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A luz triunfa.

Já há no horizonte vermelhidões precursoras do dia de fraternidade, que emancipará o trabalho e a pátria, congraçará os cidadãos pelo mais fecundo dos sentimentos -o de solidariedade.

Em vão os profetas de ruínas pregaram o juízo final da pátria para o dia em que os ecos repetissem, pela vastidão de nosso território, a proclamação criadora da redenção total dos cativos.

A lavoura, a quem se queria catequizar para a religião ensangüentada da destruição da alma de uma raça, religião fatal que exige para o seu culto holocaustos humanos, parecendo a princípio querer prestar-lhe ouvidos, começa a desconfiar dos evangelistas, e a reclamar para si o livre exame das suas necessidades e dos remédios que lhe aproveitem.

A lavoura de Campos se fez o Lutero contra esse catolicismo das catacumbas da civilização econômica, e que, só trazendo ao espírito desconfortos, idéia de morte, tinha como cântico religioso o gemido dos mártires, que o confessavam, e das vítimas que a sua intolerância brutal sacrificava.

Está quebrada a unidade da fé negra. Enquanto uns se abraçam à cruz inquisitorial do trabalho escravo, outros se voltam para essa religião do espírito, em que a razão pontifica, a consciência é altar, e os ensinamentos do século o Evangelho sagrado.

A manifestação da lavoura de Campos há de ser posta à margem pela massa esclavagista, como perigosa heresia.

Os argumentos são felizmente conhecidos; dir-se-á de Campos o mesmo que se diz do Norte: a qualidade da sua lavoura dispensa o braço escravo.

Mas o que fica desde já acentuado é o princípio da indenização da suposta propriedade pela própria renda da propriedade, ou o que é o mesmo, o reconhecimento de que na lavoura, como em qualquer indústria, todo o capital que se indeniza tem em si mesmo o meio de resgatar-se.

Houve, entretanto, quem negasse este princípio comezinho, espécie de conclusão de Calino, e foi contrariando-o e é refutando-o pelo absurdo que se mantém no país um partido esclavagista, com grande prejuízo da honra e da riqueza nacional.

A lavoura campista será incluída na excomunhão geral imposta a todos os que afirmam a possibilidade da transformação do trabalho sem indenização pecuniária do Estado ao senhor de escravo, mas é também incluída na classe dos pensadores sérios, que cuidam mais do dia de amanhã da pátria, que é o patrimônio de muitas gerações, do que dos interesses de hoje que podem ser mal julgados pelos preconceitos e pelas paixões.

O que a lavoura de Campos pede não é o que o país lhe pode dar; sente-se o erro econômico através da boa vontade dos representantes, mas as suas palavras são repassadas de um sabor de patriotismo, que arrebata e inebria.

Prevendo as acusações, que hão de ser feitas aos patrióticos lavradores, pressentimos também a revolução que as suas palavras vão causar no espírito dos seus pares na indústria.

Não tardará muito que os fazendeiros do Brasil compreendam que os seus inimigos não são os abolicionistas, mas os seus supostos advogados.

Haverá ocasião de traçar o paralelo, em pleno calor dos acontecimentos.

E que diferença?

Enquanto os abolicionistas se limitavam pela imprensa e pela tribuna a formar opinião, para dar uma solução legal por meio do parlamento ao problema inflamável da liberdade pessoal; os comissários de café e os seus assalariados políticos aconselhavam aos lavradores que se reunissem em clubes de lavoura, com estatutos secretos, com polícia especial, e aplaudiam a lei das causas perdidas ou das situações desesperadas -a Lei de Lynch.

A conseqüência do emprego desses recursos era revelar nos centros rurais aos escravos o abalo da instituição servil, a fraqueza dos seus mantenedores, o que importava animar a insubordinação, incitar à desordem.

Nas fazendas, os escravos estão hoje convencidos de que tudo depende de um pouco de esforço da parte deles; que podem escrever com as suas próprias mãos sua carta de emancipação.

Os abolicionistas falavam ao espírito e ao coração dos senhores, apelando para a solidariedade na manutenção da honra nacional; os esclavagistas falavam ao escravo, esporeando-lhes o desespero com a alucinação da esperança.

Os abolicionistas advogaram sempre os meios de aumentar o valor da riqueza rural, pela divisão do solo, a imigração, a criação de mercados no interior, a concentração comercial nas regiões agrícolas. Com estas medidas eles concorriam para melhorar as tarifas, pelo aumento da renda das estradas de ferro, e por conseqüência dar maior valor à produção, quer pela abundância de trabalhadores, quer pela economia realizada na diferença dos fretes.

Os esclavagistas procediam de um modo contrário. A pretexto do perigo da instituição servil, perturbaram o trabalho pela negação de crédito aos fazendeiros pela mudança brusca no regime de cobrança, e pela conversão da hipoteca em fábrica de miséria.

Em vez de encorajar, intimidaram, em vez de remediar, agravaram o mal da lavoura.

Protetores não diminuíram o juro, aumentaram-no; em vez de promover a criação de novos produtos, fizeram a convicção de que só o café é que acha comprador e só ele é capaz de indenizar o capital rural.

Tendo preso em suas mãos o fazendeiro, deram maior desenvolvimento à especulação vergonhosa das contas correntes e da falsificação das qualidades do café.

Felizmente o paralelo, que vamos fazer, há de deixar bem claro que tudo quanto pedimos redunda em benefício para a lavoura e tudo quanto os nossos adversários -comissários e políticos, estrangeiros e oligarcas- aconselharam é uma série de males para os fatores da riqueza pública.

A História preparou-se para tomar vingança dos difamadores da pátria.

Um espetáculo curioso está prestes a ser representado. Os procuradores da lavoura estão reunidos em grande número na Câmara temporária e, pelos seus primeiros atos, podemos inferir já que eles dirão -continue-se, quando a lavoura disser, como começou a dizer- acabe-se; que eles aconselharão guerra, quando a lavoura aconselha paz.

Será curioso um país inteiro a condenar uma instituição e alguns negociantes estrangeiros e seus advogados a querer mantê-la.

Esperamos por este momento, para repetir a frase do povo francês aos trintanários parlamentares de Carlos X quando os enxotou da Câmara: para fora, bandidos, este lugar é do povo.

21 fev. 1885

Vai bater a hora soleníssima da abertura da sessão parlamentar, destinada a arquivar a página de maiores esperanças ou de maiores decepções em nossa História.

Apesar do propósito de alguns em nivelar com o passado a missão da legislatura, que começa, o futuro provará que ela não tem nada de comum com essas reuniões sem responsabilidade, que se limitavam às funções de chancelaria do Poder Executivo.

A gravidade da situação presente manda-nos olhar para a Câmara temporária de amanhã, com a visão de Necker diante dos Estados Gerais de 4 de maio de 1789, e dizer como ele que -a assembléia deve pertencer ao presente e ao futuro.

No presente queria o estadista que se meditasse nas relações das finanças, no futuro que os Estados estivessem preparados para o dia em que se tivesse de lançar um olhar de compaixão sobre esse povo desventurado de que se fez um bárbaro objeto de comércio; sobre esses homens, nossos semelhantes pelo pensamento e sobretudo pelo sofrimento, homens, que, entretanto, sem comiseração pelas suas lágrimas, eram amontoados no porão dos navios e levados, a velas cheias, ao encontro das cadeias que os esperavam.

A Câmara deve dar resolutamente costas ao passado, porque lá, como num pesadelo tremendo, em que se vissem esqueletos e demônios tripudiando ao som de uma orquestra de gemidos de moribundos, só há cenas que horrorizam, vergonhas que entibiam.

Olhar para o passado será continuar a servir aos interesses da oligarquia de senhores de escravos, único poder real, que tem tido este país.

Desde o berço da nossa nacionalidade, o fantasma da escravidão nos guarda ominosamente o destino, manchando-nos a história com a sua sombra pavorosa.

Ao lado de Tiradentes, ela inspira-lhe uma baixeza de par com a idéia da emancipação da pátria.

Não é porque a metrópole dificulta o desenvolvimento da nascente nacionalidade brasileira que ela entende que a província de Minas Gerais deve unir-se para reagir contra o domínio português; não, o primeiro mártir da Independência nacional restolha na odiosidade contra a capitação -imposto sobre escravos- a cólera dos senhores e os convida à reação porque a METRÓPOLE VAI DECRETAR QUE NINGUÉM PODE POSSUIR MAIS DE DEZ ESCRAVOS.

A Inconfidência é assim rebaixada a uma infamíssima conspiração de réus de lesa-humanidade contra o Governo, que os ameaçava com obstáculos à perpetração desse crime, em larga escala.

Manchando a primeira revolução emancipadora, a escravidão incumbiu-se de matar a segunda.

A Confederação (sic) de 1817 ameaçou fulminar o monstro, que já havia sido mal ferido pelos golpes dos filantropos estadistas ingleses, pela Convenção Nacional, pelo Congresso de Viena e pela própria legislação portuguesa, quer quando o marquês de Pombal considerava-a grande indecência, que as ditas escravidões inferiam aos vassalos, as confusões e ódios que entre eles causavam e os prejuízos que resultavam ao Estado de ter tantos vassalos lesos, baldados e inúteis, quer quando o alvará de 24 de novembro de 1818 considerava o tráfico um arbítrio, até agora praticado como necessidade da produção.

Tanto bastou para que uma das mais liberais das revoluções humanas fosse sacrificada e que de tanto sacrifício e de tanto heroísmo não nos restasse senão a lembrança indelével da vida branda da jangada do padre Roma, como a via-láctea em que os nossos sonhos de moços idealizam o brilho das constelações do futuro pátrio.

Realizada a nossa Independência, a escravidão não quis deixar de ter o seu quinhão nos meios vis por que a obtivemos.

Por ela os nossos plenipotenciários rojaram-se aos pés da Inglaterra; por ela vimo-nos forçados a comprar a dinheiro a emancipação que já nos havia custado sangue de mártires.

Constituída a nação, ela faz imediatamente dividir a história parlamentar em duas fases, cada qual a mais vergonhosa: -uma que vai de 1821 a 1850 e tem por fim garantir a pirataria; outra que se estende daí aos nossos dias e se compromete a manter a escravatura.

Na primeira fase, a escravidão invoca todos os pretextos, submete-nos a todas as humilhações para subsistir.

Defendendo o tráfico como necessidade indeclinável da agricultura, ela não se vexa de ver o país tratado a abordagens e bombardeios, representado pelos cadáveres de piratas pendurados nas vergas dos cruzeiros.

Chama a essas rudezas da Justiça abusos da força inglesa, e negando ao mesmo tempo os compromissos solenes de 1828, a Convenção de 26, a lei de 1831, como outrora já negara o Tratado de 1810 e os compromissos do Congresso de Viena, as Convenções de 1815 e 1817, só se rendeu quando, por uma lei falaz de repressão do tráfico, houve um governo bastante miserável para se fazer cúmplice do crime de redução de 600.000 homens livres à mais ilegal e à mais monstruosa das escravidões, porque é a escravidão regida pela infamíssima lei de 1835.

Batido e vencido o tráfico, ficava constituída a força que devia manter a escravidão.

De um lado a lavoura, que se empenhara para se prover de braços e só neles tinha a sua riqueza, de outro os políticos que fizeram do tráfico a arma de Governo e se acusavam de partido a partido como assalariados dos piratas. Entre eles como poder, mais forte que ambos, levantava-se o comércio traficante, que, representado por Manuel Pinto da Fonseca, fazia e desfazia situações.

Com tais elementos, que ainda hoje subsistem, tendo apenas Manuel Pinto da Fonseca tomado o nome de Centro da Lavoura e do Comércio, fácil foi continuar a manter a escravidão contra todos os brados do sentimento humano indignado e os ensinamentos mais intuitivos da ciência econômica.

A última palavra dessa torpíssima especulação foi escrita pela lei de 28 de setembro, em que o legislador declara que bastam sete anos para resgatar um escravo, isto é, para indenizar a quantia por ele dada em contrato de serviço, e, não obstante, em nome dessa mesma lei, quatorze anos depois de sua decretação, há um partido que ousa chamar anarquistas aos que pedem a libertação dos escravos, e pede em nome dessa lei que não se adiante um passo mais no caminho da emancipação.

A morte é o único legislador que se admite, como capaz de resolver o problema.

Tal é a instituição e tais são os homens que a Câmara, como tribunal da nação, tem de julgar.

Oxalá que ela se inspire nas lições dos outros povos e se decida a medir a pátria pelas gerações vindouras e não pela estatura de alguns homens, que não bastam nem para aferir o comum da espécie humana.

7 mar. 1885

Ainda que, em consciência, não nos julguemos já obrigados a dar explicações do nosso procedimento, nem a revelar as nossas determinações aos adversários da extinção do elemento servil, queremos levar a extremo a nossa longanimidade e mais uma vez proceder com a lealdade, que foi e é a nossa maior força na propaganda sacrossanta da igualdade humana, civil e economicamente.

A nossa obra está à vista de todos, só os cegos não a querem ver.

O sr. senador Afonso Celso a descreveu assim, na sessão do Senado, ontem:

-«O status quo não pode manter-se; ninguém se iluda. Quaisquer que fossem as causas determinantes desse fato, a propaganda libertadora desenvolveu-se, ganhou terreno, e hoje impõe-se a todos os espíritos. Agora só resta encaminhá-la, dirigi-la de modo a atenuar os sacrifícios dos interesses, que ela combate, e impedir que se desvaire.

Ela chegou a todos os recantos do país; ecoa por toda a parte, e convém não esquecer que ainda nos estabelecimentos onde a disciplina mais severa segrega a escravatura de qualquer contato estranho, -a esperança da liberdade anima, conforta e contém os que estão cativos.

Como isso aconteceu, como foi levada e repercutiu em todos os centros a idéia de emancipação, quem saberá dizê-lo? Também, às vezes, a ventania transporta para o fundo do deserto a semente fecunda de outras regiões que aí brota e floresce!

O fato inegável é esse: hoje não há ponto nenhum do Império onde não se pense e não se discuta a questão da emancipação; onde essa idéia não fomente alegrias, ou desperte receios.»

A primeira vitória está, portanto, ganha; a segunda ninguém no-la pode disputar.

A mesma resistência ao Direito, a mesma obstinação em desconhecer a Justiça, os dous melhores instrumentos da propaganda abolicionista, nos hão de dar o triunfo completo.

Contra a vontade dos Governos e do parlamento, da magistratura e da polícia, realizamos a grande odisséia da consciência nacional; contra eles e apesar deles havemos de chegar ao termo das nossas aspirações, o mais tardar no prazo fatal que marcamos: 1889.

O Direito não precisa de outra força além do consenso universal. A oposição dos interesses de castas coligadas nada pode contra ele. Dique impotente, serve apenas para converter o rio em inundação.

As ilusões restolhadas no passado, as tradições do predomínio oligárquico em toda a nossa história acalentam, é certo, em espíritos mal preparados, a esperança de que é possível ainda fazer parar a propaganda e nivelá-la com os interesses dos partidos.

Em 1823 a lei de 20 de outubro mandava aos presidentes de província, com os conselhos provinciais, propor árbitros, para facilitar a lenta emancipação dos escravos.

Ditada pela Constituinte, esta lei ficou, entretanto, letra morta, porque a Constituição outorgada suprimiu criminosamente o compromisso nacional.

Em 1831 decretou-se a 7 de novembro a proibição do tráfico de africanos e entretanto, em 1837, havia bastante impudor para se formular, no Senado, um projeto mandando anistiar os réus de pirataria e a anistia que a lei não concedeu tornou-se desde logo fato.

Estas duas recordações devem, de certo, dar aos advogados da escravidão uma noção falsa a respeito da atual propaganda abolicionista, tanto mais eles resistem dispondo dos mesmos elementos de força com que se aguerriam outrora.

Mas, para desfazer-lhes o engano, basta uma consideração.

A lei de 28 de setembro, à parte todos os seus erros, realizou um grande benefício: vacinou a escravidão com a liberdade.

A vacina chama-se ingênuo.

Dentro em quatro anos, o ingênuo de 1871 será um adolescente válido, braço forte para lutar, com espírito capaz de raciocinar, consciência preparada para decidir.

As leis naturais, essas que zombam dos códigos tacanhos, das instituições políticas infames, viveram sempre e viverão até lá.

Essas leis ensinarão ao ingênuo que o dever do filho é reagir contra tudo que avilta os pais, contra as injustiças que os torturam, contra as lesões feitas aos seus direitos.

Ora, a estatística apresenta centenares de ingênuos, o que equivale a dizer em quatro anos a propaganda abolicionista deve ter recrutado, só nos domínios da lei de 28 de setembro, um exército formidável para ditar a lei da libertação total dos escravos no Brasil.

Daqui não há fugir.

A lei de 28 de setembro foi uma das santas emboscadas da liberdade.

Sabe-se que o visconde do Rio Branco pretendeu tomar medidas bem diversas das que a resistência escravista lhe impôs.

Quis organizar e entretanto constrangeram-no a formular essa lei anárquica, que preparou no próprio ventre da escravidão a sagrada conspiração abolicionista.

O sr. senador Afonso Celso é vítima da mesma pressão moral.

S. Ex.ª proclamando o direito de propriedade sobre o homem, direito que não tem outro fundamento senão o interesse do senhor, prega a anarquia em nome da lei.

Quiséramos que S. Ex.ª nos dissesse onde está a lei que estabelece a escravidão atual.

O que há na origem é o resgate. O trabalho do catecúmeno indenizando o sacrifício do cristão, que foi disputá-lo à morte para a vida da fé católica.

Desde que esta relação social degenerou em cativeiro, a igreja a condenou imediatamente e atenta à origem da instituição que se ia criar, só a igreja era poder competente.

Vencido o direito pelo interesse dos estados, decretado o tráfico, a legislação portuguesa falando pela voz do marquês de Pombal, ou pela de d. João VI, declara terminantemente que não há direito real do senhor sobre o escravo, que o tráfico é um arbítrio.

A escravidão é uma espécie de milícia desventurada, criada pela política colonial, para a guerra da agricultura e de todas as outras indústrias contra a natureza selvagem.

A revolução econômica operada pelos descobrimentos aconselhou, é certo, os revolucionários ao confisco da liberdade dos povos selvagens e bárbaros, mas nem por isso a civilização humana, único tribunal competente, legitimou o ato.

O sr. Afonso Celso não quererá por certo dar como base sólida de Direito uma legislação em conflito, denunciada através da nossa história parlamentar como o fruto da venalidade dos legisladores, uma legislação que tem como berço opiniões como estas.

Diz Eusébio de Queirós:

«Sejamos francos, o tráfico no Brasil prendia-se a interesses, ou, para melhor dizer, a presumidos interesses dos nossos agricultores; e num país em que a agricultura tem tamanha força, era natural que a opinião pública se manifestasse em favor do tráfico.

O que há, pois, para admirar em que os nossos homens políticos se curvassem a essa lei de necessidade!»


Assim, pois, depois de compromissos tomados com a Inglaterra no momento em que se reconhecia a nossa Independência, depois da convenção de 26, depois da lei de 1831, os homens públicos submetiam-se à opinião pública, formada pelos supostos interesses dos agricultores, e esta lei da necessidade dos partidos legitima e legaliza um crime!

E, prosseguindo, Eusébio de Queirós não apela para nenhuma lei, que se pusesse ao menos em conflito com as leis que condenavam o tráfico, limita-se a justificar o atentado pela unidade de conduta dos partidos no Governo.

Sousa Franco denuncia nos mesmos termos a legalidade da escravidão, chamando o tráfico ato de conivência dos governos com os traficantes.

Quando se recorre aos anais vê-se que, para conservar o tráfico, lançou-se mão de uma suscetibilidade nacional com relação ao cruzeiro inglês, e foi explorando um falso sentimento de patriotismo que se conseguiu legalizar aquilo mesmo que a lei condenou.

Se não fosse demasiado pretensioso no Brasil emprazar homens de posição oficial a aceitar debate com quem a não tem, provocaríamos os defensores da legalidade para uma discussão larga e desapaixonada diante da história parlamentar e da imprensa.

Não temos receio de ser vencidos. Nenhuma lei pode ser invocada para sustentar a escravidão. Basta o confronto da importação de africanos com a emancipação destes, para demonstrar que a escravidão no Brasil é um roubo.

Lamentamos profunda e sinceramente que o sr. senador Afonso Celso, cabeça cientificamente organizada, deixando-se dominar por um preconceito político, se aferre à idéia da indenização.

Indenizar o que, com que e para quê? Só se indeniza o que é propriedade legal e o escravo é uma espoliação praticada por algumas castas contra o Estado.

Mas, dada a hipótese de que essa propriedade exista, com que recurso havíamos de indenizar os senhores?

Resta-nos também saber para que se daria tal indenização, quando ela não pode corresponder sequer à quarta parte do valor de cada escravo indenizado?

Indenizar é iludir, já o demonstramos; porém, voltaremos sobre o assunto, uma vez que não conseguimos ainda fazer sentir aos políticos o gravíssimo erro, que vão mais uma vez cometer, principalmente ao persistir no fatalíssimo sistema da lei de 28 de setembro.

O patriotismo aconselhou ao sr. Afonso Celso uma declaração digna de seu merecimento: é que está pronto a votar pelo projeto do Governo, porque vê nele um meio de remediar os males do presente.

Pois bem, em nome desse mesmo patriotismo pedimos ao sr. Afonso Celso que se encarregue de estudar, fora dos interesses do partido, a questão servil.

Estamos certos de que S. Ex.ª chegará conosco a esta conclusão; tu do quanto há a fazer é fazer com que a agricultura nacional entre no regime geral da indústria.

Nada de leis de exceção.

O país deve à lavoura proteção, mas esta não pode ser dada a preço da liberdade de mais de um milhão de indivíduos e dos interesses da riqueza pública.

Sobretudo, o sr. Afonso Celso, como estadista, deve saber medir o tempo, e não há dúvida de que a solução do problema servil tem atualmente prazo fixo.

Fazer leis que tenham de ser rasgadas pela fatalidade da evolução é um trabalho inglório.

O grande congresso nacional dos filhos da mulher escrava está convocado.

Não queira o sr. Afonso Celso contribuir para que ele decrete leis cruéis.

O parlamento pode hoje mandar pagar o fazendeiro, a civilização considerará esse dinheiro um empréstimo, que ela cobrará executivamente em 1889, época em que a escravidão será, queiram ou não queiram, abolida.

Que o parlamento coopere com a lavoura para garantir os capitais, como a propaganda cooperou com a escravidão para garantir-lhe a redenção.

21 mar. 1885

É para impressionar profundamente a moderação que têm tido, estes últimos dias, os conservadores.

Este procedimento destoa tanto do que eles tiveram no começo da sessão, que necessariamente corresponde a algum plano secreto, e quem sabe se conchavo nas trevas, para empolgar de improviso o poder e mais uma vez ensangüentar o país com alguma das suas costumadas reações monstruosas.

Todos os que estudam a história parlamentar deste país sabem que o Partido Conservador chamou a si a resolução do problema servil.

A história desse partido é a história da escravidão, a partir de 1831.

Foi ele quem escandalosa e criminosamente protegeu o tráfico, já proibido; foi ele quem não tendo conseguido anistia de direito concedeu-a de fato aos réus de pirataria, aos traficantes apontados pela imprensa e pelas reclamações da Inglaterra; é ele, finalmente, quem pela voz dos srs. Paulino de Sousa e João Alfredo ainda ousa vir falar em propriedade legal, depois do Projeto 133 do Senado, em 1837, e das vergonhosas revelações de todos os Governos e dos parlamentares brasileiros, com relação aos abusos flagrantes, à violação proposital da lei, que fechou os nossos portos à introdução de africanos.

Está na memória pública a atitude dos sustentadores da propriedade escrava, durante as discussões da lei de 28 de setembro de 1871.

Essa atitude, em tudo igual à que tiveram o sr. Vanderlei, hoje barão de Cotegipe o sr. Pereira da Silva e seus correligionários na ocasião em que Silva Guimarães apresentou o seu projeto emancipador e pretendeu justificá-lo, não se conforma com o meio desprendimento que se nota na pujante e numerosa falange negra, disciplinada na Câmara pelo sr. Andrade Figueira.

Essa tolerância relativa faz até acreditar aos que julgam de leve haver da parte dos abolicionistas falta de tática política em não ir ao encontro dos chefes conservadores, para testemunhar-lhes a esperança de que, não tendo compromissos políticos, estão prontos a con... (ilegível) deles como de qualquer outro, a sorte da propaganda e das medidas de extinção do elemento servil.

A nossa justificação é fácil.

Os conservadores insistem no direito de propriedade escrava, sem levar em linha de conta as decisões do direito das gentes, a história da escravidão no país e as próprias declarações de seus chefes.

Em sessão de 1º de setembro de 1854, na Câmara dos Deputados, sustentando o seu projeto acerca de transporte de escravos, disse o atual sr. barão de Cotegipe:

«Ora, senhores, se isso dá-se na propriedade considerada em geral, o que acontecerá quando se tratar de uma propriedade que funda-se no abuso? (Apoiados.) A sociedade não terá o direito de limitar esse abuso, de fazer com que ele seja menos prejudicial à mesma sociedade? (Apoiados.) Se nós entendêssemos que devíamos acabar a escravatura entre nós, haveria alguém que se nos viesse opor e a quisesse perpetuar, porque assim feriríamos o direito de propriedade? (Muitos apoiados. Prosseguem os apartes.) Como, pois, entende-se que é inconstitucional fazer-se cessar o comércio de escravos de província a província? (Apartes.)

Posso usar e abusar da minha propriedade, é uma conseqüência dela -diz-me o ilustre deputado por Mato Grosso.

O sr. VIRIATO: -Apoiado.

O sr. VANDERLEI: -Podeis abusar, sim, da vossa propriedade em geral; mas, da propriedade sobre o homem não podeis abusar (muitos apoiados) se entenderdes que podeis abusar até o ponto de destruí-la, esse abuso poder-vos-á levar até a forca.»


Tal era o modo de pensar do sr. barão de Cotegipe, há trinta anos!

S. Ex.ª declarou terminantemente que essa propriedade infamante vinha do abuso e, no entanto, hoje, consente em que os seus correligionários a proclamem legal! E para não deixar dúvida sobre a sua convicção de que a escravidão é o abuso, palavra em que dissimulou uma outra -um crime, diz ainda S. Ex.ª com relação ao tráfico de escravos do Norte:

Não é tudo, senhores, já como conseqüência vai aparecendo no Norte uma outra especulação, que é a de reduzir à escravidão pessoa livre...

«O sr. AGUIAR: -Apoiado; isto é que é lamentável.

O sr. VANDERLEI: -Homens a quem estão confiados desgraçados meninos de cor parda e preta têm-nos vendido; outros empregam violência para roubar crianças e vendê-las! Fatos destes têm sucedido mesmo na minha província.

O sr. SILVEIRA DA MOTA: -Em praça pública faz-se isto em toda parte.

O sr. VANDERLEI: -O quê? Reduzir à escravidão pessoa livre? Pode-se considerar sem alcance moral o projeto que tende a acabar com semelhante imoralidade?

O sr. SILVEIRA DA MOTA: -Não acaba tal, há de haver sempre leilão de escravos.

O sr. VANDERLEI: -O ilustre deputado não atendeu: estou dizendo que essa indústria, essa nova especulação, essa nova traficância de carne humana (apoiados) que anda explorando todas as vilas, todo o centro das províncias para comprar homens e transportá-los para os novos valongos da corte, tem trazido mais uma outra imoralidade que é a tendência de reduzir à escravidão pessoas livres.»


Assim, pois, essa propriedade legal não proveio só dos antigos Valongos, apenas desconhecidos pelo dr. Paulino de Sousa, pai; proveio de novos Valongos criados para mercado de crianças livres roubadas a pais brasileiros!

Legalidade passa a ser em nossa legislação sinônimo de imoralidade triunfante, de pirataria impune. O parlamento que a reconhece, que a decreta, não sai do art. 13 da Constituição mas do art. 179 do Código Criminal.

Entretanto, é a esse direito de propriedade que se apegam os correligionários do ilustre estadista brasileiro, que por sua vez consente que os deputados, que dependem imediatamente da sua influência provincial, votem e discutam, sob a direção do sr. Andrade Figueira, que legaliza a pirataria até nas águas lustrais do batismo.

Para apoiar a opinião do sr. barão de Cotegipe, quanto à legalidade da escravidão, quantas outras no seu partido, sobrelevando-as principalmente a de Eusébio de Queirós, que mais de perto estudou a história da traficância de carne humana!

O marquês de S. Vicente, o benemérito abolicionista, sobre cujo túmulo têm sido regateadas as coroas que lhe devem os correligionários, como justa homenagem à sua memória, entendia deste modo a propriedade escrava, sob o ponto de vista da sua legalidade.

«Em matéria de propriedade puramente legal, em matéria de instituição excepcional vigora o princípio que -quem adquire tal gênero de propriedade, quem entende tirar proveito da exceção, o faz a seu risco e perigo, por isso que sabe que tal estado de cousas deve ser abolido algum dia. Demais é princípio que quem coloca assim sua fortuna entende achar nos benefícios de tal emprego a compensação das eventualidades a que se expõe, a amortização do capital arriscado. O princípio contrário obrigaria o Estado a indenizar a abolição de todo e qualquer privilégio.»


Esta opinião da comissão francesa por ele perfilhada, sustentou-a brilhantemente, para apoiar o mesmo sr. João Alfredo que, hoje, seria capaz de fazer oposição ao imortal jurisconsulto brasileiro.

Posta nestes termos a questão da legalidade da escravidão, não se pode admitir boa-fé da parte dos seus sustentadores e não se compreende a pertinácia na sustentação comparada à atitude descomunalmente moderada dos conservadores.

Haverá na nossa história parlamentar algum fato semelhante?

Felizmente.

Em 1848, o Partido Liberal iniciou a discussão da lei para reprimir o tráfico.

Dispensamo-nos dos qualificativos que convêm ao modo como procedeu, porque é sabido que os liberais no Governo são de uma contradição dolorosa com as suas teorias.

O Ministério exumou timidamente dos arquivos da Câmara o cadáver moral da legislação brasileira, conhecido pelo nome de projeto nº 133, de 1837, do Senado, e pretendeu galvanizá-lo pela discussão.

Parecia que o Partido Conservador estava deliberado a sustentar o Gabinete nesta iniciativa.

Pois bem, de súbito, apareceram complicações, dentro e fora do parlamento.

Os dias 6,7 e 8 de setembro de 1848 assinalaram-se por distúrbios, sendo o gabinete acusado de conivência com os desordeiros.

O elemento português foi explorado habilmente contra o Governo, do mesmo modo que presentemente o exploram para formar caixas eleitorais.

Finalmente, em 29 de setembro, subiu o ministério miguelista, como o apelidaram, isto dois dias depois da sessão secreta, em que se discutiu e se rejeitou o ignominioso art. 13, que anistiava os piratas.

A tramóia de então foi organizada de modo tão precipitado, que nem se pôde guardar a tal ou qual compostura histórica da aliança velha dos conservadores com os traficantes de escravos.

Nunes Machado assim a denunciava: «Se não conseguimos discutir às claras a lei dos caixeiros nacionais e comércio a retalho, como discutiremos esta que ainda é mais importante?»

Repetimos: a atitude dos conservadores é para inspirar receio. Depois do debate abolicionista de 1848, seguiu-se a reação a mais desenfreada.

A situação miguelista, que principiou por um ministério que nem se apresentou à Câmara dos Deputados, acabou pelo derramamento de sangue em Pernambuco; pelos tremendos dias de terror, que se seguiram ao novo triunfo esmagador da facção áulica.

Preparemo-nos, pois.

Os abolicionistas não devem consentir em que mais uma vez se iluda a nação.

O que os conservadores querem é a perpetuidade da pirataria.

O poder para adiar a solução de problema servil é o agravamento da nossa situação precária, que, empobrecendo cada vez mais a nação, arrasta a agricultura a uma crise fatal.

Dentro da lei 28 de setembro só há o ingênuo, o fundo de emancipação e a morte.

O ingênuo foi perfeitamente definido pelo visconde de Itaboraí nestes termos:

«Mas, é com efeito possível que os ingênuos possam ser constrangidos a servir do mesmo modo que os escravos? Senhores, não concebo que se possa obrigar um homem a trabalhar para outro senão por duas maneiras: ou pagando-se-lhe uma remuneração do serviço que presta, ou mantendo-o na escravidão. Se declarais livre um indivíduo, se ele tem consciência de que é livre, como podeis obrigá-lo a trabalhar para outrem, a não mudar de um para outro amo, a não deslocar-se do estabelecimento em que nasceu? Não acredito que possais realizar esse intento.

Agravaríeis assim a condição da escravidão, declarareis livre um homem, mas a liberdade seria uma ilusão, a realidade seria o cativeiro! Esse homem que declarais livre, mas que constantemente sente que na realidade é escravo, terá de sofrer, além dos efeitos da escravidão, os da luta contínua que se há de travar em seu coração, entre a consciência de que é livre e a realidade do cativeiro.

Esta luta é um novo tormento que ides criar para os vossos ingênuos; embora digais que eles ficam sujeitos às mesmas condições de escravos, nem por isso haveis de conseguir que eles queiram de boa vontade trabalhar para os senhores de suas mães. (Apoiados.)

O escravo até hoje, sr. presidente, acreditava que nasceu para servir a seu senhor; sem aspiração à liberdade, resignava-se à sua condição; seus filhos nascerão livres, terão consciência de que o são; não poderão, pois, amoldar-se a servir ao senhor de sua mãe; não haverá força que os obrigue a trabalhar por conta alheia, sem receber a menor remuneração. Vós não podeis obrigá-los a viver nas mesmas condições que os escravos; será isto motivo de contínuas agitações, de contínuos perigos, de contínuas tramas entre eles e os escravos, para se libertarem da escravidão.»


Eis o que é o ingênuo, na autorizada opinião de um dos papas do esclavagismo.

Quanto ao fundo de emancipação, todos sabem que é ele uma espécie de morte de estóico; sangria em banho morno a esgotar lentamente e sem dor a vida do suicida.

Apelar para o fundo de emancipação é o mesmo que recorrer ao deserto para manter a produção.

Quanto à morte, ela só tem uma vantagem, a de ser parlamentarmente invocada como solução de um problema que é a honra de uma nação.

Preparemo-nos, pois, com os olhos fitos na história do país.

Se os conservadores têm, como em 1848, quem os apóie para levar a efeito uma conspiração antipatriótica, fiquem desde já sabendo, eles e seus auxiliares, que hão de pelo menos ter mais uma vez o trabalho de fazer de cadáveres de brasileiros, que valem mais que eles, a escada ensangüentada do poder.

28 mar. 1885

Enquanto, no Senado, a alma nacional se expandia na sua eterna poesia e intrepidez cívica, tomando o som das vozes de José Bonifácio e Silveira Martins; o Partido Conservador na Câmara temporária procurava rebaixar a instituição parlamentar, convertendo-a em praia deserta, onde se refugiam piratas acossados.

Por maior que seja o nosso empenho em conservar a calma do vencedor, é impossível consentir por mais tempo na desmoralização sistemática da maior das nossas instituições, porque é ela a melhor das afirmações da vitória da democracia universal; o ramo parlamentar de livre escolha do povo.

Os conservadores acostumaram-se a desdenhar da força da opinião, porque há 62 anos a trazem presa ao leito de Procusto da oligarquia e da escravidão.

Como os velhos fidalgos corruptos da França, que foram acordados pelo carrasco, porque faziam ouvidos moucos ao estrondear da revolução nas assembléias do povo; os fidalgos, enobrecidos pelo dinheiro do tráfico humano ensurdecem também aos avisos reiterados da imprensa e da tribuna popular e querem ser arrastados pela torrente impetuosa da fatalidade histórica, que, finalmente, rompeu a represa feita com as ossadas de muitas gerações escravas.

Dói-nos profundamente antever as conseqüências da nova fase, que vai atravessar a solução do problema servil.

Temos procurado por todos os meios dar arras do nosso patriotismo, os demorados e dolorosos dias da propaganda abolicionista.

Vencendo todas as resistências do poder, havíamos conseguido agitar a consciência nacional até as suas últimas profundezas, abalar até os seus fundamentos o velho edifício da escravidão.

Ao mesmo tempo que provocávamos no espírito público um fenômeno de luz, semelhante a uma chuva de meteoros, o das emancipações por todos os motivos, junto aos berços, como junto aos túmulos, por que se engrinaldavam noivas, ou se quebravam tálamos conjugais; emancipações que se foram grupando, como estrelas em constelações, como constelações em nebulosas, e formaram as fazendas, os municípios, as províncias livres; ao mesmo tempo, dissemos, provocávamos a baixa do preço do homem-cousa em todos os mercados, trancávamos os portos de exportação e importação; levávamos o terror aos proprietários de almas alheias, e provocávamos essa organização miseranda do pânico, feita com o rebutalho da nossa e das nações estrangeiras, conhecida pelo nome de clubes de lavoura.

A onda da abolição crescia diluvialmente, ameaçando tudo, prestes a engolir a senzala e o trono.

Pintamo-la já uma vez com a majestade do estilo de Edgard Quinet, no seu Ashaverus, arfando pesadamente, a balouçar cadáveres e a abater com eles a porta do último refúgio do rei, que a pretende acalmar, com os despejos de sua grandeza e que a vê subir zombeteiramente, sorrindo ao desfazer-se da espuma, até que o devora silenciosa e lentamente como incomensurável boa esfaimada.

E dizíamos verdade, porque citávamos os fatos.

As expulsões de magistrados, às prisões de abolicionistas, às execuções de Lynch respondiam as províncias organizando clubes de propaganda abolicionista, que se avolumavam miraculosamente.

Em poucos anos, moços desconhecidos viam os seus nomes cobertos de louros e de lama em toda a extensão do país.

É que no meio do tumultuário combate, amigos e inimigos sabiam a quem deviam obedecer e atacar. Os chefes deste vertiginoso movimento, como os chefes gauleses, eram eleitos pelo sufrágio espontâneo dos companheiros no campo do combate.

Pois bem, quando a vaidade ou a presunção nos podia cegar, quando poderíamos, ao menos como Tibério Graco, ser acusados de ter levado inconscientemente a mão à cabeça, retiramo-nos, sem discutir, da alta posição conquistada pelo nosso esforço e pelo nosso sacrifício, e demos o lugar ao Governo, que se propunha a fazer pelo debate do parlamento o que nós fazíamos pelas expansões do coração.

Desde este dia, todo o nosso empenho foi arrefecer o ardor natural dos nossos companheiros, porque preferíamos a glória de vencer por nossas mãos à de aplaudir aqueles que iam fazer florescer os nossos sacrifícios.

Dez meses são passados. Durante eles temos tido, em vez de apreço, injustiça.

Os conservadores, que nada fazem sem o imperador, que são um produto da instituição anômala, que desequilibra a política sul-americana, disseram que a propaganda abolicionista era obra do seu amo.

Tristíssimo espetáculo o do presente: uma rebelião de lacaios atacando o amo com os ossos do banquete.

Está na consciência deles que o imperador é a única pessoa viva neste país, vasto cemitério formado pela epidemia da escravidão.

Vencer o imperador, pensam eles, é vencer a abolição.

E organizaram-se para o combate.

Quem estuda os anais do parlamento encontra nas suas páginas contínuas recriminações dos partidos, a respeito da conivência com os traficantes de homens.

Nenhum se julga com força para atirar ao outro a primeira pedra, tanto lhes remorde a certeza do adultério com a pirataria.

Nada mais natural do que, ainda no momento em que o Partido Liberal quer lavar-se nas águas lustrais da redenção, desertar das suas fileiras um grupo para o esclavagismo.

É com esse grupo que os conservadores contam. E ele o contingente para a linha negra do acampamento.

Está a seu cargo derribar o Ministério 6 de Junho.

Mas a vida deste Ministério já custou uma dissolução.

Eis a suprema dificuldade para o imperador.

Abandonar o Ministério na derrota, é sacrificar em parte a autonomia do Poder Moderador, porque o ministério cai pela idéia que o imperador julgou bastante forte para justificar a condenação da legislatura passada.

Conservá-lo, e dissolver de novo a Câmara, é comparecer diante dos mesmos elementos eleitorais, do mesmo tribunal que preferiu a anarquia atual à regularização dos movimentos legais para decretação de uma medida universalmente reclamada.

Que fará o imperador?

Mudará o ministério, mudará a situação? Conservar-se-á rei de escravos ou preferirá ser cidadão com as suas idéias?

Sacrificará o trono ou a humanidade? Preferirá as homenagens dos trintanários do poder, ou as bênçãos de mais de um milhão de desgraçados, entremeadas pelos aplausos do mundo civilizado?

Terá forças para tirar as conseqüências lógicas do seu ato de dissolução, contraposto ao da resistência da nova Câmara?

Que enxurro de miséria vem do encanamento negro da escravidão!

Essa dissidência que vai derrotar o Ministério Dantas apoiará um novo ministério com as mesmas idéias?

O imperador que apoiou o sr. Dantas, negando indenização pelos negros de 60 anos, se prestará também a apoiar a política da indenização?

Que papel ficará fazendo este país, se consentir em qualquer das duas hipóteses?

Não reconhecerá ele finalmente que tem sido governado por uma facção, assalariada pelo Tesouro e decidida a tudo empenhar para garantir o salário?

Deixamos aí de pé esta série de interrogações.

A lógica da História faz destas emboscadas.

Quem transigir com a pirataria aí está a conseqüência.

O direito natural diz: ninguém pode reduzir a cousa pessoa humana.

A religião diz: é inviolável na sua liberdade a imagem de Deus sobre a Terra.

A lei diz: eu tranquei os mares d'Africa pela convenção de 26 e pela lei de 31 e vi-me obrigada a fazer novas leis em 1850 e 1854 para reprimir o que eu havia proibido.

A estatística diz: eu vi entrar 536.000 homens neste país e sei que eles foram reduzidos à escravidão, de 1830 a 1856, porque destes só consegui libertar 1.027, em 1864.

E acrescenta: sei que eles são a fonte da escravidão atual, porque até 1827 não se tratava da criação de crioulos.

A conseqüência de todas estas declarações era uma lei com um só artigo:

Fica abolida, nesta data, a escravidão no Brasil.

Por eqüidade se poderia, quando muito, proceder como se procedeu com a emancipação dos africanos livres, marcar um prazo para a organização da economia rural.

Mas não.

O imperador quis aceitar a cumplicidade dos governos coniventes com a pirataria.

Pede os moribundos para a liberdade e deixa os válidos para a escravidão.

A conseqüência é a desordem governamental que aí lavra e contra a qual o remédio não pode deixar de ser a humilhação de Sua Majestade.

Quanto a nós, que não fomos pedir no paço de Sua Majestade a senha e o santo da abolição, continuaremos no nosso caminho.

Sem poder contar com o patriotismo do parlamento, apelamos para o direito natural e para a lei, que fulminou a pirataria.

Procederemos de hoje em diante em nome de Deus e da lei de 1831.

Fecham-nos as portas do parlamento; abrimos a da História.

O dia das exéquias do Gabinete 6 de Junho é o da hégira da propaganda abolicionista.

11 abr. 1885

O sr. Afonso Pena deve estar muito contente com a sua sorte.

Depois da sua ascensão ao poder, depois que empunhou a espada com que pretende pertransir a hidra do abolicionismo, o júri já absolveu uma turma de linchadores, as cadeias já se abriram para encarcerar vários abolicionistas e o povos rurais já se têm manifestado em sua província, quer felicitando ao gabinete, quer esquartejando pretos rebeldes e espancando barbaramente estrangeiros humanitários.

Não pode ser mais róseo o horizonte do esclavagismo. A vermelhidão do assassinato a foiçadas e facadas pinta a desejada aurora da glória do ministério.

O carrasco Simão, vendo sangrar a face de Maria Antonieta, não teve com certeza maior prazer do que o sr. Afonso Pena diante dos fatos do Rio Bonito, Campos e Mar de Espanha, bofetada tremenda dada na face da propaganda abolicionista.

Para que o prazer seja completo, S. Ex.ª acaba de autorizar a criação da polícia noturna, com o direito de armar-se, o que equivale e dar ao sr. Ramalho Ortigão meios para trazer sob sua guarda a vida dos abolicionistas e dos brasileiros audazes que não reconhecem a sua realeza.

Dentro em pouco principiarão os linchamentos na própria capital do Império, com autorização tácita do Governo.

Era de presumir o que se está passando.

Edgard Poe, em um dos seus contos sedutores, descreveu perfeitamente o caráter dos anões, e desenhou com uma segurança admirável a ferocidade dos seus sentimentos de vingança.

É o caso que um anão ofendido planeja vingar-se do rei, em cuja corte fazia o papel de bobo.

Ora, certo dia o rei desfeiteou-o, batendo na anãzinha, que ele -o anão- amava.

Aproximando-se o carnaval, o rei, que costumava pedir aos membros da sua corte os figurinos das fantasias, preferiu o que lhe apresentou o anão: um vestuário imitando o orangotango.

Chegada a noite do carnaval, o rei prontificou-se a vestir a roupa extravagante, feita de pano pintado de alcatrão e induzido em aguarrás.

À meia-noite, em ponto, Sua Majestade se exibiria, com os maiorais da corte, todos vestidos do mesmo modo.

Do grande salão de baile foi retirado o lustre central, ficando em seu lugar uma forte haste de ferro, pela qual o rei e a sua comitiva de orangos deviam marinhar, enquanto embaixo o anão, com uma esponja embebida em espírito de vinho inflamado, fingiria querer queimá-los.

A haste férrea distava do assoalho de uma altura imensa, de modo que uma queda atordoaria.

Para chegar até a haste, o rei e os seus companheiros servir-se-iam de uma escada.

À hora aprazada, o grupo dos orangos irrompeu no grande salão do baile, enchendo-o de uma confusão jovial e no meio dela trepou pela escada, fazendo momos e trejeitos simianos; e marinhou a haste, acompanhado pelas gargalhadas dos convidados da festa.

O anão fez retirar a escada e começou logo a sorte da esponja inflamada. Os orangos se aconchegavam, gritavam, assobiavam, coçavam-se, provocando hilaridade geral.

Mas, de súbito, a alegria estancou. Um espetáculo horrível se desdobrou diante da multidão tomada de pânico. A chama da esponja inflamada comunicou-se às roupas dos foliões, e, como por encanto, os envolveu em uma túnica de chamas.

Os desgraçados despenharam-se, dando gritos lancinantes e batendo em cheio no assoalho, estorciam-se, enquanto a sala se esvaziava tumultuariamente.

No dia seguinte, o grande palácio se tinha convertido, parte em um feixe de labaredas, parte em vasto brasido e cinzeiro.

O imperador esqueceu-se de que, em hora de mau humor, esbofeou a pirataria, a esposa política do sr. Afonso Pena, o rancoroso anão da sua corte.

No entanto, Sua Majestade lembrou-se de confiar a S. Ex.ª o figurino das fantasias do último carnaval político do seu reinado.

A vestimenta à orangotango já está cortada; o pano é também inflamável como o do conto de Edgard Poe.

O alcatrão do tráfico escorre de todos os artigos do Projeto 12 de Maio, a terebintina fatal está na disposição monstruosa que extingue o arbitramento, aumenta ao esclavagismo as regalias que lhe dão o código e a lei de 1835.

O pano é tecido com as idéias retrógradas com esses preconceitos bárbaros, que nos criaram uma singular posição, tão humilhante quanto notável, no meio da humanidade livre, e que nos diferencia dela como o único país cristão, onde ainda impera a escravidão.

A esponja inflamável já labareda na destra do anão da justiça. É esse orgulho, tão vasto quanto irritante, que o faz supor maior que duas províncias livres dezenas de municípios também livres, o voto de vários distritos eleitorais, a opinião dos maiores homens e da maioria da imprensa do país, e finalmente o veredicto unânime da civilização, que em júri soleníssimo sentenciou a escravidão à pena última.

Ainda uma vez queremos avisar o imperador e dizer-lhe que Sua Majestade deve entristecer-se na proporção da alegria do sr. Pena.

É fato, hoje, sabido por todos, que o imperador não apresenta a menor objeção ao ministério, sejam quais forem as medidas propostas.

O sr. Afonso Pena tem tanta liberdade para autorizar a criação de uma polícia noturna do sr. Ramalho Ortigão, como para decretar a criação de um corpo de carrascos.

A notícia não merece a Sua Majestade o menor amuo sequer.

Dizem que é propósito seu deixar, dentro em um ano, a coroa à herdeira presuntiva, principalmente se continuar a ter governos do quilate do que atualmente o aborrece de modo a não lhe ser possível dissimular.

Nos seus últimos momentos de reinado, Sua Majestade resolvera fazer uma derradeira experiência para ver se o povo está bem domesticado.

Daí, dentro da jaula da escravidão enfurecida, a se dar crédito aos preletores do sr. Saraiva, mandar entrar o sr. Pena, tendo na mão a virga-férrea do tráfico, avermelhada na ponta com o sangue dos linchamentos autorizados pela frase do sr. Martinho Campos -é justo que a lavoura se defenda.

Sua Majestade quer ver se até o negro escravo se submete à perda de toda a esperança de liberdade; se ele, apesar das manifestações pessoais de Sua Majestade, das demonstrações da opinião, do sacrifício dos propagandistas, considera a escravidão a negra cidade da dor, onde quem entra deve contar com a eternidade do desespero.

Soberano constitucional, pretextando não poder contrapor a sua à opinião da pátria oficial, Sua Majestade quer, como Marco Aurélio, sobressair em virtude no fundo negro da corrupção geral do país.

Mas o que é certo é que nós outros, os poucos que protestamos, deliberados a fazer do holocausto da vida o último protesto, não podemos admitir que o imperador se entregue a esse estoicismo platônico, para não amargurar de todo a sua velhice.

É por isso que pensamos que Sua Majestade deve se entristecer da alegria do sr. Pena.

Na hora da última desilusão, a mão do povo não se estenderá sobre o anão ministerial. Pela sua própria pequenez, S. Ex.ª escapa-se dela, como o camundongo da garra do leão.

O próprio trono do imperador será o empolgado, porque no momento em que a realeza protestar pela sua constitucionalidade, nós lhe responderemos que essa mesma Constituição armou o soberano com o poder de nomear e demitir livremente os seus ministros.

Não há dúvida de que o sr. Afonso Pena tem razão para alegrar-se.

Em outro qualquer país, o ministério que não tivesse logo respondido ao discurso do imortal senador Otoni, tornando evidente o seu esforço para garantir a ordem pública, seria hoje enxotado do poder pelo soberano ou pelo povo.

Não se conservaria mais vinte quatro horas no Governo, porque os cidadãos veriam em cada ministro um punhal manejado contra a sua vida, e um insulto vivo à honra da sua nação.

Se foi permitido fazer uma crise, porque um deputado, que não sabe medir-se pelo seu mandato, foi apupado; se algumas pedras atiradas puderam fazer cair um gabinete, sustentado por tudo quanto o país tinha de mais inteligente e limpo; como é que se conserva no poder um ministério que é invocado como o estímulo a linchadores e a perseguidores ferozes?

O imperador, em outro país, estaria hoje moralmente obrigado a apontar a porta a esse ministério, que não sabe do que se passa no país, e não diz que providências tomou para impedir que o Brasil seja considerado, não uma nação civilizada, mas uma tribo selvagem.

Deve, pois, alegrar-se o sr. Pena, mas o imperador deve entristecer-se.

Victor Schoelcher não o chama senão -rei de escravos; de hoje em diante o mundo civilizado deverá chamá-lo -imperador de linchadores.

27 jun. 1885

Dentro de alguns dias será lei do país oficial o projeto monstro, o conchavo indecente de 12 de maio.

Em vez do mundo igualitário que a propaganda abolicionista inaugurava, teremos o caos tempestuoso, produto do choco da pirataria no cérebro silencioso do sr. Saraiva. Em vez da aurora de esperança que havíamos sonhado para o espírito de mais de um milhão de desventurados, a treva perpétua, as galés de escuridão para esses condenados, cujo crime único foi terem construído, com a sua resignação, com o seu suor, com as suas lágrimas e com o seu sangue, a pátria ingrata, que lhes desconhece o direito.

Dizem que o imperador quer sancionar no dia 28 de setembro a grande obra, que se está ultimando no Senado.

Que lhe faça bom proveito. É como colocar a porta do inferno de Dante, no lugar em que durante quatorze anos esteve a entrada florida das nossas gerações infelizes para a vida livre.

Quem viu o Fausto deve recordar-se de que Mefistófeles, o demônio velho, não arrebicou a ingênua Margarida senão para perdê-la.

Tal fez o imperador com a propaganda da abolição entre nós; vestiu-a um momento com as roupas e as jóias de sua sereníssima filha, para depois entregá-la ao sr. barão de Cotegipe, Fausto político rejuvenescido pelo posso, quero e devo.

Fazemos votos para que Sua Majestade realize mais esta profanação.

Desde a ascensão do sr. Saraiva, sentimos que a Monarquia já não tinha mais forças para resistir à nostalgia do pântano. Queria voltar para a lama das paixões de que provinha.

E sabido que todos os Braganças foram sempre amigos da escravidão, ao ponto de fazerem dela meio de ganhar dinheiro.

Desde d. Pedro II, de Portugal, o moedeiro falso, até Pedro I, do Brasil, a casa do bastardo João IV se desenha na História com a fisionomia de uma família de traficantes. A única exceção é de d. José I, porém este, todos sabem, não passou de um jumento manso, em que o marquês de Pombal subiu a montanha da imortalidade, comodamente, como a gente sobe a serra de Sintra em jericos de aluguel.

D. João VI fez do Tratado de 1817 meio de pilhar seiscentas mil libras da Inglaterra; d. Pedro I aconselhava o nosso ministro Brant, junto à corte de Londres, que empregasse todo o esforço para que fosse permitido ao Brasil mais oito anos de tráfico; reinando o sr. d. Pedro II, usufrutuário dos escravos da nação, a mordomia recebia dinheiro e mandava avaliar a liberdade de escravos.

É um fato histórico que a Monarquia só se fundou no Brasil por ser a da escravidão.

O honrado Muniz Tavares, historiando a Revolução de 1817, demonstra que o meio de que se serviu a Monarquia para impopularizar a Confederação do Equador foi lembrar aos fazendeiros que perderiam os seus escravos, visto como a República decretaria a liberdade imediata.

Foi, pois, a pele esticada do escravo o tecido de que se fez o manto imperial do Brasil.

A Monarquia é o penhor da escravidão, e muita razão teve o sr. Joaquim Nabuco fazendo notar que estas duas instituições serviam-se mutuamente de guarda-costas, e que uma corria em socorro de outra, para dar golpes de Mefistófeles -o tal do Fausto- quando a honra chamava a duelo uma dessas duas encarnações do vício.

A impassibilidade do ministério diante dos senadores José Bonifácio, Afonso Celso, Dantas, Otoni, Inácio Martins, Silveira da Mota e Franco de Sá demonstra que não há meio de convencer pela discussão.

Mas, antes que o imperador envileça para sempre o seu nome, assinando um decreto que manda a nação pagar a instituição que a arruinou, e perseguir aqueles que denunciam os réus do art. 179 do nosso Código Criminal, sejamos ainda generosos fazendo algumas ponderações.

Ei-las:

Sua Majestade está tratando da questão abolicionista como tem tratado de todas as outras, como se fosse uma questão de simples direitos políticos, para a qual os povos concedem adiamentos.

É um erro. O escravo não pleiteia a causa de uma liberdade política, mas a liberdade de possuir-se a si mesmo.

Até ontem ele não sabia que tinha direito a exigir que o restaurassem na sua condição de homem; hoje, por um decreto de dissolução, lavrada pelo próprio punho de Sua Majestade, ele sabe que tem poder para interpor-se à marcha regular do Estado e fazer cominar a pena capital do sistema representativo àqueles que a lei investiu da inviolabilidade das suas opiniões.

Até ontem ele não sabia o que podia, hoje ele sabe que pode tudo, e que lhe basta cruzar os braços para vencer os que se supõem fortes contra ele.

Pela marcha do debate parlamentar dos projetos, o escravo soube que a sociedade em que vive se governa não pelo que mandam o Direito, a Moral e a Religião, mas pela contagem dos votos, pela força do número parlamentar.

E o escravo amanhã vai, por sua vez, contar-se, e logo que ele vir que a soma dos desgraçados da sua condição é maior que a daqueles que a exploram, ele se esquecerá também desse Direito, que para ele nunca existiu, dessa Moral, que os senhores violavam para violentá-lo, dessa Religião, que não lhe serviu nunca senão para registrar na escravidão a sua descendência.

A prova de que não declamamos é uma informação que nos dá o Vinte Cinco de Março, de Campos: os escravos começam a cruzar os braços.

O fato deu-se em uma fazenda, mas há de reproduzir-se em dez, em cem, em todas.

E de duas, uma: ou o Governo decreta a abolição, ou emprega a violência para obrigar os paredistas a trabalhar.

Na primeira hipótese, o Governo demonstra a sua imprevidência, porque faz com que gerações não preparadas para a vida representativa se iniciem nela legislando pelo terror. Semelhante fato desacautelará o futuro e deixará a nação à mercê de tremendos perigos.

Na segunda hipótese, o imperador terá de ver o seu trono de novo salpicado de sangue; passará pelo dissabor -se é que um rei tem coração para sentir- de ver a sua velhice presidir a um tribunal que não terá mãos a medir para mandar réus para as galés e para a forca, e de um governo que só se ocupará em decretar a morte.

Sua Majestade conta com a sua boa estrela, que o fez reinar sobre um povo desfibrado, povo de proletários hepáticos, nação de mendigos envergonhados e de herdeiros audazes de piratas e moedeiros falsos.

Espera talvez que os escravos se humilhem e sofram sem protesto mais uma violência aos seus direitos.

Dando-se mesmo essa hipótese, garantimos ao imperador que não ficará tranqüilo.

Há um punhado de homens que está deliberado a fazer frente a Sua Majestade; que entendeu que neste país não há lugar para eles, Sua Majestade e a escravidão. Que dos três, um é demais, e por isso mesmo deliberaram lançar mão de todos os meios para obrigar Sua Majestade a sair da sua política de ciladas, política de Tibério com máscara de Marco Aurélio.

Sua Majestade tem vivido muito comodamente, entregando seus ministros, como judas de palha em sábado de Aleluia, e enquanto os desgraçados são espatifados nas ruas, Sua Majestade se diverte nos teatros, nas conferências, nos passeios a Petrópolis.

Diz-se abolicionista e come a sua lista civil honradamente, sem se lembrar que esse dinheiro é o suor, a lágrima e o sangue do negro.

Não, não será mais assim.

Agora é cartas na mesa e jogo franco.

Os ministros que são outras tantas vítimas de Sua Majestade, ou melhor instituição que Sua Majestade sustenta por todos os meios, desde o assassinato de Nunes Machado até a corrupção de Timandro, os ministros não nos bastam.

O nosso mundo oficial é um imenso casco de que Sua Majestade é a tartaruga.

Seria inútil chibatear o casco para fazer o bicho andar. O essencial é lançar mão dos meios para obrigá-lo a pôr a cabeça de fora.

É o que vamos fazer.

Sua Majestade nos ameaça com o código e a vergonha de continuarmos a ser cidadão do único país de escravos, no mundo cristão.

As nossas contas são com Sua Majestade.

É inviolável e sagrado. Não contestamos; porém a sua inviolabilidade nem ao menos foi decretada por nós, e é contrária à natureza, e tão audaz que se revolta contra a inviolabilidade da pessoa humana, decretada pela independência natural do espírito e do coração.

A sua sagração não é ao menos igual a esta outra que a humanidade inteira reconhece: a que todas as religiões deram à pessoa humana, fazendo-a imagem de Deus.

Que Sua Majestade ao assinar o decreto se lembre de nós e conte conosco.

Arme-se com o Código, com a Correção, com ministros e autoridades sem escrúpulos, com a capangada desumana; nós cá estamos armados com as três espadas que fizeram a civilização e a liberdade humana -a Religião, a Moral, o Direito, e o desafiamos.

O mundo vai ver mais uma vez como é que um punhado de homens de bem atira com um pontapé um trono pelo ar ou como é que poucos homens de bem fazem dos seus cadáveres os alicerces da liberdade da sua pátria.

19 set. 1885

Está finalmente decretada a nova divisa do Império -escravidão ou morte. O Governo, confiado a homens capazes de fazer respeitar os decretos do parlamento imperial, vai dentro em poucos dias regulamentar a lei nova e fazê-la cumprir sem atender a reclamações.

Havia seis longos anos que os aliados do trono não dormiam tranqüilos.

A lei de 7 de novembro de 1831 perturbava-lhes o sono. A pirataria já não era a musa altiva, que ditou os versos de Esponceda, um direito que se impunha, como o vento, as ondas e a serenidade azul dos céus sem tempestade. Começava a se transformar em pesadelo. A invocação do Código Criminal, a cada momento, perturbava as sestas ao relento do século.

O que mais doía aos usufrutuários da rendosa instituição era a idéia de que o imperador sorria aos seus acusadores.

O imperador abolicionista! exclamavam admirados, com os pensamentos baralhados, com o raciocínio perdido.

Abolicionista, por quê? para que e como?

E tinham razão. A Monarquia no Brasil fundou-se para garantir e não para extinguir a escravidão. Esse contrabando do direito político só firmou-se pelo contrabando do direito natural. A escravidão e ela formam uma equivalência.

A pirataria tinha razão, mas agora cumpre lhe bater nos peitos e confessar que foi injusta com o seu defensor perpétuo.

Tudo quanto o Império fez teve unicamente em vista assegurar a escravidão à perpetuidade ameaçada.

Fortaleceu quanto pôde o sr. Sinimbu que dizia: nem um passo além da lei de 28 de setembro.

Deu toda a sua confiança ao sr. Saraiva, porque S. Ex.ª declarou ao parlamento: não cogito.

Entregou o poder ao sr. Martinho Campos, adiantando-lhe a senatoria, porque S. Ex.ª tem muita honra em ser escravocrata -isto é, em querer o Governo baseado na escravidão.

Fez do seu íntimo, do seu ministro privado, o sr. Paranaguá, portador do desafio ao esclavagismo, na celebérrima frase -é preciso encarar de frente a questão servil.

Dado este passo, estumados os cães do esclavagismo contra os gatos do liberalismo emancipador, Sua Majestade não admitiu mais nenhum ministério que não falasse a respeito da questão servil.

Mandou que o sr. Lafaiete organizasse ministério, porque o país não podia ficar sem Governo. E S. Ex.ª organizou Gabinete e apresentou projeto emancipador, porém, como soubesse que as idéias do seu imperador a respeito não valiam grande coisa, o projeto não passou de uma cédula velha e suja de quinhentos réis.

Durante o Ministério Lafaiete, libertou-se o Ceará, e iniciou-se oficialmente, graças à coragem do sr. Teodureto Souto, a libertação do Amazonas. Os negreiros chegaram à temperatura rubra da cólera.

O imperador chamou os estadistas à sabatina e só deu o Governo àquele que mais afoito se mostrou em arrostar a formidolosa raiva negra.

Todos sabem que a nomeação do sr. Dantas elevou o negrismo à temperatura branca. Dessa cólera satânica são provas a circular do sr. Andrade Figueira, candidato ao Senado, e os artigos do Brazil.

Os proprietários de homens julgaram-se perdidos; o seu destino estava nas mãos do imperador. Se o augusto árbitro desse toda a força ao Gabinete 6 de Junho, a escravidão estaria extinta.

Logo que Sua Majestade viu que os seus aliados não podiam mais esconder que lhe deveriam todo o benefício, que adviesse, começou a protegê-los e a preparar o lance teatral pelo qual deveria restituí-los ao antigo domínio.

Como prova desta afirmação, vamos revelar uma confidência que nos foi feita e que deve pôr o sr. Dantas de sobreaviso com a idéia que faz do imperador.

Conversando com uma pessoa que o foi visitar, Sua Majestade disse-lhe a respeito do atual ministério:

-Ao menos não se dará no Tesouro o que se deu durante o Gabinete Dantas.

Se estas palavras são exatas, como nos parece que devem ser, porque o cavalheiro que nô-las revelou não contava que elas viessem a público, e exigiu-nos sigilo, que só quebramos em nome da pátria, aí tem o sr. Dantas a demonstração da sinceridade com que foi tratado.

Esta sinceridade lembra uma outra do celebérrimo Pedro I, que afagando os patriotas da Independência, ao ponto de dar lugar à proclamação de 4 de outubro, escrevia a seu pai, marido de d. Carlota Joaquina:

«Queriam e dizem que me querem aclamar imperador. Protesto a Vossa Majestade que nunca serei perjuro; que nunca lhe serei falso; e que eles farão essa loucura, mas será depois de eu e todos os portugueses estarem (a sintaxe é igual ao caráter do escritor) feitos em postas, o que juro a Vossa Majestade, escrevendo nesta com o meu sangue estas palavras: -Juro sempre ser fiel a Vossa Majestade, à Nação e à Constituição Portuguesa


A boa-fé e lealdade do sr. Dantas, conseqüência natural do entusiasmo com que S. Ex.ª se dedicou à sagrada causa dos escravos, não lhe deram tempo de observar e refletir nos manejos do imperador.

S. Ex.ª só acordou, vendo no Governo o sr. Saraiva, para fazer justamente o contrário do que a opinião pedia.

Sua Majestade não precisava dissimular por mais tempo: tinha chegado aos seus fins.

Por um lado, conseguira, pelo Ministério Dantas, desorganizar a legião abolicionista, que se dissolveu porque era inútil o seu esforço, quando o Governo parecia querer tomar a si a resolução do problema servil; por outro lado, reiterou aos proprietários de escravos a segurança da sua dedicação de aliado.

Fácil era decretar então a perpetuidade da escravidão e ela foi decretada, ontem, com a fria solenidade de uma sentença de pena última a um grupo de cidadãos.

Cumpra o Império a lei nova, é o seu dever e a sua glória.

A sua obra deve chegar ao termo com todas as minudências.

O sr. Cotegipe nos ameaçou com a imposição do silêncio.

Nós lhe respondemos que este silêncio só será conseguido de dous modos: pela condenação nos tribunais ou pela morte.

Quem escreve estas linhas é pela Constituição um cidadão brasileiro, e não um escravo do sr. d. Pedro II.

Sabe que está em um país de cobardes e de escravos, mas não precisa de ninguém para ajudá-lo a cumprir o seu dever.

Não teme as ameaças da pirataria triunfante.

O Governo pode e vai mandar trancar a tribuna popular; pode fazer calar a imprensa, perseguindo-a com processo, pode reduzir-me à miséria, mandando que os seus apaniguados vão roubar-me disfarçados em donos de escravos, que tenho acoutado; mas o que o Governo não pode fazer é calar a minha consciência, é privar-me do brio, com que o desespero.

A sua lei não é para mim senão um incitamento à perseverança.

O Império está desacostumado da resistência cívica, pois nós vamos iniciá-la.

Não há de ser pela miséria de uma vida que se há de sacrificar a honra de um povo.

O Império nasceu da hipocrisia e do embuste; foi um negócio de um grupo de especuladores, que empolgou a simplicidade de alguns brasileiros de mérito.

O Império vive da nossa vergonha moral, da nossa miséria econômica, da nossa baixeza política.

Tem andado a tropeçar em cadáveres.

Ser mitológico, ora é Saturno voraz; ora Pã cercado de faunos.

Nada criou, à exceção do servilismo; nada conservou, afora a escravidão.

Nada tem de respeitável: nem homens, nem instituições.

Dentro das suas leis, está a emboscada ao direito; dentro do seu parlamento, o garrote à liberdade; dentro das suas finanças, o assalto à fortuna do cidadão.

Com que prestígio, pois, ele vem gritar-nos: calem-se!

É certo que o Império precisa de silêncio, porque já o disse Ariosto, só no silêncio podem nascer a perfídia, o perjúrio, os planos de roubo e de assassinato.

A nossa voz faz-lhe mal. Tanto pior para ele.

Falaremos cada vez mais alto, porque é preciso que o mundo nos ouça e, que não continue a acreditar que somos governados como povo livre, quando nos tratam como a um eito de escravos.

26 set. 1885

O rio e o oceano encaram-se indiferentemente; um, seguro da fatalidade do seu curso pela fatalidade do declive; o outro, confiado na invencibilidade da sua força pela sua própria vastidão.

E enquanto o rio desliza sereno, o oceano ondula tranqüilo; aquele trazendo no dorso as flores e folhas que morreram, este se vestindo de espuma no descuido do seu movimento.

Mas há horas em que de súbito se trava um conflito entre os dous indiferentes. O oceano orgulhoso, porque não é desconhecido pelo astro do amor e da saudade que, lá do azul, não o esquece, tumefaz-se, avoluma-se, e na sua presunção indomável, de tudo dominar, subindo, subindo, até roçar o astro, que o seduz, busca reter o curso do rio, em que ele vê um rival na fruição dos beijos luminosos.

Então, força contra a força, o rio firmando-se nas suas margens, o oceano nos seus abismos, travam luta, que nem Homero descreveu, tão extraordinária é ela.

A princípio o oceano vence; o rio recua, enrosca-se por assim dizer, como incomensurável serpente, mas cobrando forças na própria humilhação da derrota roborificando com a própria superioridade dinâmica do contendor, entesta agora contra águas e como se dessa grande massa, desse exército líquido, se destacasse um delegado de cada um para o combate singular, ergue-se de parte a parte uma montanha d'água, que se choca, bamboleia, redemoinha e espumando, na peleja tremenda, se despedaçam finalmente com um fragor uníssono.

Na vida política do povo brasileiro deu-se também o fenômeno, que no Amazonas tem o nome de pororoca.

A opinião e o Império estiveram por mais de um século, uma em face do outro, aquela deslizando na fatalidade histórica do progresso, o Império absorvendo a corrente, sem modificar o sabor das suas águas, nem diminuir o seu movimento.

É chegada a hora da maré.

O sr. presidente do Conselho anunciou na Câmara e no Senado e a Câmara e o Senado lhe emprestaram a força de que ele carecia; a Lei 3.270, que devendo levar a tranqüilidade à lavoura, converterá a sua gratidão em adesão sincera ao Império.

Infelizmente, porém, é lei natural o rio continuar o seu curso e a maré não servir senão para demonstrar a imutabilidade do seu destino.

Se ainda fosse possível aconselhar ao Império, se a sua última hora não o houvesse já ferido da insensatez do náufrago; nós nos limitaríamos a provar o lucro moral que teria o imperador abdicando por si e pelos seus.

Sua Majestade não pode justificar o seu reinado, que o destino quis que principiasse na inconsciência, começando-o na irreflexão de uma criança e terminando-o na obcecação de um velho.

A História nos diz que o imperador tomou as rédeas do Governo, quando havia um pouco de vida provincial, quando todo o organismo nacional se agitava, graças ao Ato Adicional, e, entretanto, durante o seu reinado as províncias foram gradativamente perdendo autonomia, reduzindo-se a miseráveis membros paralíticos do corpo deforme do Império.

A História nos diz que o imperador ao assumir as rédeas do governo encontrou um povo cioso da sua liberdade, capaz de mover por ela até desordenadamente e forneceu mártires ao seu triunfo; povo que se batia no interior em revoluções, e que empunhava improvisadamente as armas para levar guerra a território estrangeiro.

Entretanto, gradativamente o amor da liberdade se foi amortecendo; perdeu-se a coragem para protestar; julgou-se ato indigno de cidadão sofrer e morrer pelos seus direitos políticos.

Quanto ao pundonor nacional, o Governo o afere de tal modo que, depois de haver declarado à República Argentina que não admitia arbitragem sobre um ponto que julgava liquidado, volta sobre este ultimatum para concordar em que se deve explorar, para fixar direitos, um território há mais de um século completamente conhecido e há cerca de meio século delimitado.

Na administração o imperador encontrou, no começo do seu reinado, homens que estudavam e que se dedicavam desinteressadamente à causa pública; gente que sabia se engrandecer com a pobreza; que se orgulhava de legar à sua família o nome singelo e imaculado dos bons e leais servidores de uma causa.

Entretanto, hoje, o imperador olha em derredor de si e vê de todos os lados surgir a denúncia de uma improbidade, e ouve de todas as partes o clamor difamatório contra aqueles que o cercam.

Achou a nossa moeda ao par e hoje a vê depreciada cinqüenta por cento; achou os nossos orçamentos circunscrevendo a despesa à receita e hoje os vê inteiramente descuidosos desse escrúpulo.

Ao subir ao trono encontrou uma lei votada nove anos antes proibindo o tráfico; encontrou arquivadas as opiniões dos nossos homens a respeito dele, e, entretanto, hoje, apesar de todas as demonstrações do crime de pirataria praticado pelos réus daquela lei, vê-se obrigado a fazer do respeito à pirataria a segurança do seu trono.

E não é só isso: morreram cidades, que possuíam estaleiros navais, morreram indústrias prosperamente iniciadas; o povo perdeu o amor ao trabalho; singularizou-se a produção, que prometia pluralizar-se; sobresteve-se na decretação de princípios civilizadores, que haviam sido aventados no parlamento, tais como os que dizem respeito à aquisição do direito de naturalização, e constituir famílias e regular a vida pela religião de cada um.

Não tememos que nos contestem todos estes fatos, porque a verdade é incontestável.

Ora, diante dos resultados da política do seu reinado, o imperador só tem dous caminhos a seguir: ou abrir francamente reação contra aqueles que o criticam; ou então abdicar por si e pelos seus, o mais depressa possível.

Dentro em quatro anos a dinastia já não terá oportunidade de se retirar como um hóspede, que deu prejuízo a quem o hospedou, mas de quem não se pede nenhuma indenização, nem se formula nenhuma queixa.

O povo brasileiro é um sonolento, custa muito a abrir os olhos e gasta anos para esfregá-los e poder ver claro o menor fato.

Mas desta vez ele acordará, extremunhado pelo safanão da miséria e da vergonha.

De um lado ele verá que a mania do café reduzirá a sua riqueza a um simples incentivo à mina; porque a produção aumentando baixará o preço, e a baixa deste exigirá cada vez maior esforço, o que é o mesmo que tirar-lhe a remuneração necessária e privá-lo dos lucros desejados.

De outro lado, ele verá todos os seus sacrifícios feitos pelo Estado, convertidos não em serviços públicos, em instrumentos do seu progresso, mas em simples repasto aos previdentes, que desde já começam a gritar, enchendo os bolsos: salve-se quem puder.

Eis por que, se pudéssemos, daríamos a Sua Majestade o salutar conselho da abdicação.

É o melhor caminho, cômodo para todos.

Reagindo, o imperador pode aumentar mais alguns nomes à lista das vítimas do Império, mas não pode impedir a sucessão natural e fatal dos acontecimentos.

Demais na América os reis são malsinados. Dos três que temos tido, um foi Pedro I, banido, o outro Maximiliano, fuzilado, e o sr. d. Pedro II, que tem feito a ruína de um povo, o que será demonstrado em poucos anos, sem precisar de outra lógica além do fato.

O melhor, portanto, é abdicar.

Se a opinião abre um inquérito no seu reinado, como o Ministério do Império, no Matadouro, o relatório dirá cousas de espantar.

Ora, é impossível que este inquérito não se abra, porque dentro em pouco tempo a miséria o requererá.

17 out. 1885

As urnas foram de uma generosidade perdulária para com os conservadores. Eles pediram somente uma boa maioria, disciplinada e passiva, e elas responderam por uma quase unanimidade.

Este fenômeno, inexplicável para observador superficial, é, entretanto, de facílima interpretação para quem aprofunda a crítica do estado do espírito e do caráter nacional.

O Partido Conservador não precisava de pedir às urnas que o sufragassem: elas sabiam que era este o seu dever.

O Partido Conservador é a síntese dos elementos que constituem a soberania eleitoral.

Mera engrenagem da oligarquia, a lei de 9 de janeiro de 1881 garante de antemão a pujança e o prestígio do partido, que tem por missão domar as aspirações e impaciências democráticas.

Os dentes dessa engrenagem prendem-se naturalmente ao funcionalismo, para comunicar o movimento que recebe do imperador, a todo o mecanismo constitucional.

O oligarca sabe que deve sufragar o Partido Conservador, porque sem ele o seu domínio estará derrocado.

O funcionalismo sabe que deve sufragar o Governo, porque no caso contrário será punido.

O empregado público depende exclusivamente do Poder Executivo; a lei não lhe garante o direito; não o cobre com a sua inviolabilidade; não o protege com a sua imparcialidade retilínea.

O acesso e a aposentadoria são duas amarras que prendem o funcionário às bóias com que o imperador baliza o mar morto da nossa autonomia nacional.

Ora, se o Governo conservador, apesar de contar com todos estes elementos de força, ainda julga necessário dizer que quer vencer, é claro que as classes que o prestigiam estão moralmente obrigadas a dar-lhe o mais que puder.

O Governo conta com alguns eleitores que são de todos os partidos. Um deles é a fome.

Num país sem indústria, sem artes, sem mercado honestamente lucrativo para o trabalho, ameaçar o empregado público com a demissão é o mesmo que condená-lo à morte pela miséria.

Está nas tradições do Partido Conservador a derrubada. Quando ele sobe ao poder o funcionalismo treme com medo do dia seguinte. Tem plena certeza de que só lhe resta desde então uma liberdade, a de concordar, para apoiar, com tudo quanto esteja no programa do gabinete. Iniciada a derrubada, os funcionários ficam de sobreaviso com a independência própria, com a altivez ingênita, porque sabem que a menor manifestação dela é um perigo sério.

O outro eleitor que não trai, que é de uma fidelidade exemplar, chama-se esclavagismo.

Este aceita a cédula de toda a mão em que descubra vestígio das lágrimas e do sangue da raça escravizada.

Não reconhece senão uma forma de governo: a que legaliza a escravidão; não admite senão uma bandeira política: a da perpetuidade da instituição bárbara.

Tanto lhe faz que estejam no poder os liberais do sr. Saraiva, como os conservadores do sr. barão de Cotegipe. São apelos diversos do mesmo céu negro, em que habita a deusa Escravidão. Crentes fervorosos da sua fé, não escolhem altar para o sacrifício do seu voto.

O Governo, entretanto, duvidando um momento da sua força, ainda empregou o recurso das transferências contra os militares, das ameaças de espancamento, processos e morticínios, no dia da eleição, das demissões e das remoções de todos os exaltados das repartições públicas, dos favores os mais extraordinários àqueles que tinham influência nos distritos, assim como do emprego de todas as violências até a negação de toda a justiça, fatos sintetizados no recrutamento e na negação do habeas corpus.

Como não obter uma vitória estrondosa; como não conseguir o assombroso resultado das eleições de ontem?

A esta base segura de operações políticas para derrotar os seus adversários, acresce o próprio futuro da situação conservadora.

O imperador precisa retirar-se para a Europa; já tem marcado o dia da viagem, 9 de junho de 1886. O estado de sua saúde reclama esta viagem. A sua idade aconselha-lhe o ensaio de seus herdeiros na governação do Estado.

Ora, sob a regência, é impossível esperar mudança de situação; primeiro, porque sendo um lance político perigoso para o futuro Império, não será empregado; segundo, porque a fatalidade das cousas o impede.

O Partido Conservador é hoje necessário à administração do Estado. Só ele sabe o segredo de manter a ordem, sem o prestígio da autoridade; só ele tem a experiência da imposição das leis as mais selvagens, apelando para as medidas as mais violentas. Não o assustam cóleras revolucionárias; não é a primeira vez que ele as sufoca em sangue.

O futuro Império depende dele. Um ato de hostilidade da regência de junho vindouro, o indisporia e irritaria, e ele chama-se antes de tudo plutocracia, oligarquia e esclavagismo: dinheiro, castas coligadas, sistematização do servilismo.

O terceiro reinado não pode dispensar a sua colaboração e, entretanto, está às portas da responsabilidade histórica.

O imperador, quer abdique, segundo se diz insistentemente, quer não, precisa dos conservadores.

Se abdicar, o partido de que é principal chefe, é o único capaz de cimentar o trono vacilante e de suprir a inexperiência da imperatriz e a impopularidade do imperador honorário.

Bem odiosa era a lei de 3 de dezembro de 1841; compêndio hediondo da tirania, e que valeu para nós o mesmo que a invasão dos hicsos para o Egito antigo: desnacionalizou-nos a pátria, reduzindo-nos à mais lastimável servidão. E o Partido Conservador fê-la vigorar, inflexível na sua aplicação, assegurou a sua longa e ensangüentada existência, respeitada por aqueles mesmos a quem vitima.

Se o imperador não abdicar, como a soberania dos reis não estende até à vassalagem do Tempo, Sua Majestade sobreviverá, somente em corpo, à lucidez do seu espírito, à tenacidade das suas resoluções, à energia passiva da sua vontade, que representa, na marcha da civilização brasileira, não essa inércia providencial da matéria para o equilíbrio do universo, mas essa inércia de rochedo, que desfibra e desfalece a força, de quem tenta removê-lo.

O Partido Conservador terá de representar o papel dos políticos chineses junto dos seus reis valetudinários; representar por eles a soberania e a orientação política do Estado.

Ponderemos ainda que essa intervenção é necessária.

No pleito eleitoral, de ontem, ficou provado o desalento e dispersão do Partido Liberal, e demonstrada a força moral que o Partido Republicano vai ganhando na opinião pública.

Apesar das estreitas malhas da lei eleitoral, a idéia republicana pôde chegar até à consciência e à reflexão de mais de 600 eleitores no município, exceção gloriosa à indiferença de muitos e à covardia de outros tantos.

A propaganda republicana recebeu finalmente, no grande centro da vida nacional, o batismo da luta, e recebeu-o de centenas de energias, que são outros tantos protestos.

Como força armazenada para futuras lutas, aí está o grande número de abstenções.

Abster-se é um meio de protestar.

Instituições que não têm meio de despertar a indiferença do eleitorado, que ela julgou capaz para garanti-la e apoiá-la, são instituições moribundas.

Essa indiferença é tão significativa como o sufrágio dado aos republicanos; a abstenção completa de alguma forma a propaganda.

A vitória conservadora era, pois, natural e se não fosse tão estrondosa não fotografaria com verdade o estado do país.

Damos-lhe os parabéns: pelo seu triunfo sabemos que não está muito longe o amanhã da liberdade brasileira.

16 jan. 1886

Senhor,

Eu sei que a prodigalidade dos deuses para convosco foi sem limite. No vosso dote de noivado com a vida entraram a fortuna e o talento.

Sem que houvésseis provado por atos a vossa capacidade para reinar, nascestes rei; sem que houvésseis demonstrado por obras a vastidão do vosso saber e a clareza da vossa inteligência, proclamaram-vos universalmente sábio. Em todas as províncias do pensamento o vosso nome coroa-se com os louros do triunfador.

Os artistas quando arrancam do som, da palavra, do mármore e da tela algum desses grandiosos sonhos, que divinizam a cabeça que se iluminou com eles, não se julgam verdadeiramente grandes sem que um olhar de Vossa Majestade os laureie. O vosso aplauso é para todos a suprema apoteose.

Os estudiosos e os sábios, todos os que imaginam e comovem, que descobrem e generalizam, esperam pela vossa crítica monossilábica, e o sim, ou o não de Vossa Majestade são para eles o Panteão, ou o Letes, a perpetuidada glória, ou a eternidade do olvido.

Para Vossa Majestade a vida é um céu primaveril, onde o luar prefacia o poema das manhãs serenas, de que o zênite, enfartado de luz, é episódico, e o crepúsculo da tarde epílogo suave, que deixa no espírito indelével reminiscência.

No drama de Schiller, em que a condenada Stuart desmaia e suspira, humilha-se e soluça, esquecendo às vezes a rainha para ser somente a mulher sofredora; Isabel, a rainha vitoriosa, tem uma hora de tristeza e de revolta e num solilóquio repassado de despeito exclama:

«Sou obrigada a respeitar a opinião, e a captar os encômios da multidão, a dirigir-me ao sabor da plebe, que só estima realmente os charlatães. Não é deveras rei aquele que deve agradar ao povo. Só é verdadeiramente rei o soberano que reina sem ter de dar contas a ninguém.»


Vossa Majestade chegou a essa onipotência que Isabel cobiçava.

Os acontecimentos e o meio colocaram Vossa Majestade acima do apoio da oposição dos seus súditos fiéis.

O que Vossa Majestade quer, o país quer.

Em 1878 Vossa Majestade mandou que o país fosse liberal, e o país votou uma Câmara unânime para sustentar o ministério que Vossa Majestade nomeou.

Em 1885 Vossa Majestade decretou que o país fosse conservador, e ele imediatamente, a noventa dias de vista, como uma letra sacada por Vossa Majestade, elegeu uma Câmara genuinamente conservadora para fortalecer, consolidar a nova situação.

As frestas indiscretas dos vossos palácios deixam passar de quando em quando o som de vossas augustas palavras.

Chegam estas esparsas aos nossos ouvidos, porém, miraculosamente, por um esforço de inteligência à Champollion, o espírito público forma com essas palavras um período, descobre-lhes o sentido e aceita como sentença do destino o que muitas vezes não passava de uma fugitiva aspiração soberana.

É assim que se soube, por acaso, por inconsistente boato, que Vossa Majestade queria ir este ano para a Europa.

Tanto bastou para que todo o Brasil afirmasse que essa viagem é indispensável; que depende dela a salvação do Estado.

Desde logo o partido mais íntimo do paço começou a pleitear a eleição com entusiasmo e por muito pouco deixou de se constituir em maioria na Câmara dissolvida.

Entretanto, Vossa Majestade limitou-se a negar ao sr. Dantas a força que depois prodigalizou ao sr. Cotegipe. Não precisou de empregar outro meio: tanto conta com o seu povo.

Ao boato da viagem, em junho próximo, reuniu-se o de que Vossa Majestade pretende abdicar na Sereníssima Princesa Imperial, para assessorar com o vosso augusto prestígio, auspiciando-o, o começo do terceiro reinado.

O efeito de tal boato foi pronto.

O país armou a realeza com uma Câmara, que não saberá dizer não ao Governo; uma Câmara que aceitará a abdicação e o novo reinado, congratulando-se com a sabedoria de Vossa Majestade.

Entretanto, um lance d'olhos pelo estado das cousas bastaria em outro qualquer país para converter o povo em tribunal para julgar Vossa Majestade.

Outro qualquer povo citaria o reinado, que pretende liquidar-se para assistir ao balanço geral do seu domínio.

A esse julgamento compareceriam as finanças, representadas pelo deficit crescente e incurável; o câmbio com a sua vertigem de baixa, havendo reduzido a um terço o valor da fortuna pública; os melhoramentos materiais feitos para servir famílias e empresas escandalosamente protegidas; o espírito público desorientado por falta da independência que dá a facilidade de trabalho no comércio, nas indústrias e nas artes; o caráter nacional pervertido pela miséria; todas as relações políticas quebradas; todos os vínculos sociais abalados.

Entre nós dá-se justamente o contrário, em vez de um julgamento, o reinado obtém uma aclamação.

Até as minudências, para o brilho, decoração e força do novo reinado já estão sendo objeto de especial cuidado.

As famílias enriquecidas e prestigiadas pelo favoritismo do reinado, que se despede, organizam espontaneamente a corte futura, dando-se títulos, criando imperceptivamente uma nobreza, de que a lei não havia tratado suficientemente.

No Brasil até bem pouco os títulos só abrasoavam aqueles que os recebiam. Com os titulares extinguia-se a nobreza oficial da família. Isto era a lei.

Os protegidos do paço entenderam que a lei procedeu mal não estendendo à família a nobreza do chefe, pelo que trataram de corrigir a lei, sem intervenção do parlamento e da maneira a mais engenhosa.

Os filhos começaram a juntar aos seus nomes o apelido fidalgo dos progenitores.

Já temos uma grande mata genealógica, dessas árvores heráldicas recentes.

Uma família que se chamava, por exemplo, Fernandes Boamorte, e cujo chefe foi nomeado barão de Camboatá, passa por isso mesmo a assinar-se João Fernandes Boamorte do Camboatá.

E nos documentos oficiais, e em todas as transações da vida começa a figurar essa nobreza!

Deste modo simplíssimo, porém engenhoso, conseguem os filhos decretar para as suas pessoas a nobreza de seus progenitores e isto sem que o poder competente estranhe, nem tome providências para impedir semelhante abuso.

Pudera: é um preparo para a corte futura.

Não era mesmo justo que estivesse adiantadíssima, como provam os salesianos, lazaristas, irmãs de caridade e toda a gente da roupeta, a organização da corte espiritual, e entretanto a mundana nada fizesse para se constituir.

Permiti, pois, meu senhor, que eu vos faça um pedido, muito simples e muito natural, e que mais uma vez demonstrará quanto sois bom.

O vosso Partido Conservador tem provado que está à altura de vosso reinado.

No último pleito ele, em obediência às recomendações de Vossa Majestade para que se não coarctasse a liberdade de voto, deu a todo o eleitorado a mais ampla liberdade para votar... no Governo.

Ele está demonstrando diariamente que sabe manter a ordem, com a lei ou sem ela; e manter a lei dentro ou fora da ordem.

O Partido Conservador está benquisto com o país, de que é o genuíno representante, na frase eloqüente das urnas.

Acontece, porém, meu senhor, que um pensamento mau atravessou a cabeça do sr. de Cotegipe, segundo se diz.

S. Ex.ª falou em apresentar ao parlamento um projeto emancipando os escravos em cinco anos.

Eu sei que o ilustre barão não é homem que se prenda ao que promete.

Desde 1854 apresentou ele um projeto sobre tráfico interprovincial e, não obstante em trinta anos, apesar de sua influência real, não se lembrou de fazer discutir por sua conta o projeto.

O que o sr. barão de Cotegipe promete não quer dizer o que o sr. barão de Cotegipe fará.

Não obstante, há na lavoura do país uma parte ingênua, que não conhece os nossos homens, e que pode tomar a sério o projeto do sr. presidente do Conselho.

Em nome dessa lavoura eu peço a Vossa Majestade que se digne de aconselhar o sr. de Cotegipe a que mande desmentir esse boato comprometedor.

A escravidão deve ser conservada: não se deve bulir nela. Assim como está, está muito bem.

Se não houvesse quem quisesse ser escravo, não haveria escravidão.

O sr. Coelho Bastos quando raspa cabeças e encolhe os ombros às notícias de torturas contra escravos é porque tem certeza de que nada há a temer.

O próprio sr. de Cotegipe já declarou que a escravidão estava na massa do sangue nacional... E é verdade; do contrário Vossa Majestade já teria visto o povo decretar o que Vossa Majestade não quer decretar: a demissão do sr. Coelho Bastos.

Não, imperial senhor, não! O sr. de Cotegipe vai mal por esse caminho. É preciso que Vossa Majestade o chame à ordem.

Nada de pressas: o negro para onde vai há de chegar -à cova.

Não libertemos esses demônios senão depois de mortos e isto mesmo indenizando o senhor.

O projeto vem trazer complicações e perturbar a digestão de Vossa Majestade Imperial.

Rasgos de filantropia nestas desoras da nossa política!

Senhor, meu senhor, em nome da vossa fortuna, em nome da vossa coroa, é preciso conter o sr. barão de Cotegipe.

6 fev. 1886

Senhor.

Diante dos traços de mármore, sagrados pelo cinzel dos artistas, epitáfios seculares de civilizações mortas, o viajante, que estuda e pensa, se entristece com a própria grandeza do espetáculo que se desdobra aos seus olhos.

Nos templos vazios, sem fiéis e sem deuses, como que ele ouve os risos e soluços dos dias de festa e de luto, das horas de regozijo e das horas de desesperança.

Tal me acontece quando folheio a história da minha pátria, outrora templo grandioso formado pelo civismo de gerações fortes, que o tempo e as revoluções devoraram e de que hoje restam somente as ossadas, santas ruínas do patriotismo vitimado.

Aprofunda-se-me o desalento tanto mais quanto vejo à flor o desinteresse dos tempos que lá vão e o entusiasmo civilizador, que nos conquistou lugar entre os povos independentes.

No meio da noite moral do presente, que se não fende em nenhum raio de luz anunciando próximo alvorecer; noite em que não sinto a incubação de uma aurora redentora do pesadelo de humilhação, com que ela nos tortura e angustia, pergunto a mim mesmo se não seria melhor, como as aves amigas da escuridão, habituar-me às trevas e ao óleo da lâmpada do vosso palácio, alimento predileto dos caracteres da nossa decadência.

Outrora as almas brasileiras nutriam-se da consciência da soberania popular, fortaleciam-se com ela e não era raro ouvir-se do alto da forca, como do tamborete do fuzilando, estas frases heróicas: liberdade ainda que tarde; morrem os liberais, mas não morre a liberdade.

Essas palavras eram adubo sagrado às convicções, repastavam de seiva e de viço a florescência da fé.

Hoje, porém, não há mais quem pronuncie naturalmente semelhantes frases; quem as escreva com o alfabeto da crença. O patriotismo, é certo, ainda cria heróis, mas estes são a reprodução do intrépido Nzambi dos palmares; desesperados que combatem olhando para a montanha do martírio, a Tarpéia sinistra de que se precipitarão para salvar a honra.

Vossa Majestade não tem, pois, motivo para queixar-se de quem subscreve estas linhas.

Deve-se a verdade ao inquérito da morte.

Talvez vos pareça descabida esta última palavra; mas apresso-me em demonstrar-vos que ela está aí porque os acontecimentos obrigam-me a escrevê-la.

Vossa Majestade sabe que um punhado de homens jurou à sua honra defender a causa dos escravizados, com o sacrifício da sua vida, se tanto for necessário arriscar na sustentação de um direito, neste país que se diz civilizado e cristão.

Durante seis longos anos esse punhado de homens tem dado provas repetidas do espírito de conciliação, que os inspira na propaganda da redenção dos seus semelhantes.

O Governo de Vossa Majestade mesmo o afirmou solenemente no parlamento, quando por um momento hasteou no poder a bandeira das nossas aspirações.

Inopinadamente, muda-se a atitude governamental, e ao mesmo tempo que a mentira oficial manda anunciar ao mundo que está decretada a abolição da escravidão no Brasil, recomeça a perseguição, a tortura dos escravizados.

Vossa Majestade deve ter lido as notícias envergonhadoras, publicadas pela imprensa.

A Secretaria de Polícia converteu-se em uma casa de consignação de fazendeiros bárbaros, que a autorizam a enviar-lhes, não já os escravos, mas a cabeça deles, para exemplo dos outros, lembrando assim o reinado de vossa augusta bisavó -a douda, espetando a cabeça de Tiradentes para exemplo às impaciências democráticas.

Todos os dias a Casa de Detenção e o xadrez da repartição central de polícia abrem-se para despachar pelos vagões da estrada de ferro de d. Pedro II vítimas para os açougues dos carniceiros rurais.

Em vão temos reclamado do Governo providências contra semelhantes embarques, que degeneram em atos de barbaria.

As notícias dos espancamentos, dos arrochos com cordas e algemas, dos suicídios de escravizados mancham diariamente a história do vosso reinado, mosqueando a vossa púrpura de modo a ser natural confundi-lo com a pele de um tigre.

Entretanto, Vossa Majestade conserva-se impassível. Longe da corte, nas alturas de Petrópolis, cercado dos entes a quem adora, podendo espreguiçar-se como Francisco I e tiranizar como Luís XI, Vossa Majestade lança pelo desprezo o fermento da revolta nos espíritos dos raros que ainda entendem que a vida é pouco sem a honra.

Sabem todos que o sr. chefe de polícia da corte não será demitido, enquanto ecoar o tremendo Aqui d'El-rei da imprensa em nome dos escravizados.

Pergunta-se quem é este funcionário que vale mais do que a reputação de um povo e do que a vida de brasileiros?

Os fatos respondem secamente: é um homem que foi ao parlamento dizer que estava doente para não ir para a província do Pará, como desembargador; é um homem que não teve escrúpulos de pedir dinheiro ao Estado para alimentar-se durante o tempo em que se evadiu dos seus deveres; é um funcionário fugido das suas funções e acoutado por um Governo, que entende que seus amigos podem viver à custa do Tesouro sem trabalhar, contanto que finjam moléstia até que se lhes melhore a dieta.

Apelamos para a honra de Vossa Majestade neste momento: e vos emprazamos a que nos desmintais.

Vossa Majestade não pode negar que tem como chefe de polícia um funcionário que faltou a verdade à Câmara dos Deputados, que fez junto dela a chantagem da moléstia e que se curou com o decreto que o nomeou para o cargo que exerce.

E é esse homem que faz da sua autoridade a capa dos crimes que nos horrorizam.

Um dia, na casa do sr. presidente do Conselho, estava o sr. chefe de polícia e disse alegremente:

-Acabo de mandar mais um vagão deles.

-E não há perigo? -perguntou-lhe o presidente do Conselho.

-Não; vão em carro fechado.

-Com este calor?! pode sobrevir algum acidente.

-Qual calor: esta gente lá sente cousa alguma...

E o sr. chefe de polícia tinha a fisionomia dilatada, quando proferia estas palavras.

Mais ainda, senhor.

Um empregado da Estrada de Ferro, que tem o vosso nome, coincidência tristíssima, referiu-nos este suicídio:

Um escravizado, que estava amarrado de pés e mãos, conseguiu sentar-se, e, depois de espedaçar a vidraça com uma cabeçada, cortou a carótida num fragmento de vidro, que ficou preso ao caixilho e morreu esvaído em sangue.

O Paiz, órgão que Vossa Majestade deve conhecer, referiu o caso de um escravo, em que embarcando na estrada do vosso nome, em Juiz de Fora, precipitou-se entre os trilhos, deixando-se esmagar pelos vagões.

Consta a Vossa Majestade que se tenha aberto inquérito a respeito?

Quer isto dizer, senhor, que não há esperar do poder público uma providência, um pouco de piedade para os míseros escravizados.

Levado pelo desespero, o punhado de homens que se comprometem a defender esses desventurados, não pode querer um dia protestar em pessoa contra esses abusos?

O que lhes acontecerá? Serão assassinados legalmente, porque vão resistir a uma ordem da autoridade.

Eis por que escrevi a palavra morte. Vossa Majestade parece haver decidido a nossa imolação, pois que outra significação não pode ter a conservação de uma autoridade, que faz timbre em se mostrar desumana.

De par com estas barbaridades contra vítimas indefesas, a difamação dos abolicionistas, por todos os meios: o assalto contra os seus corações e contra os seus meios de vida.

A Caixa Econômica Perseverança Brasileira é uma instituição que faz honra ao país, honrando ao seu fundador; a polícia a manda difamar e até a ameaça de pedir ao Governo a sua supressão, e isto só porque o cidadão João Clapp não quer alistar-se no batalhão dos capitães-do-mato.

E o mais doloroso, senhor, é que o dinheiro que nós pagamos para ser despendido com a garantia oficial da nossa honra e da nossa vida de cidadãos, é esse dinheiro sagrado que a polícia desvia para empregar criminosamente em difamar-nos. A conseqüência de tais atos é a recrudescência da perversidade dos senhores contra os escravizados.

Ainda anteontem, duas menores foram exibidas ao público e à imprensa e só não o foram a Vossa Majestade, porque estava em Petrópolis. Eduarda e Joana atestaram pelos seus corpos chagados, pelos rostos desfigurados, pelos gilvazes do relho infamante, a hediondez da instituição fatal, que nós combatemos.

Joana está às portas da morte; é uma tuberculosa; o seu leito de moribunda não bastou para servir de anteparo à perversidade do algoz.

Quer agora Vossa Majestade saber até onde tem descido este país? Tem havido dificuldade em fazer o corpo de delito nas supliciadas.

Vossa Majestade pode medir por esta revelação qual o abismo a que temos descido e qual a sua profundidade.

Senhor, estas linhas, que pretensiosamente aspiram a um olhar vosso, têm por fim somente uma súplica e entretanto não encerram nem queixa, nem pedido de piedade.

Sei que na polícia da corte se estão forjando processos contra todos os abolicionistas.

Sou um deles.

Nesses processos visa-se a nossa dignidade. A lei manda punir o açoutador de escravos, mas não é a este que os processos se dirigem; é à honra dos audazes que se afoutaram a perturbar o sono e a tranqüilidade dos piratas e seus herdeiros, vossos protegidos, comensais e sustentadores.

Vossa Majestade ordene à polícia que no meu processo, ao inquérito siga-se imediatamente a prisão preventiva, e ordem de execução clandestinamente na Casa de Detenção.

Vossa Majestade vê que eu não me dirijo mais a ninguém. É com Vossa Majestade somente que eu me entendo.

Sei que só vivo, porque Vossa Majestade não tem consentido no meu assassinato.

Correspondo a esse favor fazendo-vos a súplica que aí fica.

Eu não quero viver desonrado e Vossa Majestade sabe que no esterquilínio da polícia secreta há elementos para fazer pairar a dúvida sobre a reputação mais firmada.

É só, imperial senhor.

No mais desejo que Vossa Majestade viva feliz e que nunca, nem por si, pelos seus, sofra as torturas infligidas à raça, de que Vossa Majestade bebe o sangue e as lágrimas sob a forma de lista civil.

13 fev. 1886

Temos na pasta da Agricultura um novo Jefferson Davis.

O sr. Antônio Prado entende que a pedra fundamental do Estado deve ser a escravidão e só a escravidão. Nem um palmo de chão redimido neste negro território cativo. Nem um lampejo na homogeneidade da treva. Tudo escuro, noite velha para o sabath das agonias sem fim.

Daí o ilustre ministro fechar todas as frestas por onde possa entrar uma réstia de claridade para dentro do cárcere sombrio, onde uma raça desventurada dorme o sono pesado das galés perpétuas a que foi condenada.

O Amazonas e o Ceará, esses dous regatos afluentes do grande Jordão, que em 1889 há de batizar o Brasil na religião da igualdade humana, respingam a consciência esclavagista com gotas frias como o sangue remorditivo na fronte do rei Canuto.

O sr. ministro da Agricultura entendeu que devia secá-los, aterrá-los com o lixo humano da escravidão.

S. Ex.ª não quer águas cristalinas; só lhe aprazem os pântanos, sejam os formados pelo enxurro da instituição maldita, sejam os do dr. Possidônio.

Mandou restaurar o tráfico em terras emancipadas. Nada de quebrar-se a integridade da vergonha nacional.

A lei de 28 de setembro de 1871, a Lei Rio Branco, mandou que nenhuma carta de liberdade pudesse ser cassada, e para isso derrogou a Ordenação.

Já o Direito Romano havia preceituado: que uma vez proferida uma lei sobre liberdade, nunca pudesse ser revogada: semel pro libertate dictam sententiam retractari non opportet.

Mas o sr. ministro da Agricultura, que reconhece a escravidão como contrária à Religião, à Moral e à Filosofia não é homem que se atenha a semelhantes nugas. Decretou sem cerimônia que o Ceará e o Amazonas se reenquadrem na escravidão. A prova é o seu ofício ao presidente do Ceará, nestes termos:

«Ilm.º, e Exm.º Sr.- Tratando V. Ex.ª de dar execução à Lei n. 3.270, de 28 de setembro de 1885, ordenou por ofício de 28 de janeiro à Tesouraria de Fazenda que a nova matrícula de escravos e o arrolamento dos libertos pela idade sejam abertos tão-somente no Município de Milagres, onde se verificou a existência de 298 escravos depois do ato comemorativo da extinção do elemento servil dessa província em 25 de março de 1884.

Não aprovo o ato de V. Ex.ª pelo motivo exposto no aviso que em data de 23 do corrente expedi à Presidência do Amazonas; e recomendo-lhe que faça remeter a todos os municípios da província os livros respectivos e as instruções convenientes para que o serviço da matrícula e do arrolamento sejam ali iniciados na forma prescrita pelo Regulamento de 14 de novembro do ano passado.

Fica assim respondido o ofício de V. Ex.ª de 1 do corrente.

Deus guarde a V. Ex.ª.- Antônio da Silva Prado.- Sr. presidente da província do Ceará.»


Quer isto dizer que o sr. ministro da Agricultura reduz de novo à escravidão o Ceará e o Amazonas.

Pode-se iniciar naqueles territórios livres a matrícula de escravos!

No seu opúsculo hoje publicado, Eclipse do Abolicionismo, Joaquim Nabuco diz esta grande verdade a respeito do imperador:

«... sabe que nunca perguntou aos milhares de pequenos senhores feudais possuidores do território e do povo da sua monarquia, quando lhe iam humildemente beijar a mão e ele os fazia barões e viscondes: Como estão seus escravos? S. M. sempre foi um bom limítrofe: suserano de cada um deles, vassalo de todos eles juntos, o representante da Realeza nunca atravessou a linha divisória entre a soberania do Estado e a soberania da Escravidão.»


O aviso do sr. ministro da Agricultura e a conservação do atual ministério é uma prova real desta afirmação.

Se o imperador não fosse, como é, um liberto com condição de servir à oligarquia dos traficantes de carne humana, revoltar-se-ia contra um ministério, que abusando da fraqueza de um povo e da velhice anêmica de um rei, governa-o com as mãos tintas do sangue, derramado durante as eleições, e se deleita em ostentar a barbaria da classe de que é representante.

Admitamos por um momento que há regiões do país em que a escravidão é necessária; admitamos que há províncias cuja fortuna está chumbada, como uma corrente de sentenciado, aos pés do escravo.

O Governo seco do interesse pode justificar por esta circunstância a conservação do elemento escravo nessas regiões.

Não assim, porém, quanto a regiões que, emancipando-se, declararam prescindir daquele condenado instrumento de trabalho. Nada justifica a imposição do escravo a províncias, que declararam espontaneamente dispensá-lo.

O sr. Antônio Prado faz muito bem: o vencedor deve aproveitar-se da vitória.

Restaurando a escravidão no Ceará, não é aos abolicionistas plebeus, sem forças para puni-lo, não é a esses que S. Ex.ª vence: é ao imperador.

O imperador é um dos cúmplices do crime de libertação do Ceará.

Nas vésperas da primeira libertação do município desta província, Sua Majestade recebeu este telegrama:

«A Sua Majestade o Imperador.

Acarape liberta-se por subscrição popular; falta o nome de Vossa Majestade.

José do Patrocínio.»


E Sua Majestade cavalheirosamente respondeu pela Mordomia mandando 1:000$ para a subscrição popular.

Mais tarde, quando a província libertou-se, ainda o imperador aplaudiu o ato.

O imperador, portanto, reconheceu a libertação do Ceará: considerou-a regular e legal.

Fez mais: aceitou dos cearenses desta corte uma pena de águia, cravejada de brilhantes, para assinar com ela o decreto da emancipação total dos escravos do Brasil. E Sua Majestade mostrou-se contente com a lembrança de seu nome em hora de tamanho regozijo nacional.

Consentir na abertura de matrículas na província é, pois, confessar-se vencido.

Certos de que o imperador não é senão o delegado da escravidão no trono; certos de que Sua Majestade não pode sacrificar a sua posição e a de sua família por amor de um milhão de desgraçados; vamos pedir-lhe um favor:

Continue Sua Majestade a receber a sua lista civil arrancada a relhadas das costas da escravatura; continue a arrebicar-se com os papos de tucano, que têm a maciez da carne esponjosa das chagas dos escravos surrados.

Nós não queremos indispô-lo com o seu séquito, nem torturar-lhe o coração fazendo-o ser repreendido como o foi por ocasião em que entrou o doudo no palácio de Petrópolis, dia aziago em que Sua Majestade ouviu estas palavras:

-Também para que é que se mete com a abolição.

Queremos um favor muito simples: é que Sua Majestade restitua aos cearenses a pena que recebeu.

Ela não lhe pertence mais; Sua Majestade não tem mais o direito de servir-se dela, salvo se a quer empregar em escrever a ordem de destruição dos últimos abolicionistas.

A não ser para dar-lhe esse emprego, não vemos nenhuma razão para Sua Majestade guardá-la.

Sua Majestade deve restituir a pena de águia do abolicionismo; nos seus dedos só fica bem a pena de pato do servilismo nacional.

6 mar. 1886

O imperador não cabe em si de contente. Sua Majestade fazia o maior empenho em ter nos seus domínios a grande atriz que é um dos orgulhos da França, aquela a que a moderna crítica chama simplesmente Mlle. Sarah Bernhardt para significar que vê nela representada a eterna virgindade de arte.

Que noites deliciosas tem tido o nosso augusto amo e senhor! Como Sua Majestade baba e cochila! Não é só o papel vermelho do seu camarim que lhe empresta à fisionomia os tons quentes, que a revestem durante alguns lances; é principalmente o reflexo da labareda de júbilo que lhe escalda a imaginação. Crepitam-lhe fagulhas nos olhos; há no seu corpo durante as cenas violentas movimentos de serpentes de faraó de fogo de salão.

É preciso ser feliz para ter um país nas condições atuais do Brasil: o sr. Cotegipe para dominá-lo pela gargalhada; Sarah Bernhardt para embriagá-lo com a ambrosia dos deuses.

Desde que chegou a imortal atriz, o termômetro político baixou até zero. Ninguém mais se ocupou nem das oscilações do câmbio, nem da baixa das apólices, da retração do café, nem das depurações violentas e escandalosas, nem da atitude desdenhosa do sr. presidente do Conselho. O próprio espólio Sousa Carvalho, que emalha em si a honra da magistratura, não tem despertado o interesse que era de esperar, em um país onde cada um cuidasse mais dos seus direitos sociais e políticos do que dos seus prazeres.

Entretanto, cada um destes assuntos é ou sintoma da aproximação de uma época revolucionária, ou da mais completa decadência popular. O estudo dos fenômenos políticos desdobrados ultimamente em nossa História leva o espírito imparcial a cogitar em dias amargos para a pátria.

Onde irá parar este país, onde o Governo só se apresenta como o fator da ruína moral, econômica e política do povo?

Na decadência a mais completa, dizem os que comparam o estado do país com a atitude do sr. presidente do Conselho.

S. Ex.ª reduziu o Governo representativo a uma exibição do Rigoletto tomando para si o papel do velho bufão do nosso velho duque de Mântua.

Aos protestos que a honra levanta, aos soluços com que a pátria, a grande família, se desafoga; S. Ex.ª responde com umas jogralices, acompanhadas pelo coro dos apoiados da maioria.

Mas, S. Ex.ª é um Rigoletto incorrigível, porque voltou a servir na corte, depois de lhe ter caído em casa uma vez, o capricho do seu soberano.

Já a sua reputação, filha dileta de longos anos de disciplina partidária, de serviços aos seus amigos, foi manchada pelo capricho imperial, que não só quis que se soubesse não ter intervindo na marcha política durante a fase do incognito, como, também, condenou pela dissolução a Câmara e o partido que haviam emprestado a sua co-responsabilidade ao erro da comandita Januário & Masset.

Entretanto, o Rigoletto imperial presta-se ainda a colocar-se diante dos que se queixam e cobre o seu soberano com uma pirueta e quatro momices.

Têm, pois, razão, os que inferem do exame do presente a decadência absoluta do povo.

Era o próprio decoro pessoal que impedia o sr. de Cotegipe de tomar a atitude que tem tomado.

S. Ex.ª ou não devia aceitar o Governo, ou tomando-o devia fazer dele um meio de reabilitação do seu nome.

De toda a carreira parlamentar de S. Ex.ª, só há uma página de que a História tomará conhecimento: é a que foi escrita pelo sr. Cesário Alvim, durante o ministério em que S. Ex.ª havia merecido do sr. Ferreira Viana, referindo-se ao abandono da eleição direta, o célebre primo vivere deinde philosophare (sic).

Era de esperar que S. Ex.ª, uma vez presidente do Conselho, apagasse com a esponja de grandes medidas essa página tristíssima da sua vida política.

Deu-se justamente o contrário: S. Ex.ª no Governo não fez mais do que entrar numa grande comandita eleitoral para passar esses contrabandos parlamentares, chamados Jaime Rosa, Clarindo Chaves, Mílton, Alfredo Correia, Paulino Chaves, Seve Navarro, Teodoro Machado e não sabemos quantos outros, sem falar nos Marcondes Figueira, que tiveram de afrontar a bacamarte as portas da alfândega eleitoral, por não haver perícia de conferente que lhes pudesse arranjar sorrateiramente o despacho.

O sr. presidente do Conselho continuou o resto do ministério Caxias.

Na questão da escravidão, S. Ex.ª tinha opinião expressa em projeto e em discurso, com relação ao tráfico interprovincial.

No discurso com que sustentou o seu projeto, o deputado Vanderlei deixou bem claro: primeiro que se faria o tráfico ilegal de africanos; segundo, que pelo tráfico interprovincial se reduziriam pessoas livres à escravidão.

Pois bem, chamado à presidência do Conselho, justamente no momento em que se discutia uma lei sobre escravidão, o sr. barão de Cotegipe homologa os crimes dos dois tráficos e o que é mais se responsabiliza pela iniciação do tráfico de vítimas para a tortura, nomeando chefe de polícia o sr. Coelho Bastos e dando-lhe carta branca para proceder à captura e entrega de escravizados aos seus escravizadores!

Para se ter coragem de proceder de tal forma, em uma questão que é essencial na constituição de uma nacionalidade; para ter desplante suficiente no afrontar assim face a face a história é preciso ter certeza de que se está governando um povo decadente, incapaz de um assomo de dignidade para salvar a sua honra vilipendiada pelo Governo.

Certo do povo, que está governando, o sr. barão de Cotegipe limita-se a assalariar BRAVI na imprensa e a amaciar os amuos do imperador.

S. Ex.ª sabe que a opinião verdadeira, real, e que tem força para se fazer respeitar, está em S. Cristóvão, a outra, a que quer libertar os pretinhos, na frase de S. Ex.ª que deles descende, não tem valor nenhum.

Daí em vez de subir até onde o podia levar o seu talento, que só tem sido fatal ao país; S. Ex.ª reduz-se ao papel de Rigoletto parlamentar, zombando das causas mais respeitáveis e mais santas.

Por sua vez o imperador está contente com S. Ex.ª.

Dizia-se que o Ministério Cotegipe era uma conspiração contra a onipotência do sr. d. Pedro II, que S. Ex.ª era o Júpiter da boa causa que ia enfim destronizar o velho Saturno, que se compraz em devorar os próprios filhos, o filhotismo e a corrupção.

Mas o sr. d. Pedro II está hoje convencido de que o sr. de Cotegipe não é homem de que um neto de d. João VI tenha medo. Quando muito, o sr. de Cotegipe se recolhe à sua asma para protestar contra as sabatinas.

E entendem-se bem os dous, e ainda melhor o povo. O imperador faz o que quer para o sr. barão de Cotegipe defender, o sr. de Cotegipe faz o que quer para o ministério sustentar, o ministério faz o que quer para o parlamento apoiar: o parlamento faz o que quer para o país aturar, e o povo atura tudo para glória do imperador, do ministério e do parlamento.

Neste país não se pode mais falar sério, nem propor coisa séria. Como são ridículos os srs. Dantas e José Bonifácio falando em honra nacional, quando estão em discussão o espólio do visconde de Sousa Carvalho e o contrato Brianthe. Vamos dar um conselho a S. Ex.ª: este país é um grande espólio do sr. d. Pedro II. Metam-se nele os srs. Dantas e José Bonifácio.

5 jun. 1886

Grande tem sido a desforra tomada pelo sr. barão de Cotegipe contra o imperador, tamanha, que a triste posição do vencido torna saliente a falta de generosidade do vencedor.

De volta de sua última viagem à Europa, o imperador entendeu que estava bastante forte para suprimir o ilustre barão, e todos sabem que Sua Majestade levou o seu puritanismo ao ponto de negar-se a fala com o ex-presidente do Conselho Honorário da regência.

O sr. de Cotegipe resignou-se ao exílio a que foi condenado, mas para conquistar com o trabalho silencioso da madrépora o oceano da opinião, que turbilhonava por cima do seu nome, até vir à flor e emparcelá-lo contra aquele que S. Ex.ª apontava como o agitador mais poderoso desse oceano.

Afinal, S. Ex.ª pôde colocar-se face a face com o imperador; medi-lo de alto a baixo e oferecer-lhe sorrindo o mais extraordinário combate que de memória de homens tem sido travado nesta terra entre o supremo poder e um ministério.

Não queremos negar ao sr. barão de Cotegipe o nosso testemunho de admiração pela sua habilidade.

A História há de talvez descobrir que S. Ex.ª fez o maior sacrifício que um homem do seu talento pode fazer: aniquilar-se para destruir o seu inimigo.

Ninguém também desfechou mais rude golpe no imperador do que S. Ex.ª.

Há muito tempo que se diz que o imperador finge democracia para consolidar a tirania; desinteresse para melhor servir ao seu egoísmo dinástico, magnanimidade para poder facilmente explorar um povo.

Faltava, porém, apanhar o imperador em flagrante delito e o sr. barão de Cotegipe se encarregou dessa grande diligência histórica.

S. Ex.ª começou por insubordinar-se e dar a senha da insubordinação aos seus ministros nos despachos imperiais.

Já não é mais um dever de ministério ir aos sábados conferenciar com o imperador e receber as suas ordens para converter em decretos.

Vão a despacho os ministros que assim o entendem, e os que têm visita em casa, ou algum motivo de enfado não se incomodam em fazer a viagem até S. Cristóvão.

O próprio presidente do Conselho recolhe-se à sua asma, quando o imperador se permite a liberdade de sabatiná-lo.

Estes fatos, que se tornaram mais ou menos públicos, não puderam entretanto ser tirados a limpo, porque o imperador empregou o maior esforço para ocultá-los.

O sr. barão de Cotegipe insistiu, porém, em divulgar o pouco caso que liga a Sua Majestade e escolheu uma ocasião para desconsiderar coram populo o onipotente da véspera e servidor submisso de hoje.

Toda a gente viu o imperador, abandonado do ministério, andar a carregar o pálio na procissão de Corpus Christi, desconsolado e trôpego.

De todo o gabinete, só compareceu o sr. barão de Mamoré, o ministro que todos os companheiros querem privar da pasta, o ministro que, por isso mesmo, precisa de socorrer-se da proteção do imperador.

É que o sr. barão de Cotegipe tomou a peito demonstrar que Sua Majestade não é o que parece; suporta de bom humor aqueles que servem à sua política, isto é, aos seus interesses dinásticos, por maiores que sejam as humilhações infligidas à sua pessoa.

O nobre barão quer que se saiba uma única coisa e que entre ele e o imperador só há um laço comum -a escravidão, e enquanto S. Ex.ª o apertar na medida das conveniências do trono, o imperador ficará a seu serviço.

E S. Ex.ª trocou afoitamente os papéis políticos. Outrora eram os ministérios que serviam ao imperador, agora é o imperador que é serviçal aos ministérios.

Por muito menos do que tem feito o sr. barão de Cotegipe o imperador declarou-se incompatível com o sr. Silveira Martins, e moveu-lhe esta guerra, que principiou pela cisão Osório e que só acabou com as violências do sr. Lucena.

O sr. presidente do Conselho, porém, tem carta branca para tudo, porque nele reside a confiança do único poder real neste país: o esclavagismo.

A vingança do sr. Cotegipe era demonstrar justamente isto e provar que se ele inconscientemente fez parte de uma casa contrabandista, de que não auferiu lucros, o imperador é sócio solidário dessa empresa secular de contrabando -chamada escravidão.

E fê-lo.

O imperador não pode mais, com justiça, gozar dessa reputação de homem desinteressado, com que se pavoneou até bem pouco tempo. Toda a gente tem o direito de supor que logo que um negócio qualquer dê lucro para a sua herança o imperador o consente.

Não queremos com esta afirmação aludir à liquidação do sr. conde d'Eu com o sr. Jourdan, coisa que o imperador devia já ter feito ultimar; referimo-nos ao novo regulamento, à ilegalidade de 13 do corrente.

Sua Majestade consentiu por interesse próprio na incorporação do município neutro à província do Rio de Janeiro, para os efeitos do tráfico de carne humana.

Onde a lei não distingue, ninguém pode distinguir e não obstante, não tendo a lei negra distinguido o município neutro, o regulamento o fez com a rubrica do imperador.

O legislador não disse: para o caso de transferência de escravos, o município neutro faz parte da província do Rio de Janeiro. Não o disse e é preciso que se note que ele tem sempre especificado este município quando legisla.

Esta observação não podia deixar de acudir ao espírito ilustrado e sagacíssimo do imperador, e no entanto Sua Majestade prestou-se a assinar esse regulamento, que não pode ser respeitado, nem obedecido, por ser abusivo e ilegal.

Também não podia de forma nenhuma passar despercebida à reflexão do imperador as relações fiscais que o novo regime da escravidão estabeleceu e no entanto, quando a assembléia provincial nada tem com o município neutro, nem este com aquela, Sua Majestade consente que o mesmo escravo fique sob duas legislações diferentes, com prejuízo dele e de seu próprio senhor.

Ninguém tenha dúvida a respeito da separação administrativa existente entre o município neutro e a província.

Cândido Mendes, autoridade insuspeita para o Gabinete, como para todos os que sabem que esse ilustre brasileiro foi uma das glórias da jurisprudência brasileira, Cândido Mendes diz terminantemente:

«O município neutro é uma criação do ato adicional no art. 1º. O seu território pertence à circunscrição da província do Rio de Janeiro, mas enquanto a corte estiver fixada na cidade do Rio de Janeiro, sua administração continuará independente do Governo da mesma província e por isso imediatamente sujeita ao Governo, pela repartição do ministério do Império.»


O Gabinete, porém, entendeu que devia servir à província do Rio de Janeiro um grande mercado de escravos e o imperador que aufere daí o lucro da simpatia dos herdeiros da pirataria e piratas sobreviventes, fechou os olhos e assinou.

E o mais interessante é que os defensores do ministério desde o sr. Gusmão Lobo, jornalista oficial do Ministério da Agricultura, tão dedicado ao sr. Dantas como ao sr. A. Prado, até o mais latrinário Y. das colunas pagas dos jornais, todos escondem o ministério por trás do imperador, ponderando:

-Toda gente sabe que o imperador é abolicionista, e não assinaria o regulamento se ele fosse contrário aos escravos.

Eis onde o sr. barão de Cotegipe queria chegar. S. Ex.ª visava ao dia, à hora, ao momento em que, nos próprios atos do imperador, ele pudesse fazer o país ler esta declaração de S. Ex.ª:

«Eis aí o homem que me condenou. Fê-lo, não por convicção, porque ele não a tem, nem a teve nunca; oscila à mercê dos seus interesses.

Ontem, para agradar o poviléu que vociferava, ele despediu-me do poder, como aplaudiu o sr. Dantas, julgando que ali é que estava a força; que a correnteza dos acontecimentos provinha de um declive real no solo moral do país.

Hoje ele pensa que a força está com o esclavagismo, como de fato está, e está pronto a sancionar tudo, quando nós queremos, a rubricar tudo quando nós lho ordenamos.

Nós especificamos o município neutro não especificado na lei e ele assinou.

Nós cometemos duas usurpações, ao mesmo tempo: o regulamento roubou ano e meio à libertação dos escravos, e ele assinou; um ato do Ministério da Fazenda roubou nove meses do imposto de 5% e ele ainda assinou.

Aí tem o homem que por um requinte de honestidade condenou-me na questão das popelines; aí tem a inteireza moral que não se dobra quando se trata de questões de honra.

As leis são um depósito sagrado de direitos nas mãos dos soberanos, e o sr. d. Pedro II não trepidou em meter a mão neste depósito para dar o município neutro em hipoteca ao sr. Belisário, e ano e meio e mais 5% durante nove meses aos pupilos da pirataria.

A responsabilidade é toda dele, que pode nomear e demitir livremente os seus ministros e me conserva, porque eu represento a escravidão.»


Grande desforra a do sr. barão de Cotegipe. Só pelo deleite de S. Ex.ª na tremenda vingança deve-se ver nele o deus dos nossos estadistas.

26 jun. 1886