio dizia durante a campanha para vereador que para combater a escravidão todos os meios eram legítimos e bons. Não há, pois, que buscar coerência em pontos que não se refiram ao objetivo final. A Lei do Ventre Livre é às vezes elogiada, às vezes criticada; ministros e políticos em geral são avaliados de acordo com suas posições diante de propostas abolicionistas. Com alguns polemizou sempre. Foram os casos do conservador Cotegipe e do liberal Martinho Campos, ambos escravistas, presidentes do Conselho de Ministros em 1882 e 1885-88, respectivamente. A outros defendeu com unhas e dentes, como ao liberal Dantas, e ao conservador João Alfredo, o primeiro presidente do Conselho em 1884 e autor do projeto original da Lei dos Sexagenários, o segundo chefe do gabinete abolicionista de 1888.

Com outros teve relações cambiantes, de acordo com as vicissitudes da luta. Com Sílvio Romero, aliado no começo, brigou feio quando o sergipano escreveu um artigo racista e ofensivo aos abolicionistas, chamando Nabuco de pedantocrata e Patrocínio de «sang-mêlé». No artigo, Sílvio Romero afirmava ainda que o negro era «um ponto de vista vencido na escala etnográfica». A resposta de Patrocínio foi exaltada e cheia de ataques pessoais. Sílvio Romero era o «teuto maníaco de Sergipe», o «Spencer de cabeça chata», uma alma de lacaio, um canalha. Outro com quem teve relações complexas foi Rui Barbosa. Aliados em alguns momentos da luta, separaram-se em outras quando Rui, por exemplo, em nome de formalidades jurídicas, se opôs a proposta do governo, feita após a abolição, de perdoar os escravos condenados nos termos da Lei n.º 4, de 10 de junho de 1835, que estabelecia pena de morte para crimes violentos de escravos contra seus senhores. Patrocínio acusou Rui de defender o seqüestro social do ex-escravo em artigos «lúgubres como tribunal de inquisidores» (artigo de 29 de abril de 1889).

Complicada foi também sua relação com o Partido Liberal. A emancipação dos escravos constava dos programas liberais de 1868 e 1869. Era, pois, natural que, voltando ao poder em 1878, o partido fosse sensível à questão. Cedo, no entanto, os abolicionistas descobriram que as coisas não eram tão simples. Assim como Rio Branco dividira o Partido Conservador em 1871 ao fazer aprovar a Lei do Ventre Livre, o Partido Liberal estava dividido em relação à abolição. Ao lado de abolicionistas como Dantas, havia «escravocratas da gema», como se autodefinia Martinho Campos. Em posição intermediária tímida ficavam líderes como Paranaguá, Lafaiete, ex-republicano, e Saraiva, todos presidentes do Conselho de Ministros no período. Patrocínio deblaterou contra Martinho Campos, entusiasmou-se com Dantas e irritou-se com os outros. Dantas foi duas vezes derrotado pela Câmara liberal. Saraiva esvaziou a Lei dos Sexagenários. Contra este último, Patrocínio lançou ainda a acusação de ter feito aprovar a lei da eleição direta em 1881, que tirara o voto a centenas de milhares de brasileiros e cujo efeito teria sido devastador sobre os candidatos abolicionistas. A prática levou-o a concluir que os liberais só eram capazes de fazer democracia na oposição e que era mais eficaz entregar aos conservadores a solução do problema da abolição, como fez Isabel em 1888, repetindo o que Pedro II fizera com Eusébio de Queirós em 1850 e Rio Branco em 1871 (artigo de l9 de março de 1888).

Relação tumultuada foi também a que manteve com os republicanos. Republicano ele próprio, Patrocínio não perdoava aos correligionários as hesitações e tergiversações em relação ao problema da abolição. Assim como Luís Gama não conseguira definição clara do Partido Republicano de São Paulo, Patrocínio também teve dificuldades com os republicanos do Rio, sobretudo com seu chefe, Quintino Bocaiúva. A questão central estava na hierarquia de prioridades. Os outros republicanos colocavam a República em primeiro lugar. A abolição ou vinha em segundo lugar, ou não era vista com simpatia. Para Patrocínio, a abolição era prioridade absoluta, a República vinha depois. Não via, aliás, como falar em República sem abolição. Neste ponto concordava com Nabuco que colocava a campanha abolicionista acima dos partidos. O republicano Patrocínio a colocava acima da forma de governo. Por essa razão, não hesitou em ficar ao lado da regente Isabel, e da Monarquia, quando ela se decidiu pela abolição imediata. Abandonou a República e só voltou a apoiá-la no dia 15 de novembro de 1889.

Assim como não perdoava a ambigüidade dos republicanos, esses não lhe perdoavam ter trocado a República pela abolição. O período que mediou entre a abolição e a proclamação da República foi um inferno astral para Patrocínio. Vencedor, sofreu cruel campanha de desmoralização por parte dos republicanos, inclusive Silva Jardim. O epíteto que lhe deram de «último negro que se vendeu», além de racista, era de crueldade atroz, pois o que fizera fora apenas antepor a reforma social à reforma política. Patrocínio passou o período defendendo-se das acusações e contra-atacando os republicanos por sua aliança com os ex-senhores de escravos que buscavam indenização. Sua linguagem ferina não ficou atrás da dos inimigos em cunhar expressões duras e candentes: «republicanos do 14 de maio», «piratas do barrete frígio», «pirataria sans-culotte», «neo-republicanos da indenização», e outros assemelhados. A briga marcou-o pelo resto da vida. Mesmo o fato de ter promovido a única ação autenticamente popular no dia 15 de novembro, quando o chefe republicano, Quintino Bocaiúva, acompanhava a parada militar, foi suficiente para o redimir aos olhos dos republicanos. Sua vida após a proclamação foi um decair constante até o final melancólico.

Por fim, Patrocínio também mudou várias vezes de posição em relação à Coroa, ao Poder Moderador e à própria Monarquia. Entusiasmava-se quando o imperador chamava ao poder um abolicionista como Dantas, desesperava-se quando o chamado era Martinho Campos ou Cotegipe. Em um momento via a Coroa à frente da luta, em outro acusava-a de ser o principal sustentáculo do escravismo. Dirigia-se freqüentemente ao próprio imperador incentivando-o a solidificar o reinado pelo apoio à causa emancipacionista, ou ameaçando-o com a queda da Monarquia, caso ele não desse ouvidos ao clamor popular. Os elogios foram grandes durante o Gabinete Dantas e, sobretudo, na regência de Isabel. As ameaças maiores no Governo Cotegipe. Diante da freqüente resistência da Câmara em aprovar medidas abolicionistas, fato que atribuía ao afastamento entre a nação e seus representantes causado pela lei da eleição direta de Saraiva, chegou a pedir o exercício ditatorial do Poder Moderador como único meio de fazer aprovar a reforma. Seria a maneira de aproximar o imperador da opinião nacional por cima da representação parlamentar (artigo de 16 de julho de 1887). Quando a regente decidiu chamar o abolicionista João Alfredo, que em dois meses fez aprovar a abolição total sem indenização, o entusiasmo de Patrocínio não conheceu limites. Começara, segundo ele, naquela data, a história moderna do Brasil, operara-se a maior revolução social de nossa terra. Isabel era a redentora, ao lado dos batalhadores do abolicionismo que vinham desde José Bonifácio.

Idiossincrasias de um temperamental que falava com o coração nos lábios? Sem dúvida. Mas não só isto. Sua condição de homem de fronteira permitia-lhe refletir com precisão as contradições da política e dos políticos da época. Os partidos Liberal, Conservador e Republicano estavam de fato divididos frente à questão da abolição; a lei da eleição direta cassara de fato o voto a milhares de brasileiros, dando maior consistência à Câmara mas afastando-a da opinião pública; o Poder Moderador tornara-se nesta conjuntura de fato ambíguo: seu exercício podia ser formalmente ditatorial mas estar, ao mesmo tempo, mais próximo da opinião pública. Neste sentido, a batalha da abolição corroeu a base dos partidos nacionais e contribuiu não só para o fim da monarquia como para a proclamação da república manu militari. Culpa dos abolicionistas? Sem dúvida, não. O sistema representativo é que não funcionava adequadamente.

Patrocínio apenas ajustou-se às condições da luta. Combinou a perspectiva da elite ilustrada da época com seu toque popular. Distinguia-se de Nabuco e Rebouças pelo lado popular, pelo gosto do contato com o povo na praça pública, pela volúpia de agitar as multidões. Era um agitador dionisíaco em contraste com o organizador estóico que era o extraordinário Rebouças. Seu lado popular fazia com que em alguns momentos ameaçasse o Governo e a Monarquia com a ira dos escravos e libertos, a quem apresentava Spartacus como modelo. Mas a ameaça não passava de retórica. Logo depois acusava o povo brasileiro de ser um «cordeiro submisso» que deixava nas mãos do imperador a solução de seus problemas mais graves (artigos de 21 de novembro de 1887 e de 30 de agosto de 1884). Punha-se ao lado do aristocrático Nabuco que preferia que a questão fosse resolvida de cima para baixo e não de baixo para cima. A abolição, segundo Patrocínio, foi literalmente uma «revolução de cima para baixo», feita mediante a aliança do soberano com o povo (artigo de 9 de março de 1888).

Era inegável a paixão de Patrocínio pela liberdade dos escravos. Havia aí um lado pessoal, gravado na cor da pele e no fundo da alma, que estava ausente, por exemplo, em Nabuco. Não se duvida da sinceridade do abolicionismo de Nabuco, mas nele tratava-se de uma batalha filantrópica e política antes que pessoal. Ou melhor, o lado pessoal não era nele tão profundo, tão vital, como em Patrocínio. Mas, fora este aspecto, e fora o estilo plebeu e exaltado de Patrocínio, não se separavam muito na maneira de encarar o problema da escravidão. Taticamente, preferiam dirigir-se ao imperador, à elite política, aos proprietários, à população livre, antes que aos próprios escravos. Esta opção, no caso de Patrocínio, talvez se tenha consolidado durante o Gabinete Dantas que lhe fez vislumbrar a possibilidade de uma solução monárquica do problema. Ele mesmo admitiu que naquele momento o abolicionismo aceitou recuar para o segundo plano, reduzir o ímpeto, para permitir uma solução parlamentar (artigo de 11 de abril de 1885). Substantivamente, ao argumento da liberdade acrescentavam sempre o argumento político da razão nacional. A honra do país, o patriotismo, os interesses da nação em contraposição aos interesses dos proprietários e dos partidos, a imagem externa do país são expressões e argumentos que estão presentes desde o primeiro artigo incluído nesta coletânea. A razão nacional parece predominar no argumento sobre a razão da liberdade individual. Neste ponto ele não estaria também muito distante da tradição do abolicionismo luso-brasileiro.

Ficou, no entanto, como marca registrada de Patrocínio a paixão com que se dedicou de corpo e alma à luta abolicionista; ficou sua contribuição insubstituível em levar para a rua uma batalha até então limitada ao parlamento; ficou seu papel central na criação do primeiro grande movimento político popular da história do país. Quanto a este último ponto, é preciso observar que a afirmação de que a abolição foi uma revolução de cima para baixo deve ser interpretada também levando-se em consideração a conjuntura em que foi feita. Patrocínio precisava justificar o apoio dado a Isabel. Com esta preocupação, acabou fazendo injustiça a si próprio e aos outros abolicionistas que desde 1880 tinham dado início à campanha extraparlamentar contra a escravidão. É verdade que não se materializou sua expectativa de que um exército de ingênuos invadisse as ruas para lutar pela liberdade dos pais. Mas é também verdade que a partir de 1880 houve mudança qualitativa na luta abolicionista, mudança em que ele teve papel importante. Se as leis de 1850 e 1871 tinham sido decididas dentro do governo, o mesmo não se deu com as leis de 1885 e 1888. Mesmo deturpada, a Lei dos Sexagenários foi precedida da mobilização popular que acompanhou o gabinete Dantas. Quanto à Lei Áurea, ela apenas ratificou o que já fora feito revolucionariamente fora do parlamento, como reconheceu o próprio Cotegipe. O que fora feito deve ser creditado a Patrocínio, aos outros abolicionistas e aos próprios escravos. É difícil superestimar a importância do abolicionismo como o movimento que permitiu falar-se no Brasil, pela primeira vez, em algo parecido com uma opinião pública, uma vontade nacional.

Diante desses méritos, não cabe censurar Patrocínio por não ter invadido as portas das fazendas para lá dentro incitar os escravos à revolta contra os senhores. O saldo de sua ação é mais do que positivo. Não há também por que diminuir um patriotismo que era feito de uma visão democrática da política, que se baseava na idéia de uma nação construída com a participação do povo. Sobre seu patriotismo, aliás, não resisto à tentação de repetir a história, verdadeira ou falsa, não importa, relatada por R. Magalhães Júnior, da resposta genial atirada aos que o chamavam, durante um discurso, de negro vendido: -«Sou negro, sim! Deus me deu a cor de Otelo para que eu tivesse ciúmes de minha pátria!»

O amigo João Marques conta que, em meio ao delírio das aclamações populares a Patrocínio no dia 13 de maio, lhe teria dito: «Que belo dia para morreres, Patrocínio!» Foi uma observação perfeita. Patrocínio deveria ter morrido de uma síncope naquele dia, enquanto era aclamado pela multidão. Depois da República, rejeitado pelos republicanos, não encontrou outra causa à altura de seu talento e de sua paixão. Os abolicionistas monárquicos também se recolheram. Nabuco refugiou-se na diplomacia e na redação da magnífica biografia do pai e das próprias memórias. Rebouças escolheu o exílio e terminou tragicamente pondo fim à própria vida. O fim de Patrocínio foi melancólico. Sem causa política por que lutar, viu-se envolvido nas agitações dos primeiros anos da República. Desterrado para Cucuí por Floriano, para onde foi no mesmo vapor Alagoas que levou Pedro II ao exílio, ao voltar teve que se ocultar da polícia. Correu mesmo o boato de que teria sido fuzilado por ordem de Floriano. Depois da posse de Prudente, acabaram-se as perseguições mas ficou preso a disputas mesquinhas indignas de seu talento.

A partir de 1894, buscou sua própria fuga no sonho de construir um balão dirigível, o Santa Cruz. Sonhava poder desprender-se da terra para voar acima de seus concidadãos, «longe, respirando o grande ar virgem das alturas», com o diria a Coelho Neto. Refugiava-se no sonho, assim como Rebouças se refugiara na morte. Em 1903, perdeu por falência o Cidade do Rio. Já tuberculoso, dedicou-se, então, integralmente, à construção do balão que jamais levantou vôo. Morreu em 1905, em meio a uma hemoptise, pobre e abandonado, em modesta casa de Inhaúma. Tinha 52 anos.

Milhares de pessoas desfilaram perante o caixão depositado na igreja do Rosário e outras tantas acompanharam o féretro até o cemitério de São Francisco Xavier. Pálido reconhecimento para quem conquistou a liberdade sonhada de seus irmãos negros e sonhou em vão com a conquista da própria liberdade voando nas alturas: «Lá vai o Zé do Pato!»

José Murilo de Carvalho

Critérios de edição

Na organização desta obra foram adotados os seguintes critérios:

1- Os artigos foram retirados dos três jornais do Rio de Janeiro em que José do Patrocínio escreveu regularmente no período da campanha abolicionista e sua sequência imediata até a proclamação da República: Gazeta de Notícias (1880-1881), Gazeta da Tarde (1882-1887) e Cidade do Rio (1887-1889). Foram selecionados os artigos cujo tema era a abolição e que traziam a assinatura de José do Patrocínio ou de Proudhomme, seu pseudônimo jornalístico adotado desde 1877. Alguns artigos não assinados, provavelmente redigidos por ele, não foram incluídos. Também não o foram os artigos eventualmente publicados em outros jornais, como O Paiz.

2- A ortografia foi atualizada de acordo com o sistema ortográfico em vigor. Foram conservadas, no entanto, formas alternativas como cousa, dous, esclavagismo, etc.

3- Nas notas, em geral só foram identificadas, quando possível, as pessoas mencionadas pelo apelido ou por um nome apenas. Somente em casos especiais, de pessoas pouco conhecidas, ainda que citadas por dois ou três nomes, foi também feita a identificação.

4- Na reprodução das ilustrações de Ângelo Agostini a impressão original das legendas foi substituída por uma nova (em corpo maior e letra caligráfica, cuja forma aproxima-se a do autor), de modo a assegurar a plena leitura. Foi mantida, no entanto, a grafia da época.

Gazeta de Notícias

O Ministério fez questão de confiança da simples apresentação de um projeto de emancipação da escravatura. A augusta câmara das bofetadas bateu, como sempre, as palmas e, comovida pela eloqüência de Cebolas e Chique-Chique, passou à ordem do dia.

Dias depois o Ministério vestiu-se de casaca, franziu o sobrolho e veio fazer frente à interpelação do sr. Joaquim Nabuco para que o Governo lhe explicasse em que lei se baseava para intervir numa questão de ordem.

Apesar da proibição expressa do Regimento, o Governo declarou que interveio na questão de ordem, que interviria tantas vezes quantas S. Ex.ª pedisse urgência, e a Câmara achou que é assim que o Governo deve proceder regularmente.

Chegados a esta conclusão, Ministério e Câmara deram a questão por terminada.

O folhetinista não perderá tempo em qualificar o ato da Câmara. O país já a conhece bem; sabe o que ela vale em hombridade e coerência. Demais para entrar na discussão, em que descobriria o qualificativo, era mister conhecer as irritações do terreiro, as expressões agressivas da revista, e do eito, e, finalmente, esconder a pátria por detrás dos engenhos, ao passo que a pessoa se acocorasse por detrás da imunidade parlamentar e do equívoco.

Isto, porém, tomaria tempo e desviaria a questão da sua verdadeira esfera. Trata-se de conquistar o direito de mais de um milhão de homens, e conciliar essa conquista com os interesses do país. Fique ao parlamento a demagogia legal, e à imprensa a calma de que necessita.

O problema da escravidão está neste pé. A lei de 1831 suprimiu o tráfico e não só declarou criminosos os introdutores, como obrigados à restituição do africano os compradores. Há quarenta e nove anos e dois dias, pois, nenhum africano podia mais ser escravizado no Brasil.

A especulação da carne humana, porém, havia entrado nos hábitos nacionais, e durante vinte e três anos continuou o crime do tráfico.

Tomando a estatística apresentada para alguns anos pela Coleção de Tratados do dr. Pereira Pinto, de saudosa memória, entraram no Brasil:

Em 184519.453
Em 184650.324
Em 184756.172
Em 184860.000
Em 184954.000
Em 185023.000
Soma262.949

Este enorme algarismo de africanos é, porém, para seis anos, e sabemos que durante vinte e três anos certos, ainda que haja quem afirme que só em 1856 acabou definitivamente o tráfico; durante vinte e três anos deu-se o infame comércio. Não é muito, pois, calcular a média dos outros anos em 20.000 homens entrados no país, o que dá 340.000, ou de 1831 a 1854, 602.949.

Calculando que a terça parte destes infelizes eram mulheres, e calculando a geração por elas dada aos seus criminosos exploradores em três filhos, o número de homens livres reduzidos à escravidão, provenientes desta fonte, é de 600.000.

Ora, pelas estatísticas atuais, criminosamente toleradas pelo Governo, que tem na matrícula a confissão do crime dos proprietários, o número dos africanos escravos sobe no Brasil a 200.000.

Supondo que metade deste número é tirado dos importados depois do tráfico, temos que o número das pessoas livres reduzidas à escravidão é no Brasil nada menos de 700.000.

Não se objete que não se deixa neste cálculo margem para a mortalidade.

Todos sabem quão dificilmente se registram óbitos de africanos, e no cálculo fica uma margem de 500.000 para a mortalidade.

Sabe-se também que os senhores, querendo tirar todo o proveito do gado humano, ávidos de tirarem todo o lucro da pirataria á roda do berço, como se exprimia o grande Sales Torres Homem, expunham as mulheres desde os treze e quatorze anos à procriação. Há muitos fatos de indivíduos, que começando a vida apenas com cinco ou seis escravas boçais, legaram aos filhos escravaturas de mais de cem pessoas provenientes daqueles troncos.

Supor, portanto, que da geração das escravas vingam apenas três descendentes, é deixar uma larga margem à mortalidade. Tanto mais que dezesseis anos depois de 1831, isto é, em 1847 já há produção, e em 1863 produção da produção.

E, pois, quase matematicamente certo que há reduzido a escravidão um número de 700.000 homens, metade, portanto, da escravatura atual.

Ora, é de lei que o salário do homem escravizado seja pago por quem o escravizou, ou quem herdou os capitais deste.

Logo, os atuais proprietários de escravos devem à sociedade em geral, ou melhor, à raça negra, quarenta e nove anos de salário. Fazendo o cálculo a 200 rs. por dia, e não computando já o espaço que vai de 1831 a 1854, tempo que, por deferência com os srs. fazendeiros deixamos de incluir no cálculo, temos:

Por um dia de trabalho de 700.000 homens escravizados140:000$000
Por um ano51.100:000$000
Em 26 anos1.328.600:000$000

Apesar do número avultado que dá o cálculo, é preciso notar a insignificância do salário que foi marcado. Nunca no Brasil um trabalhador de enxada ganhou, no período apontado, semelhante ridicularia.

Não se pode argumentar com o valor decrescente do salário na razão inversa do tempo; para compensá-la há a grande margem de vinte e três anos, e além disso há a compensação do valor crescente do escravo.

A conclusão a tirar é, pois, que sendo o número atual dos escravos mais ou menos 1.435.000, dos quais 700.000 emancipados por força da lei de 1831 e subseqüentes leis de 1850 e 1854, segue-se que há em salários da raça negra 1.328.600.000$ para indenizar a emancipação dos 735.000 restantes.

Tirada esta conclusão, que sai inteira e irrefutável da lei de 1831, que se impõe à acepção geral; ninguém pode de boa fé reprovar a atitude da imprensa em relação ao pensamento abolicionista, que há mais de quarenta anos atravessa todas as camadas do país, e que presentemente agita o espírito público sensato. Diante do direito positivo, que é a única base da escravidão, a escravatura está extinta de jure entre nós.

O interesse dos senhores fazendeiros pode entender que há um perigo em discutir esta matéria, mas a sociedade deve responder-lhes que a sua missão principal é ser órgão da Justiça e do aperfeiçoamento dos associados. O interesse é, pois, forçado a calar-se diante do Direito.

Entretanto, tirando a moderação da própria gravidade do problema, o folhetinista não levanta um grito de revolta, mas unicamente um alarma a favor dos próprios possuidores do solo.

Os agricultores têm visto que o atraso dos seus processos de cultura os tem colocado em dificuldades diante do mercado do mundo, a ponto de não lhes ser possível arrostar a concorrência. Foi assim com o açúcar, foi assim com o algodão. O café por sua vez não tem tido, apesar da sua qualidade atual, a boa reputação que lhe compete. Longe, porém, de promover a vulgarização do gênero, o Governo ainda agora concorre para estagnar a venda nos Estados Unidos, onde melhor nome havia conseguido o café brasileiro.

Esse ato é de uma importância extraordinária, porque gera no mercado a suspeita de ter de entrar em luta com um negociante como o Governo, que não perde com a perda, e que não ganha com o lucro; suspeita fundada, porque o parlamento, longe de condenar a desastrada intervenção do Governo, antes o aplaudiu.

Por outro lado, a cultura do café aumenta anualmente em todo o mundo e com a cultura aumenta a produção. O cálculo da produção próxima de café no mundo há de vir a pesar necessariamente no espírito dos agricultores, que já têm dolorosa experiência da maneira pela qual são apeados da preponderância no mercado.

Nestas circunstâncias, parece que o melhor caminho que pode ser dado à questão da escravatura não é a dos engenhos fazendeiros, mas a do parlamento. Aí se verificaria como a escravatura, longe de ser uma garantia da produção, é hoje uma grande ameaça ao seu desenvolvimento.

Hoje ninguém mais pode impedir que haja entre o senhor e o escravo uma suspeição, que se há de aumentar dia a dia. O senhor pelo temor da abolição, o escravo pela convicção de que a sua posição não tem base nem na lei, nem na natureza; tratarão ambos de se prejudicar o mais possível. O senhor buscará extrair da mina negra todo o ouro possível, sem pensar no prejuízo, que resultará de exauri-la. O escravo buscará por todos os meios produzir o menos que lhe for possível.

O prejuízo de tal luta não será, porém, sofrido unicamente pelos dois lutadores, mas pela sociedade inteira. O resultado será em definitivo o fenômeno, que querem conjurar pela inércia -a diminuição da produção. A este fenômeno deve-se acrescentar que a diminuição não traz nenhum proveito para o país; porque não é a iniciação de uma época nova, mas o gasto imprevidente do sistema de trabalho.

É, pois, um direito social inconcusso agitar e insistir na questão.

Um fazendeiro estadista, o sr. presidente do Conselho, disse que o meio de cortar a dificuldade era lançar um imposto geral. E a causa é que se fosse lançado um imposto especialmente sobre os lavradores, estes o fariam pagar pelo próprio escravo, ao qual aumentariam uma hora de trabalho.

Cumpre observar desde já que não é a sociedade que deve ao fazendeiro, ao proprietário de escravos. São eles que devem à sociedade. Além disso a confissão ingênua do sr. presidente do Conselho é a condenação dos seus próprios clientes, e deixa ver bem qual o pensamento do atual fazendeiro para os seus escravos. A frase é -produz, besta, embora morras.

Mas, se o fazendeiro assim procede, a sociedade pode ter confiança de que pela condescendência com ele garantirá de futuro a produção. O fazendeiro não vendo no escravo um instrumento de riqueza social, mas uma propriedade sua, pode garantir à sociedade a firmeza da produção?

O folhetinista não acredita. Está certo de que o fazendeiro, por falta de compreensão do problema, é o menos competente para falar a respeito.

Não advoga senão o seu próprio interesse, não visa senão à conservação do seu bem.

A lei, em nome da sociedade, deve intervir para criar a pequena propriedade, para criar o colono no seio dos trabalhadores atuais, para fazer com que a própria escravidão contribua para a segurança da produção. O folhetinista procurará demonstrar a possibilidade de tal mudança, olhando-se para a pátria e não somente para o fazendeiro.

6 set. 1880

Visconde do Rio Branco

A semana foi ocupada por um esquife, que se alongou por sobre os seus dias até a mais remota posteridade.

Não é muito porque ele continha as esperanças de mais de um milhão de homens.

O nome do homem que tinha tamanhas dimensões, cuja vida era servida pelos corações de uma geração inteira de desgraçados, o país o sabe, a história o registrou, o folhetinista o tomou para merecimento destas linhas.

Victor Hugo, nos assomos de sua imaginação incomparável, pintou um quadro esplêndido.

Um sultão, acostumado a vergar cabeças como o vento as searas, duro, mau, capaz de assistir ao morticínio de uma cidade sem uma única contração da face, sai a passeio.

O sol obriga a natureza a modorrar, amolentada pelo rigor da canícula.

Há na alta vegetação como que uma síncope, a galhagem ramalha com a frouxidão da queda de um braço alevantado a um desmaiado.

Uma cena triste vem chamar a atenção do passeador abstrato.

Alguns homens estão à sombra de uma clareira. Um deles acaba de enterrar uma faca larga e polida nas entranhas de um porco; o sangue golfa em borbotões da profunda ferida.

Há nas faces do que mata a satisfação do lucro. Os seus companheiros, rindo alegremente, trazem palhas para atear a fogueira que devia lavar em chamas o couro do animal.

O sultão aproxima-se; o moribundo revira para ele os olhos negros, banhados na ternura dolorida que lhes punha a angústia da morte.

A alma dura, ambiciosa, que ensurdecia a todas as grandes dores, comove-se. Com um aceno imperioso susta o tremendo sacrifício da vítima indefesa, e, num transporte de sentimentalismo profundo, como que se lhe embaciam os olhos uma lágrima.1

Volvem os anos. A morte vem surpreender o poderoso dominador dos crentes no meio do fastígio do poder. Todas as galas da vida faustosa confundem-se dentro em pouco com a podridão do último dos vermes.

O cenário é agora na região das crenças religiosas, para além das estrelas, onde a luz é intensa como se a sombra da terra, batendo nos contornos das constelações, produzisse o efeito de um abat-jour no globo de um lampião enorme.

Comparece triste e desamparada a alma do sultão. O brilho da bem-aventurança ofusca-lhe a vista consagrada a espiolhar, com a gula do tigre, a dignidade dos seus súditos.

O tribunal resplende, com o fulgor divino, e com a austeridade da justiça inquebrantável.

Um anjo segura a balança em que se pesam as ações humanas, mas ai! só a concha destinada ao mal pode ser carregada. A fisionomia dos juízes tem a tristeza dos espíritos bons quando obrigados a condenar. O eterno aresto está quase a magoar os lábios do juiz supremo.

Nisto ouvem-se no tribunal os sons de uma voz estranha que se semelha a um grunhido doloroso. No azul imaculado aparece uma mancha negra, transluzindo um brilho que era como um descor crepuscular.

Ah! exclama o anjo: e na balança que pesa ouro fio as ações da humanidade, deposita a piedade do grande senhor contra o animal desprezado.

Imediatamente os braços do sempiterno instrumento começam de pender, e, agora, em vez de inclinar-se para a concha do mal, carregam-se para a concha do bem.

E o sultão, às bordas das galés eternas, ouve-se aclamado para a bem-aventurança.

O folhetinista pediu à imaginação do poeta a expressão do que sente pela memória do visconde do Rio Branco. Não teve, é certo, a fereza de carácter do pontífice dos crentes. Era, pelo contrário, nobre e generoso; não tinha pela humanidade o tremendo desprezo, que fazia aquele rejubilar-se com as inundações de sangue.

Não obstante, teve erros, os quais talvez ainda tenhamos de resgatar com as armas e com o sangue.

Enviado ao Rio da Prata continuou a política do marquês do Paraná; e essa política foi para o Brasil uma infelicidade, porque deu fundamento à suspeita de intervenção, causa quase irremovível dos receios dos nossos vizinhos e de grandes encargos para os nossos orçamentos.

Ainda aí, porém, é força distinguir o procedimento que tinha como arma a finura do trato e a delicadeza dos meios.

A História, obrigada a fazer justiça, pesará seguramente todos os atos do grande homem e proferirá as suas sentenças com a extensão que tinha o seu talento, a sua ilustração, os seus princípios honrados pelo trabalho e pela pobreza.

Um ato da vida do visconde do Rio Branco basta, porém, para resgatar toda a sua vida política.

Glorioso, aclamado, levantando populações de volta à pátria, o homem de Estado teve no auge do poderio a piedade do temido islamita.

Encontrou no seu caminho um animal moribundo. Revoava sobre ele o mosqueiro da cobiça, nutrindo-se da sangueira que dele se derramava.

A posição desse animal era em tudo igual à do porco em terras do Islame; o seu horizonte limitava-se também à lama e ao desprezo.

A sociedade, cheia de repugnância pela digestão das suas carnes, negava-se a recebê-lo nesse estômago sadio em que principia a preparação do sangue das nações: -a família.

Negavam-lhe tudo: o aperfeiçoamento da inteligência, as inspirações da vontade, as expansões do sentimento.

Davam-lhe para morada habitações infectas como os chiqueiros; engordavam-no por aspiração de lucro, porque nos músculos robustecidos por uma ceva feita à custa do caldo de cana, e dos aferventados dos inhames, viam a probabilidade de capinação mais expedita e de colheita mais abundante.

Encerrada na mais baixa humilhação, tendo como espectro alevantado diante da sua vontade o chicote do feitor; vendo os filhos mandados para longe dos seus carinhos, os pais para bem distante do seu amparo, as esposas para lugares afastados dos seus amores; todos os sentimentos desses pobres seres desprotegidos acabavam por embotar.

Na lama, que de toda a parte os cercava, entregavam-se à promiscuidade e à lascívia dos porcos; no detrimento do espírito deixavam que se bacanalizasse a carne.

O visconde, com a cabeça ainda cingida pelos louros triunfos colhidos no campo da diplomacia; com os ouvidos ainda azoinados das aclamações de um povo, parou ao pé do mísero animal, e comoveu-se de tão inditoso destino.

Dobrou uma página do livro da glória, fechou-o por momentos, para ir abrir o arquivo sombrio em que inscrevera com as lágrimas da penúria, com as tristezas do trabalho pouco recompensado, os primeiros anos da mocidade.

De toda parte levantaram-se clamores. A grande propriedade que levantara e engrandecera o partido, que consentiu que o estadista desse aplicação a sua vocação; a grande propriedade trocou os aplausos da véspera em maldições tremendas.

A voz dos seus representantes esqueceu muitas vezes a urbanidade, e respondendo à discussão com a ameaça, à sinceridade com o apodo, à condescendência com o insulto, tentou sufocar a palavra do adversário, que fazia ecoar no seio da lei os gemidos de uma raça.

Mas o mensageiro da civilização aos arraiais negros da cobiça caminhou impávido. Todos os dias arquivava uma amargura, mas em breve no livro do sofrimento acabaram as folhas em branco, e o estadista teve de voltar a escrever no outro, que por meses estivera fechado.

Neste dia, porém, estava terminada também a via-sacra do sofrimento, e ele voltou à estrada larga da glória.

O animal desprezível redimira-se em parte, e teve, ao menos, um testemunho de que tinha também direito à vida, fora do lameiro.

O ventre da escrava, do animal, que era até então o laboratório da miséria de uma raça e da vergonha de um povo, passou a ser a matriz sacrossanta onde a liberdade fecunda uma geração de cidadãos.

Este único ato da vida do cidadão era muito para a sua grandeza diante do futuro, a que ele dava habeas corpus da prisão forçada em que esperava os descendentes da escrava. Mas na hora de morrer, ainda quis tornar-se maior.

A sua última palavra foi uma proclamação do Direito que a civilização advoga.

Pediu que deixassem evoluir tranqüilamente a idéia, que caminha, impelida por séculos de sofrimentos e de humilhação.

-«Não perturbem a questão do elemento servil» -foi a última frase dos lábios que haviam chamado, com a doçura de Jesus, as criancinhas negras à comunhão do Direito e da Justiça.

Pois bem: como na lenda do poeta o afago do sultão ao animal moribundo bastou para resgatar-lhe o crime de hecatombes, esta única frase, posta na balança da História, em contraposição a todos os erros políticos da carreira do eminente estadista, basta para restabelecer-lhe o equilíbrio e constituir para a sua memória a imortalidade nas bênçãos da nação.

Dentro em poucos anos a geração emancipada pelo visconde do Rio Branco sairá das senzalas para a casa do homem livre.

Trará no coração a dolorosa lembrança do cativeiro. Sentirá a sensação inexplicável de quem sai da desgraça para entrar logo na ventura, na maior das venturas: a liberdade.

O quadro da fazenda se esbaterá sombrio na sua imaginação. Lembrar-se-á do cafezal nas madrugadas frias; do canavial ao meio-dia, do canavial, que, à semelhança de um inquisidor a serviço do seu senhor, farpeava-lhe impassível a pele suarenta.

Neste dia ele, que não podia levantar os olhos, que não podia sentir sem que lho proibissem, que não podia querer sem que cometesse uma insubordinação; nesse dia de delícias indizíveis, quando ele puder como qualquer outro dizer: eu quero, eu amo, eu sustento isto; há de necessariamente lembrar-se do grande benfeitor.

Sentindo-se homem, lutará contra quem quiser enxovalhar seus pais; sentindo-se livre, bradará contra quem escravizar os entes a quem mais preze; e, ainda nessa hora de energia, ressoada na dignidade do seu amor filial, o nome do visconde do Rio Branco será por ele abençoado.

Foi talvez pela antevisão desse tremendo resultado que o moribundo soltou no limiar da morte um grito de concórdia.

O folhetinista pede-a também em nome do morto. A perturbação, que será filha da resistência insensata, será a ruína; e não foi isto o que teve em mira o trabalhador audaz, que foi minerar cidadãos nas jazidas negras da escravidão.

8 mar. 1880

O Governo prepara-se para executar a sua palavra de honra, de dar à urna a verdade relativa de que ela é capaz.

Ocupa-se com a nomeação dos presidentes.

Parece deliberado a empregar a flor da sua confiança, para perfumar os dias eleitorais das províncias.

Há com certeza o melhor intuito da parte do Governo, e a prova é a indicação do nome do sr. Martinho Campos.

De feito, a questão de mais alcance, que preocupa hoje a vida nacional, é a conversão do trabalho escravo em trabalho livre.

O problema da escravidão colocou-se definitivamente em face do país, e pede uma solução.

O véu espesso com que até hoje o Império tinha conseguido ocultar aos olhos do mundo a medonha monstruosidade, que se constituía pelo calote, pela quebra de compromissos os mais solenes, pela fraude da lei, pela conivência do Governo com os traficantes de mercadoria; esse véu negro sobre o qual o Império aplicou a lei de 28 de setembro, para melhor mascarar o seu crime, acaba de ser despedaçado.

A humanidade civilizada começa a olhar para dentro do Brasil, e, apesar da parede de interesses que tenta empanar-lhe a vista, ela consegue ver os horrores até hoje mascarados.

Dentro do país a agitação dos espíritos é tamanha, que parece ter a aspiração de medir a sua generosidade pela desgraça daqueles cuja causa esposa.

O número das manumissões cresce; as assembléias do Sul legislam contra a invasão dissimulada das províncias do Norte. Proíbem indiretamente a pirataria interior. Abrem um valo em torno das suas fronteiras; abrem para o escravo uma nova época, em que a sua pessoa começa a aparecer através do animal, da cousa, que era.

O mercado de escravos paralisa-se: o preço da carne humana baixa consideravelmente.

A escravidão vê rarear o número dos seus defensores; ao passo que o escravo vê que vai ter como apóstolo um povo inteiro.

O crédito, o termômetro real da economia, nega-se a aceitar a base negra.

Enfim, por manifestações populares, legislativas e comerciais, percebe-se que, dentro em pouco tempo, meses no máximo, o país será obrigado a pedir ao parlamento a sua palavra, o seu juízo, o seu aresto sobre a escravidão.

O Governo tem plena convicção de que o parlamento não se pode pronunciar em sentido oposto ao da vontade expressa da nação.

O ano passado, quando ainda o movimento abolicionista não passava do ímpeto de meia dúzia de homens generosos, o qual, representando-se primeiramente na imprensa, afirmara-se em seguida no parlamento; o ano passado, quando se podia saber se havia uma força que tornasse esse movimento uniformemente acelerado; o Governo, que entende que estávamos bem dentro da lei de 28 de setembro, viu-se obrigado a ceder à reclamação do sr. Joaquim Nabuco, relativamente ao fundo de emancipação.

Um ano antes quebraram-se em vão lanças por essa idéia, no entanto, pouco depois, dentro da mesma legislatura, e com a mesma Câmara, trabalhando no Senado os mesmos oposicionistas de que o Governo dependia, o fundo de emancipação é dobrado.

A vitória abolicionista não pode ser mais clara; negá-la é impossível.

Em face de semelhantes fatos, o que é a nomeação do sr. Martinho Campos? Julgará acaso o Governo que, tendo consentido na sanção da lei de averbações, fez o que podia a respeito do escravo?

Quer o Governo, com a nomeação, declarar que não dará entrada na Câmara à idéia abolicionista?

A nomeação é, pois, um caso gravíssimo.

O Governo sabe que o sr. Martinho Campos tem como grande honra ser escravocrata.

Sabe também que a lei de averbações interpretada pelo Governo provincial pode na primeira parte da interpretação dar lugar a grandes abusos.

Ora, o sr. Martinho Campos é de opinião que a escravidão é uma prova de caridade cristã; que o senhor faz um grande favor, presta um grande serviço ao seu escravo.

Em virtude dos seus princípios, levado pela melhor intenção, pois que é a sua convicção, o sr. Martinho Campos pode perfeitamente consentir na violação da lei de averbação.

Não será um ato de que sua consciência o exprobre. S. Ex.ª tem unicamente em mira fazer uma obra meritória. Abrindo as portas da província ao mercado clandestino de escravos, S. Ex.ª franqueará apenas aos fazendeiros ocasião para praticarem uma boa ação.

Este perigo iminente de ser burlada a lei aumenta com uma consideração.

A determinação legislativa deve apenas vigorar durante um exercício orçamentário. A presença do sr. Martinho Campos, combinada com a hipótese da dissolução da Câmara, é uma séria ameaça de que no futuro exercício a disposição orçamentária desaparecerá.

Estas hipóteses, que dizem particularmente respeito à economia administrativa da província, são por si graves motivos de suspeição, as quais militam contra a escolha do sr. Martinho Campos para a presidência do Rio de Janeiro.

A influência do sr. Martinho Campos junto do atual Gabinete é incontestável e incontestada.

S. Ex.ª, que até o ano passado nunca teve força para nomear um contínuo, porque a sua carreira gloriosa no parlamento o punha em sítio para com o Governo, põe e dispõe agora do gabinete.

Mas o sr. Martinho Campos rompeu com a sua vida de oposicionista, e durante a última legislatura praticou muito dos atos que foram por S. Ex.ª mesmo censurados.

Sepultou o seu passado de político impecável, e aconteceu-lhe então como Inês de Castro, que só depois de morta foi rainha.

Hoje o sr. Martinho Campos quer, pode e manda.

S. Ex.ª está no seu direito de dizer -eu chovo!

O seu procedimento nas eleições será necessariamente sancionado pelo Governo, que seguramente não quererá aumentar a sua oposição com a palavra do sr. Martinho Campos, que tem por si uma lenda de terror.

A Província do Rio de Janeiro, porém, estará obrigada a receber o sr. Martinho Campos com cara de Páscoa?

S. Ex.ª foi pelo Governo incumbido de dirigir a divisão dos círculos da província. Arranjá-los-á, de certo, ao seu modo, apesar do sr. Paulino.

Feito o trabalho da divisão, organizado o maquinismo, é o mesmo sr. Martinho Campos quem o deve fazer funcionar?

Esta concentração de força na mão de um só homem, cujas idéias são positivamente contrárias a qualquer avanço no sentido do melhoramento da condição escrava, não é uma questão séria contra a nomeação do sr. Martinho Campos?

O parlamento, ou por vontade ou por força, será chamado a pronunciar sobre a escravatura no Brasil.

Questões de maior alcance, relativas à abolição, estão agitando-se no pensamento e na consciência da nação.

A dificuldade que há em conseguir unicamente do Poder Judiciário o cumprimento dos tratados e das leis que aboliram o tráfico, exige da parte do parlamento uma solução definitiva.

Pensa o Governo que o partido abolicionista está disposto a calar-se e a deixar que os gabinetes, no interesse da sua conservação, transijam com as opiniões dos indivíduos a quem teme?

Pensa o Governo que, armado com a lei escrita, com as obrigações mais solenes tomadas pelo país; armado com o prestígio que lhe dá, por um lado o terror dos adversários, por outro as aclamações do povo civilizado, cederá terreno e consentirá que se mantenha no mesmo pé a questão?

Não conta com a própria coragem que dá o perigo, não conta com o impulso natural da consciência dos propagandistas, impulso que é filho da certeza, ou de vencer, ou de desonrar-se?

O Governo vê, pois, que é materialmente impossível impedir que o parlamento seja constrangido a dizer a palavra da lei sobre o assunto.

O que a boa política aconselha é que o Governo não irrite o debate.

Um dos meios a empregar é pelo menos aparentar isenção nas eleições; é dotar as províncias com administradores, que, pelo menos, não tenham uma acentuação positivamente escravagista.

Além das recordações tristíssimas da última sessão legislativa, durante a qual negou-se ao partido abolicionista até o direito de fazer perguntas ao Governo, relativamente a leis não revogadas, leis que não podem ser revogadas sem que um povo inteiro falte à sua palavra; sessão em que planearam-se as mais vergonhosas ciladas à liberdade da tribuna parlamentar; desde a intervenção de ministros em questões de ordem; as discussões sobre um requerimento de urgência e a negação desta para a simples fundamentação de um projeto; além de todas essas recordações, o partido abolicionista terá como argumento a nomeação dos administradores de província.

O Governo sabe perfeitamente que é um perigo assentar a ordem sobre desgraça de mais de um milhão de homens.

O coração dos oprimidos bate sempre com extraordinária violência, e, por mais peritos que sejam os operários do Governo, eles não conseguirão assentar solidamente alicerces em um terreno sujeito a contínuos estremecimentos.

A ordem só é durável quando é o progresso realizado. Ora, ninguém ousa negar, nem mesmo os escravagistas, que a liberdade do trabalhador agrícola é um progresso. O parlamento que se negar a incorporar na legislação esse progresso, contribuirá decididamente para a anarquia.

O Governo faça, pois, o que entender: nomeie, se lhe aprouver, o sr. Martinho Campos presidente de todas as províncias do Brasil.

As portas do parlamento hão de se abrir necessariamente à idéia abolicionista, porque, se aquele tem os sufrágios dos amigos do sr. Martinho Campos, a idéia abolicionista tem por si os sufrágios da humanidade inteira.

21 fev. 1881

Gazeta da Tarde

Duas vezes chamadas a pronunciar-se a respeito da questão servil, as câmaras da situação liberal têm votado o silêncio.

Não quis a primeira Câmara desta situação discutir o projeto Nabuco; a segunda acaba de negar-se ao debate do projeto proibindo o tráfico interprovincial.

Apreciando o voto pelo valor moral de quem o dá, o fato não deve causar admiração.

A dignidade é o ambiente necessário à coragem das opiniões e a situação liberal nasceu, consolidou-se, vive, e há de morrer, sem dignidade.

O Governo é a Cápua desses cartagineses irrequietos. Aí amolecem, desfibram-se e aniquilam-se em rega-bofes de cama e mesa, na farta fruição dos despojos opimos do eterno combalido -o tesouro.

O voto da Câmara não nos surpreendeu, portanto. Foi para nós uma simples afirmação do que pensávamos a respeito desse conluio indecente, presidido pelo bacalhau de Cebolas e o anjinho de Macuco.

Seria fenomenal obter duma casa de tolerância o sufrágio do pudor nacional. O que ali tem valor é a mesa de tavolagem em que se jogam garantias de juros, subvenções, empregos e candidaturas.

Pouco se importa o sr. Prado Pimentel, por exemplo, que a escravidão seja uma tremenda mancha para o país.

S. Ex.ª, bela peça, um bom mulato, sabe somente que a pele dos africanos, seus ascendentes, pode servir de pergaminho a diplomas de deputados de sua laia.

No caso do sr. mulato Prado Pimentel está a maioria da Câmara.

Nós os conhecemos. Eram uns vadios sem eira, nem beira, uns bacharéis escrevinhadores que formigavam na oposição, como vermes, em torno de uns homens de nome feito.

À tarde descompunham o Governo, à noite enluvavam-se e iam namorar as filhas dos fazendeiros. Diziam alto quais os dotes presumíveis. Iam às conquistas avisando que não eram tolos, que não estavam para morrer de fome.

O sr. Sousa Carvalho definiu bem este modo de viver: é o judaísmo oposicionista. S. Ex.ª teve uma vantagem sobre todos esses demolidores do amor da família e da pátria: ficou fora como advogado, cavando as minas das secretarias com a sua pena.

Essa origem do que S. Ex.ª tem hoje a perder, não podia deixar de prejudicar-lhe os sentimentos patrióticos.

Já o violento Rouillères dizia a Mirabeau que era indispensável a justa compreensão do valor moral da família para bem sentir o amor da pátria.

Ora, quem edifica a família sobre a especulação do dote, quem não faz do matrimônio senão uma origem de fortuna, cujas fontes, assim como foram a pirataria nas costas africanas, podiam ter sido o bacamarte e a emboscada na estrada; quem não se vexa de testar aos filhos as lágrimas e a liberdade de irmãos, não pode ter da pátria compreensão diversa da que tem a Câmara dos Deputados da situação liberal. A pátria é um vasto arraial onde se faz a feira brutal e ignominiosa da honra de um povo.

O voto da Câmara não nos surpreendeu, portanto. Não podia ser outro, devia ser este mesmo: negar-se à discussão.

Nós que escrevemos por inspiração da honra do país para o mundo civilizado; nós que temos a responsabilidade do futuro, que não engordamos à custa das privações das senzalas para acabar estupidamente na administração por uma degenerescência gordurosa da probidade individual e do civismo, temos o direito de desprezar o voto da Câmara para interrogar o imperador.

O que conclui Sua Majestade dos fenômenos a que assiste?

Enquanto a Câmara dos seus representantes se nega a discutir, enquanto o sr. Martinho Campos, agente do Poder Executivo, celebra pactos monstruosos com o sr. Paulino de Sousa, o Machiavel fanhoso, enquanto os presidentes de província como o sr. Gavião do Marmeleiro e o sr. Sancho-Pança de Sergipe suprimem ou ameaçam associações, o sentimento abolicionista revivesce.

Na capital quinze associações disputam-se a primazia na coragem cívica e na dedicação pela sorte dos cativos; em S. Paulo desabrocha o sentimento abolicionista em clubes nos principais órgãos da sua imprensa; no Rio Grande do Sul a propaganda assoberba todas as dificuldades, coroando-se com o prestígio do nome de Silveira Martins; no Ceará dão-se as mãos todos os grandes elementos das grandes transformações. Desde a vela branca da jangada até o sorriso da mulher, desde a dedicação dos homens eminentes até a greve dos artistas, tudo é esperança para os cativos naquela província, sobre a qual se curva, como auréola inextinguível, a luz equatorial.

Não sente Sua Majestade alguma coisa de extraordinário nesse momento que em dois anos se comunicou a todo o país?

Não lhe parece que é o produto de um terremoto que se aproxima?

Quando fender-se o amaldiçoado solo árido, que tem bebido por três séculos o suor e o pranto de milhões de homens, não teme Sua Majestade que uma das ruínas seja o seu trono?

A lealdade impõe-nos uma advertência a Sua Majestade.

Com uma fisionomia protéica, mudando de aspecto conforme o ponto de que é vista, só há atualmente neste país uma questão séria: é a abolição da escravidão.

Para ela convergirão fatalmente pelo impulso da propaganda, como pela resistência dos oposicionistas, todas as energias vivas do país.

Dentro em pouco o que é hoje o conluio negro dos srs. Martinho & Paulino será o procedimento de todos os Vernecks e Prados Pimentéis do escravagismo, para a formação do Exército negro.

Um movimento geral de aliança se dará naturalmente, como está iniciado, de todos os abolicionistas, formando a legião sagrada, que terá como estatutos a nossa palavra solenemente empenhada no ato do reconhecimento da nossa independência.

A luta que se travar não ficará no terreno estreito das discussões do Segundo Reinado.

A sorte da Monarquia brasileira será nela resolvida.

Os Braganças brasileiros têm consolidado o seu trono com as revoluções e por isso, provavelmente, Sua Majestade promove pelos seus dóceis instrumentos, por todos os Martinhos do seu uso, a revolução abolicionista.

O resultado da provocação de Sua Majestade é ainda um segredo, e o tempo das profecias passou.

Lembre-se, porém, Sua Majestade, de que os elementos são diversos.

As revoluções de que Sua Majestade tem notícia nasceram de simples questões políticas, de paixões muitas vezes ridículas. Poucas foram as que se inspiraram em grandes sentimentos e estas venderam muito caro a derrota.

No presente o móvel é inteiramente diverso. Os soldados não irão buscar no fogo as dragonas do comando; as balas serão simplesmente o alfabeto que vai escrever na nossa história um decreto de fraternidade humana.

Sua Majestade podia, se quisesse, fazer um grande serviço ao país.

Era simples. Chamar o sr. Martinho Campos, muito à puridade, e dizer-lhe assim:

«Martinho: você vê o que estão fazendo a sua câmara e o seu ministério.

O Alves de Araújo declara-se patrono de um indivíduo. Tiraram-lhe um quiosque.

Pois bem, o Manuel comovido dá de presente ao referido indivíduo um logradouro público.

O Franco de Sá não se ajeita com a pasta.

Já descobriu um rio, que nunca existiu.

O Mafra é uma desgraça. Coitado, vale menos que as ordenanças que o acompanham.

O Rodolfo, apesar de ser um pouco vivo, é o que você sabe. Não diz coisa com coisa.

O Pena é uma lástima. Não sabe uma palavra a respeito dos negócios da pasta. É um polichinelo, puxado pelos cordéis dos oficiais-de-gabinete.

O Carneiro da Rocha é bom, mas se continuar por muito tempo em companhia de vocês, fica perdido.

Quanto a você Martinho... Bom, excetuam-se os presentes.

A Câmara, Martinho, é uma vergonha. Você bem sabe qual é a opinião do povo a respeito do Sousa Carvalho e do Cândido de Oliveira. Dizem que estes dois sujeitos não cortam as unhas. Acerca do primeiro contaram-me que você apostou quinhentos mil-réis em como ele não seria por mim escolhido.

Ora são esses dois e o Penido, um pobre de Deus, inofensivo, excetuante a gramática, os seus grandes corifeus. É verdade que os Afonsos também ajudam, mas você deve estar lembrado do café...

A menos que você, quando veio para cá, não houvesse deixado a memória afogada no lodo do Manuel Pinto (não é o Dantas), rio que fica na vizinhança do matadouro, deve ter de memória que tais governos são mal vistos pela opinião. Seu Martinho, faça-me um favor, vá-se embora. Olhe, eu o nomeio conselheiro de Estado. Você paga o que deve ao Banco, entregando-lhe a fazenda; arranja como puder outro negócio, e vai viver descansado, porque fica com um conto e tanto por mês.

Vá-se embora, seu Martinho.»

Era este um grande serviço de Sua Majestade ao país.

19 jun. 1882

Dar ao nosso país plena e absoluta certeza das intenções patrióticas, que nos colocam em oposição permanente às instituições vigentes, foi o nosso intuito concedendo armistício voluntário ao atual ministério.

Acusavam-nos de impaciência, de açodamento prejudicial; respondemos por um tratado público de paz, demonstrando assim que o nosso intuito é conseguir pacificamente a grande reforma de que depende a moralidade política e civil do país -a abolição da escravidão.

A nossa atitude, a nossa linguagem para o ministério e o imperador tem sido a de um aliado leal, que procura usar de suas forças de modo a desbravar o caminho à magna reforma.

Não quisemos regatear glórias ao imperador e ao Ministério. Condescendentes na vitória, como somos enérgicos a inexoráveis na luta, deixamos ao Governo a redação dos artigos de lei, que devem operar a pacificação geral dos ânimos e dar à propaganda abolicionista a serenidade indispensável a um debate, em que entram de par com os mais imprescritíveis direitos da civilização os mais vitais interesses do país.

Há quinze dias que vive o Ministério 3 de Julho.

No estado atual da propaganda abolicionista, nenhum Governo que tenha exata compreensão da sua responsabilidade histórica, pode assumir a direção dos negócios públicos sem ter um plano assentado acerca da questão, cuja complexidade enleia o país na sua honra e na sua riqueza.

Subir ao poder sem um projeto é confessar implicitamente a mais perigosa incapacidade.

A Câmara dos Deputados finge acreditar que derrubou o sr. Martinho Campos numa questão de revisão eleitoral.

A verdade, porém, é que o Ministério de 21 de Janeiro caiu por impossibilidade de se manter.

A opinião havia tornado imprestável a canoa carregada de interesses escravagistas.

Repugnava à imprensa, enjoava o parlamento o Ministério, que se ufanava de ter como bandeira o pano negro do tráfico.

Via-se que em vez de intimidar a propaganda abolicionista, esta pelo contrário se acentuava cada vez mais e já se preparava para abandonar o terreno da discussão e colocar-se no do combate.

O próprio programa ministerial veio desmentir a Câmara.

Ela havia tolerado as declarações do presidente do Conselho; tinha-lhe continuado o apoio, apesar da confissão de que era escravocrata da gema.

Pelos atos do parlamento, pois, o novo ministério não era obrigado a incluir no seu programa a questão servil.

A Câmara dos Deputados não lho podia exigir, quando havia dias antes rejeitado a urgência ao projeto proibindo o tráfico interprovincial.

O Senado não lho exigiria também porque os srs. Silveira Martins, Otaviano e Silveira da Mota, os liberais mais adiantados no assunto, não se julgaram no dever de apresentar projeto.

A inclusão do elemento servil no programa do Governo foi, portanto, uma vitória exclusiva da opinião.

O ministério canalizou assim uma torrente que ameaçava inundar tudo e inundará, se, em vez do canal, cavar-se fundo na legislação, for simplesmente um desvio temporário.

De duas uma: ou o sr. Paranaguá tem projeto feito e cumpre apresentá-lo com a maior brevidade, ou o sr. Paranaguá nada pensou, nada resolveu a respeito, e é incapaz de governar.

Devemos ao ministério e ao país a máxima franqueza.

A maioria dos homens, que assumiram a responsabilidade do movimento abolicionista, está de tal modo comprometida com as esperanças dos escravos e com as convicções de suas consciências; adiantou-se tanto e com tamanho impulso que lhe é impossível parar.

Se o Governo pretende por um adiamento quebrantar as forças abolicionistas, engana-se fatalmente.

O que está feito basta para fazer voar, numa explosão tremenda, homens e instituições, se, fechando os olhos à Justiça, quiserem servir os interesses da pirataria triunfante.

Já não está nas mãos de ninguém conter o movimento, que é filho do impulso combinado do pudor do nosso tempo e das injustiças de três séculos.

Para os raios dessa horrorosa tempestade só há hoje um recurso, é o pára-raio da lei.

Fácil será ao Governo levantá-lo no vértice do parlamento.

Basta tonificar-se com a opinião e meter ombros resolutamente ao trabalho, que se não for aplaudido pelos interesses negreiros, nem por isso deixará de o ser pela maioria da nação e pela posteridade.

Não blasonamos, prevenimos.

O adiamento da questão pelo Ministério, que dizem unicamente ocupado com a reforma judiciária e planejar somente o aumento do fundo de emancipação, começa a produzir desconfiança no seio da família abolicionista.

Não é o fundo de emancipação, duplicado ou triplicado o que se pede.

Este paliativo será, quando muito, aceito pelos contentáveis. A maioria da nação rejeita-o como uma das muitas artimanhas do Segundo Reinado para iludir a boa-fé pública.

O que se pede é a inamovibilidade pronta da escravidão; a conversão imediata do escravo-mercadoria em instrumento necessário de trabalho, mas instrumento remunerado, com a esperança de ser trabalhador livre.

Desengane-se o imperador.

A opinião está formada acerca da questão servil.

Conhece-lhe o passado e o presente, sabe que a lei de 28 de setembro foi um simples engodo, que deu em resultado uma hecatombe herodiana de crianças e a redução dos africanos livres e seus descendentes à escravidão.

Sabe que só a desídia do Segundo Reinado é a responsável pela cegueira em que viveu o país, desbaratando as suas forças na conservação de uma criminosa e hedionda instituição.

Ou o imperador coloca-se francamente à frente do movimento, aproveita pela sua inércia constitucional o trabalho e o sacrifício dos que tudo arrostaram para levar à alma do povo o convencimento de que é preciso condenar já e de uma vez a escravidão; ou o imperador terá o desprazer de ver os seus últimos dias entenebrecidos pelo mais assombroso acontecimento da nossa história.

Uma recente estatística do sr. senador Godói, lembrada pelo veterano dos abolicionistas, o dr. Nicolau Moreira, demonstra que a soma dos trabalhadores livres nas principais províncias é muito maior, mais do dobro da dos trabalhadores escravos.

Esta estatística põe-nos a salvo da acusação de que promovemos o aniquilamento da fortuna pública.

Será o Governo o promotor de uma revolução desnecessária, se quiser adiar uma solução que se impõe a todos os espíritos sensatos.

Não cabe ao folhetim discutir os grandes problemas.

Ele se encarrega somente de levar à meditação do Governo o pensamento abolicionista.

A responsabilidade ficará deste modo circunscrita aos verdadeiros responsáveis.

E para concluir afirmaremos com a maior sinceridade:

Só há neste país uma forma de governo possível: é aquela que resolver com justiça e com sabedoria a questão servil.

Se o imperador cercar-se de homens dignos, se tomar a resolução de fechar essa medonha história de lágrimas e crimes dando-lhe como epílogo a liberdade, terá feito ao país um tamanho serviço, que ninguém lho poderá contestar.

O seu trono estará assentado sobre a gratidão de um povo inteiro. Se formos, porém, nós os republicanos os que levarmos por diante o movimento, dobre Sua Majestade os seus meios de corrupção, sirva-se de todos os recursos do seu processo de inutilizar homens e revoluções, e verá que não conseguirá senão agravar a sua sentença no tribunal da honra nacional e da História.

Convença-se o Governo que a vitória é dos abolicionistas e que eles só cedem dos seus direitos, em nome da pátria, para vê-los encarnados em uma lei redentora...

A abolição se fará no parlamento, ou na praça pública; terá como laurel ou as claridades da paz, ou as labaredas vermelhas do combate.

É por isso que ainda uma vez, em nome da pátria, convidamos o Governo a trabalhar conosco unido por um pensamento de justiça e de paz.

17 jul. 1882

28-VIII-1882

A augusta cobardia do parlamento e do Governo deve a esta hora resfolegar serenamente.

Na questão da escravidão ela não se pejou de apelar para a aliança da morte.

A sombria aliada tem sabido cumprir o pacto.

Anda pelas fazendas a recolher no ventre os negros condenados ao martírio, os desgraçados que foram lançados à fornalha obrigados a beber decoada submetidos à tortura da castração.

Anda pelas rodas de enjeitados a engolir esse lixo humano, criado pela lei de 28 de setembro, o ingênuo, que o senhor atira à rua para fazer do leite da mulher escrava a moeda, que sustenta a sua preguiça e o seu luxo.

Esta peregrinação horrorosa não a cansa. Ainda lhe sobram forças para vir bater às fileiras abolicionistas e levar daí vítimas para a satisfação dos seus aliados.

Há três dias acometeu Luís Gama. A legião viva da Justiça caiu de súbito, e o ruído da sua queda espalhou nos corações de seus companheiros o temor supersticioso de que são perseguidos por uma fatalidade!

Feliz governo o do sr. d. Pedro II. A corrupção e a morte formam em torno dele uma impenetrável muralha.

Quem não se deixa corromper morre!

Na hora em que o parlamento premeditava mais uma vergonha para o país; na hora em que para iludir a opinião ele se divertia em discutir às pressas, para logo passar para o fim da ordem do dia, o projeto proibindo o tráfico interprovincial de escravos, caía Luís Gama para não mais se levantar.

A sua palavra fulminante substituía a tremenda afonia do túmulo; o seu heroísmo inimitável cedia o passo à inércia absoluta.

Feliz Governo o do sr. d. Pedro II.

Os acontecimentos agrupam-se sempre de modo a garantir-lhe a vitória.

Enquanto a confederação dos Ratisbonas aumenta, rareiam as fileiras dos patriotas.

Causa victrix Diis placet, exclamou o poeta e nós repetimos com ele esta sentença cruel contra a probidade política e o patriotismo sincero.

Parece que a Divina Providência dos nossos estadistas se compraz com o estado de coisas do país.

É ela quem mata a fé no coração popular; é ela quem segreda o descrédito daqueles que se esforçam; é ela finalmente quem se insinua como um veneno imperceptível no organismo dos homens de caráter e os impossibilita de prosseguir na luta redentora da pátria.

O sr. Ratisbona engorda e rejuvenesce e no entanto Luís Gama falece.

O que é vergonha para o país, perdura; o que é glória, tem uma vida caduca.

A voz tremenda dos fatos ulula neste momento agoureiramente dentro do meu cérebro. Confesso que tenho medo.

O Segundo Reinado dispõe de uma força superior a todo o país.

Só o imperador pode querer, sem morrer.

Ele quis a pirataria triunfante e teve-a.

A lei de 1831 foi rasgada escandalosamente sem que houvesse um protesto do Governo.

Para que dessem por ela, foi preciso que os morrões da esquadra inglesa se encarregassem de espancar as trevas do arquivo nacional.

Em vão a imprensa agarrava pela goela os piratas conhecidos e os trazia para a praça pública, declinando-lhes os nomes e denunciando-lhes os crimes.

Os homens do Império respondiam à imprensa banqueteando-se com os piratas e condecorando-os.

Então, como hoje, esses infames que vivem do sangue dos seus irmãos, esses miseráveis que procuram apadrinhar o seu crime com a riqueza do país cobriam de baldões, babujavam de torpezas os nomes daqueles que lhes faziam frente.

E afinal conseguiam impor silêncio!

Foi assim que se passaram vinte e um anos de 1850 a 1871 sem que nada se fizesse para punir a ladroeira, a mais torpe que o mundo tem visto e que o sr. Ratisbona aplaude.

Quando a civilização veio de novo pedir contas ao Segundo Reinado, o sr. d. Pedro II contentou-a com a lei de 28 de setembro.

Mandou decretar essa lei ridícula que ensinou o infanticídio ao coração brasileiro, que decretou a hecatombe das crianças!

Agora que uma nova cruzada se levanta em prol dos cativos, Sua Majestade pretende iludir ainda uma vez o mundo proibindo o tráfico interprovincial de escravos!

Fica proibida a venda de escravos de uma para outras províncias, mas pode continuar a imoralidade da venda do homem de município a município, de casa a casa da mesma província.

O imperador e os seus homens, os seus estadistas, entendem que têm feito muito.

E nesta hora, em que nós outros temos, diante da civilização, diante dos princípios os mais sagrados da Justiça e do patriotismo, o direito de gritar ao escravo: levanta-te e conquista a tua liberdade; a morte vem arrancar-nos o general que nos devia conduzir ao campo da desafronta da honra nacional.

Muito feliz é o Governo do sr. d. Pedro II.

É preciso aceitá-lo tal como ele é.

O trono do imperador tem como fundamento a escravidão.

Não há resistir-lhe sem morrer.

Pela escravidão nós vemos decretada a grande naturalização. Os herdeiros e os piratas são todos da mesma pátria. Fizeram uma Constituição para o seu uso. Intervêm nos nossos negócios, ainda que a lei fundamental do país lhes proíba a intervenção. Dizem-se eles os patriotas, porque são eles os que têm o bolso cheio porque são eles que fizeram do ombro africano a escada para escalar o poder.

Nós outros somos os valdevinos, os anarquistas, os irrefletidos.

Os ladrões riram-se sempre dos roubados.

Não é possível desafrontar a nossa História.

O país só será grande deixando-se fechar na burra dos aventureiros, que nos negam até o direito de governar a nossa pátria como queremos.

O que nos cumpre somente é obedecer.

Manada de negros e mulatas, tu nasceste para ser escravo e para ser soldado. O eito e o Exército é o teu destino. Num, não chegarás a cidadão, no outro não chegarás a oficial.

A tua função histórica há de ser esta unicamente.

Julgas que tens pátria, porque nasceste sob este céu azul? Enganas-te. O primeiro que chega pode comprar-te, e surrar-te à vontade. Aí estão o parlamento e a polícia para garantir-lhe a plena posse do teu espírito e do teu corpo.

Muito feliz é o Governo do sr. d. Pedro II.

Desdobra-se sobre um país em que não temos o direito de estremecer a nossa Pátria; em que acima de uma vida de sacrifícios se coloca a burra dos herdeiros dos traficantes de carne humana.

Quem clama pela justiça é apontado como revolucionário.

A ordem é o roubo, é o assassinato do escravo, é o morticínio das crianças.

O Império e a escravidão são solidários.

A sua legislação visa somente manter esta solidariedade.

Enquanto nós outros clamamos pela abolição, o Governo aprova os bancos de crédito real, quando pela Carteira Hipotecária do Banco do Brasil se vê que a propriedade rural entre nós é representada pelo escravo.

À vista de semelhante desembaraço governamental é claro que há o propósito de não dar ouvidos ao Direito, e pelo contrário continuar a sufragar a pirataria vencedora.

Não seremos nós quem se queira colocar em frente do Governo.

Continue ele serenamente.

Nós pelo contrário lhe segundaremos no trabalho e lhe oferecemos um projeto para ser discutido e votado pela câmara dos Ratisbonas:

«Art. 1º Ficam revogadas as leis de 1831, 1850, 1854 e 1871 e bem assim a convenção de 1826.

§ O país não reconhece as instruções dadas pelo Governo do sr. d. Pedro I aos negociadores de reconhecimento da nossa independência pela Inglaterra.

Art. 2º Ficam considerados escravos todos os negros e mulatos de ambos os sexos, existentes no Brasil.

§ 1º Esses novos escravos ficarão pertencendo aos fundadores de bancos e aos fazendeiros que tenham influência política.

§ 2º O Governo fará entre esses novos escravos a escolha dos mais válidos, de 20 a 25 anos de idade, para dar-lhes praça no Exército como escravos da Coroa.

§ 3º Excetuam-se somente os mulatos que tenham atualmente assento nas Câmaras e que tenham votado pela conservação da escravidão.

Art. 3º Não se admite de forma nenhuma a libertação de negros e mulatos visto como eles poderiam aspirar a concorrer no comércio, nas letras e na política.

Art. 4º Ficam revogadas as disposições em contrário.»


Dói-nos extraordinariamente a pecha de revolucionários neste país tão feliz em que o brasileiro tem tanta autonomia política, comercial e literária.

Não a queremos sobre nós, quando vemos que da escravidão sai Luís Gama e da aristocracia emprestada pelos fazendeiros da Paraíba do Sul e pela Coroa saem o sr. Ratisbona e o sr. Paranaguá.

Aí fica o nosso projeto.

Que as Câmaras o aprovem e Sua Majestade o sancione.

28 ago. 1882

Já estão formuladas em projeto as medidas que o Ministério julga suficientes para contrapor à agitação abolicionista do país e ativar a extinção da escravatura.

Não é ainda o momento de dizer o que pensamos desse conjunto de medidas. Nossas opiniões filhas de longo estudo do assunto, em todos os seus aspectos, em todas as suas conseqüências, e desde muito tempo expendidas, não mudaram, nem mudarão. Estamos dispostos a enristar contra a inflexibilidade do esclavagismo a inflexibilidade dos direitos do escravizado e da civilização.

O sr. Moreira de Barros, com aplausos da Santa Aliança negra, disse que sacrificaria, contente, a sua carreira à derrota do projeto do Governo; nós consideraremos a nossa própria vida insignificante holocausto ao triunfo completo da abolição.

Sem tratar de apurar se o projeto é bom ou mau, se ele abrange ou não a grandeza da reforma orgânica do país registremos com prazer o ódio da oligarquia agrícola contra ele.

Desde o dia da apresentação os cruzados negros manobram incessantemente ara tomar de assalto o Gabinete e garroteá-lo, abafando, assim, o brado de justiça que está contido em certas disposições do projeto.

Felizmente, como acontece todas as vezes que se pleiteia a vitória de uma causa que ofende as leis naturais do progresso humano, os nossos adversários batem-se com armas falhas, que não resistem ao primeiro choque da luta.

É assim que o sr. Moreira de Barros vê um grande efeito na contagem dos votos da moção de confiança, que se seguiu ao apoiamento do projeto. Por essa votação quer S. Ex.ª concluir a derrota do Gabinete, sem se lembrar de que os seus aliados, como S. Ex.ª mesmo, já confessaram que a temerosa questão não se esvaza em moldes de partido; tem os grandes lineamentos de um problema social.

E para dar maior valor a este modo de ver, a Santa Aliança negra procede de conformidade com a sua palavra.

Foi assim que o sr. Paulino de Sousa convocou a minoria conservadora, propôs e fez aceitar por ela decidido apoio ao Ministério Martinho Campos.

Foi assim que na véspera da apresentação do projeto Dantas, os srs. Paulino de Sousa e Moreira de Barros convocaram uma reunião em que foi combinado o plano de ataque contra o projeto.

É assim que nos Clubes de Lavoura os candidatos esclavagistas são aceitos sem o menor escrúpulo, quanto à bandeira política, sob a qual militem.

Provado pelas palavras e pelos atos de que se trata, não de uma questão normal de parlamentarismo, porém de uma nova questão especial; que valor deve ter a contagem dos votos pedida pelo sr. Moreira de Barros?

Um valor tão negativo para a força moral da Santa Aliança, quanto é negativo o do sr. Contagem no crédito de luz e saber, que a oligarquia agrícola quer abrir para si na conta corrente do país com os seus destinos.

Quando impugnamos intransigentemente, violentamente, a atual lei eleitoral, o nosso principal argumento era a glebagem do voto popular à oligarquia, que nos empobrece e barbariza.

Dizíamos que o voto passava das mãos da nação para as de uma classe, e assim explicávamos o maquinismo que seria construir a lavoura como centro, as classes literárias, filhas dela ou dela dependentes, servindo de raios, o Governo como circunferência, pela grande curva do funcionalismo.

O sr. Moreira de Barros veio provar que tivemos visão exata do organismo eleitoral e tanto que se jactou da derrota dos poucos deputados que na legislatura passada se afoutaram a declarações abolicionistas.

Quer isto dizer que a oligarquia agrícola era o poder único; que ela se enfeudara na posse legislativa e governamental da nação e que dela excluíra todas as outras classes nacionais.

À luz desse critério, o que significam o projeto e a votação da Câmara na moção de confiança, implícita na renúncia da Presidência pelo sr. Moreira de Barros? Vitória ou derrota?

Projeto e votação querem dizer que está quebrado o sistema unitário da oligarquia; que a nação entrou no dualismo natural de funções parlamentar e governamental.

O mais vulgar bom senso basta para decidir que não é vencedor, é vencido o poder que se deixou assim escapar em frente de si mesmo e vem passar metade da sua força para o campo contrário.

Mas o sr. Moreira de Barros é lógico como a escravidão. No debate dos destinos da instituição condenada, S. Ex.ª não faz questão de honra, mas de número.

Citemos textualmente o seu grito de guerra:

-A minha questão não é de honra, é de número.

Submetamo-nos à aritmética do líder do parlamentarismo agrícola.

No princípio da legislatura, a Câmara, filha da eleição, que expeliu todos os abolicionistas, era unanimemente pela escravidão. O sistema parlamentar funcionava de modo que o sr. Martinho Campos, presidente do Conselho, podia dizer: sou esclavocrata da gema e tenho muita honra em sê-lo.

Chega-se ao fim da legislatura e o espetáculo é outro. O sr. Dantas, presidente do Conselho, vem dizer ao parlamento: a extinção do elemento servil é uma aspiração nacional; diante dela não se pode nem retroceder, nem parar, nem precipitar.

Em seguida, malogrando as esperanças de traição, acalentadas pelo sr. Moreira de Barros, o sr. presidente do Conselho formula um projeto em que procura juntar ao mecanismo da lei de 28 de setembro uma pequena mola abolicionista.

Pois bem, a Câmara unanimemente esclavagista, segundo o sr. Moreira de Barros, decide-se imediatamente a subscrever com trinta assinaturas o projeto, e, por cinqüenta e cinco votos, declara que o projeto é assunto digno de cogitação e que o ministério deve permanecer no poder para defendê-lo e dirigir a opinião parlamentar no debate.

Quem é, pois, o vencido?

Pela aritmética do sr. Moreira de Barros não são cinqüenta e cinco, mas cinqüenta e três os votos do Governo, e isto porque há alguns deputados que têm emendas a fazer e opiniões expressas.

Entendamo-nos. Antes de tudo, é preciso contar com quatro ministros que estão fora da Câmara, que eram deputados e, entrando para o ministério, deram o seu apoio prévio ao Gabinete.

Estes quatro votos são ao mesmo tempo honra e número; não podem ser postos de parte, porque foram dados, atenda bem o sr. Moreira de Barros, sob a coação de uma Câmara unanimemente esclavagista, com a consciência do sacrifício, segundo a opinião mesma do parlamentarismo oligarca.

O voto do sr. Antônio de Siqueira é mais adiantado que o projeto; quer uma decisão sobre a lei de 31, que o sr. Moreira de Barros mesmo já quis revogar, e, porque esse voto é mais completo e mais adiantado, deixa supor que ele procederá conforme com a regra geral: quem quer o mais quer o menos. Demais, o voto foi expresso e cientemente dado, porque partiu do sr. Antônio de Siqueira a exigência da definição do voto, como de confiança ao Gabinete, e, como tal, o aceitou S. Ex.ª com a maioria da Câmara.

Temos, pois, que, pelos próprios princípios da aritmética do sr. Moreira de Barros, os votos em número são 59.

Não nos demoraremos em considerar a honra do voto porque esta não tem valor diante de V. Ex.ª. Se o fizéramos, teríamos a reclamar para o projeto do Governo alguns votos expressos, que são:

O do sr. deputado João Caetano, redator e proprietário da Gazeta de Uberaba, da qual podemos transcrever alguns trechos para provar que S. Ex.ª é abolicionista e dos que, sem meias palavras e sem condescendências, querem a abolição imediata e sem indenização.

O sr. barão de Canindé, que acaba de declarar que o seu voto foi um grande sacrifício à disciplina partidária, mas não uma negação das suas idéias e das idéias da sua província. Não se podia esperar de S. Ex.ª uma traição aos seus eleitores, que hoje fazendo parte de um estado constitucional livre, não podem querer ser representados por um esclavagista. Da declaração de S. Ex.ª se conclui, pois, logicamente que ele no momento sagrado de optar pela escravidão com o seu partido, ou pela redenção do escravo com o projeto, não hesitará. S. Ex.ª será impelido pela sua própria honra.

O do sr. Álvaro Caminha está nas mesmas condições do voto do sr. barão de Canindé. S. Ex.ª tem na própria fisionomia a sombra da sua honra melindrada, pela suspeita de que pode passar como esclavagista, ele que, não há ainda dous meses, era alma e garantia do prestígio da Sociedade Abolicionista Cearense!

Adicionando, pois, estes três votos aos já expressos, por palavras e por atos, segue-se que, na esfera da honra, a questão abolicionista foi pelo menos aceita por 62 deputados, ainda que aparentemente só se houvessem contado 55.

Pode, na mesma esfera, contar a oligarquia agrícola com o sr. Taunay? O vice-presidente da Sociedade Central de Imigração pode subscrever com o seu voto o manifesto negro da inviolabilidade da escravidão?

No entanto, este voto, por si só, vale ou a desonra nacional no estrangeiro ou um atestado da nossa probidade nacional, quando vamos pedir à Europa o concurso do seu trabalho livre.

Pela aritmética do sr. Moreira de Barros, conclui-se, pois, que o esclavagismo está vencido, completamente vencido. A sua unidade parlamentar e governamental está quebrada, e da maneira a mais estrepitosa.

Ao passo que o sr. Moreira de Barros diz: nós advogamos os nossos próprios interesses, nós, os oposicionistas; a maioria responde-lhe, em torno dos srs. Severino Ribeiro, Antônio Pinto, Rodolfo Dantas e Afonso Celso Júnior, nós representamos os direitos da civilização triunfante da pátria agitada pelo progresso.

Fora da aritmética do sr. Moreira de Barros, a demonstração é ainda mais palpável.

O próprio número de votos, concedido ao Ministério por S. Ex.ª vai confundi-lo.

Graças à oligarquia agrícola, o Brasil conta apenas 145.000 eleitores, que dirigidos por 122 deputados dão para cada um deles a média 1.188 votos.

Pois bem, a soma de eleitores representados pelos que votaram o projeto, reunida a massa da população espoliada será menor constitucionalmente que a soma dos votos da oligarquia!

O sr. Moreira de Barros contou ao Ministério um caso de vice-rei do Peru, que, por necessidades agrícolas, falava francês. Querendo sair a passeio, avisou o ministro e este preparou logo uma manifestação tal que por toda parte o vice-rei só encontrava aplausos. Afinal o vice-rei, surpreendido por ver que até os índios se manifestavam, agarrou o maioral destes e passando-lhe a mão pelo rosto viu simplesmente nele o seu próprio ministro disfarçado pela pintura.

Tal é a idéia que S. Ex.ª faz do aplauso que recebe o Gabinete: manifestações de encomenda.

Nós queremos contar também um caso ao sr. Moreira de Barros.

Um certo mandarim ordenou, sob pena de morte, a todos os tecelões, que lhe fosse feita uma túnica de tecido tão fino que se lhe não pudesse ver o fio.

Intimou-se, pois, o primeiro tecelão da cidade a obedecer à ordem do mandarim e o pobre operário foi fechado num quarto para, no fim de quinze dias, dar a primeira amostra do pano.

Expirado o prazo, o tecelão recebeu serenamente a visita do mordomo do palácio que lhe vinha pedir contas da encomenda.

-Onde está a túnica? -perguntou.

-Ali -respondeu o tecelão, apontando para um cabide.

-Não a vejo -observou o mordomo.

-Mas vós mesmo me encomendastes uma túnica de fio invisível e impalpável.

A resposta convenceu o mordomo que foi comunicar ao mandarim a sua admiração.

Contente por se ver obedecido, o mandarim correu logo a vestir a túnica.

Tirou as suas roupas de seda e ficou completamente nu, colocou-se em frente ao tecelão que o revestiu com a sua encomenda.

Saindo logo à rua, o mandarim viu reunir-se o povo açodadamente: ruas e praças se encheram: milhares de indivíduos quedavam boquiabertos.

-Que trabalho! -exclamava o mordomo. -Faz honra a um reinado.

-De feito -disse todo ancho o mandarim. -Veja como toda a gente me admira.

Mas uma voz malcriada rompe do seio da multidão e grita:

-É uma indecência o mandarim sair nu à rua.

Dezenas, centenas, milhares de vozes repetem o grito sedicioso; a multidão se agita, percorrida por um frêmito de indignação, e ao mesmo tempo que estrugem os -fora e morra! os braços e os pés se movem, prodigalizando chulipas e cascudos ao mandarim, agora instituição desmoralizada.

. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

A tirania pode violentar algum tempo, quando se exerce a portas fechadas. Os seus dias, porém, são contados logo que ela vem pedir aplausos ao tal povo. Na praça pública só a espera a vaia e o pontapé.

19 jul. 1884

16-VIII-1884

O mundo espera por uma fé, que o faça marchar, respirar e viver, mas não serão a intriga, a falsidade, os pactos da mentira os dogmas dessa almejada fé.

Estas palavras são de Michelet, do eminente historiador da Revolução Francesa e o eleitorado fluminense há de ficar admirado de que apliquemos à nossa pátria tão transcendentais palavras.

No entanto, também nós estamos à espera de uma fé, de uma crença, que nos agite moral e intelectualmente e estamos convencidos de que ela não pode ser o resultado de um pacto, da mentira, que há mais de meio século nos enfraquece e nos desnorteia no caminho da civilização.

Amanhã, as urnas, chamadas oficialmente para proverem um lugar vago no Senado, devem em realidade dizer se querem prover o futuro de aspirações condignas de nosso século, ou se preferem continuar a obrigar o país a abdicar da sua soberania em favor de uma oligarquia sem talento, sem patriotismo e sem escrúpulos.

O eleitorado, entre nós, costumou-se a não ver na eleição mais que a conveniência do seu partido, e, no entanto, nunca se preocupou em saber se as idéias ou os interesses desse partido são conformes com o bem geral da nação; com as exigências do seu progredimento, com a estabilidade da sua fortuna.

No momento atual essa despreocupação, que deu em resultado o adiamento de todos os problemas, que saltearam a nação desde o momento em que ela se organizou, seria um crime, porque todos esses problemas reclamam solução imediata, e, quer o eleitorado queira, quer não, ela será dada.

As nações se comportam, no sistema da civilização, do mesmo modo que os astros num sistema solar: movem-se por atrações e repulsões fatais, independentes de nenhuma vontade. O progresso, como a natureza, tem um equilíbrio fatal, e mesmo quando grandes transformações se operam, quando movimentos se desenfreiam, há uma ordem imprescritível que os preside.

Em vão os interesses se obstinam; em vão os preconceitos alarmam as consciências singelas; a idéia necessária a uma certa organização triunfa sempre. Como no equilíbrio da natureza, as resistências só servem para aplicar e distribuir a força em movimentos regulares; no mundo social as oposições, apenas, servem para concretizar e sistematizar as idéias e dar-lhes a orientação mais adaptada para se desenvolver e vencer.

O nosso século mais do que nenhum outro tem demonstrado à evidência a fatalidade das leis naturais de organização social.

A nossa fé está praticamente demonstrada.

Por isso mesmo nos dirigimos ao eleitorado fluminense com a maior tranqüilidade. Não lhe falamos às afeições, mas à consciência, e começamos por dizer-lhe que ele errará, e crassamente, se sufragar a chapa da oposição esclavagista.

Passemos à prova.

Nenhum partido tem o direito de viver senão para realizar idéias no Governo.

Que idéias quer o Partido Conservador realizar?

Com relação ao problema da escravidão, quem o definiu bem foi o sr. Taunay. S. Ex.ª disse, em plena Câmara, que o Partido Conservador não queria ser fiel nem à lei de 28 de setembro de 1871.

Os fatos em que baseou a sua alegação primam pela evidência.

Em primeiro lugar, adiou-se durante longos anos o cumprimento da lei, só depois de decorridos quatro exercícios foi aplicado o fundo de emancipação. Quer isto dizer que o Partido Conservador, sem escrúpulos, sem compaixão, reteve em cativeiro ilegal a grande massa de homens a que devia aproveitar a aplicação imediata da lei de 28 de setembro.

Não contente com essa prova pública da sua insubordinação, do seu crime, esse partido escolhe os seus candidatos e no número desses escreve o nome do sr. Andrade Figueira.

Que quer esse homem? Restituir os ingênuos a seus legítimos senhores!

Não há, parece-nos, dúvida a nutrir com relação aos intuitos do Partido Conservador.

O seu passado está arquivado nesta frase do sr. senador Antão, quando deputado na fase da repressão do tráfico: vós subistes ao poder pela escada do tráfico.

O seu presente pinta-se já pela declaração do sr. Andrade Figueira, já pela aliança com o sr. Sousa Carvalho.

Não é preciso, pois, grandes comentários para deixar patente que o Partido Conservador não olha meios, não tem escrúpulos, não respeita leis, quando trata de sustentar a escravidão.

Todos os recursos lhe servem.

Aqui vai aliar-se aos católicos, ali ao sr. João Alfredo, sem se lembrar que ontem aqueles lamentaram-se, com razão, de fazer parte de um país em que se perseguiam com afronta das leis os representantes mais graduados da religião do Estado -os bispos.

Entre o sr. Paulino de Sousa e os católicos deviam-se interpor a prisão e o exílio, que violentaram os direitos de d. Antônio de Macedo e d. Frei Vital, uma vez que o sr. João Alfredo é hoje sustentado pelo sr. Paulino, visto como o Partido Conservador do Norte desertou para as bandeiras deste. Mas, ao contrário, os católicos se unem com o sr. Paulino de Sousa.

Ali é com o sr. Sousa Carvalho que o sr. Paulino de Sousa se congrega, formando para fins eleitorais a liga Sousa & Sousa, que deve merecer os sufrágios dos povos de Monte Verde.

Não obstante, quando publicamente assim se cerca de elementos, que devem gerar suspeitas em todos os espíritos, porque patenteiam pacto sem escrúpulos; secretamente o sr. Paulino manda aos seus amigos uma confidencial declarando-lhes que votem só tendo em vista a disciplina e força do Partido Conservador.

E para contar ainda mais certamente com o êxito, dizem que se insinua particularmente, por deliberação do conselho supremo do Partido Conservador, não ser mau cortar o nome do sr. Pereira da Silva.

Esta versão tem o seu valor, porque nem o Brasil, nem o sr. Paulino de Sousa veio ainda contrariar a liga de Monte Verde, na qual é excluído o nome do terceiro candidato do Partido Conservador.

À vista de semelhantes fatos, que descobrem o cálculo político de dous homens, que se querem substituir ao seu partido e à sua pátria -os srs. Paulino de Sousa e Andrade Figueira; de dous homens que não escrupulizam alianças, que não se comprometem ao menos a respeitar a liberdade já decretada por lei, poderá o eleitorado fluminense pensar que há nesse país alguém ingênuo, que considere um triunfo a eleição de tais políticos?

A eleição de qualquer deles, ou de todos eles vem repassada da força moral necessária para deter a propaganda abolicionista, ou, pelo contrário, evidenciando ainda mais o estado de corrupção eleitoral no país, virá aconselhar, como recurso urgente, deixar as urnas à oligarquia, e defender de outro modo qualquer a liberdade parlamentar?

Nós esperamos por uma fé nova que nos anime e nos oriente, mas esta não pode sair da chapa conservadora triunfante.

O que temos de ver nela?

A aliança da lavoura com os srs. Sousa Carvalho e Paulino de Sousa, o Governo Sousa & Sousa.

A aliança do clericalismo com o Partido Conservador.

Ou a disciplina e a força real do Partido Conservador.

Quem fará triunfar a chapa conservadora: a liga de Monte Verde, o partido católico, ou só o Partido Conservador?

Qual o interesse que deve sobrepujar os outros?

Tais são as interrogações que surgem das alianças e da confidencial do sr. Paulino de Sousa e está claro que o futuro não pode ater-se, nem à escravidão revogando a lei de 28 de setembro, nem ao clericalismo, nem ao Partido Conservador suprimindo para viver o próprio escrúpulo.

A fé, que nos é indispensável e que nós queremos ver robustecida, tem necessidade de ir abeberar-se em fonte diversa da do voto.

Ela já nos diz que 145.000 indivíduos não representam um país de milhões de habitantes.

Depois da eleição de amanhã, ela nos dirá que 145.000 indivíduos estão constituídos de modo a reduzirem à escravidão um país de 12 milhões de cidadãos; que uma oligarquia que vive de ilegalidades e de intrigas se mostra tão audaz que pretende abafar com o interesse de algumas famílias de uma província os reclamos de uma nação inteira.

Tais são as observações que julgamos conveniente fazer ao eleitorado fluminense.

A propaganda abolicionista não se parece nada com o passado partidário deste país, não tem interesses pessoais mas as idéias e só as idéias, a pátria e só a pátria.

Tem, pois, a serenidade necessária para ver claro e dizer alto a verdade. Dando ganho de causa à chapa conservadora, o eleitorado desta capital se condena de uma vez para sempre ao mais pesado cativeiro.

Aos funcionários públicos nos cumpre dizer que, com o jogo do câmbio, imoral e indecente, com o retraimento proposital de capitais, o esclavagismo encarece os gêneros de primeira necessidade com a mesma crueldade com que o sr. Andrade Figueira ameaça reduzir os vencimentos do colaborador da paz e da fortuna pública -o funcionário.

Aos militares devemos lembrar que o sr. Andrade Figueira não trepidou nunca marear-lhes a reputação, e aí estão os seus discursos para comprovar.

Ainda ultimamente S. Ex.ª e os seus amigos fizeram questão de adiar o aditivo, que reformava a organização do Exército, e só explicava a urgência dessa reforma por ter o Governo de precisar de mais força para combater os seus adversários.

O que quer dizer que -aos olhos do sr. Andrade Figueira- o Exército não passa de um títere, um instrumento que serve para assassinar os seus irmãos.

O sr. Andrade Figueira não disse, como qualquer outro oposicionista o faria: o Governo lança mão da reforma para se popularizar no Exército; não, S. Ex.ª, atendendo à idéia que ele formado soldado brasileiro, só viu um meio de adquirir instrumentos de compressão e de morticínio.

À lavoura e ao comércio, pedimos que reflitam, em que mais vale assentar bases para uma transformação que é fatal, do que se apegar a quimeras vãs.

Os homens, que se contrapõem hoje à propaganda abolicionista, são os vencidos de 1871 e se eles então nada puderam fazer, o que conseguirão hoje que o Ceará, o Amazonas e o Rio Grande do Sul, apertam pelas fronteiras o esclavagismo, obrigando-o a entrar no círculo de liberdade, que a civilização já traçou em nossa nacionalidade.

Que as urnas falem pela voz da pátria e não pela do interesse.

16 ago. 1884

30-VIII-1884

No horizonte negro, que nos cerca, não se vê neste momento senão o sulco diamantino da coroa imperial.

Ela irrompeu bruscamente em meio dos graves acontecimentos políticos do dia, como um cometa na solidão da noite. Todas as vistas convergiram naturalmente para ela e não há meio de desviá-las.

Todos quantos interrogam a esfinge do tempo e se preparam para ser por ela devorados, pensando descobrir-lhe o enigma, estão de acordo em responsabilizar o imperador pelo que se está passando entre nós.

O povo brasileiro habituou-se a entregar a Sua Majestade a solução dos problemas sociais, que mais de perto entendem com a organização definitiva de nossa nacionalidade.

Sempre que alguma idéia consegue bruxulear no crepúsculo parlamentar, que se estendendo desde 1834 até hoje -meio século às portas da noite-, tem tornado indistintas as linhas, fantásticas as figuras da nossa política, toda a gente aponta o imperador como patrono dessa idéia.

Não se repara em quanto vai de humilhação para o povo brasileiro neste fato; não se reflete que se está alimentando uma presunção perigosa no espírito do soberano e que se vai gerando a mais tremenda das desilusões sociais -a desilusão da autonomia.

Esse hábito inveterado acaba de investir o imperador da responsabilidade da propaganda abolicionista.

Proclamam-no o chefe do abolicionismo.

Qual o intuito de semelhante jogo político?

Deixando de parte o que vai de injustiça para os poucos homens, que iniciaram a campanha atual contra a escravidão, perguntemos aos dous grupos que julgam conveniente trazer para a frente a pessoa do imperador, qual o resultado que desejam tirar?

Os conservadores, acusando o imperador de ser o chefe do abolicionismo e querendo vencer esta propaganda, o que pretendem? Conter o imperador nos limites, que eles dizem ser os constitucionais, ou obrigar o imperador a abdicar?

Mas o imperador não fez senão usar das suas atribuições constitucionais.

Quando chamou o Ministério Dantas para dirigir os destinos políticos do país, a propaganda abolicionista já havia produzido o Ceará livre, e o Amazonas, ao termo da sua libertação o Rio Grande do Norte com o município de Mossoró livre, Piauí com o município da Amarração completamente emancipado, e, em contraposição a tudo isso, a efervescência esclavagista organizando clubes secretos, assalariando a imprensa, pondo cabeças a prêmio, desterrando magistrados, aplicando a Lei de Lynch a escravos que assassinavam senhores ou feitores; finalmente, fazendo a mais desbragada oposição à tentativa de libertação do município neutro.

Negar a pujança de uma tal opinião, que se representava já por uma luta apaixonada em todo o Império, que se cobre hoje de uma rede de associações abolicionistas e de centros de resistência esclavagistas, é negar a verdade.

Podia o Poder Moderador fechar os olhos a tal movimento, que agitava nos seus mais íntimos recessos a vida nacional? Não eram os mesmos esclavagistas, que vinham dizer ao país: a segurança pública, a riqueza, as instituições correm perigo? Não eram eles mesmos que proclamavam, como ainda hoje repetem, que ao conflito entre a abolição e a escravidão se devia o fenômeno social?

O que devia fazer o imperador? Reagir?

Mas a propaganda nascera sob o Ministério Sinimbu, que dizia: não daria um passo além da lei de 28 de setembro; crescera sob o Ministério Saraiva que se limitara a dizer: eu não cogito da questão: começara a ameaça sob o Ministério Martinho, que pela voz do presidente do Conselho, se permitiu a pose de Jefferson Davis de segunda ordem e se despejara nesta frase: resistirei, porque sou esclavocrata da gema; acentuara-se pela libertação do Acarape e de 16 municípios sob o Ministério Paranaguá, que, pretendendo iludir a propaganda, prometera encarar de frente a questão e só se ocupou em perseguir o abolicionismo, já demitindo no Ceará os funcionários acusados de tal opinião, já removendo desta província e desmembrando o Batalhão 15º de Infantaria, que se revelara favorável à abolição; finalmente adquirira toda a pujança sobre o Ministério Lafaiete que pretendeu marombar sobre a ação abolicionista e a reação negreira.

Devia o imperador reagir ainda? Seria constitucional um tal procedimento?

Dizem os conservadores que sim e acusam o imperador por haver concedido a dissolução da Câmara, quando devia fazer do voto deste a clava de Hércules para fulminar a propaganda, que os intimida e desnorteia.

Mas se é este o pensamento dos conservadores, se é por ele que se empenham em campanhas eleitorais, para insistir no seu voto contra o abolicionismo, só podem ter dois pensamentos:

-Vencer o imperador e neste caso ou suprimem o Poder Moderador, por que o obrigam a não ter liberdade de julgar os acontecimentos e o restringem a obedecer aos votos da Câmara e isto só pode dar em resultado a abdicação, pelo menos moral, do imperador, ou os conservadores estão convencidos de que, vencendo eleitoralmente, conseguem da parte de Sua Majestade a confissão pública de que se submete à vontade do esclavagismo.

É este o pensamento oculto? Pretende-se, como sob os Ministérios Paranaguá e Lafaiete, à sombra da tolerância do abolicionismo exercer a tirania da escravidão?

O imperador que não quis reagir ativamente pensa em reagir passivamente, ou por outra: quer lavar-se diante da História da responsabilidade pessoal e talhar-se a mortalha inglória, mas cômoda do coagido?

E por este desfecho que esperam os conservadores?

Alguns republicanos, principalmente os que são as secundinas da lei de 28 de setembro, seguem o mesmo caminho dos conservadores, quanto à responsabilidade imperial na propaganda abolicionista.

Que resultado político esperam esses republicanos de semelhante procedimento, que é, antes de tudo, uma injustiça clamorosa contra muitos dos seus correligionários, que têm sido os mais sacrificados na propaganda?

Que proveito antevêem nesse tripúdio ingrato sobre os túmulos de Luís Gama, de Numa Pompílio, de Ferreira de Meneses e sobre os corações feridos de muitos dos seus correligionários, empenhados no combate contra a escravidão?

Nunca nenhuns partidários deram mais triste prova de falta de compreensão da missão, que se incumbiram de desempenhar.

Contemporizar com a escravidão, em nome do ideal da liberdade, é uma concepção de tal sorte monstruosa, que só pode gerar-se na alucinação do interesse o mais baixo.

Dizer que o imperador é chefe do abolicionismo é confessar que o republicano atraiçoou o seu mandato histórico, é cercar de um prestígio sagrado a Coroa que se quer destruir.

Que papel histórico para o imperador! É a abnegação de Codro ressuscitado. O oráculo pede o sacrifício do rei para a salvação da pátria; o rei não hesita, precipita-se impávido e sereno nos braços da morte.

Que inversão moral de papéis! O rei que se fez mártir, o republicano que se proclama vil especulador!

O rei que desce do seu trono, porque o considera manchado pela escravidão, o republicano que faz dessa mancha o distintivo do seu estandarte!

No meio dessa confusão sociológica, o espírito se debate em dúvidas atrozes e não sabe mais encontrar a linha, que se havia traçado serenamente.

A nação foi suprimida em nome dos interesses conservadores e das aspirações republicanas; ficam, pois, face a face, o abolicionismo e o imperador e entre eles o Gabinete 6 de Junho e o Partido Liberal.

Raciocinemos, pois, com a calma relativa que a fé nos princípios ainda me dispensa.

É, realmente, o imperador o chefe do abolicionismo?

Se o é, por que o ministério não procura os meios de intervir já e já como opinião no pleito eleitoral?

É justo que a máquina oligárquica funcione desassombradamente, montada, como está, dentro das repartições públicas, nas patentes superiores do Exército, nas posições vitalícias do parlamento e da magistratura, e em cada movimento dificulte a ação governamental e irrite a propaganda pacífica do abolicionismo?

É justo que, ao tempo em que a oposição, recorrendo a um eleitorado de fazendeiros, se proclama vitoriosa; as notícias do abolicionismo sejam de par com a libertação em massa do Rio Grande do Sul e em Goiás, as de perseguição do abolicionismo em S. Paulo e no Rio de Janeiro, províncias vergonhosamente negreiras?

Quererá o imperador chamar opinião do país a conspiração dessas duas protetoras do tráfico, usufrutuárias da pirataria?

Se o imperador é nosso chefe, quer ir conosco à imortalidade, ou prefere que o repudiemos publicamente, como um traidor que faz da lealdade dos seus soldados termos da equação do seu problema dinástico?

A Coroa está em evidência e não seremos nós que a procuraremos ocultar.

Temos cumprido com o nosso dever e não podemos consentir que ninguém falte ao seu.

O imperador vê a opinião da Europa e da América pronunciada; vê a opinião do país manifestada nas libertações integrais do Ceará e do Amazonas, na vertiginosa marcha do Rio Grande do Sul, nas comoções de Goiás, do Piauí e do Rio Grande do Norte.

O imperador ou é um cego, ou aproveitou as lições de seu próprio reinado. Sabia que a grita dos interesses devia ser atordoadora, e que, antes de tudo, era preciso dispor-se a não ouvir senão o que fosse justo.

Se é cego, se não viu o caminho por onde enveredou e pretende recuar, nós lhe prevenimos de que cada passo dado no caminho da liberdade cava um profundo valo no terreno da escravidão, e, quem pretende retroceder, cai no abismo.

Se não aproveitou as lições do seu longo reinado, será vítima de si mesmo e não terá razão de queixar-se senão da própria obra.

Quem vive de um falso crédito de força acaba por ver a fraqueza real fazê-lo vítima de uma falência fraudulenta.

Republicano, eu creio que o imperador vale mais do que muitos dos meus correligionários, e que a pátria vale mais do que nós todos.

Os acontecimentos colocaram a Coroa à frente: muito bem que a Coroa ande, para que a liberdade não seja obrigada a empurrá-la.

30 ago. 1884

Quem vence?

O Gabinete? No campo eleitoral, solene e venerando como o cadáver de Aquiles, ficou a candidatura de Rui Barbosa que, na última fase da propaganda abolicionista no parlamento, foi a encarnação da sua força, da sua coragem e do seu patriotismo.

Os conservadores? Nas vésperas do pleito eleitoral, vieram pela voz de um de seus chefes declarar que podiam, queriam e deviam ampliar a lei de 28 de setembro.

Os partidos não se atreveram a levantar as suas velhas bandeiras, sem recomendá-las com as vestes rotas do escravo.

Não houve coragem para dizer francamente, pela abolição ou pela escravidão.

A palavra murmurada desmentiu muitas vezes a palavra escrita e o ato de véspera.

Os centuriões do obstrucionismo, os condenados da dissolução arrastaram para o campo das pequenas questiúnculas de poder o pleito em que se decide a orientação moral e econômica da nação.

Por outro lado, os companheiros -em número crescido- entenderam e era possível transigir com os compromissos tomados.

De parte a parte, a carência de fé, a falta de firmeza na marcha, a irresolução em decidir-se.

Fácil, pois, é saber quem vence.

O vencedor está fora dos partidos e fora das urnas, dentro da consciência nacional. É a idéia abolicionista, única senhora, árbitro supremo do amanhã brasileiro.

A estreiteza de vistas partidárias pode inspirar desânimos aqui, temeridades ali.

Os monomaníacos do poder pensam em vão que, à força de ameaças, de sentenças, de crimes, poderão fazer recuar a onda abolicionista, que é feita com o impulso de todo o oceano da civilização atual.

A decepção será proporcional ao engano.

Já o dissemos e o repetimos: não é aos propagandistas nacionais que o nosso Governo tem de dar contas; é ao congresso dos povos, e à humanidade civilizada.

O sr. Paulino de Sousa não conservará, como troféu, a bandeira, que pretende arrancar das mãos do sr. Dantas.

Há de acontecer-lhe o mesmo que ao indivíduo que, impensadamente, segura no condutor elétrico que fecha um circuito: ser-lhe-á impossível abandoná-lo, sem que a pilha deixe de funcionar.

O Gabinete 6 de Junho pode ser vencido parlamentarmente; historicamente é ele o vencedor, porque nasceu da propaganda abolicionista, invencível como o Direito.

Os conservadores, no poder, não darão batalha; surpreenderão, apenas, o comboio luminoso da legião abolicionista, e com as suas provisões matarão a fome de glória sem sacrifício.

Desenganem-se os nossos adversários; o tempo da escravidão passou.

É inútil apelar para as coligações de interesse e dar-se ao espetáculo oprobrioso de recorrer até aos estrangeiros, que só visam aos seus lucros, para combater a mais vivaz aspiração da pátria.

O futuro abolicionista está escrito, pela própria fatalidade da evolução social.

Quanto maior for a resistência tanto mais fácil será o triunfo.

O que poderão conseguir no parlamento? Leis compressoras para fazer calar os propagandistas? Essas leis serão impotentes para matar no coração do escravo a sofreguidão de liberdade.

No dia em que se abrir a primeira prisão ou o primeiro túmulo para a propaganda abolicionista, está aberta a fase da luta de força contra força, de violência contra violência.

A boa política, longe de aconselhar a louca intransigência dos nossos adversários, impõe-lhes o dever de mediar por uma honrosa condescendência a negociação que o Ministério 6 de Junho se propôs fazer entre os interesses da civilização e os interesses dos chamados proprietários de escravos.

Os fatos virão dentro em pouco dar-nos inteira razão, a menos que o Brasil não tenha sido condenado a mais lastimosa exceção histórica.

É verdade que o estado atual de nos... (ilegível no original) e de alguns banqueiros estrangeiros de nossa praça, impondo por ameaça o sufrágio à causa dos seus clientes.

Das repartições públicas partem também ameaças de funcionários, que aliás ocupam cargos de confiança.

E os ameaçados se calam ou limitam-se a queixar-se à meia voz, porque não têm confiança na reparação dada pelo civismo e patriotismo brasileiro.

Mas, apesar desses fatos contristadores, nós podemos garantir aos nossos adversários que eles não levarão inteiramente de vencida o país.

As urnas são uma ridícula minoria: a nação está fora delas, fustigada pelo arbítrio, indignada pela incerteza dos seus destinos.

Se amanhã subirem os conservadores, se por um assomo de dignidade quiserem manter os compromissos tomados com o esclavagismo, muitos dos seus aliados de hoje serão inimigos rancorosos amanhã.

Poderão servir aos liberais, que desertaram por interesse das fileiras do seu partido?

Os conservadores que, há longos anos, esperam pelo poder em mãos de seus correligionários, que se sacrificaram por essa esperança, não consentirão no pagamento, e, se ele se der, romperão o pacto.

Esclavagismo não é convicção, é negócio.

O poder para os conservadores negreiros não é vitória de princípios, é letra vencida, que será protestada pelo despeito, se não for paga com todos os juros.

O que será o Governo dos conservadores? Satisfação de dívidas eleitorais e impopularidade.

Mas para que as ordens de pagamento possam circular no mercado eleitoral é indispensável a assinatura do imperador.

Pode o imperador assiná-las? Onde ficará a sua honra?

Sua Majestade quis que se soubesse que ele não pactuava com o esclavagismo, nem de outra forma se explica o decreto de dissolução, dado ao Ministério 6 de Junho, organizado em pleno desbragamento de resistência esclavista.

De duas uma: ou Sua Majestade falou sério -como nós acreditamos; ou Sua Majestade quis iludir-nos.

No primeiro caso, os conservadores no poder terão de lutar contra o soberano, e o terão de tratar como a um vencido; no segundo caso, a questão da abolição se transformará em uma questão de mudança, pelo menos de soberano.

Vêem, pois, os nossos adversários que para vencer a propaganda abolicionista há muito que vencer primeiro.

Antes de chegar à cidadela sagrada do direito humano, que nós representamos, é preciso saltar por cima da resistência do Partido Liberal, por cima da honra do imperador.

Porque é preciso dizer, e repetir até à saciedade: o imperador entrou com tudo quanto dá prestígio ao seu cargo no pleito em favor dos escravos: com a sua magnanimidade em beneficiar os desgraçados, com a distinção àqueles que promovem a libertação, com a livre ação do Poder Moderador, quer nomeando o ministério, quer dissolvendo a Câmara.

Um passo atrás e Sua Majestade estará desonrado.

Nós outros, expatriados desde esse dia, iremos dizer ao mundo que há um país na América, que é governado pela dobrez de César Bórgia, que mata os convidados instados para comparecer às festas da sua própria glória.

Que toda casta esclavagista se congregue e vença.

Com a queda do Gabinete 6 de Junho cairá também a última concessão, que lhe é feita.

O sr. Dantas tem a grandeza de Turgot. Se, como este, sair do poder antes da revolução operar-se de cima para baixo, ai dos que o fizeram sair!

Terão de assistir à revolução de baixo para cima.

20 dez. 1884

Não há como o Partido Conservador para aclarar situações e defini-las nos seus verdadeiros termos.

Sabendo qual a complexidade do problema servil; tendo-o estudado em todas as suas ligações com a vida doméstica e pública da nação, desde a organização da família até a produção da riqueza nacional; os próprios abolicionistas tiveram muitas vezes horas de dúvida, momentos em que interrogaram a consciência, perguntando-lhe se não tinham deixado o sentimento sufocar o raciocínio, e o humanitarismo obscurecer as conveniências pátrias.

O Partido Conservador veio dissipar inteiramente essa dúvida, robustecer a fé em que estamos de que o país nada perde com a transformação radical do trabalho agrícola, pela substituição total e em globo da máquina-escravo pelo trabalhador livre.

E para que a sua decisão fosse tomada na merecida conta, os conservadores escolheram a hora mais solene da vida atual da nação para pronunciá-la.

Superexcitados os ânimos pela emancipação de duas províncias e pela resistência ameaçadora das províncias do sul, o Poder Moderador não só chamou um ministério francamente hostil à escravidão, como infligiu à Câmara temporária a sentença de dissolução. Em seguida apelou para a nação.

Se os conservadores considerassem a escravidão uma necessidade indeclinável, se, como Jefferson Davis, eles pensassem que ela é pedra angular do edifício da nossa nacionalidade; seguramente durante o pleito eleitoral teriam tratado de extremar as suas convicções, de doutrinar os eleitores no sentido de se travar o pleito exclusivamente sob o ponto de vista da questão social.

Mas não aconteceu assim.

Primeiro fizeram falar o sr. barão de Cotegipe e não falar o sr. João Alfredo, isto depois de declarações as mais terminantes do sr. Andrade Figueira.

O sr. Cotegipe disse que o Partido Conservador queria, podia e devia ampliar a lei de 28 de setembro.

O silêncio do sr. João Alfredo, no momento em que todo o país se definia, essa neutralidade sistemática denunciou da parte de S. Ex.ª reserva, que não pode ser considerada como adesão aos conservadores do sr. Paulino de Sousa.

As declarações do sr. Andrade Figueira, que quer restituir os ingênuos aos seus legítimos donos, importam em uma tática de guerra, que tem por fim chamar o inimigo a um ponto, em que a batalha vai ser levada a outro muito diferente.

Em resumo, as diversas declarações e atitudes dos chefes conservadores querem dizer que eles não consideram tão grave como se afigurou ao Poder Moderador a questão servil.

Para esses velhos políticos a questão é mera arma de combate para chegar ao poder.

A ponte para as idéias abolicionistas estando de antemão lançada.

Ainda mais: o dr. Paulino de Sousa, dizem os seus adeptos, tem pronto um projeto, que extingue em cinco anos a escravidão.

Os fatos vêm, pois, demonstrar que para os conservadores a questão abolicionista está por si mesma terminada e que a qualquer governo é lícito dar-lhe o golpe decisivo, sem se importar com o que possam dizer certas classes eleitorais, para as quais eles apelam somente para aumentar votação.

Os abolicionistas devem, guiados por tão conspícuos cidadãos, estabelecer em termos definitivos o problema e não fazer mais nenhuma concessão.

O pleito eleitoral aí está para justificá-lo cabalmente.

Podem objetar que os conservadores apelaram para os esclavagistas e com que estes se ligaram com a mais sincera solidariedade.

A objeção cai por si mesma, atendendo-se a que não houve outro fim senão arrebanhar assim maior número de sufrágios para os candidatos do partido.

Todos sabem que os conservadores não tiveram escrúpulo de aceitar coadjuvação dos estrangeiros, comissários de café, banqueiros e empreiteiros da praça do Rio de Janeiro.

Ninguém dirá por isso que o Partido Conservador quer entregar aos estrangeiros o país e converter de novo o Brasil em colônia.

Batendo às portas dos estrangeiros, o Partido Conservador não visou aproveitar-se da influência poderosa do comércio.

Ele sabe que o comércio no Brasil é propriedade estrangeira e propriedade que nenhum nacional pode tentar compartir, não porque falte ao brasileiro capacidade e aptidão para ele, mas porque o mais vergonhoso pólio lho fechou, fecha e há de fechar, se, por uma inspiração de patriotismo, custe o maior sacrifício, não nos salvar o futuro.

Tirando proveito da lei do recrutamento e da Guarda Nacional, os estrangeiros tiveram tempo de se organizar fortemente, de modo a estabelecer um seguro mútuo que impede qualquer tentativa de brasileiros para tomar conta de um ramo da indústria, que em toda parte do mundo pertence em sua maioria aos nacionais.

As fortunas se revezam, sempre vedadas aos brasileiros, sempre longe da influência nacional.

O patrão casa a filha com o caixeiro de sua nacionalidade, para que a firma e as tradições da casa se conservem.

As casas recentemente criadas facilitam-se todos os meios de prosperidade, ao passo que se negam às casas brasileiras, ainda que pelo trabalho dos seus donos mais se recomendam, os mais simples obséquios.

O comércio constituiu-se uma espécie de realeza de hicsos no Egito, realeza cujo fundador criara, tendo chegado àquela nação trazendo apenas uma das mãos atrás e outra adiante.

No Rio de Janeiro, principalmente, não se pode sequer protestar contra esse poder arbitrário, que não tem por si mais do que a fortuita intervenção do acaso.

Pode-se falar contra o imperador, contra os ministros, contra os magistrados, contra todas as instituições, porém, ai do ousado que se lembrar de insurgir-se contra algum dos maiorais da metrópole comercial e de protestar contra a sua ingerência indébita em negócios que a nossa Constituição lhes proibiu tratar! É homem perdido.

Os pobres jornais fluminenses limitam-se a fazer barretadas aos fidalgos, que cheiram a toucinho, com medo de que os anúncios lhes fujam e as assinaturas escasseiem.

Nós, só porque tomamos a liberdade de dizer estas coisas que estão na consciência de todos os brasileiros dignos, de todos os homens de trabalho, temos realmente medo da mais franca perseguição.

Já das barraquinhas do Clube Ginástico Português foi excluído o nosso nome, e entretanto a imprensa portuguesa, todas as províncias do Brasil repetem.

Os conservadores mais avisados do que nós aproveitam para o pleito o dinheiro dos estrangeiros, fazem com ele obra de corrupção e depois procedem no poder como muito bem lhes parece.

Para adoçar a boca aos aliados, distribuem aqui uns hábitos da Rosa e concorrem para que venham de Portugal algumas comendas da Vila Viçosa.

Nós, com o impacto da mocidade e da dignidade, aceitamos francamente a posição que nos impõe o patriotismo. Os conservadores dissimulam a vergonha de ver o seu país levado à mercê de uma invasão de interesses, e tiram deles o quinhão que lhes convém.

Mas ninguém dirá que eles querem ser dominados pelo estrangeiro e elevar ao trono o primeiro comissário de café audaz que se julgue talhado para trazer coroa diferente da de princês.

O pleito eleitoral trouxe-nos, pois, esta consoladora certeza: a questão abolicionista está definitivamente julgada e ganha.

Não há partido organizado para resistir-lhe. Tudo quanto há contra ela é a aliança dos interessados àqueles que são bastante hábeis, e suficientemente pouco escrupulosos, para aproveitarem-se da boa fé dos aliados.

Podemos, pois, tomar a atitude ainda mais decisiva.

Que os abolicionistas se convençam finalmente de que podem e de que devem fazer.

As urnas acabam de reeleger quase todos os deputados que, na passada legislatura, tomaram lugar em torno da bandeira abolicionista.

Joaquim Nabuco está eleito.

Continuemos com mais fé o trabalho.

Que a assembléia que vai decretar a liberdade funcione em território livre.

A postos e mãos à libertação do Município Neutro.

Não há quem possa vencer a um partido que sabe querer.

As urnas do Município Neutro acabam de decretar a redenção dos cativos; executemos o seu decreto.

10 jan. 1885

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