Selecciona una palabra y presiona la tecla d para obtener su definición.
Siguiente


Siguiente

A poesia interminável de Cruz e Sousa

João da Cruz e Sousa

Julieta dos Santos

A idéia ao infinito

À distinta e laureada atrizinha Julieta dos Santos

«... A fama de teu nome, a inveja

não consome, o tempo não destrói!...

Dr. Symphronio



Era uma coluna de artistas!...

Ao lado Tasso

medindo as múltiplas conquistas

co'as amplidões do espaço!...

Seguia-se João Caetano
5

embuçado da glória no divinal arcano!...

Depois Joaquim Augusto

altivo, sobranceiro, erguido o nobre busto.

Depois Rachel, Favart,

Fargueil, a espadanar
10

nas crispações homéricas da arte,

constelações azuis por toda a parte!

E em suave ondulação os astros

iam de rastros

roubar mais luz às rúbidas auroras!...
15

Quais precursoras

do mais ingente e mago dos assombros,

do orbe imenso nos calcáreos ombros,

rola um dilúvio, um grande mar de estrelas

que lançam chispas cambiantes, belas!...
20

Há um estranho amalgamar de cousas

como os segredos funerais das lousas

ou o rebentar de artérias

-Ou o esgarçar de brumas,

negras, cinéreas
25

-Ou o referver de espumas,

nas longas praias

alvinitentes, mádidas, sem raias.

Do brônzeo espaço,

das fibras d'aço
30

como que desloca-se um pedaço

que vai ruir com trépido sarcasmo

nas obumbradas regiões do pasmo...

-O Invisível

geme uma música, lânguida, saudosa,
35

que vai sumir-se na entranha silenciosa

do impassível!

-O Imutável

-O Insondável

la vão cair no seio do incriado.
40

E o bosque irado

a soletrar uns cânticos titânios

lança nos crânios

aluvião de auras epopéias

tétricas idéias!...
45

E o pensamento embrenha-se nos mares

e vê colares

de níveas pérolas, límpidas, nitentes

e vê luzentes

conchas e búzios e corais, -ondinas
50

que peregrinas

aspásias são de lúcida beleza,

de moles formas, desnudadas, brancas

sendo a primesa

dessas paragens hiemais e francas!...
55

-Ou quais Frinés

a quem aos pés

o mundo em ânsias, reverente adora

e chore e chora!!...

Mas a idéia o pensamento insano
60

as asas bate em busca de outro arcano,

e o manto rasga do horizonte eterno

vai ao superno

ao Criador, ao Menestrel dos mundos!

E n'uns arroubos, rábidos, profundos
65

em luta infinda

-Oh! quer ainda

quer escalar o templo do impossível,

bem como um raio abrasador, terrível!...

Quer se fartar de maravilhas loucas,
70

quer ver as bocas

dos colossais Anteus da eternidade!...

Quer se fartar de luz e divindade

e de saber,

depois jazer
75

nas invisíveis dobras do insondável,

bem como um verme, mísero, imprestável!...

-Ou quer ousado

descortinar os crimes do passado

e apalpar as gerações dos Gracos
80

dos Espartanos

e dos Troianos

e dos Romanos,

dos Sarracenos

e dos Helenos,
85

e esbarrar nesse montão de ossos

por esses fossos

tredos, medonhos, sepulcrais e frios

onde sombrios

andam espíritos de pavor, errantes
90

e vacilantes

como a luzinha das argênteas lampas,

lentos e lentos através das campas!...

Mas a idéia, o pensamento audaz

quer ainda mais!...
95

Quer do ribombo do trovão pujante

já n'um esforço adamastório, tredo

embora a medo,

-O atroz segredo

com que ele faz a terra palpitante!...
100

E quer dos ventos

dos elementos

quer do mistério a solução! -Nas trevas

hórridas, sevas,

a gargalhada
105

ríspida, negra irônica, pesada,

estruge enfim, da morte legendária,

e a idéia vária

ainda n'isso ousando penetrar,

tenta sondar!...
110

E em vão, em vão

a mergulhar-se em tanta confusão

não mais compreende

-O que saber pretende!...

Assim, oh! gênio,
115

na ofuscadora auréola do proscênio

não sei se és astro, se és Esfinge ou mito,

se do infinito

possuis o encanto, os esplendores grandes,

ou se dos Andes
120

águia tu és, ou és condor divino,

-ou és cometa de cuja cauda enorme

é multiforme

só lágrimas de prata

ou mesmo se desata
125

um vagalhão de palmas, diamantino!!...

Minh'alma oscila e até na fronte sinto

medonho labirinto,

estúpida babel,

e vou cair, revel
130

no pélago sem fim dos nadas materiais!...

E como os racionais

eu fico a ruminar ainda umas idéias

de erguer-te, o novo Talma

um trono singular, mas feito de -Odisséias
135

de brancas alvoradas,

plímpicas, nevadas,

dos êxtases magnéticos, nervosos de minh'alma!


Soneto

-Os Trópicos pulando as palmas batem...

Em pé nas ondas -O Equador dá vivas!...


Ao estrídulo solene dos bravos! das platéias,

prossegues altaneira, oh! ídolo da arte!...

-O sol pára o curso p'ra bem de admirar-te

-O sol, o grande sol, o misto das idéias!...

A velha natureza escreve-te odisséias...
5

A estrela, a nívea concha, o arbusto... em toda a parte

retumba a doce orquestra que ousa proclamar-te

assombro do ideal, em duplas melopéias!

Perpassam vagos sons na harpa do mistério

lá, quando no proscênio te ergues imperando
10

-oh! Íbis magistral do mundo azul -sidéreo!

Então da imensidade, audaz vem reboando

de palmas o tufão, veloz, febril, aéreo

que cai dentro das almas e as vai arrebatando!...


Soneto

Á Julieta dos Santos


Dizem que a arte é a clâmide de idéia

a peregrina irradiação celeste,

e d'isso a prova singular já deste

sorvendo d'ela a divinal sabéia!.

Da «Georgeta» na feliz estréia,
5

asseverar-nos ainda mais vieste

que és um gênio, que te vais de preste

tornando o assombro de qualquer platéia!...

Sinto uns transportes fervorosos, ledos

quando nas cenas de sutis enredos
10

fulgem-te os olhos co'a expressão dos astros!...

E as turbas mudas, impassíveis, calmas

sentem mil mundos lhes crescer nas almas...

Vão-te seguindo os luminosos rastros!...


Soneto

À Julieta dos Santos


Um dia Guttemberg c'o a alma aos céus suspensa,

pegou do escopro ingente e pôs-se a trabalhar!

E fez do velho mundo um rútilo alcançar

ao mágico clangor de sua idéia imensa!

Rolou por todo o globo a luz da sacra imprensa!
5

Ruiu o despotismo no pó, a esbravejar...

Uniram-se n'um lago, o céu, a terra, o mar...

Rasgou-se o manto atroz da horrível treva densa!...

Ergueram-se mil povos ao som das melopéias,

das grandes cavatinas olímpicas da arte!
10

raiou o novo sol das fúlgidas idéias!...

Porém, quem lança luz maior por toda a parte

és tu, sublime atriz, ó misto de epopéias

que sabes no tablado subir, endeusar-te!...


Soneto

À Julieta dos Santos


É delicada, suave, vaporosa,

a grande atriz, a singular feitura...

É linda e alva como a neve pura,

débil, franzina, divinal, nervosa!...

E d'entre os lábios cetinais, de rosa
5

libram-se pérolas de nitente alvura...

E doce aroma de sutil frescura

sai-lhe da leve compleição mimosa!...

Quando aparece no febril proscênio

bem como os mitos do passado, ingentes,
10

bem como um astro majestoso, helênio...

Sente-se n'alma as atrações potentes

que só se operam ao fulgor do gênio,

às rubras chispas ideais, ferventes!...


Soneto

À Julieta dos Santos


Imaginai um misto de alvoradas

assim com uns vagos longes de falena,

ou mesmo uns quês suaves de açucena

c'os magos prantos bons das madrugadas!...

Imaginai mil cousas encantadas...
5

O tímido dulçor da tarde amena,

as esquisitas graças de uma Helena,

as vaporosas noites estreladas...

Que encontrareis então em JULIETA

o tipo são, fiel da Georgeta
10

nos dois brilhantes, primorosos atos!...

E sentireis um fluido magnético

trêmulo, nervoso, mórbido, patético,

bem como a voz dos langues psicattos!...


Soneto

À Julieta dos Santos


Parece que nasceste, oh! pálida divina,

para seres o farol, a luz das puras almas!...

Parece que ao estridor, ao frêmito das palmas

exalças-te feliz à plaga cristalina!...

Parece que se partem, angélica Bambina,
5

às campas glaciais dos Tassos e dos Talmas,

lá quando no tablado as turbas sempre calmas

transmutas em vulcão, em raio que fulmina!...

E quando majestosa, em lance sublimado

dardejas do olhar, olímpico, sagrado
10

mil chispas ideais, titânicas, ardentes!...

Então sente-se n'alma o trêmulo nervoso

que deve ter o mar, fantástico, espumoso

nos grossos vagalhões, indômitos, frementes!!...


Soneto

À Julieta dos Santos


Quando apareces, fica-se impassível

e mudo e quedo, trêmulo, gelado!...

Quer-se ficar com atenção, calado,

quer-se falar sem mesmo ser possível!.

Anda-se c'o a alma n'um estado horrível
5

o coração completamente ervado!...

quer-se dar palmas, mas sem ser notado,

quer-se gritar, n'uma explosão temível!...

Sobe-se e desce-se ao país das fadas,

vaga-se co'as nuvens das mansões doiradas
10

sob um esforço colossal, titânio!...

E as idéias galopando voam...

Então lá dentro sem parar, ressoam

as indomáveis convulsões do crânio!!...


Soneto

À Julieta dos Santos


Lágrimas da aurora, poemas cristalinos

que rebentais das cobras do mistério!

Aves azuis do manto auri-sidéreo...

Raios de luz, fantásticos, divinos!...

Astros diáfanos, brandos, opalinos,
5

brancas cecéns do Paraíso etéreo,

canto da tarde, límpido, aéreo,

harpa ideal, dos encantados hinos!...

Brisas suaves, virações amenas,

lírios do vale, roseirais do lago,
10

bandos errantes de sutis falenas!...

Vinde do arcano n'um potente afago

louvar o Gênio das mansões serenas,

esse Prodígio singular e mago!!...


Julieta dos Santos

Tu passas rutilante em toda a parte

oh! sol de nossa pátria, oh! sol da arte!...

Virgílio Várzea



Quando eu te vi pela primeira vez no palco

avassalando as almas,

n'um referver de palmas,

cheia de vida e cândido lirismo!

Senti na mente uns divinais tremores...
5

e louco e louco,

a pouco e pouco

vi rebentar o inferno cataclismo!...

Mil pensamentos galoparam, céleres

por minha fronte
10

e do horizonte

quis arrancar os astros diamantinos,

para arrojá-los a teus pés mimosos

e arrebatado,

fanatizado
15

por entre um mar de cintilantes hinos!...

Esse teu busto, a genial cabeça

tão bem talhada

e burilada

com o escopro límpido da arte,
20

tem umas puras fulgurações suaves

e a tu'alma

ardente ou calma

os corações arrasta por toda a parte!...

A encarnação tu és das maravilhas,
25

a doce aurora,

branda e sonora

das teatrais e lúcidas idéias!...

Tens no olhar o filtro que arrebata

e és profética
30

e magnética,

possuis na voz o som das melopéias!...

És a escolhida para as grandes lutas

esplendorosas

e majestosas!...
35

e sobre os débeis, delicados ombros,

bem como Homero a sua lira d'ouro,

resplandecente,

trazes pendente

o Infinito enorme dos assombros!...
40

Quando apareces tudo ri e chora,

se endeusa, agita,

como que palpita

n'uma explosão de férvidos louvores!

E o potentado mais febril da terra
45

gagueja um bravo,

e faz-se escravo

o mais severo e nobre dos senhores!...

A Dejaset, uma Favart, Rachel,

o João Caetano
50

como um arcano

imperscrutável, hórrido, terrível!...

Quebram as louças sepulcrais e frias

e te louvando

vão recuando...
55

dizem que é sonho, é mito, é impossível!

Oh! tu nasceste para suplantar, JULIETA

os grandes mundos,

os mais profundos

d'ess'arte bela, magistral, divina!...
60

E esse olhar tão expressivo e terno

já eletriza

e cauteriza...

É como um raio que a corações fulmina!...

Que sol é este, vão bradando os pólos,
65

tão sobranceiro,

que o brasileiro

o vasto império confundindo está?!...

Venham teólogos, venham sábios... todos

venham troianos,
70

venham germanos,

venham os vultos da Caldéia, lá!...

Oh! resolvei o mais atroz problema,

fundo mistério,

alto, sidéreo
75

do gênio altivo na criança, ali!...

Vamos, natura, rasga o véu dos medos,

dizei ó mares,

falai luares,

sombras dos bosques, respondei-me aqui!...
80

Astros da noite, tempestades, ventos

erguei as vozes,

falai velozes

n'um som estranho, n'um clangor audaz!...

E respondei-me e explicai ao orbe
85

se essa menina,

que nos fascina

é um fenômeno ou outro tanto mais!...

Tudo emudece na natura imensa

e desde os Andes,
90

dos cedros grandes

ao verme, à pedra, às amplidões do mar!...

Tudo se oculta na invisível raia

no espaço a bruma,

no mar a espuma
95

vão-se esgarçando também, a se ocultar!...

Tudo emudece na natura imensa

quando na cena

surges serena

como a visão das noites infantis!
100

dos olhos vivos dos que são-te adeptos

bem como prata

eis se desata

a aluvião de lágrimas febris!...

É que tu tens esse poder superno
105

real, sublime

que até ao crime

faz arrastar o mísero mortal!

É que tu és a embrionária horrível,

mística, ingente
110

que de repente

fazes de um ser estúpido animal!...

Tudo emudece na natura imensa

desde nos campos

os pirilampos
115

até as grimpas colossais do céu!...

Tudo emudece e até eu JULIETA,

já delirante

vou vacilante

cair-te aos pés como um servil, um réu!!...
120


Musas de todos os tempos

Soneto

(O desembarque de Julieta dos Santos)

Chegou enfim, e o desembarque dela

causou-me logo uma impressão divina!

É meiga, pura como sã bonina,

nos olhos vivos doce luz revela!

É graciosa, sacudida e bela,
5

não tem os gestos de qualquer menina:

parece um gênio que seduz, fascina,

tão atraente, singular é ela!

Chegou, enfim! eu murmurei contente!

Fez-se em minh'alma purpurina aurora,
10

o entusiasmo me brotou fervente!

Vimos-lhe apenas a construção sonora,

vimos a larva, nada mais, somente

falta-nos ver a borboleta agora!


Na mazurka

Morava num palácio -estranha Babilônia

de arcadas colossais, de impávidos zimbórios,

alcovas de damasco e torreões marmóreos,

volutas primorais de arquitetura jônia.

Assim, quando surgia em meio aos peristilos
5

descendo, qual mulher de Séfora, vaidosa,

envolta em ouropéis, em sedas, luxuosa,

cercavam-na do belo os místicos sigilos!

E quando nos saraus, assim como um rainúnculo,

o lábio lhe tremia e o olhar, vivo carbúnculo,
10

vibrava nos salões, como uma adaga turca,

ou como o sol em cheio e rubro sobre o Bósforo,

-nos crânios os Homens sentiam ter mais fósforo...

Ao vê-la escultural no passo da Mazurka...


Após o noivado

Em flácido divã ela resvala

na alcova -bem feliz, alegremente,

e o fresco penteador alvinitente,

de nardo e benjoim o aroma exala.

E o noivo todo amor, assim lhe fala,
5

por entre vibrações do olhar ardente:

Pertences-me afinal, pomba dormente,

parece que a razão de gozo, estala.

Mas eis -corre-se então nívea cortina;

e a plácida, a ideal, a branca lua
10

derrama nos vergéis a luz divina...

Depois... Oh! Musa audaz, ousada, e nua,

não rompas esse véu de gaze fina

que encerra um madrigal -Vamos... recua!...


Dormindo...

Pálida, bela, escultural, clorótica

sobre o divã suavíssimo deitada,

ela lembrava -a pálpebra cerrada-

uma ilusão esplêndida de ótica.

A peregrina carnação das formas,
5

-o sensual e límpido contorno,

tinham esse quê de avérnico e de morno,

davam a Zola as mais corretas normas!...

Ela dormia como a Vênus casta

e a negra coma aveludada e basta
10

lhe resvalava sobre o doce flanco...

Enquanto o luar -pela janela aberta-

-Como uma vaga exclamação -incerta

entrava a flux -cascateado- branco!!...


Crença

Filha do céu, a pura crença é isto

que eu vejo em ti, na vastidão das cousas,

nessa mudez castíssima das lousas,

no belo rosto sonhador do Cristo.

A crença é tudo quanto tenho visto
5

nos olhos teus, quando a cabeça pousas

sobre o meu colo e que dizer não ousas

todo esse amor que eu venço e que conquisto.

A crença é ter os peregrinos olhos

abertos sempre aos ríspidos escolhos;
10

tê-los à frente de qualquer farol

e conservá-los, simplesmente acesos

como dois fachos -engastados, presos

nas radiações prismáticas do sol!


Eterno sonho

Quelle est donc cette femme?

Je ne comprendra pas.


Félix Arvers



Talvez alguém estes meus versos lendo

não entenda que amor neles palpita,

nem que saudade trágica, infinita

por dentro deles sempre está vivendo.

Talvez que ela não fique percebendo
5

a paixão que me enleva e que me agita,

Como de uma alma dolorosa, aflita

que um sentimento vai desfalecendo.

E talvez que ela ao ler-me, com piedade,

diga, a sorrir, num pouco de amizade,
10

boa, gentil e carinhosa e franca:

-ah! bem conheço o teu afeto triste...

E se em minha alma o mesmo não existe,

é que tens essa cor e é que eu sou branca!


Lirial

Vens com uns tons de searas,

de prados enflorescidos

e trazes os coloridos

das frescas auroras claras.

E tens as nuances raras
5

dos bons prazeres servidos

nos rostos enlourecidos

das parisienses preclaras.

Chapéu das finas elites,

de rosas e clematites,
10

chapéu Pierrette -entre o sol

passando, esbelta e rosada,

pareces uma encantada

canção azul do Tirol.


Vanda

Vanda! Vanda do amor, formosa Vanda,

macuama gentil, de aspecto triste,

deixa que o coração que tu poluíste

um dia, se abra e revivesça e expanda.

Nesse teu lábio sem calor onde anda
5

a sombra vã de amores que sentiste

outrora, acende risos que não viste

nunca e as tristezas para longe manda.

Esquece a dor, a lúbrica serpente

que, embora esmaguem-lhe a cabeça ardente,
10

agita sempre a cauda venenosa.

Deixa pousar na seara dos teus dias

a caravana irial das alegrias

como as abelhas pousam numa rosa.


Éxtase

Quando vens para mim, abrindo os braços

numa carícia lânguida e quebrada,

sinto o esplendor de cantos de alvorada

na amorosa fremência dos teus passos.

Partindo os duros e terrestres laços,
5

a alma tonta, em delírio, alvoroçada,

sobe dos astros a radiosa escada

atravessando a curva dos espaços.

Vens, enquanto que eu, perplexo d'espanto,

mal te posso abraçar, gozar-te o encanto
10

dos seios, dentre esses rendados folhos.

Nem um beijo te dou! abstrato e mudo

diante de ti, sinto-te, absorto em tudo,

uns rumores de pássaros nos olhos.


Celeste

Vi-te crescer! tu eras a criança

mais linda, mais gentil, mais delicada:

Tinhas no rosto as cores da alvorada

e o sol disperso pela loira trança.

Asas tinhas também, as da esperança...
5

e de tal sorte eras sutil e alada

que parecias ave arrebatada

na luz do Espaço onde a razão descansa!

Depois, então, fizeste-te menina,

visão de amor, puríssima, divina,
10

perante a qual ainda hoje me ajoelho.

Cresceste mais! És bela e moça agora...

Mas eu, que acompanhei toda essa aurora,

sinto bem quanto estou ficando velho.


Amor!!...

Oferecido à Ilma. Sra. D. Pêdra como prova de imensa amizade e profundo amor que lhe consagra.


Amor, meu anjo, é sagrada chama

que o peito inflama na voraz paixão,

amo-te muito eu t'o juro ainda

deidade linda que não tem senão!

Virgem formosa, d'encantos bela,
5

gentil donzela, meu amor é teu.

vou consagrar-te mil afetos tantos

puros e santos qual também Romeu!

Flor entre as flores, a mais linda, altiva

qual sensitiva, só tu és, ó sim.
10

esses teus olhos sedutores, belos

de mil anelos, me pedirão a mim.

Anjo, meu anjo, eu te adoro e amo.

por ti eu chamo nas horas de dor.

Sem ti eu sofro; um sequer instante
15

de ti perante só me dás valor.

Meu peito em ânsias só por ti suspira

como da lira a vibrante voz!

Te vendo eu rio e senão gemendo

vou padecendo saudade atroz!
20

Amor ardente de meu coração

santa paixão em todo peito forte

eu hei de amar-te até mesmo a vida

deixar, querida, e abraçar a morte!


Rosa

A Moreira de Vasconcelos

Et, rose, elle a vécu ce que vivent les roses,

l'espace d'un matin.


Malherbe



Rosa -chamava-se a estrela

daquelas flóreas paragens;

era escutá-la e era vê-la

metida em brancas roupagens

todas de pregas e tufos,
5

de laçarotes e rendas,

ou mesmo ouvir-lhe os arrufos

ou surpreender-lhe as contendas

nas lindas tardes radiadas

por cores de silforamas
10

e sentir logo, inspiradas

do amor, as férvidas chamas.

Ela era um beijo fundido

ao cintilar de uma aurora,

um sonho eterno espargido
15

nos belos sonhos de Flora.

E tinha uns longes sublimes

de grande força lasciva,

a transudar, como uns crimes

do sangue, da carne altiva.
20

Contava tudo... mas tanto,

em turbilhões, em cascata,

que recordava esse canto

uma garganta de prata.

E quando os poetas, rapazes,
25

a viam passar, vibrante,

mostrando as curvas audazes,

do corpo todo radiante,

diziam de entre os primores

de estrofes mais dulçurosas:
30

-Tu és a gêmea das flores,

das rosas, perfeitas rosas.

Convulsionado e sem regra

o coração nos palpita;

andas alegre e se alegra
35

a gente quando te fita.

Tens umas coisas estranhas

nas refrações da pureza...

Umas finuras tamanhas...

Uma sutil gentileza...
40

Ficas rosada se um tico

alguém te diz, de mais franco...

Mas como fica tão rico,

tão belo o rubro no branco,

nesse grácil e tão claro,
45

sereno e cândido rosto

que é mesmo um céu puro e raro

das alvoradas de agosto.

Depressa cobre-te o pejo

a face nova e adorada,
50

de sorte que sem desejo

és -Rosa e ficas rosada.

Dos risos colhes a messe

e és doce como o conforto,

és casta como uma prece
55

gemida ao lado de um morto.

Para que a dor não te obumbre

a glória de flores junca

tua vida e, por isso, nunca

nas mágoas terás vislumbre.
60

Permita o bom sol que inunda

de luz os bosques -permita

que sejas sempre fecunda

de gozo e sempre bonita.

Agora, quando alguém passa
65

por onde a estrela morava,

olhando pela vidraça

bem junto da qual bordava,

repara um silêncio triste

na sala -em crepes envolta,
70

onde parece que existe

profunda lágrima solta.

E sente por dentro d'alma

aquela angústia que esmaga

bem como em noites sem calma
75

a vaga esmaga outra vaga.

Apenas as flores lindas

que vendo Rosa morriam

com brejeirices infindas

de invejas que renasciam,
80

sem mais inúteis ciúmes,

abrem os frescos pistilos,

jogando aos céus, em perfumes,

os seus melhores sigilos.

No entanto à luz soberana
85

do amor desfilam as rimas

dos poetas -como um hosana

a quem já goza outros climas.

Rosa -chama-se a estrela

daquelas flóreas paragens;
90

era escutá-la e era vê-la

metida em brancas roupagens,

para exclamar: -Dentro dela

existe a fibra gloriosa...

Ninguém viu coisa mais bela
95

nem Rosa... tão bela rosa!...


Frêmitos

I

Ó pombas luminosas

que passais neste mundo eternamente

só a cantar os madrigais de rosas,

atravessados de um luar veemente,

inundados de estrelas e esplendores,
5

de carinhos, de bênçãos e de amores.

II

Ó virgens peregrinas,

de meigo olhar banhado de esperanças,

que perfumais com lírios e boninas

a aurora de cristal das louras tranças,
10

que atravessais constantemente a vida

do sol eterno, da visão florida.

III

Amadas e felizes

gêmeas da luz das frescas alvoradas,

vós que trazeis nas almas as raízes
15

do que é são, do que é puro -ó vós amadas

prendas gentis do paternal tesouro,

iriados corações de fluidos de ouro.

IV

É para vós que eu quero

engrinaldar de tropos e de rimas,
20

num doce verso artístico e sincero,

esgrimir com belíssimas esgrimas

a estrofe e dar-lhe os golpes mais seguros

para que brilhe como uns astros puros.

V

É só a vós, apenas,
25

que eu me dirijo, límpidas auroras,

que pelas tardes plácidas, serenas,

passais, galantes como ingênuas Floras,

coroadas de flor de laranjeira,

noivas, sorrindo à mocidade inteira.
30

VI

Porque é de vós que deve,

de vós que o sonho eterno dulcifica,

partir o lume quando cai a neve,

surgir a crença poderosa e rica.

Porque afinal, o que se chama crença,
35

senão o amor e a caridade imensa?

VII

Os tristes e os pequenos

em quem descansam brandamente os olhos,

esses humildes, rotos Nazarenos

que vivem, morrem suportando abrolhos,
40

senão nos grandes entes piedosos

que dão-lhes força aos transes dolorosos?

VIII

Oh, sim que a força eterna

parte dos corpos rijos da saúde,

perante a lei da vida que governa,
45

o nobre, o rei, o proletário rude;

parte dos seres fartos de carinhos

como de paz e de alegria os ninhos.

IX

Eu peço para todos

e peço a vós que sois as fortalezas
50

da esperança, da fé -a vós que os lodos

da miséria, do vício, das baixezas,

não denegriram essas consciências

castas e brancas como as inocências.

X

Nem se esperar devia
55

que eu tentasse bater a outras portas,

quando vós sois o exemplo de Maria;

não andais mudas, regeladas, mortas

pela noite voraz da sepultura

e escutareis os dramas da amargura.
60

XI

Não julgueis que eu vos peça,

uma alvorada feita de um sorriso;

a minh'alma garante e vos confessa

que se crê nas mansões do Paraíso,

é porque vós reinais por sobre a terra
65

e o Paraíso dentro em vós se encerra.

XII

A vós, a vós compete

a glória do dever -porque assim como

a luz do sol na lua se reflete,

também das aflições no duro assomo,
70

da pobreza refletem-se nas almas,

vossas imagens, como auroras calmas.

XIII

Portanto, a mocidade

vossa, terá de ser de hoje em diante,

enquanto a esmagadora atrocidade
75

da peste -nos vorar d'instante a instante,

quem se há de encarregar desta manobra

do galeão da vida que sossobra.

XIV

E para isso, ó rainhas

da juventude -tendes as quermesses
80

que dão bons frutos assim como as vinhas;

as matinées de cânticos e preces,

os cintilantes, pródigos bazares

onde a luz salta extravasando em mares.

XV

Enquanto a mim, na arena
85

da heroicidade humana que consola,

oh, faz-me bem a vibração da pena,

pelo amor, pelo afago, pela esmola,

como um radiante e fúlgido estilhaço

de sol febril no mármore do Espaço!
90


Adalziza

Tens um olhar cintilante,

tens uma voz dulçurosa,

tens um pisar fascinante,

tens um olhar cintilante

cheio de raios, faiscante
5

ó criatura formosa,

tens um olhar cintilante,

tens uma voz dulçurosa!...


O botão de Rosa


o campo abrira o seio às expansões frementes

das árvores senis, dos galhos viridentes.

Caía a tarde fresca

loira, gentil, vivaz como a canção tudesca.
5

A iluminada esfera

calma, profunda, azul como um sonhar de virgem,

dava um brilho-cetim às verdes folhas d'hera.

No ar uma harmonia avigorada e casta,

no crânio uma vertigem
10

duma idéia viril, duma eloqüência vasta.

Tardes formosíssimas,

ó grande livro aberto aos geniais artistas,

como tanto alargais as crenças panteístas,

como tanto esplendeis e como sois riquíssimas.
15

Quanta vitalidade indefinida, quanta,

na pequenina planta,

no doce verde-mar dos trêmulos arbustos,

que misticismo, justos,

bebia a alma inteira ao devassar o arcano
20

das árvores titãs, das árvores fecundas

que tinham, como o oceano,

febris palpitações intérminas, profundas.

Esplêndidas paisagens,

opunhas o largo campo às vistas deslumbradas.
25

As múrmuras ramagens,

à luz serena e terna, à luz do sol -que espadas

de fogo arremessava, em frêmitos nervosos,

pelo côncavo azul dos céus esplendorosos,

tinham falas de amor, segredos vacilantes
30

finos como os brilhantes.

A música das aves

cortava o éter calmo, em notas multiformes,

límpidas e graves

que estouravam no ar em convulsões enormes.
35

Aqui e além um rio

serpejava na sombra, em meio de um rochedo

áspero e sombrio.

O olhar perscrutador, o grande olhar, sem medo

e o espírito mudo,
40

como um herói gigante avassalavam tudo...

Nuns madrigais risonhos

abria-se o país fantástico dos sonhos.

Alavam-se os aromas

leais, inexauríveis
45

das largas e invisíveis

selváticas redomas.

A seiva rebentava

em ondas -irrompia

na doce e maviosa e plácida alegria
50

de uma ave que cantava,

dos belos roseirais

que ostentavam a flux as rosas virginais.

E as jubilosas franças

dos arvoredos altos,
55

rígidos, atléticos,

derramavam no campo uns fluidos magnéticos

dumas vontades mansas.

A doce alacridade ia explosindo aos saltos.

e toda a natureza
60

robusta de saúde e estrênua de grandeza

libérrima e vital,

erguia-se pujante, audaz e redentora,

no gérmen material da força criadora,

dentre a vida selvagem mística, animal...
65

Dos roseirais preciosos

nos renques primorosos,

numa linda roseira abria castamente,

como um sonho de luz numa cabeça ardente,

o mais belo, o mais puro entre os botões de rosa.
70

tinha essa cor formosa,

tinha essa cor da aurora,

quando ensangüenta em rubro a vastidão sonora

era um botão feliz

sorrindo para o Azul, zombando da matéria.
75

Tinha o leve quebranto e a maciez etérea

que uma estrofe não diz.

Das pétalas macias,

das pétalas sangüíneas,

doces como harmonias
80

brandas e velutíneas

uns perfumes sutis se espiralavam, raros,

pela mansão do Bem, pelos espaços claros.

Perfumes excelentes,

perfumes dos melhores,
85

perfumes bons de incógnitos Orientes.

Matéria, não deplores

o viver natural dos vegetais alegres;

eles são mais ditosos

que os nababos e reis nos seus coxins pomposos;
90

e por mais que tu regres

ó matéria fatal, a tua vida inteira,

no rigor da higiene;

e por mais que a maneira

do teu grande existir, desse existir -perene
95

de ironias e pasmos,

explosões de sarcasmos

tu completes, matéria -ó humanidade ousada-

com a ciência altanada;

e por mais que no século,
100

tu mergulhes a idéia, o prodigioso espéculo,

será sempre maior e exuberante e forte,

ó matéria fatal,

essa vida tão rica

que se corporifica
105

na valente coorte

do poder vegetal.

Era um botão feliz,

cuja roseira, impávida,

ébria de aromas bons, ébria de orgulhos -ávida
110

de completa fragrância,

palpitava com ânsia

desde a própria raiz.

E entanto o sol tombara e triunfantemente

como um supremo Rubens,
115

jorrando à curvidade etérea do poente,

o ouro e o escarlate, aprimorando as nuvens,

numa distribuição simpática de cores,

de tintas e de luzes

de galas e fulgores
120

rubros como o estourar dos férvidos obuses.

O cérebro em nevrose,

no pasmo que precede a augusta apoteose

de uma excelsa visão perfeitamente bela,

de uma excelsa visão em límpidos dosséis,
125

exaltava o acabado artístico da Tela

e o gosto dos pincéis.

Caíam da amplidão em névoas singulares

os pálidos crepúsculos.

Os fúlgidos altares
130

do homem primitivo -a relva, o prado, o campo

onde ele ia buscar a força de uma crença

que então lhe iluminasse a alma escura e densa

morriam de clarões -os poderosos músculos

da fértil mãe de tudo -a natureza ingente-
135

deixavam de bater. -O olhar do pirilampo

oscilava, tremia -azul, fosforescente.

As sombras vinham, vinham

lembrando um batalhão d'espectros que caminham

e a casta nitidez sintética das cousas
140

tomava a proporção das funerárias lousas.

Completara-se então o mais extraordinário,

o mais extravagante

dos fenômenos todos:

A noite. -Enfim descera a treva do Calvário,
145

a treva que envolveu o Cristo agonizante.

Coaxavam negras rãs nos charcos e nos lodos.

A abóbada espaçosa, a física amplitude,

mostrava a profundez da angústia de ataúde

de um operário pobre,
150

quando se escuta o dobre

amplíssimo e funéreo,

sinistro e compassado,

rolar pela mansão gloriosa do mistério,

assim com um soluço aflito, estrangulado.
155

Devia ser, devia

por uma noite assim,

como esta noite igual,

que derramou Maria

a lágrima da dor, -que o célebre Caim
160

sentiu do crânio as convulsões do Mal.

Mas o botão de rosa,

traído pelo estranho zéfiro da sorte,

rolou como uma cisma

intensa e luminosa
165

ardente e jovial em que a razão se abisma

e foi cair, cair no pélago da morte,

em um dos mais raivosos,

em um dos mais atrozes

rios impetuosos,
170

cheios de surdas vozes,

sozinho, em desamparo, assim como um proscrito,

em meio à placidez

dos astros no infinito

e à mesma irracional e fúnebre mudez.
175

Depois e além de tudo,

além do grave aspecto inteiramente mudo,

ao tempo que morria

o cândido botão -em um dos tantos galhos

virentes da roseira -alegre no ar se abria
180

um outro que ostentava as pétalas sedosas,

as pétalas gracis de cores deliciosas,

de cores ideais.

As auras musicais

passavam-lhe de leve,
185

nos tímidos rumores,

de um ósculo mais breve

e dentre a exposição das delicadas flores,

das rosas -o botão

aberto ultimamente às cúpulas austeras,
190

às plagas da esperança, a irmã das primaveras,

pendido um quase nada, esbelto na roseira,

mostrava aquela unção,

a ínclita maneira

de quem se glorifica
195

subindo ao céu azul da majestade pura,

da eterna exuberância,

da fonte sempre rica,

da esplêndida fartura

da luz imaculada -a egrégia substância
200

que faz das almas claras

pela fecundidade olímpica do amor,

magníficas searas,

de onde se difunde à vida sempiterna,

à vida essencial, à lei que nos governa,
205

à idéia varonil do poeta sonhador.

A arte especialmente, esse prodígio, atriz,

como o botão de rosa

tão meigo e tão feliz,

pode ser arrojada e brutalmente, ao pego,
210

na treva silenciosa,

onde o espírito vai, atordoado e cego,

cair, entre soluços,

como um colosso ideal tombado ao chão de bruços,

ou pode equilibrar-se em admirável base
215

estética e profunda,

assim, bem como o outro, a mais radiosa altura.

Deves sondá-la bem nesta segunda fase.

precisas para isso uma alma mais fecunda.

precisas de sentir a artística loucura...
220


[Ó Adalziza dos sonhos]

Ó Adalziza dos sonhos;

estrela dos firmamentos

dos meus cantares risonhos,

ó Adalziza dos sonhos,

rasga esses véus enfadonhos
5

dos teus louros pensamentos,

ó Adalziza dos sonhos,

estrela dos firmamentos.


[Zulmira dos meus amores]

Zulmira dos meus amores,

Zulmira das minhas cismas,

resplandece como as flores,

Zulmira dos meus amores

abre os olhos sedutores
5

nos quais a minh'alma abismas,

Zulmira dos meus amores,

Zulmira das minhas cismas.


[Deixai que a minh'alma escassa]

Deixai que a minh'alma escassa

de luz -aos astros emigre

como gaivota que passa

deixai que a minh'alma escassa

de amor -na plúmbea desgraça
5

de atrozes garras de tigre,

deixai que a minh'alma escassa

de luz -aos astros emigre.


[Ó cintilante Quiquia]

Ó cintilante Quiquia,

menina dos meus olhares,

flor azul da simpatia,

ó cintilante Quiquia,

rasga este céu da alegria
5

dos meus risonhos cantares,

ó cintilante Quiquia,

menina dos meus olhares.


[Olhos pretos, sonhadores]

Olhos pretos, sonhadores

ó celeste Carolina,

como são esmagadores

olhos pretos sonhadores,

como vibram dos amores
5

a noss'alma cristalina,

olhos pretos, sonhadores,

ó celeste Carolina.


[Ó Flora, ó ninfa das rosas]

Ó Flora, ó ninfa das rosas,

ó frescura dos morangos,

abre as pupilas radiosas,

ó Flora, ó ninfa das rosas,

dá-me as estrelas formosas
5

do olhar repleto de tangos,

ó Flora, ó ninfa das rosas,

ó frescura dos morangos.


[Morena dos olhos pretos]

Morena dos olhos pretos

dos olhos pretos, morena,

escuta os vagos duetos

morena dos olhos pretos,

faremos ambos, tercetos,
5

com esta esfera serena,

morena dos olhos pretos,

dos olhos pretos, morena.


[Alzira, Alzira, Alzira]

Ó Alzira, Alzira, Alzira,

estrela resplandecente,

resplandecente safira,

ó Alzira, Alzira, Alzira,

às vibrações desta lira,
5

acorda do sono ardente,

ó Alzira, Alzira, Alzira,

estrela resplandecente.


[Como um cisne, est'alma frisa]

Como um cisne, est'alma frisa

O mar de luz de teus olhos,

ó simpática Adalziza

como um cisne, est'alma frisa,

vagueia, paira, desliza
5

sem naufragar nos escolhos

como um cisne, est'alma frisa

o mar de luz de teus olhos.


Floripes

Fazes lembrar as mouras dos castelos,

as errantes visões abandonadas

que pelo alto das torres encantadas

suspiravam de trêmulos anelos.

Traços ligeiros, tímidos, singelos
5

acordam-te nas formas delicadas

saudades mortas de regiões sagradas,

carinhos, beijos, lágrimas, desvelos.

Um requinte de graça e fantasia

dá-te segredos de melancolia,
10

da Lua todo o lânguido abandono...

Desejos vagos, olvidadas queixas

vão morrer no calor dessas madeixas,

nas virgens florescências do teu sono.


Campesinas e outros versos

Campesinas

- I -

Camponesa, camponesa,

ah! quem contigo vivesse

dia e noite e amanhecesse

ao sol da tua beleza.

Quem livre, na natureza,
5

pelos campos se perdesse

e apenas em ti só cresse

e em nada mais, camponesa.

Quem contigo andasse à toa

nas margens duma lagoa,
10

por vergéis e por desertos,

beijando-te o corpo airoso,

tão fresco e tão perfumoso,

cheirando a figos abertos.


- II -

De cabelos desmanchados,

tu, teus olhos luminosos

recordam-me uns saborosos

e raros frutos de prados.

Assim negros e quebrados,
5

profundos, grandes, formosos,

contêm fluidos vaporosos

são como campos mondados.

Quando soltas os cabelos

repletos de pesadelos
10

e de perfumes de ervagens;

teus olhos, flor das violetas,

lembram certas uvas pretas

metidas entre folhagens.


- III -

As papoulas da saúde

trouxeram-te um ar mais novo,

ó bela filha do povo,

rosa aberta de virtude.

Do campo viçoso e rude
5

regressas, como um renovo,

e eu ao ver-te, os olhos movo

de um modo que nunca pude.

Bravo ao campo e bravo à seara

que deram-te a pele clara
10

sãos rubores de alvorada.

Que esses teus beijos agora

tenham sabores de amora

e de romã estalada.


- IV -

Através das romãzeiras

e dos pomares floridos

ouvem-se às vezes ruídos

e bater d'asas ligeiras.

São as aves forasteiras
5

que dos seus ninhos queridos

vêm dar ali os gemidos

das ilusões passageiras.

Vêm sonhar leves quimeras,

idílios de primaveras,
10

contar os risos e os males.

Vêm chorar um seio de ave

perdida pela suave

carícia verde dos vales.


- V -

De manhã tu vais ao gado

a cantar entre as giestas,

com tuas graças modestas,

correndo e saltando o prado.

E a veiga e o rio e o valado
5

que todos dormem às sestas

acordam-se ante as honestas

canções desse peito amado.

As aves nos ares gozam,

entre abraços se desposam,
10

no mais amoroso enlace.

E as abelhas matutinas

que regressam das boninas

voam-te em torno da face.


- VI -

As uvas pretas em cachos

dão agora nas latadas...

Que lindo tom de alvoradas1

na vinha, junto aos riachos.

Este ano arados e sachos
5

deixaram terras lavradas,

à espera das inflamadas

ondas do sol, como fachos.

Veio o sol e fecundou-as,

deu-lhes vigor, enseivou-as,
10

tornou-as férteis de amor.

Eis que as vinhas rebentaram

e as uvas amaduraram,

sanguíneas, com sol na cor.


- VII -

Engrinaldada de rosas,

surge a manhã pitoresca...

Que linda aquarela fresca

nas veigas deliciosas!

Que bom gosto e perfumosas
5

frutas traz, madrigalesca

a rapariga tudesca

que vem das searas cheirosas!

Como os rios vão cantando,

em sons de prata, ondulando,
10

abaixo pelos marnéis!

Que carícia nas verduras,

que vigor pelas culturas,

que de ouro pelos vergéis!


- VIII -

Orgulho das raparigas,

encanto ideal dos rapazes,

acendes crenças vivazes

com tuas belas cantigas.

No louro ondear das espigas,
5

boca cheirosa a lilases,

carne em polpa de ananases

lembras baladas antigas.

Tens uns tons enevoados

de castelos apagados
10

nas eras medievais.

Falta-te o pajem na ameia

dedilhando, à lua cheia,

o bandolim dos seus ais!


- IX -

No campo santo

Morreste no campo um dia,

como uma flor desprezada.

Clareava a madrugada

azul, vaporosa e fria.

Sobre a agreste serrania,
5

numa ermida branqueada2

por uma manhã doirada

um sino repercutia.

Teu caixão, de camponesas

e camponeses seguido,
10

desceu abaixo às devesas.

Ganhou o atalho comprido

de casas em correntezas

e entrou num campo florido.


(Campesinas: variações e acréscimos recolhidos nos manuscritos da Fundação Biblioteca Nacional)

- VIII -

Pelos vales e colinas

os bandos das pombas voam...

E as latadas das boninas

as rentes cercas coroam.

Entre o rumor das campinas
5

os carros de bois ressoam...

E nas névoas matutinas

já os raios de sol coam.

Que aurora flor das auroras!

nas frescas águas sonoras
10

bóiam ilhas de verdura.

E na fita dos caminhos

onde trinam os passarinhos

vens vindo a rir, formosura.


- IX -

Foste à fonte buscar água

e tinha secado a fonte...

Pobre flor azul do monte

tiveste a primeira mágoa.

Porém se uma alma na frágua
5

das dores, sem horizonte,

queres ver, sentir defronte

dos olhos, manda, que eu trago-a.

Vou t'a levar à presença

para que vejas a imensa
10

mágoa atroz que a devorou.

E saibas, ó sol das flores,

que a fonte dos seus amores

eternamente secou.


- XII -

A pomba o vôo descerra

para além dos infinitos,

deixando todos os ritos

das religiões cá da terra.

Ganha o mar e ganha a serra
5

em busca de novos mitos

desses bíblicos Egitos

da Fé, que vagueia e que erra...

Quem tem sede de carinhos

faz como pomba, procura
10

corações que sejam ninhos.

Vai em busca ventura,

da paz dispersa em caminhos

que vão dar à sepultura.


- XIII -

Fui aos morangos do prado

e nunca os vi tão formosos...

que perfume delicado,

que cores, que tons preciosos.

Cor de sangue atravessado
5

de acesos sóis radiosos

num rubro ocaso doirado,

por horizontes calmosos;

através da luz da aurora

vivaz e fresca e sonora,
10

num resplendor nunca visto;

pareceram-me umas gotas

de sangue das carnes rotas

das mãos e dos pés de Cristo.


- XVI -

Acordo de manhã cedo,

da luz aos doces carinhos...

Que rosas pelos caminhos,

que rumor pelo arvoredo.

Para o azul radioso e ledo
5

sobe, de dentro dos ninhos,

o canto dos passarinhos,

cheio de amor e segredo...

Dentre as moitas de verdura

voam as pombas nevadas,
10

imaculadas de alvura.

Pela margem das estradas

que penetrante frescura,

que femininas risadas!


- XV -

Os olhos das adoradas

são como os campos festivos

cheios dos brilhos mais vivos

das alegres madrugadas.

Como as frescas alvoradas
5

há pelos campos estivos

lindos cantos expressivos

de camponesas medradas;

nos olhos das que adoramos

há aves cantando e ramos
10

noivados do nosso amor.

Perspectivas radiantes

só vistas pelos amantes

de almas abertas em flor!


- XVI -

De manhã cedo os rebanhos

saltam, galgam montanhosos

alcantis esplendorosos,

cheios de brilhos estranhos.

E quando após os amanhos
5

dos terrenos vigorosos

os lavradores sequiosos

regressam de afãs tamanhos;

quando o sol no ocaso em chamas

veste as árvores de lhamas
10

e luminosos veludos;

entre as trêmulas guitarras

das nostálgicas cigarras

quedam-se os gados lanzudos.


- XVII -

São tantas as sementeiras

como as estrelas são tantas...

Ah! que virgens bebedeiras

vêm dos aromas das plantas.

Nas terras alvissareiras
5

de novas colheitas santas,

que brotos de trepadeiras,

que vinhas quantas e quantas.

Como a seiva e o viço estoura

pelos campos da lavoura,
10

num frenesi de novilho...

Só tu, infecunda e triste,

de gelo, nunca sentiste

os vivos germens de um filho!


- XVIII -

Por estas manhãs sonoras

em tudo a luz vibra e salta

e arroios, várzeas esmalta

de deslumbrantes auroras.

São mais alegres as horas,
5

nem o humor às almas falta

e de uma força mais alta

fecundam-se as virgens floras.

Os aspectos de verdura

recebem formas serenas
10

d'encantos e de frescura.

Ah! que ruflados de penas

na luz que canta na altura,

nas folhagens de açucenas!


(1889)

Outros versos

Ao ar livre

A Virgílio Várzea


Tu trazes agora o peito

como essas urnas sagradas,

repleto de gargalhadas,

sonoro, bom, satisfeito.

Por dentro cantam assombros
5

e causas esplendorosas

como latadas de rosas

dos muros entre os escombros.

Quando o ideal nos alaga,

embora as lutas do mundo,
10

levanta-se um sol fecundo

do peito em cada uma chaga.

Voltou-se a seiva de outrora,

de outro, mais forte e destro,

iluminado maestro,
15

das harmonias da aurora.

Fulgurem por isso as musas,

as belas musas, por isso...

Voltou-te o passado viço,

foram-se as mágoas, confusas.
20

Agora, quando eu dirijo

meus passos, à tua porta,

sinto-te um bem que conforta,

vejo-te alegre e mais rijo.

Porque afinal pela vida
25

nem tudo se desmorona

quando se vaga na zona

da mocidade florida.

Gostas de ver pelos ramos

das verdes árvores novas,
30

a chocalhar umas trovas,

coleiros e gaturamos.

Já podes bem comer frutas,

os teus simpáticos jambos,

e ouvir alguns ditirambos
35

da natureza nas grutas.

Podes olhar as esferas,

com ar direito e seguro,

de frente para o futuro,

de lado para as quimeras.
40

Não tenhas cofres avaros

de santos -na luz te afoga,

e a alma arremessa e joga

por esses páramos claros.

Reúne os sonhos dispersos
45

como andorinhas vivaces

e o colorido das faces

ao coberto dos versos.

Como uns lábaros vermelhos,

contente como os lilases,
50

as crenças dos bons rapazes

tem prismas como os espelhos.


Natureza

Aos poetas


Tudo por ti resplende e se constela,

tudo por ti, suavíssimo, flameja;

és o pulmão da racional peleja,

sempre viril, consoladora e bela.

Teu coração de pérolas se estrela,
5

e o bom falerno dás a quem deseja

vigor, saúde à crença que floreja,

que as expansões do cérebro revela.

Toda essa luz que bebe-se de um hausto

nos livros sãos, todo esse enorme fausto
10

vem das verduras brandas que reluzem!

Esse da idéia esplêndido eletrismo,

o forte, o grande, audaz psicologismo,

os organismos naturais produzem...


Nos campos

Por entre campos de seara loura

de alegre sol puríssimo batidos,

passam carros chiantes de lavoura

e raparigas sãs, de coloridos

que a luz solar que as ilumina e doura
5

lembram pomares e jardins floridos,

por entre campos de seara loura.

A Natureza inteira reverdece

pelos montes e vales e colinas;

e o luar que freme, anseia e resplandece,
10

movido por aragens vespertinas,

parece a alma dos tempos que floresce...

enquanto que por prados e campinas

a Natureza inteira reverdece.

A paz das coisas desce sobre tudo!
15

e no verde sereno d'espessuras,

no doce e meigo e cândido veludo,

tremem cintilações como armaduras

ou como o aço brunido dum escudo;

enquanto que das límpidas alturas
20

a paz das coisas desce sobre tudo!

A casa, a rude tenda construída,

onde habitam as mães e as crianças

promiscuamente, nessa mesma vida

de perfume lirial das esperanças,
25

como é feliz, dos astros aquecida!

Aquecida do Amor nas asas mansas

a casa, a rude tenda construída.

As bocas impolutas e cheirosas

das raparigas, pródigas belezas
30

de finos lábios púrpuros de rosas,

abrem, cheias de angélicas purezas,

as cristalinas fontes murmurosas

de risos, refrescando em correntezas

as bocas impolutas e cheirosas.
35

Da vida aurora rica do seu sangue

flameja a carne em báquicas vertigens!

e quem tiver uma epiderme exangue

para ficar com essas faces virgens,

para não ser mais pálida nem langue,
40

tem de beber das cálidas origens

da viva aurora rica do seu sangue.

Lindas ceifeiras percorrendo. searas

nos campos, ó bizarras raparigas,

pelas manhãs e pelas tardes claras
45

vós desfolhais sorrisos e cantigas

que deixam ver as pérolas mais raras

dos dentes brancos, frescos como estrigas...

lindas ceifeiras percorrendo searas!


A borboleta azul

No alegre sol de então

de uma manhã de amor,

a borboleta solta no fulgor

da luz, lembrava um leve coração.

Ia e vinha e a voar
5

gentil e trêfega, azul,

sonoramente a percorrer pelo ar,

como um silfo tenuíssimo e taful.

Sobre os frescos rosais

pousava débil, sutil,
10

doirando tudo de um risonho abril

feito de beijos e de madrigais.

Que doce embriaguez

o vôo assim seguir

da borboleta azul, correndo, a vir
15

do espaço pela Etérea candidez!

Fazendo, tal e qual,

o mesmo giro assim,

o mesmo vôo límpido, sem fim,

nos mundos virgens de qualquer ideal.
20

Ir como ela também

em busca das loucas

e tropicais e fúlgidas manhãs

cheias de colibris e sol, além...

Ir com ela na luz
25

de mundos através,

sem abrolhos nas mãos, cardos nos pés,

ó; alma minha, que alegria a flux!...

No alegre sol de então

de uma manhã de amor
30

a borboleta solta no fulgor

da luz, lembrava um leve coração.


Renascimento

Canta ao sol como as cigarras

a tua nova alegria.

No Azul ressoam fanfarras

da grande vida sadia.

Alerta, um clarim de alerta
5

àquela antiga saúde:

-À clara janela aberta

para o mar salgado e rude.

Que volte, ruidosa, agora,

como um pássaro marinho,
10

a tua saúde, a aurora

do teu sangue, estranho vinho.

E como espiga madura

floresce outra vez à vida,

resplandece à formosura,
15

ó torre de ouro florida!

Quero-te em rosas festivas

a polpa das carnes brancas.

e rindo-te às forças vivas

com rubras risadas francas.
20

Formosa, soberba e nua,

nesse olhar que tudo abrange,

na fronte um diadema, em lua

num talhe curvo de alfanje;

vem! o sol é teu amante!
25

Ah! vem mergulhar nos braços

do flavo sultão radiante

do harém azul dos espaços.


Abelhas

Gotas de luz e perfume,

leves, tênues, delicadas,

acesas no doce lume

de purpúreas alvoradas.

Pingos de ouro cristalinos
5

alados na esfera, ondeando,

dispersos por entre os hinos

da natureza vibrando.

Sorrisos aéreos, soltos,

flavas asas radiantes,
10

que levam consigo envoltos

da aurora os sóis fecundantes.

Da aurora que a primavera

faz cantar, brota no peito

e floresce em folhas de hera
15

o coração satisfeito.

Essa aurora produtiva

do amor soberano e eterno,

que é nas almas força viva

e nas abelhas falerno.
20

Nas doudejantes abelhas

que dentre flores volitam

e do sol entre as centelhas

resplendem, fulgem, palpitam.

Zumbem, fervem nas colméias
25

e rumorejam no enxame

pelas flóridas aléias

onde um prado se derrame.

Assim mesmo pequeninas

e quase invisíveis, quase,
30

com as suas asitas finas,

de etérea de fluida gaze.

Ah! quanto são adoráveis

os favos que elas fabricam!

com que graças inefáveis
35

se geram, se multiplicam.

Nos afãs industriosos

que enlevo, que encanto vê-las

com seus corpos luminosos

d'iriante brilho d'estrelas.
40

E nas ondas murmurosas

dos peregrinos adejos

vão dar ao lábio das rosas

o mel doirado dos beijos.


Besouros...

Marche, marche, marche a verve!

Bandeiras, clarins, tambores,

marchar!

A poncheira ideal, que ferve,

sons, aromas, chamas, cores!
5

Cantar!

Que este diabo vem, saudoso,

das profundezas do arcano,

viver!

O vinho maravilhoso
10

da forma raro e renano,

beber!

Vem beber o vinho iriado,

o Falerno, claro e quente,

haurir!
15

Num paladar requintado,

todo inflamado e fremente

sentir!

Que o sangue da verve vibre

raja, raja, raja, raja,
20

taful!

E a alma do sol se equilibre

para que mais sonhos haja

no azul!...

Mas este diabo tão fino,
25

que de tudo dá o acorde

genial!

Este capróide genuíno,

verde, verde, morde, morde,

fatal.
30


Papoula

A Oscar Rosas


Assim loura és mais formosa

do que se fosses trigueira:

corpo de eflúvios de rosa

com esbeltez de palmeira.

Vestida de cor da aurora
5

leve dos fluidos da graça,

és uma estrela sonora

que, em sonhos, pelo éter passa.

Resplandece em teu cabelo

um fulgor de sol dourado,
10

que só de senti-lo e vê-lo

fica tudo iluminado.

Do teu branco leque aberto

que lembra uma asa de garça3,

aspiro um perfume incerto,
15

talvez a tua alma esparsa.

Num resplendor de madona

e altivez de corça arisca4

surges da luz entre a zona

com quebrantos de odalisca.
20

Que venha o duque normando

de castelos escoceses

com seu ar bizarro e brando

amar-te os olhos ingleses.

E entre aromas e frescores
25

e revoadas de abelhas,

como num campo de flores

que esse olhar vibre centelhas.

Que cantem na tua boca

as alegrias radiadas,
30

numa ideal rajada louca

de vôos de passaradas.

Que como os astros no espaço,

teu encanto resplandeça...

Com pelúcias no regaço
35

e asas de ave na cabeça.

E que os teus dois seios puros

que o amor fecundando beija

fiquem cheios e maduros

com dois bicos de cereja.
40


Na vila

Nos ervaçais vibrou o sol agora,

nas fitas verdes dos canaviais...

Como rompesse loura e fresca a aurora

agora o sol vibrou nos ervaçais.

Murmurejam de alegres os caminhos
5

que até parecem, límpidos, cantar

na música melódica dos ninhos

que vai nos ares se cristalizar.

Floresce tudo, em toda parte flores

neste maio feliz, e tão feliz
10

que as plantas exuberam de vigores

desde a profunda, pródiga raiz.

Noivam as aves junto dos riachos

no seu alado alvorecer de amor;

e o coqueiral, com os amarelos cachos,
15

Pompéia de riquíssimo verdor.

Fluem na sombra meigas fontes claras5

sob o frondente e vasto laranjal

e para além magníficas searas

se estendem como um leito virginal.
20

Na serena paz vegetativa

faz docemente tudo adormecer

mas num sono de luz doirada e viva,

quase a dormência de quem vai morrer...

Ah! que o silêncio, a solidão dos ermos,
25

das agrestes paragens do sertão

se dão saúdes a espíritos enfermos

também supremas nostalgias dão!

A volúpia letal do meio-dia,

nas horas encalmadas, sob a luz,
30

dá duma campa a atroz melancolia

assinalada numa simples cruz.

Depois o campo na mudez da vila,

aquela eterna e soberana paz

da imensa vastidão sempre tranqüila
35

como que punge e que entristece mais!


Plangência da tarde

Quando do campo as prófugas ovelhas

voltam a tarde, lépidas, balando,

com elas o pastor volta cantando

e fulge o ocaso em convulsões vermelhas.

Nos beirados das casas, sobre as telhas,
5

das andorinhas esvoaça o bando...

e o mar, tranqüilo, fica cintilando

do sol que morre às últimas centelhas.

O azul dos montes vago na distância...

no bosque, no ar, a cândida fragrância
10

dos aromas vitais que a tarde exala.

Às vezes, longe, solta, na esplanada,

a ovelha errante, tonta e desgarrada,

perdida e triste pelos ermos bala...


Frutas e flores6

Laranjas e morangos -quanto às frutas,

quanto às flores, porém, ah! quanto às flores,

trago-te dálias rubras, d'essas cores

das brilhantes auroras impolutas.

Venho de ouvir as misteriosas lutas
5

do mar chorando lágrimas de amores;

isto é, venho de estar entre os verdores

de um sítio cheio de asperezas brutas,

mas onde as almas -pássaros que voam-

vivem sorrindo às músicas que ecoam
10

dos campos livres na rural pobreza.

Trago-te frutas, flores, só apenas,

porque não pude, irmã das açucenas,

trazer-te o mar e toda a natureza!


No campo

Acordo de manhã cedo

da luz aos doces carinhos:

que rosas pelos caminhos!

Que rumor pelo arvoredo!

Para o azul radioso e ledo
5

sobe, de dentro dos ninhos,

o canto dos passarinhos

cheio de amor e segredo.

Dentre moitas de verdura

voam as pombas nevadas,
10

imaculadas de alvura.

Pelas margens das estradas

que penetrante frescura

que femininas risadas!


Luar

Ao longo das louríssimas searas

caiu a noite taciturna e fria...

Cessou no espaço a límpida harmonia

das infinitas perspectivas claras.

As estrelas no céu, puras e raras,
5

como um cristal que nítido radia,

abrem da noite na mudez sombria

o cofre ideal de pedrarias caras.

Mas uma luz aos poucos vai subindo

como do largo mar ao firmamento -abrindo
10

largo clarão em flocos d'escumilha.

Vai subindo, subindo o firmamento!

E branca e doce e nívea, lento e lento,

a lua cheia pelos campos brilha...


[Estas risadas límpidas e frescas]

Estas risadas límpidas e frescas

que Pan trauteia em cálamos maviosos

nesta amplidão dos campos verdurosos,

nestas paisagens flóreas, pitorescas;

toda esta pompa e gala principescas
5

destas searas, destes altanosos

montes e várzeas, prados vigorosos,

louros -talvez como as visões tudescas;

este luxuoso e rico paramento,

feito de luz e de deslumbramento
10

-Do grande altar da natureza imensa.

Aguarda o poeta sacerdote augusto,

para cantar no seu missal robusto,

a nova Missa da razão que pensa...


Os risonhos

Pastores e camponesas

de rudes almas esquivas

passam entre as candidezas

das estrelas fugitivas.

Parece que nada os punge,
5

nada os punge e sobressalta.

A lua que os campos unge

no firmamento vai alta.

E eles passam sob a lua,

de queixas desafogados,
10

a cabeça livre e nua,

na florescência dos prados.

Seres meigos e singelos,

mulheres de lindo rosto,

lábios cálidos e belos,
15

do quente sabor do mosto.

Pastores de tez morena,

queimados ao sol adusto:

Claridade bem serena

no fundo do olhar bem justo.
20

Neles tudo é riso e festa,

neles tudo é festa e riso,

frescuras brandas de giesta

E graças de Paraíso.

Simples, toscas e felizes,
25

sem ter um laivo de mágoa:

Almas das verdes raízes,

limpidez de gota d'água.

Neles tudo é paz de aldeia

e ri com os risos mais frescos...
30

O céu inteiro gorjeia

idílios madrigalescos.

Seduzido por miragens

caminha o bando risonho

dessas virentes paragens,
35

levado na asa de um sonho.

Nele tudo ri sem ânsia

e com doçura secreta;

e como uma nova infância

cantantemente irrequieta.
40

Encantos de mocidade,

saúde, fulgor, vigores,

dão-lhe a doce suavidade

maravilhosa das flores.

Os corações, florescentes,
45

vão nesses peitos cantando

e rindo em festins ardentes

e dentre os risos sonhando.

Ri na boca, ri nos olhos,

nas faces o bando, rindo
50

o bom riso sem abrolhos,

que lembra um campo florindo.

Rindo em sonoras risadas,

rindo em frêmitos vivazes,

rindo em risos de alvoradas,
55

rindo em risos de lilases.

Os campos entontecidos

nos vinhos da lua clara

ficam bizarros, garridos,

de vitalidade rara.
60

As águas claras das fontes

vibram lânguidas sonatas

e as nuvens vestem os montes

das visões mais timoratas.

Na copa dos arvoredos,
65

nas orvalhadas verduras

há sonâmbulos segredos

e murmuradas ternuras.

E o bando festivo passa

rindo, alegre, casto e suave,
70

iluminado de graça,

mais leve que um vôo de ave.

Podeis rir, almas ditosas,

almas novas como frutos

de vinhas miraculosas
75

de pomares impolutos.

Podeis rir, almas eleitas

que os anjos percebem tanto

lá das esferas perfeitas

nas harmonias do Encanto.
80

Almas brancas, Páscoas leves,

alvos pães de áureos altares,

de mais candidez que as neves

e a madrugada nos mares.

Almas sem sombras ferozes
85

nem espasmos delirantes.

Eco das bíblicas vozes,

caminhos reverdejantes.

O vosso riso é bendito,

os vossos sonhos são castos,
90

estrelamento infinito

de mundos claros e vastos.

Podeis rir, peitos ufanos,

belas almas feiticeiras,

vós tendes nos risos lhanos
95

o trigo das vossas eiras.

A vossa vida é planície,

não tem declives funestos:

sois torres que a superfície

assenta nos dons modestos.
100

A vossa vida é bem rasa,

preso à terra o vosso esforço;

nem mesmo um frêmito de asa

vos faz agitar o dorso...

Sois como plantas vencidas,
105

conquistadas pela terra,

dando à terra muitas vidas

e tudo que a Vida encerra.

É do vosso sangue moço

que na terra se derrama,
110

que sobe o rubro alvoroço

de ocasos de sóis em chama.

Manchas, ao certo, não tendes

e nem trágico flagício,

almas isentas de duendes,
115

lavadas no Sacrifício.

Das pedras, nos vossos ombros,

a rigidez não carrega.

Em jardins tornam-se escombros

e em luz a crença que é cega.
120

Desses perfis adoráveis,

na curva casta dos flancos

brotam viços inefáveis

dos florescimentos brancos.

Podeis rir! ó benfazeja
125

bondade de nobre essência.

Deus vos chama e vos deseja

na estrelada florescência.

Um anjo vos acompanha

nessa estrada matutina
130

e convosco a ideal montanha

sobe da graça divina.

O flagelo deste mundo,

nesses corações não pesa.

Enquanto o Horror vai profundo
135

vossa alma tranqüila reza.

Contritos e de mãos postas,

humildemente de joelhos,

o Demônio, pelas costas,

não vem vos dar maus conselhos.
140

Vós sois as sagradas reses

votadas ao azul Sacrário.

Deus vos olha muitas vezes

com o seu olhar visionário.

Mas quando, como as estrelas,
145

adormecerdes um dia,

voando mais perto a vê-las

na Paragem fugidia.

Quando na excelsa Bonança

afinal adormecerdes,
150

nos olhos toda a esperança

levando dos prados verdes.

Quando lá fordes, subindo

para as límpidas Alturas,

profundamente dormindo,
155

em busca das almas puras.

Praza aos céus que nos caminhos

da eterna Glória, das palmas,

mais brancas que os claros linhos

possais encontrar as almas!
160


Ideal comum

Soneto escrito a quatro mãos

Escrito em colaboração com Oscar Rosas


Dos cheirosos, silvestres ananases

de casca rubra e polpa acidulosa,

tens na carne fremente, volutuosa,

os aromas recônditos, vivazes.

Lembras lírios, papoulas e lilases;
5

a tua boca exala a trevo e a rosa,

resplande essa cabeça primorosa

e o dia e a noite nos teus olhos trazes.

Astros, jardins, relâmpagos e luares

inundam-te os fantásticos cismares,
10

cheios de amor e estranhos calafrios;

e teus seios, olímpicos, morenos,

propinando-me trágicos venenos,

são como em brumas, solitários rios.


Pássaro marinho

Manhã de maio, rosas pelo prado,

gorjeios, pelas matas verdurosas

e a luz cantando o idílio de um noivado

por entre as matas e por entre as rosas.

Uma toilette matinal que o alado
5

corpo te enflora em graças vaporosas,

mergulhas, como um pássaro rosado,

nas cristalinas águas murmurosas.

Dás o bom dia ao Mar nesse mergulho

e das águas salgadas ao marulho
10

sais, no esplendor dos límpidos espaços.

Trazes na carne um reflorir de vinhas,

auroras, virgens músicas marinhas,

acres aromas de algas e sargaços!


Sonetos reunidos

[Senhor de nobre alma, tão]

Oferecido e dedicado ao llmo. Sr. M. Bernardino A. Varela pelo autor


Vir bonus dicendi peritus laudandum est.


Senhor de nobre alma, tão

d'entre os sábios conhecido,

de pais excelsos nascido,

aceitai a minha canção.

Probo pai, bom cidadão,
5

sois dos seres melhor ser

por saber tão profundo ter,

sois ilustre qual Catão.

Recebei esta prova mesquinha

de penhor e de oração,
10

produto da pena minha.

Perdoai, mui digno varão,

se na mente eu pobre tinha

cometer-vos indiscrição.


[Da mundana lida, eis que cansado]

Minha vida é um montão de ruínas

em árido deserto um abismo de

ais e de suspiros.



Da mundana lida, eis que cansado,

co'a lira toda espedaçada,

a alma de suspiros retalhada,

cumpre o infeliz seu triste fado.

Ai! que viver mais desgraçado!...
5

Que sorte tão crua e desazada!...

Quem assim tem a vida amargurada

antes já morrer, ser sepultado.

Só eu triste padeço feras dores,

imensas e de fel, sem terem fim,
10

envolto no véu dos dissabores.

Oh! Cristo eu não sei se só a mim

deste essa vida d'amargores,

pois que é demais sofrer-se assim!


[De Mayseder gentil o vulto ingente]

Dieu a fait la mer, les oiseaux, les cieux, toute la nature
enfin; mais les hommes ont découvert les sciences,
les arts et les lettres qui les élèvent
jusqu'à même Dieu.


De Mayseder gentil o vulto ingente

de Corelli, de Spohr e de Nardini,

de Ole Bull supernal, de Veracini

inspirados por Deus c'o plectro ardente;

Dessa lira febril, áurea, potente
5

do artista sem par, de Paganini;

de Viotti dinal, do herói Tardini,

de Lafont, de Baillot, Eck e Laurenti:

Sois rival feliz! e nesse crânio

há em jorros, oh céus! extravasando
10

o ardor musical, o ardor titâneo...

Já bem cedo, veloz, ides galgando

lá da glória os degraus, o supedâneo

sobre um trono de luz rindo e cantando.


(24 dez. 1880)

[Minh'alma está agora penetrando]

Por ocasião dos festejos em homenagem ao sexagésimo primeiro aniversário natalício do eloqüentíssimo tribuno sagrado, Joaquim Gomes d'Oliveira Paiva

Há vultos tamanhos que não
cabendo no globo, vão quedos
Mas solenes, refugiar-se na campa.
D'aí embuçam-se n'um manto infinito
De glórias?...


Minh'alma está agora penetrando

lá na etérea plaga, cristalina!

Que música meu Deus febril, divina

nos páramos azuis vai retumbando!

Além, d'áureo dossel se está rasgando
5

custosa, de primor, esmeraldina

diáfana, sutil, longa cortina

enquanto céus se vão duplando!

Em grande pedestal marmorizado

de Paiva se divisa o busto enorme
10

soberbo como o sol, de luz c'roado

de um lado o porvir -antheu disforme

dos lábios faz soltar pujante brado

hosanas! não morreu! apenas dorme.


[Rompeu-se o denso véu do atroz marasmo]

Por ocasião da comemoração do sexagésimo primeiro aniversario natalício do ilustre pregador catarinense Joaquim Gomes d'Oliveira Paiva

Rompeu-se o denso véu do atroz marasmo

e como por fatal, negro hebetismo

de antro sepulcral, de fundo abismo

o povo ressurgiu com entusiasmo!

O Zoilo mazorral se queda pasmo
5

supõe quimera ser, ser cataclismo

roga, já por dobrez, por ceticismo

de néscio, vil truão solta o sarcasmo.

Perdão, Filho da Luz, minh'alma exora,

porém, a pátria diz, somente agora
10

os grilhões biparti de atroz moleza!

E ele, o nosso herói já redivivo

de pé, sem se curvar, sereno, altivo

co'as raias do porvir mede a grandeza!


[Deixai que deste álbum na folha delicada]

Embeberam-me a pena em fel!

Antônio (Mendes Leal)



Deixai que deste álbum na folha delicada

eu venha difundir meus rudes pensamentos

deixai que as pobres rimas, uns nadas poeirentos

eu possa transudar da mente entrenublada!...

Deixai que de minh'alma na fibra espedaçada
5

eu busque inda vibrar uns cantos tardos, lentos!...

Bem cedo os vendavais, aspérrimos, cruentos

ai! Tudo arrojarão à campa amargurada!

Porém qu'importa isso! dos mares desta vida

nos pávidos, estranhos, enormes escarcéus
10

se alguma coisa val, és tu, ó luz querida!...

Rasguemos do porvir os áditos, os véus!...

riamos sem cessar, embora em dor sentida!...

também as nuvens negras conglobam-se nos céus!


(5 dez. 1882)

[Alçando o livro colossal, ardente]

A mocidade é a alavanca do
templo da ciência, no futuro; só ela tem o direito de ser a força
motriz dos fenômenos intelectuais
das grandes revoluções do pensamento.

Do Autor



Alçando o livro colossal, ardente

traças no crânio um sulco luminoso,

e vais seguindo o remontar garboso

do sol fagueiro lá no espaço ingente!

Ergues a fronte juvenil potente
5

já como herói ou lutador famoso

e c'uma forma de pensar honroso

fazes-te esperança da brasílea gente!

Seis vezes astro de maior grandeza

enfim lá surges nos exames belos,
10

enfim triunfas na brilhante empresa!

Seis vezes quebras da ignorância os elos,

seis vezes vives com mais sã firmeza,

gemem seis vezes a louvar-te os prelos!...


(28 nov. 1882)

O final do guarani

Ceci -é a virgem loira das brancas harmonias,

a doce-flor-azul dos sonhos cor-de-rosa,

peri -o índio ousado das bruscas fantasias,

o tigre dos sertões -de alma luminosa.

Amam-se com o amor indômito e latente
5

que nunca foi traçado nem pode ser descrito.

Com esse amor selvagem que anda no infinito.

e brinca nos juncais, -ao lado da serpente.

Porém... no lance extremo, o lance pavoroso,

assim por entre a morte e os tons de um puro gozo,
10

dos leques da palmeira à nota musical...

Vão ambos a sorrir, às águas arrojados,

mansos como a luz, tranqüilos, enlaçados

e perdem-se na noite serena do ideal!...


(Santos, 15 jul. 1883)

Idéia-mãe

Laborare dignus est operarius mercede sua.

Aforismo latino



Ergueis ousadamente o templo das idéias

assim como uns heróis, por sobre os vossos ombros

e ides através de um negro mar d'escombros,

traçando pelo ar as loiras epopéias.

A luz tem para vós os filtros magnéticos
5

que andam pela flor e brincam pela estrela.

E vós amais a luz, gostais sempre de vê-la

em amplo cintilar -nuns êxtases patéticos.

É esse o aspirar do séc'lo que deslumbra,

que rasga da ciência a tétrica penumbra
10

e gera Vítor Hugo, Haeckel e Littré.

É esse o grande -Fiat- que rola no infinito!...

É esse o palpitar, homérico e bendito,

de todo o ser que vive, estuda, pensa e lê!!...


O seu boné

À atriz Adelina Castro


É um boné ideal, de feltros e de plumas,

que ela usa agora, assim como um turbante

turco, aveludado, doce como algumas

nuvens matinais que rolam no levante.

Lembro quando ao vê-lo a rubra Marselhesa,
5

lembro sensações e cousas de prodígio

e penso que ele tem a máscula grandeza

desse sedutor, vital barrete frígio!...

Às vezes meu olhar medindo-lhe o contorno

e a flácida plumagem que serve-lhe d'adorno,
10

-Satânico, voraz, esplêndido de fé!

Exclama num idílio cândido e singelo,

por entre as convulsões artísticas do Belo;-

oh! tem coração e alma, esse boné!...


(Corte, out. 1883)

[É um pensar flamejador, dardânico]

A Moreira de Vasconcelos


Na luta dos impossíveis,

do espírito e da matéria,

tu és a águia sidérea

dos pensamentos terríveis!


Do Autor



É um pensar flamejador, dardânico

uma explosão de rápidas idéias,

que como um mar de estranhas odisséias

saem-lhe do crânio escultural, titânico!...

Parece haver um cataclismo enorme
5

lá dentro, em ânsia, a rebentar, fremente!...

Parece haver a convulsão potente,

dos rubros astros num fragor disforme!...

Hão de ruir na transfusão dos mundos

os monumentos colossais, profundos,
10

as cousas vãs da brasileira história!

Mas o seu vulto, sobre a luz alçado,

oh! há de erguer-se de arrebóis c'roado,

como Atalaia nos umbrais da glória!!...


(Desterro, 13 jan. 1883)

Oiseaux de passage

Les rêves, les grands rêves que moi toujours adore,
15

les rêves couleur rose, les rêves éclatants;

ainsi que les colombes un autre ciel cherchants

j'ai vu les ailes ouvertes, si belles que l'aurore.


Autour de la nature, autour de la profonde

et merveilleuse mère des fleurs, des harmonies,

les rêves éblouissants, remplis d'amour et vie,

trouvaient de l'espoir le plus doré des mondes.

Hélas!... -mais maintenant, par des chagrins, secrets,
5

l'amour, les étoiles et tout ce qu'il nous est

chéri -le beau soleil, la lune et les nuages;

tout fut plongé d'abord plongé dans le mystère,

avec de mon coeur la douce lumière,

les rêves de mon âme -uns oiseaux de passage!...
10


Colar de pérolas

Ao feliz consórcio dos estimáveis colegas,
D. Jesuína Leal e Francisco de Castro


A F'licidade é um colar de pérolas,

pérolas caras, de valor pujante,

blas estrofes de Petrarca e Dante,

mais cintilantes que as manhãs mais cérulas.

Para que enfim esse colar bendito,
5

perdure sempre, inteiramente egrégio,

como uma tela do pintor Correggio,

sem resvalar no lodaçal maldito;

Faz-se preciso umas paixões bem retas,

cheias de uns tons de muito sol -completas...
10

faz-se preciso que do amor na febre,

nos grandes lances de vigor preclaro,

desse colar esplendoroso e raro,

nem uma pérola, uma só se quebre!...


Satanismo

Não me olhes assim, branca Arethusa,

peregrina inspiração dos meus cantares;

não me deixes a razão vagar confusa

ao relâmpago ideal de teus olhares.

Não me olhes, oh! não, porquanto eu penso
5

envolvido no luar das minhas cismas,

que o olhar que me dardejas -doido, imenso

tem a rápida explosão dos aneurismas.

Não me olhes. Oh! não, que o próprio inferno

problemático, fatal, cálido, eterno,
10

nos teus olhos, mulher, se foi cravar!...

Não me olhes, oh! não, que m'entolece

tanta luz, tanto sol -e até parece

que tens músicas cruéis dentro do olhar!...


Metamorfose

A Carlos Ferreira


O sol em fogo pelo ocaso explode

nesse estertor, que os crânios assoberba.

Vivo, o clarão, nuns frocos exacerba

dos ideais a original nevrose.

Da natureza os anafis mouriscos
5

ante o cariz da atmosfera muda,

soam queixosos, numa nota aguda,

da luz que esvai-se aos derradeiros discos.

O pensamento que flameja e luta

nos ares rasga aprofundado sulco...
10

A sombra desce nos lisins da gruta;

e a lua nova -a peregrina Onfale,

como em um plaustro luminoso, hiulco,

surge através dos pinheirais do vale.


Auréola equatorial

A Teodoreto Souto


Fundi em bronze a estrofe augusta dos prodígios,

poetas do Equador, artísticos Barnaves;

que o facho -abolição- rasgando as nuvens graves

de raios e bulcões -triunfa nos litígios!

-O rei Mamoud, o Sol, vibrou p'raquelas bandas
5

do Norte -a grande luz- elétrico, explodindo,

assim como quem vai, intrépido, subindo

à luz da idade nova -em claras propagandas.

-Os pássaros titãs nos seus conciliábulos,

-chilreiam, vão cantando em místicos vocábulos,
10

alargam-se os pulmões nevrálgicos das zonas;

Abri alas, abri! -Que em túnica de assombros,

irá passar por vós, com a Liberdade aos ombros,

como um colosso enorme o impávido Amazonas!


[Anda-me a alma inteira de tal sorte]

Anda-me a alma inteira de tal sorte,

meus gozos, meu pesar, nos dela unidos

que os dela são também os meus sentidos,

que o meu é também dela o mesmo norte.

Unidos corpo a corpo -um elo forte
5

nos prende eternamente -e nos ouvidos

sentimos sons iguais. Vemos floridos

os sons do porvir, em azul coorte...

O mesmo diapasão musicaliza

os seres de nós dois -um sol irisa
10

os nossos corações -dá luz, constela...

Anda esta vida, espiritualizada

por este amor -anda-me assim- ligada

a minha sombra com a sombra dela.


Noiva e triste

Rola da luz do céu, solta e desfralda

sobre ti mesma o pavilhão das crenças,

constele o teu olhar essas imensas

vagas do amor que no teu peito escalda.

A primorosa e límpida grinalda
5

há de enflorar-te as amplidões extensas

do teu pesar -há de rasgar-te as densas

sombras -o véu sobre a luzente espalda...

Inda não ri esse teu lábio rubro

hoje -inda n'alma, nesse azul delubro
10

não fulge o brilho que as paixões enastra;

mas, amanhã, no sorridor noivado,

a vida triste por que tens passado,

de madressilvas e jasmins se alastra.


Mãe e filho

Às mães desamparadas


Jesus, meu filho, o encanto das crianças,

quando na cruz, de angústia espedaçado,

em sangue casto e límpido banhado,

manso, tão manso como as pombas mansas;

embora as duras e afiadas lanças
5

com que os judeus, tinham, de lado a lado,

seu coração puríssimo varado,

inda no olhar raiavam-lhe esperanças.

Por isso, ó filho, ó meu amor -se a esmola

de algum conforto essencial não rola
10

por nós -é forca conduzir a cruz!...

Mas, volta ó filho, pesaroso e triste.

se a nossa vida só na dor consiste,

ah! minha mãe, por que morreu Jesus?...


Surdinas

Às raparigas tristes


Vais partir, vais partir que eu bem te vejo

na branca face os gélidos suores,

vais procurar as musicas melhores

do sol, da glória e do celeste beijo.

Dentro de ti as harpas do desejo
5

não vibram mais -embora que tu chores-

nem pelas tuas aflições maiores

se escuta um vago e enfraquecido arpejo...

Bem! vais partir, vais demandar esferas

amplas de luz, feitas de primaveras,
10

paisagens novas e amplidão florida...

Mas ao chegar-te a lágrima infinita,

lembra-te ainda, ó pálida bonita

de que houve alguém que te adorou na vida.


Irradiações

Às crianças


Qual da amplidão fantástica e serena

à luz vermelha e rútila da aurora

cai, gota a gota, o orvalho que avigora

a imaculada e cândida açucena.

Como na cruz, da triste Madalena
5

aos pés de Cristo, a lágrima sonora

caia, rolou, qual bálsamo que irrora

a negra mágoa, a indefinida pena...

Caia por vós, esplêndidas crianças

bando feliz de castas esperanças,
10

sonhos da estrela no infinito imersos;

caia por vós, as músicas formosas,

como um dilúvio matinal de rosas,

todo o luar benéfico dos versos!


Ambos

Vão pela estrada, à margem dos caminhos

arenosos, compridos, salutares,

por onde, à noite, os límpidos luares

dão às verduras leves tons de arminhos.

Nuvens alegres como os alvos linhos
5

cortam a doce compridão dos ares,

dentre as canções e os tropos singulares

dos inefáveis, meigos passarinhos.

Do céu feliz na branda curvidade,

a luz expande a inteira alacridade,
10

o mais supremo e encantador afago.

E com o olhar vibrante de desejos

vão decifrando os trêmulos arpejos,

e as reticências que produz o vago.


Os dois

Aos pobres


-Minha mãe, minha mãe, quanta grandeza

nesses palácios, quanta majestade;

como essa gente há de viver, como há de

ser grande sempre na feliz riqueza.

Nem uma lágrima sequer -e à mesa
5

dentre as baixelas, dentre a imensidade

da prata e do ouro -a azul felicidade

dos bons manjares de ótima surpresa.

Nem um instante os olhos rasos d'água,

nem a ligeira oscilação da mágoa
10

na vida farta de prazer, sonora.

-Como o teu louco pensamento expandes

filho -a ventura não é só dos grandes

porque, olha, o mar também é grande e... chora!


Triste

Vai-se extinguindo a viva labareda

que te abrasava o coração ridente...

Passas magoada pela rua e a gente

umas conversas funerais segreda.

Não tens no olhar o sangue qu'embebeda,
5

foram-se as rosas do viver contente...

Segues, agora, pobre flor -somente

da sepultura a essencial vereda.

E vem chegando o tenebroso inverno...

Mas nesse mal devorador e eterno,
10

teu organismo já não mais resiste

às punhaladas da estação de gelo...

E acabará como eu nem sei dizê-lo,

triste, bem triste, pesarosa, triste!


Aos mortos

Oh! não é bom rir-se de um morto -brusca

pois deve ser a sensação que aumenta

desoladora, vagarosa, lenta

da negra morte tétrica velhusca...

Tudo que em vida, como um sol, corusca,
5

que nos aquece, que nos acalenta,

tudo que a dor e a lágrima afugenta,

o olhar da morte nos apaga e ofusca...

Nunca se deve desprezar os mortos...

Nos regelados e sombrios portos,
10

onde a matéria se transforma e urge

exuberar na planturosa leiva,

vivem os mortos no vigor da seiva,

porque dão vida ao que da vida surge!...


Luar

Pelas esferas, nuvens peregrinas,

brandas de toques, encaracoladas,

passam de longe, tímidas, nevadas,

cruzando o azul sereno das colinas.

Sombras da tarde, sombras vespertinas
5

como escumilhas leves, delicadas,

caem da serra oblonga nas quebradas,

vão penumbrando as coisas cristalinas.

Rasga o silêncio a nota chã, plangente,

da Ave-Maria, -e então, nervosamente,
10

nuns inefáveis, espontâneos jorros

esbate o luar, de forma admirável,

claro, bondoso, elétrico, saudável,

na curvilínea compridão dos mortos.


Mocidade

Ah! esta mocidade! -Quem é moço

sente vibrar a febre enlouquecida

das ilusões, da crença mais florida

na muscular artéria de Colosso...

Das incertezas nunca mede o poço...
5

Asas abertas -na amplidão da vida,

páramo a dentro -de cabeça erguida,

vê do futuro o mais alegre esboço...

Chega a velhice, a neve das idades

e quem foi moço, volve, com saudades,
10

do azul passado, o fúlgido compêndio...

Ai! esta mocidade palpitante,

lembra um inseto de ouro, rutilante,

em derredor das chamas de um incêndio!


Soneto

Vão-se de todo os pardacentos nimbos...

Chovem da luz as nítidas faíscas

e no esplendor de irradiações mouriscas,

abrem-se as flores em gentis corimbos.

Muito mais lestas do que amigos fimbos,
5

do Azul cortando as bordaduras priscas,

pombas do mato esvoaçando, ariscas,

do céu se perdem nos profundos limbos.

A natureza pulsa como a forja...

Pássaros vibram no clarim da gorja,
10

as retumbantes, fortes clarinadas.

A grande artéria dos assombros pula...

E do oxigênio, a força que regula

enche os pulmões a largas baforadas.


Cega

Parece-me que a luz imaculada

que vem do teu olhar, todo doçuras,

não verte no meu ser aquelas puras

delícias de outra era já passada.

Eu creio que essa pálpebra adorada
5

não mais um flóreo empíreo de venturas

descobre-me -na noite de amarguras,

de dúvidas intérminas cortada.

Não olhas como olhavas, rindo, outrora,

não abres a pupila, como a aurora
10

nascendo, abre, feliz, radiosa e calma.

A sombra, nos teus olhos, funda, existe!...

tu'alma deve ser bem negra e triste

se os olhos são, decerto, o espelho d'alma.


(A) Ermida

Lá onde a calma e a placidez existe,

sobre as colinas que o vergel encobre,

aquela ermida como está tão pobre,

aquela ermida como está tão triste.

A minha musa, sem falar, assiste,
5

do meio-dia ante o aspecto nobre,

o vago, estranho e murmurante dobre

daquela ermida que aos trovões resiste

e às gargalhadas funéreas, sombrias

dos crus invernos e das ventanias,
10

do temporal desolador e forte.

Daquela triste esbranquiçada ermida,

que me recorda, me parece a vida

jogada às magoas e ilusões da sorte.


Água-forte

Do firmamento azul e curvilíneo

cai, fecundando as trêmulas raízes

dos laranjais, dos pâmpanos, das lises,

a luz do sol procriador, sanguíneo.

Pelo caminho agreste e retilíneo,
5

da tarde aos brandos, triunfais matizes,

a criançada, a chusma dos felizes,

esse de auroras perfumado escrínio,

volta da escola, rindo muito, aos saltos,

trepando, em bulha, aos árvoredos altos
10

enquanto o sol desce os outeiros longos...

Vai dentre alados madrigais risonhos,

do abecedário juvenil dos sonhos,

a soletrar os principais ditongos.


Alma que chora

A João Saldanha


Em vão do Cristo os olhos dulçurosos

onde há o sol do bem e da verdade,

cheios da luz eterna de saudade,

como dois mansos corações piedosos,

em vão do Cristo os olhos lacrimosos
5

e aquela doce e pura suavidade

do seu semblante, casto, de bondade,

cor do luar dos sonhos venturosos,

servem de exemplo à dor escruciante

que te apunhala e fere a cada instante,
10

a punhaladas ríspidas, austeras!

Viste partir a tua irmã, ai, viste,

como num céu enevoado e triste

o bando azul das fúlgidas quimeras...


Chuva de ouro

A Rainha desceu do Capitólio

agora mesmo -vede-lhe o regaço...

como tem flores, como traz o braço

farto de jóias, como pisa o sólio

triunfantemente, numa unção, num óleo
5

mais santo e doce que essa luz do espaço...

E como desce com bravura de aço...

Pois se a Rainha, como um rico espólio,

o seu brioso coração foi dando

aos pobrezinhos, que inda estão gozando
10

bênçãos mais puras qu'os clarões diurnos,

por certo que há de vir descendo a escada

do Capitólio da virtude -olhada

pelos albergues infantis, noturnos!


Primavera a fora

Escute, excelentíssima: -que aragens

traz do arvoredo a fresca romaria;

como este sol é rubro de alegria,

que tons de luz nas límpidas paisagens.

Pois beba este ar e goze estas viagens
5

das brancas aves, sinta esta harmonia

da natureza e deste alegre dia

que resplandece e ri-se nas ervagens.

Deixe lá fora estrangular-se o mundo...

Encare o céu e veja este fecundo
10

chão que produz e que germina as flores.

Vamos, senhora, o braço à primavera,

e numa doce música sincera,

cante a balada eterna dos amores...


25 de março

Em Pernambuco para o Ceará

A província do Ceará, sendo berço de Alencar e
Francisco Nascimento -o dragão do mar- é
consequentemente a mãe da literatura e a mãe
da humanidade.


Bem como uma cabeça inteiramente nua

de sonhos e pensar, de arroubos e de luzes,

o sol de surpreso esconde-se, recua,

na órbita traçada -de fogo dos obuses.

Da enérgica batalha estóica do Direito
5

desaba a escravatura -a lei cujos fossos

se ergue a consciência -e a onda em mil destroços

resvala e tomba e cai o branco preconceito.

E o Novo Continente, ao largo e grande esforço

de gerações de heróis -presentes pelo dorso
10

à rubra luz da glória -enquanto voa e zumbe

o inseto do terror, a treva que amortalha,

as lágrimas do Rei e os bravos da canalha,

o velho escravagismo estéril que sucumbe.


(Recife, 1885)

Ninho abandonado

À distinta família Simas, pela morte de seu chefe,
o Ilmo. Sr. João da Silva Simas


O vosso lar harmônico e tranqüilo

era um ninho de luz e de esperanças

que como abelhas iriadas, mansas,

nos vossos corações tinham asilo.

Havia lá por dentro tanta crença
5

e tanto amor puríssimo, cantando,

que parecia um largo sol faiscando

por majestosa catedral imensa.

Agora o ninho está desamparado!

Sumiu-se dele o pássaro adorado,
10

o mais ideal dos pássaros do ninho.

Não se ouve mais a música sonora

da sua voz -dentro do ninho, agora,

paira a saudade como um bom carinho.


Crença

Filha do céu, a pura crença é isto

que eu vejo em ti, na vastidão das cousas,

nessa mudez castíssima das lousas,

no belo rosto sonhador do Cristo.

A crença é tudo quanto tenho visto
5

nos olhos teus, quando a cabeça pousas

sobre o meu colo e que dizer não ousas

todo esse amor que eu venço e que conquisto.

A crença é ter os peregrinos olhos

abertos sempre aos ríspidos escolhos;
10

tê-los à frente de qualquer farol

e conservá-los, simplesmente acesos

como dois fachos -engastados, presos

nas radiações prismáticas do sol!


Cristo e a adúltera

Grupo de Bernardelli

Sente-se a extrema comoção do artista

no grupo ideal de plácida candura,

nesse esplendor tão fino da escultura

para onde a luz de todo o olhar enrista.

Que campo, ali, de rútila conquista
5

deve rasgar, do mármore na alvura,

o estatuário -que amplidão segura

tem -de alma e braço, de razão e vista!

Vê-se a mulher que implora, ajoelhada,

a mais serena compaixão sagrada
10

de um Cristo feito a largos tons gloriosos.

De um Nazareno compassivo e terno,

d'olhos que lembram, cheios de falerno,

dois inefáveis corações piedosos!


Éxtase de mármore

À grande atriz Apolônia


O mármore profundo e cinzelado

de uma estátua viril, deliciosa;

essa pedra que geme, anseia e goza

num misticismo altíssimo e calado;

essa pedra imortal -campo rasgado
5

a comoção mais íntima e nervosa

da alma do artista, de um frescor de rosa,

feita do azul de um céu muito azulado;

se te visse o clarão que pelos ombros

teus, rola, cai, nos múltiplos assombros
10

da Arte sonora, plena de harmonia;

o mármore feliz que é muito artista

também -como tu és- à tua vista

de humildade e ciúme, coraria!


Inverno

Amanheceu -no topo da colina

um céu de madrepérola se arqueia

limpo, lavado, reluzindo -ondeia

o perfume da selva esmeraldina.

Uma luz virginal e cristalina,
5

como de um rio a transbordante cheia,

alaga as terras culturais e arreia

de pingos d'ouro os verdes da campina.

Um sol pagão, de um louro gema d'ovo,

já tão antigo e quase sempre novo,
10

surge na frígida estação do inverno.

-Chilreiam muito em árvores frondosas

pássaros -fulge o orvalho pelas rosas

como o vigor no espírito moderno.


Falando ao céu

Falas ao Céu, Amor! Em vão tu falas!

Mas o Céu, esse é velho, esse é velhinho,

todo ele é branco, faz lembrar o linho

dos leitos alvos onde tu te embalas.

A alma do Céu é como velhas salas
5

sem ar, sem luz, como lares sem vinho,

sem água e pão, sem fogo e sem carinho,

sem as mais toscas, as mais simples galas.

Sempre surdo, hoje o céu é mudo, é cego...

jamais o coração ao céu entrego,
10

eu que tão cego vou por entre abrolhos.

Mas se o queres tornar jovem e louro

dá-lhe o bordão do teu amor um pouco,

fala e vista, com a vida dos teus olhos...


Gloriosa

A Araújo Figueredo


Pomba! dos céus me dizes que vieste,

toda c'roada de astros e de rosas,

mas há regiões mais que essas luminosas.

Não, tu não vens da região celeste

há um outro esplendor em tua veste,
5

uma outra luz nas tranças primorosas,

outra harmonia em teu olhar -maviosas

cousas em ti que tu nunca tiveste.

Não, tu não vens das célicas planuras,

do Éden que ri e canta nas alturas
10

como essa voz que dos teus lábios tomba.

Vens de mais longe, vens doutras paragens,

vens doutros céus de místicas celagens,

sim, vens de sóis e das auroras, pomba.


O chalé

É um chalé luzido e aristocrático,

de fulgurantes, ricos arabescos,

janelas livres para os ares frescos,

galante, raro, encantador, simpático.

O sol que vibra em rubro tom prismático,
5

no resplendor dos luxos principescos,

dá-lhe uns alegres tiques romanescos,

um colorido ideal silforimático.

Há um jardim de rosas singulares,

lírios joviais e rosas não vulgares,
10

brancas e azuis e roxas purpúreas.

E a luz do luar caindo em brilhos vagos,

na placidez de adormecidos lagos

abre esquisitas radiações sulfúreas.


Delírio do som

O Boabdil mais doce que um carinho,

o teu piano ebúrneo soluçava,

e cada nota, amor, que ele vibrava,

era-me n'alma um sol desfeito em vinho.

Me parecia a música do arminho,
5

o perfume do lírio que cantava,

a estrela-d'alva que nos céus entoava

uma canção dulcíssima baixinho.

Incomparável, teu piano -e eu cria

ver-te no espaço, em fluidos de harmonia,
10

bela, serena, vaporosa e nua;

Como as visões olímpicas do Reno,

cantando ao ar um delicioso treno

vago e dolente, com uns tons de lua.


Ilusões mortas

A Virgílio Várzea


Os meus amores vão-se mar em fora,

e vão-se mar em fora os meus amores,

a murchar, a murchar, como essas flores

sem mais orvalho e a doce luz da aurora.

E os meus amores não virão agora,
5

não baterão as asas multicores,

como aves mansas -dentre os esplendores

do meu prazer, do meu prazer de outrora.

Tudo emigrou, rasgando a esfera branca

das ilusões, -tudo em revoada franca
10

partiu -deixando um bem-estar saudoso

no fundo ideal de toda a minha vida,

qual numa taça a gota indefinida

de um bom licor antigo e saboroso.


O sonho do astrólogo

As fulgurosas, rútilas estrelas

como mundos de mundos seculares,

formando uns arquipélagos, uns mares

de luz -como eu deslumbro o olhar ao vê-las.

Ah! se como eu sei compreendê-las,
5

sentir-lhes os seus filtros salutares,

pudesse, da amplidão fria dos ares

arrancá-las, na mão sempre trazê-las;

que vagalhões de assombros palpitantes

não me viriam perpassar, faiscantes,
10

dentro do ser, nuns doutros murmúrios.

Eu saberia muito mais a causa

da evolução que nunca teve pausa,

que é uma audácia transbordando em rios.


Cristo

Cristo morreu, ó tristes criaturas,

era matéria como vós, morreu;

e quando à noite sepulcral desceu

gelou com ele o oceano das ternuras.

Nunca outro sol de irradiações mais puras
5

subiu tão alto e tanto resplendeu,

nunca ninguém tão firme combateu

da humanidade todas as torturas.

Morreu, que se ele, o Deus, ressuscitasse,

limpa de sangue e lágrimas a face,
10

os seus olhos tranqüilos, virginais,

dons inefáveis, corações piedosos,

tinham de abrir-se muito dolorosos,

também chorando quando vós chorais!


Frutas de maio

Maio chegou -alegre e transparente,

cheio de brilho e música nos ares,

de cristalinos risos salutares,

frio, porém, ó gota alvinitente.

Corre um fluido suave e odorescente
5

das laranjeiras, como dos altares

o incenso -e, como a gaze azul dos mares,

leve -há por tudo um beijo, docemente.

Isto bem cedo, de manhã -adiante

pela tarde um sol calmo, agonizante,
10

põe no horizonte resplendentes franjas.

Há carinhos, da luz em cada raio,

filha -e eu que adoro este frescor de maio

muito, mas muito -trago-te laranjas.


Eterno sonho

Quelle est donc cette femme?

Je ne comprendra pas.


Félix Arvers



Talvez alguém estes meus versos lendo

não entenda que amor neles palpita,

nem que saudade trágica, infinita

por dentro deles sempre está vivendo.

Talvez que ela não fique percebendo
5

a paixão que me enleva e que me agita,

como de uma alma dolorosa, aflita

que um sentimento vai desfalecendo.

E talvez que ela ao ler-me, com piedade,

diga, a sorrir, num pouco de amizade,
10

boa, gentil e carinhosa e franca:

-Ah! bem conheço o teu afeto triste...

E se em minha alma o mesmo não existe,

é que tens essa cor e é que eu sou branca!


Impassível

Teu coração de mármore não ama

nem um dia sequer, nem um só dia.

Essa inclemente natureza fria

jamais na luz dos astros se derrama.

Mares e céus, a imensidade clama
5

por esse olhar d'estrelas e harmonia,

sem uma névoa de melancolia,

do amor nas pompas e na viva chama.

A Imensidade nunca mais quer vê-lo,

indiferente às comoções, de gelo
10

ao mar, ao sol, aos roseirais de aromas.

Ama com o teu olhar, que a tudo encantas,

ou sê antes de pedra, como as santas,

mudas e tristes dentro das redomas.


Sonetos

Do som, da luz entre os joviais duetos,

como uma chusma alada de gaivotas,

vindos das largas amplidões remotas,

batem as asas todos os sonetos.

Vão -por estradas, por difíceis rotas,
5

quatorze versos -entre dois quartetos

e duas belas e luzidas frotas

rijas, seguras, de mais dois tercetos.

Com a brunida lâmina da rima,

vão céus radiosos, horizontes acima,
10

pelas paragens límpidas, gentis,

atravessando o campo das quimeras,

aberto ao sol das flóreas primaveras,

todo estrelado de áureos colibris.


To sleep, to dream

Dormir, sonhar -o poeta inglês o disse...

Ah! Mas se a gente nunca mais sonhasse

ah! Mas se a gente nunca mais dormisse

e as ilusões não mais acalentasse?

E o que importava que o futuro risse
5

de um visionário que tal cousa ideasse;

se não seria o único que abrisse

uma exceção da vida humana à face?...

Se os imortais filósofos modernos

que derrubaram todos os infernos,
10

que destruíram toda a teogonia.

Orientando a triste humanidade,

deixaram, mais e mais, a piedade

inteiramente desolada e fria?


Visão medieva

Quando em outras remotas primaveras,

na Idade Média, sob fuscos tetos,

dois amantes passavam, mil aspectos

tinham aquelas medievais quimeras.

Nas armaduras rígidas e austeras,
5

na aérea perspectiva dos objetos

andavam sonhos e visões, diletos

segredos mortos nas extintas eras.

O fantasma do amor pelos castelos

mudo vagava entre os luares belos,
10

dos corredores nas paredes frias.

Não raro se escutava um som de passos,

rumor de beijos, frêmito de abraços

pelas caladas, fundas galerias.


Recordação

Foi por aqui, sob estes arvoredos,

sob este doce e plácido horizonte,

perto da clara e pequenina fonte

que murmura lá baixo os seus segredos...

Recordo bem todos os cantos ledos
5

da passarada -e lembro-me da ponte

por sobre a qual via-se além, defronte,

o mar azul batendo nos penedos.

Sinto a impressão ainda da paisagem,

do trêmulo [...] da folhagem,
10

das culturas rurais, do sítio agreste.

A luz do dia vinha então morrendo...

foi por aqui que eu pude ficar crendo

o quanto pode o teu olhar celeste.


Roma pagã

Na antiga Roma, quando a saturnal fremente

exerceu sobre tudo o báquico domínio,

não era raro ver nos gozos do triclínio

a nudez feminina imperiosa e quente.

O corpo de alabastro, olímpico e fulgente,
5

lascivamente nu, correto e retilíneo,

num doce tom de cor, esplêndido e sangüíneo,

tinha o assombro da carne e a forma da serpente.

A luz atravessava em frocos d'oiro e rosa

pela fresca epiderme, ebúrnea e cetinosa,
10

macia, da maciez dulcíssima de arminhos.

Menos raro, porém, do que a nudez romana

era ver borbulhar, em férvida espadana

a púrpura do sangue e a púrpura dos vinhos.


Espiritualismo

Ontem, à tarde, alguns trabalhadores,

habitantes de além, de sobre a serra,

cavavam, revolviam toda a terra,

do sol entre os metálicos fulgores.

Cada um deles ali tinha os ardores
5

de febre de lutar, a luz que encerra

toda a nobreza do trabalho e -que erra

só na cabeça dos conspiradores,

desses obscuros revolucionários

do bem fecundo e cultural das leivas
10

que são da Vida os maternais sacrários.

E pareceu-me que do chão estuante

vi porejar um bálsamo de seivas

geradoras de um mundo mais pensante.


Alma antiga

Põe a tua alma francamente aberta

ao sol que pelos páramos faísca,

que o sol para a tua alma velha e prisca

deve de ser como um clarim de alerta.

Desperta, pois, por entre o sol, desperta
5

como de um ninho a pomba quente e arisca

à luz da aurora que dos altos risca

de listrões d'ouro a vastidão deserta.

Vai por abril em flores gorjeando

como pássaro êxul as canções leves
10

que os ventos vão nas árvores deixando.

E tira da tua alma, ó doce amiga,

almas serenas, puras como a neve,

almas mais novas que a tua alma antiga!


A partida

Partimos muito cedo -a madrugada

clara, serena, vaporosa e fresca,

tinha as nuances de mulher tudesca

de fina carne esplêndida e rosada.

Seguimos sempre afora pela estrada
5

franca, poeirenta, alegre e pitoresca,

dentre o frescor e a luz madrigalesca

da natureza aos poucos acordada.

Depois, no fim, lá de algum tempo -quando

chegamos nós ao termo da viagem,
10

ambos joviais, a rir, cantarolando,

da mesma parte do levante, de onde

saímos, pois, faiscava na paisagem

o sol, radioso e altivo como um conde.


Canção de abril

Vejo-te, enfim, alegre e satisfeita.

ora bem, ora bem! -Vamos embora

por estes campos e rosais afora

de onde a tribo das aves nos espreita.

Deixa que eu faça a matinal colheita
5

dos teus sonhos azuis em cada aurora,

agora que este abril nos canta, agora,

a florida canção que nos deleita.

Solta essa fulva cabeleira de ouro

e vem, subjuga com teu busto louro
10

o sol que os mundos vai radiando e abrindo.

E verás, ao raiar dessa beleza,

nesse esplendor da virgem natureza,

astros e flores palpitando e rindo.


O mar

Que nostalgia vem das tuas vagas,

ó velho mar, ó lutador Oceano!

Tu de saudades íntimas alagas

o mais profundo coração humano.

Sim! Do teu choro enorme e soberano,
5

do teu gemer nas desoladas plagas

sai o [...] que é, rude sultão ufano,

que abre nos peitos verdadeiras chagas.

Ó mar! ó mar! embora esse eletrismo,

tu tens em ti o gérmen do lirismo,
10

és um poeta lírico demais.

E eu para rir com humor das tuas

nevroses colossais, bastam-me as luas

quando fazem luzir os seus metais...


[Brancas aparições, visões renanas]

Brancas Aparições, Visões renanas,

imagens dos Ascetas peregrinos,

hinos nevoentos, neblinosos hinos

das brumosas igrejas luteranas.

Vago mistério das regiões indianas,
5

sonhos do Azul dos astros cristalinos,

coros de Arcanjos, claros sons divinos

dos Arcanjos, nas tiorbas soberanas.

Tudo ressurge na minh'alma e vaga

num fluido ideal que me arrebata e alaga,
10

no abandono mais lânguido mais lasso...

Quando lá nos sacrários do Cruzeiro

a lua rasga o trêmulo nevoeiro,

magoada de vigílias e cansaço...


Guerra junqueiro

Quando ele do Universo o largo supedâneo

galgou como os clarões -quebrando o que não serve,

fazendo que explodissem os astros de seu crânio,

as gemas da razão e os músculos da verve;

quando ele esfuziou nos páramos as trompas,
5

as trompas marciais -as liras do estupendo,

pejadas de prodígios, assombros e de pompas,

crescendo em projeções, crescendo e recrescendo;

quando ele retesou os nervos e as artérias

do verso orbicular -rasgando das misérias
10

o ventre do Ideal na forte hematêmese.

Clamando -é minha a luz, que o século propague-a,

quando ele avassalou os píncaros da águia

e o sol do Equador vibrou-lhe aquelas teses!


Diversas métricas

A meu distinto amigo e talentoso jovem

José Arthur Boiteux



O livro, esse audaz guerreiro,

que conquista o mundo inteiro,

sem nunca ter Waterloo!...


Castro Alves



Away!

Avante, sempre, nessa luz serena,

empunha a pena, sem temor, com fé!...

Eleva às turbas as idéias d'ouro,

que um tesouro tua fronte é!...

Eia, caminha nessa senda nobre,
5

na pátria pobre, no teu berço aqui!...

Prossegue altivo, sem parar, constante,

faz-te gigante, diz depois -Venci!...

Ala-te à glória num voar titânio,

burila o crânio de fulgor sem fim!...
10

E entre o livro d'imortais perfumes

calca os ciúmes d'imbecil Caim!

Imita os grandes, incansáveis vultos

que lá sepultos no pó negro estão!...

Anda, romeiro dos vergéis divinos,
15

mergulha em hinos a gentil razão!

Estás na quadra radiante e linda,

é cedo ainda para enfim descrer!

és jovem... pensas... és portanto um bravo

ser ignavo... é sucumbir... morrer!
20

Vamos, caminha, mesmo embora exangue

da fronte o sangue vá rolar-te aos pés!

Agita a alma qual febris as vagas,

que dessas chagas brotarão lauréis!

Além do livro, colossal, enorme,
25

que nunca dorme perscrutando os céus!

Acima dele supernal, potente

está somente, tão-somente Deus!

Vai!... vai rasgando, percorrendo os ares,

novos palmares, meu gentil condor!
30

Depois de teres pedestal seguro

lá do futuro te erguerás senhor!...

Qual Ney ousado que, ao vibrar da lança,

nutre esperança de ganhar, vencer,

assim co'a idéia vai lutar, trabalha,
35

vence a batalha do dinal saber.

Eia que sempre na brasília história

de alta glória colherás o jus!...

O livro augusto do porvir descerra,

sê desta terra precursor da luz!!!
40


Poesia

C'est la musique la poesie de l'âme; et la gloire est Dieu, ce sont les deux choses les plus charmantes, les plus belles, les plus grandes de la vie!

Do Autor



Da música escutando preclaras harmonias

vendo em cada lábio brilhar ledo sorriso

vendo luz e flores e tanto entusiasmo

julguei-me transportado ao célico Paraíso!

Foi sonho na verdade -mas hoje realizado
5

vos dá, distintos sócios, venturas mais de mil,

a vós que à frente tendo Penedo, grande, forte,

subis, alistridente, qual ave mais gazil!

E quando executais as vossas belas peças

as notas quais gemidos vagam n'amplidão
10

parece que o infinito derrama sobre vós

centelhas sublimadas só d'inspiração!

da arte de Mozart vós sois grandes romeiros

lutais como nas vagas o triste palinuro,

os olhos tendes fitos na glória que dá brilho
15

no livro tricolor e ovante do futuro!

Hoje que os sorrisos assomam em vossos lábios

que da «Guarani» alçais áureo pendão,

eu humilde e fraco -com flores inodoras

somente aqui vos venho fazer uma ovação!
20

Quando há só coragem, força, intrepidez

quando se alimenta no peito divo ardor,

o homem não recua, caminha p'ro progresso

co'a fronte sempre erguida, sem ter menor temor,

Sem ter algum trabalho jamais s'alcança trono
25

sem ter valor e força jamais se tem lauréis

p'ra vossa grande glória, além do grã futuro

Deus já tem erectos milhares de dosséis!

Mas dentre vós vulto sereno se destaca

qual Rodes portentoso, imenso, verdadeiro
30

que nunca recuou sequer um só momento

que sempre em trabalhar foi pronto companheiro!

É este vosso sócio, digno diretor

que forte não pensou jamais em recuar!

É José Gonçalves -águia valorosa
35

a quem, altivamente, eu ouso aqui louvar!

Vencendo mil tropeços, altiva os derribando

a bela «Guarani» se mostra triunfante,

foi como esses heróis -na mão sustenta o gládio

-o gládio da vitória serena e radiante!
40

Portanto erguei ridente a fronte ao infinito!

Erguei ó grandes bravos a fronte toda luz!

Eia, a senda é bela, sublime, é grandiosa

avante pois ness'arte, avante, avante, sus!

E agora concluindo palavras pobrezinhas
45

que eu pronunciar humilde vim aqui,

saúdo fervoroso -do imo de minh'alma

a essa tão gentil, simpática «Guarani»!


Saudação

Qual o que não exulta ao ler uma epopéia!

Qual o que a ver dor não lhe estremece o crânio,

em confusões cruéis?!

Qual o que tem fresca, sublime, pronta a idéia,

e do altar da caridade no supedâneo,

não deixa alguns lauréis?!


Do Autor



Ontem, grande desgraça

que o povo se abraça

d'Itajaí em geral!

Ontem, o cetro divino

que se tornando ferino
5

tudo esmaga afinal!

Ontem, prantos e dor...

Grandes gritos d'horror...

A fatal confusão!

Ontem, lampas perdidas
10

de centenas de vidas,

que nas águas lá vão!

Ontem, negras as vagas,

os belos céus, essas plagas,

-onde existe o Senhor!
15

Ontem, -fatalidade!

a pobrezinha cidade

toda envolta em negror!

Hoje, oh! Deus sempiterno!

-O teu gládio superno
20

de bonança a irradir,

veio ao povo esmagado

ao tredo peso do fado

fazer do caos ressurgir!

Hoje, o íris brilhante
25

lá nos céus, radiante,

já se faz divulgar!

E todo o povo prostrado

te agradece arroubado

mas ainda a chorar!
30

E corações caridosos

farão a dar pressurosos

os seus globos gentis!

Dai! é doce a esmola!

Ela aos pobres consola,
35

torna-os ledos, gazis!

A miséria chorava

em delírio bradava

por um pouco de pão!

E eles foram dizendo
40

-ide, pois vos mantendo,

aqui tendes a mão!

E vós -lá no tablado,

o mor rasgo, elevado,

de fazer acabais!
45

É um rasgo de glória

de brilhante memória

pros vindouros anais!

Vós fazeis do cenário

um dinal santuário
50

trabalhando p'ra pobres!

Mostrais bem que nas almas

possuís celsas palmas

de ações muito nobres!

P'ra louvar amadores,
55

tantas lutas, labores,

tanta excelsa virtude!

Ah! me falta uma lira

que um poema desfira...

Ai! me falta alaúde!
60

Só Deus pode dar louros

de mil glórias, tesouros,

como vós mereceis!

Pois que feitos tão divos,

tão imensos, altivos
65

só d'heróis ou de reis!

Amadores briosos!

Vós sois tão valorosos

qual os bravos na guerra!

Sois os nautas valentes
70

socorrendo ridentes

quem cá gema na terra!

Amor, Deus, Caridade

-é a sublime trindade

radiante de Luz!
75

Donde vós, amadores,

Ll colheis os fulgores,

de mil graças a flux!


(Desterro, 14 nov. 1880)

A imprensa

A Imprensa é brilhante como
o meteoro, sublime como os
arrebóis do cerúleo infinito!

Do Autor



A lâmpada gigantesca

das glórias do porvir,

turíbulo majestoso

no mundo a irradir,

é a imprensa tesouro
5

e c'roa de verde louro

à fronte do escritor!

É centelha sublimada

que vem do céu arrojada

á treva dando fulgor!
10

-O homem nasceu pequeno

mas com as letras cresceu

foi como o vulto de Rodes

que lá tão alto s'ergueu!

Foi preciso -estudando
15

co'a própria idéia lutando

mergulhar-se na luz!

Foi preciso ter glória,

brilhante, leda memória,

colher renomes a flux!
20

Foi preciso mil lutas

mil labores insanos

p'ra descobrir nesses mundos

da diva luz os arcanos!

Foi preciso que um bravo
25

não mostrando-se ignavo

mas inspirado por Deus!

A pedra bruta talhasse

e a luz então derramasse

qual seiva santa dos Céus!
30

Foi preciso os séculos

ainda um pouco nas trevas

erguessem as frontes bem alto

e devastassem mil selvas!

Foi preciso que o mundo
35

sentisse abalo profundo

ao desvendar-se o saber!

Foi preciso que os entes

ou se erguessem potentes

ou tombassem a morrer!
40

Mas não! -o homem ergueu-se,

quase, quase com Deus

tirou a fronte da treva

e só pregou-a nos Céus!

Viu o futuro de louros
45

e quis colher os tesouros

que dão renome sem fim!

Sonhou, sonhou co'a vitória

e o gládio teve da glória

qual o grão Bernardim!
50

O homem, gênio sublime,

caminha, com seu bordão

até achar o brilhante

a luz, a luz da razão!

Tropeça um pouco, se tomba
55

ergue-se, voa qual pomba

e indo a luz descobrir,

busca ouvir no infinito

do eco ao longe este grito:

Trabalha para o porvir!
60

Quando os povos modernos,

sentirem no coração

uma ardente centelha

que caia lá d'amplidão!

Deixarão esses vícios,
65

insanos, negros, fictícios

que dão só noite ao viver!

E irão curvados a ela

depor-lhe verde capela

farão então por crescer!
70

Camões, Milton, Abreu,

já da vida sem lampas,

erguei-vos crânios altivos

espedaçai essas campas!

Dizei -se o homem caminha
75

se na treva definha

a quem se deve louvar?!...

S'as letras seguem ovantes

dizei ó nobres gigantes

a quem se ergue alcaçar?!!...
80

E Guttemberg esse herói,

essa vergôntea dinal,

que co'escopro na destra!

Foi das letras fanal!

Ao descobrir a imprensa
85

essa epopéia imensa

para toda a nação,

com glória ingente sonhava

na luz por certo nadava

já tinha os louros na mão!
90


(Desterro, 21 nov. 1880)

Versos

Admirai Carrara, Canova, Rafael,
Murillo, Mozart e Verdi e tereis
as sublimes, mais que sublimes,
as divinas encarnações da arte!

Do Autor



Bravo, prole bendita

pois à glória infinita

o lutar vos conduz!

É assim -trabalhando

sempre e sempre estudando
5

que se alcança mais luz!

Contemplai estas flores

estes tantos lavores

contemplai o painel!

Repetindo orgulhosos
10

estes feitos briosos

são dum belo pincel!

Eia, jovens, avante!

Ser artista é brilhante,

trabalhar é uma lei!
15

Não são só os c'roados

que merecem em brados

ter as honras de rei!

O artista qu'é pobre

é tão rico, é tão nobre
20

qual potente césar!

E a glória bem cedo

lhe murmura o segredo

-És artista -és sem par!

Não temais os pampeiros
25

sois gentis brasileiros

deveis pois progredir!

Quem vos traça na história

vossa augusta memória

é um deus -o Porvir!
30

Levantai-vos potentes

altanados, ingentes

e fazei-vos Criseus!

Só quem pode vergar-vos

e pensar obumbrar-vos
35

mais ninguém -é só Deus!

Não fiqueis ignavos

que o futuro dá bravos

vos dizendo -estudai!

Sois humanos -portanto
40

se há de trevas um manto

apressai-vos, rasgai!

Nossa pátria querida

necessita mais vida,

necessita crescer!
45

É preciso contudo

que tenhais como escudo

quem vos mostra o saber!

E de obreiros altivos,

que sereis redivivos
50

que sereis imortais,

achareis vossos nomes

vossos grandes renomes

nas mansões divinais!

Perdoai-me estas flores
55

que tão murchas, sem cores

nada podem valer!

São ofertas sinceras

arrancadas deveras

para vir vos trazer!
60

Palinuros -à frente

esse trilho é ridente

dás-vos honra, louvor!

Quem o braço vos guia

nunca, nunca entibia-
65

-É artista... e pintor!

É a vós a quem falo

e se hoje eu não calo

estas vãs expressões!

É que a louca alegria
70

em minh'alma irradia

com fulgentes clarões!

O trabalho enobrece

glorifica, engrandece

aos artistas quais vós!
75

Que zombando da sorte

têm a tela por norte

os pincéis por faróis!

Eia! nessa carreira

qual a nau sobranceira
80

indo o mar a fender!

Quando há negros abrolhos,

mil cachopos, escolhos

é mais belo o vencer!

Se o lutar é dos grandes
85

que são gêmeos dos Andes

que não sabem tombar!

Colhereis uma glória

mais suprema memória,

trabalhando, a lutar!
90

Deus, o Deus sublimado

disse ao homem num brado,

da sidérea mansão!

-Vai depressa arrimar-te

aos arcanos da arte,
95

que terás um bordão!

Onde há braços d'artista

é seu ponto de vista

decepar escarcéus!

E seu gládio seguro
100

vai cavar o futuro

vai rasgar negros véus!

E lá quando os vindouros

vos c'roarem de louros

vos erguerem dossel!
105

Bradarão altaneiros:

-Exultai brasileiros,

ressurgiu Rafael!

Não temais os insanos,

insensatos humanos
110

bajulantes e maus!

Trabalhai muito embora!

Há de vir uma aurora

p'ra arrancá-los do caos!

Away, estudantes
115

sois vergônteas pujantes

a lauréis tendes jus!

Caminhai com coragem,

qu'esta é a romagem

dos apóstolos da luz!!!...
120


Ao decênio de Castro Alves

Quem sempre vence é o porvir!


No espadanar das espumas

que vão à praia saltar!

Nos ecos das tempestades

da bela aurora ao raiar,

um brado enorme, profundo,
5

que faz tremer todo o mundo

se deixa logo sentir!

É como o brado solene,

ingente, celso, perene,

é como o brado: -Porvir!
10

Pergunta a onda: -Quem é?...

Responde o brado: -Sou eu!

Eu sou a Fama, que venho

c'roar o vate, o Criseu!

Dormi, meu Deus, por dez anos
15

e da natura os arcanos

não posso todos saber!

Mas como ouvisse louvores

de glória, gritos, clamores,

também vim louros trazer.
20

Fatalidade! -Desgraça!

Fatalidade, meu Deus!

Passou-se um gênio tão cedo,

sumiu-se um astro nos céus!

As catadupas d'idéias,
25

de pensamento epopéias

rolaram todas no chão!

Saindo a alma pra glória

bradou pra pátria -vitória!

já sou de vultos irmão!
30

Foi Deus que disse: -Poeta,

vem decantar a meus pés.

Na eternidade há mais luz,

dão mais valor ao que és.

Se lá na terra tens louros,
35

receberás cá tesouros

de muitas glórias até!

Terás a lira adorada

c'o divo plectro afinado

de Dante, Tasso e Garret!
40

Então na terra sentiu-se

um grande acorde final!

O belo vate brasílio

pendeu a fronte imortal!

O negro espaço rasgou-se
45

e aquele gênio internou-se

na sempiterna mansão.

A sua fronte brilhava

e o áureo livro apertava

sereno e ledo na mão...
50

E o mundo então sobre os eixos

ouviu-se logo rodar!

É que ele mesmo estremece

a ver um vulto tombar.

É que na queda dos entes
55

que são na vida potentes,

que têm nas veias ardor,

há cataclismos medonhos

que só sentimos em sonhos

mas que nos causam terror!...
60

E o coração s'estortega

e s'entibia a razão!

No peito o sangue enregela

e logo a história diz: -Não!

Não chore a pátria esse filho,
65

se procurou outro trilho

também mais glórias me deu!

E quando os séculos passarem

se hão de tristes curvarem

enquanto alegre só eu?...
70

Oh! Basta! Basta! Silêncio!

repousa, vate, nos Céus!

Que muito além dos espaços

os cantos subam dos teus!

Se nesta vida d'enganos
75

não são bastante os humanos

pra te render ovações!

Perdoa os fracos, ó gênio,

que pra cantar teu decênio

somente Elmano ou Camões!
80


Entre luz e sombra

Ao dia 7 de Setembro

Libertas Lux Dei!!...


Surge enfim o grande astro

que se chama Liberdade!...

Dos sec'los na imensidade

eterno perdurará!...

Como as dúlias matutinas
5

que reboam nas colinas,

nas selvas esmeraldinas

em honra ao celso Tupá!...

Eram só cinéreas nuvens

os brasílios horizontes!
10

Curvadas todas as frontes

caminhavam no descrer!-

As brisas nem murmuravam...

Os bosques nem soluçavam...

Os peitos nem se arroubavam...
15

-Estava tudo a morrer!...

De repente, o sol formoso

vai as nuvens esgarçando.

as almas vão palpitando,

cintilam magos clarões!...
20

E o Índio fraco, indolente

fazendo esforço potente

dos pulsos quebra a corrente,

biparte os acres grilhões!...

Por terra tomba gemendo
25

o vão, atroz servilismo...

Rui a dobrez no abismo...

Eis a verdade de pé!...

Enfim!... exclama o silvedo

enfim!... lá diz quase a medo
30

selvagem, nu Aimoré!...

Assim, brasília coorte,

falange excelsa de obreiros,

soberbos, almos luzeiros

de nossa gleba gentil,
35

quebrai os elos d'escravos

que vivem tristes, ignavos,

Ffrmando delas uns bravos

-P'ra glória mais do Brasil!...

Lançai a luz nesses crânios
40

que vão nas trevas tombando

e ide assim preparando

uns homens mais p'ro porvir!

Fazei dos pobres aflitos

sem crenças, lares, proscritos,
45

uns entes puros, benditos

que saibam ver e sentir!...

Do carro azul do progresso

fazei girar essa mola!

Prendei-os sim, -mas à escola
50

matai-os sim, -mas na luz!

e então tereis trabalhado

o negro abismo sondado

e em nossos ombros levado

ao seu destino essa cruz!!...
55

Fazei do gládio alavanca

e tudo ireis derribando;

dormi, co'a pátria sonhando

e tudo a flux se erguerá!

E a funda treva cobarde
60

sentindo homérico alarde,

embora mesmo que tarde

curvada assim fugirá!...

Enfim!... os vales soluçam

enfim!... os mares rebramam
65

enfim!... os prados exclamam

já somos livre nação!!...

Quebrou-se a estátua de gesso...

Enfim!... -mas não... estremeço,

vacilo... caio, emudeço...
70

Enfim de tudo inda não!!...


Sete de setembro

Liberdade! Independência!...

eis os brados grandiosos

que quais raios luminosos

fulguraram lá nos céus!...

Eis a mágica -Odisséia
5

que duns lábios rebentando,

foi o povo transformando,

foi rompendo os negros véus!...

As colinas, prados, montes,

as florestas seculares
10

-os sertões, os próprios mares

exultaram com fervor!

E os brados retumbaram

pela lúcida devesa,

pela virgem natureza
15

com homérico clangor!...

Qual artista consumado,

qual um velho estatuário

do Brasil no azul sacrário,

essa data vos traçou,
20

-o triunfo mais pujante,

a eleita das idéias,

a maior das epopéias

-q'inda igual não se gerou!...

Mas embora, meus senhores
25

se festeje a Liberdade,

a gentil Fraternidade

não raiou de todo, não!...

E a pátria dos Andradas

dos -Abreu, Gonçalves Dias
30

inda vê nuvens sombrias,

vê no céu fatal bulcão!...

Muito embora Rio Branco,

esse cérebro profundo

que passou por entre o mundo,
35

do Brasil como um Tupá!...

Muito embora em catadupas

derramasse o verbo augusto,

da nação no enorme busto

inda a mancha existe, há!...
40

É preciso com esforço,

colossal, estranho, ingente,

ir o cancro, de repente

esmagar que nos corrói!...

É preciso que essa Deusa,
45

a excelsa Liberdade,

raie enfim na Imensidade

mais altiva como sói!...

Sai da larva a borboleta

com as asas auriazuis
50

e um disco vai -de luz

a deixar onde passou!

No entanto o grande berço

das façanhas de Cabrito

inda espera um novo grito
55

como o -Basta- de Waterloo!...

Eu bem sei que Guttemberg

que esse Fulton primoroso

Faust, Kepler grandioso

trabalharam té vencer!
60

mas embora tropeçassem

acurando os seus eventos,

tinham sempre tais portentos

a vontade por poder!...

Eia! sim! -p'ra Liberdade
65

irrompei qual verbo eterno,

como o -Fiat- superno

pelos ares a rolar!

Eia! sim! -que nossa pátria

só precisa -mas de bravos...
70

E em prol desses escravos

seu dever é trabalhar!!...

Somos filhos dessa gleba

majestosa aonde o gênio

como o astro do proscênio
75

solta as asas, mui febril!

Dos selvagens Tiaraiús

e dos brônzeos Guaicurus...

Somos filhos do Brasil!...

Esperemos, tudo embora!...
80

pois que a sã locomotiva,

do progresso imagem viva

não se fez a um sopro vão!

Aguardemos o momento

das mais altas epopéias,
85

quando o gládio das idéias

empunhar toda a nação!...

Esperemos mais um pouco

q'inda há almas brasileiras

que se lembrarão, sobranceiras,
90

que é preciso progredir!...

Inda há peitos valerosos

que combatem descobertos

por florestas, por desertos,

mas c'os olhos no porvir!...
95

Inda há lúcidas falanges

lutadores denodados

que se erguem transportados

burilando a sã razão!...

Inda há quem se recorde
100

do Egrégio Tiradentes

que do sangue as gotas quentes

derramou pela nação!!...

Já nas margens do Ipiranga

patrióticos acentos
105

vão alados como os ventos

pelos páramos azuis!!...

Vamos! Vamos! -eia! exulta,

jovem pátria dos renomes...

-Vibra a lira, Carlos Gomes!
110

Bocaiúva, espalha luz!!...


Três pensamentos

Nasceste no Brasil -filha d'América,

tu sabes conservar nas débeis veias

no lúcido pulmão

o sangue efervescente e purpurino

a força de subir ao céu da história.
5

às lutas da razão!...

Nasceste no Brasil -em meio às plagas

da grande natureza mais pujante

e cheia de arrebol!...

E sabes obumbrar os astros fulvos
10

e lanças raios mil por toda a parte,

soberba como o sol!...

Nasceste no Brasil e o eco ovante

das glórias sublimadas que tu colhes

por este céu azul,
15

vem férvido, viril e acentuado

assaz repercutir com mais verdade

aqui... aqui no sul!...


Sempre

Se é certo que o amor é um bem profundo

se é certo que o amor é um sol ardente,

eu hei de amar-te sempre neste mundo

e sempre, sempre, sempre -eternamente.


Beijos

Nesta Tebaida infinita

da vida, na sombra oculto,

eu gosto de olhar o vulto

de uma criança bonita.

Porque afinal as crianças,
5

como eu deslumbro-me ao vê-las,

cintilam como as estrelas,

florescem como esperanças.

Dentro de mim se projeta

a luz cambiante dos prismas
10

e batem asas as cismas

qual passarada irrequieta.

E batem asas e ruflam,

pelas artísticas plagas,

as auras que as grandes vagas
15

dos fundos mares insuflam.

E digo, ó mães, se uma aurora

fosse a minh'alma sincera,

os clarões todos eu dera

a uma criança que chora.
20

Porque se a luz fortalece

arbustos e as andorinhas,

também por certo às criancinhas

conforta, avigora, aquece.

E eu que aplaudo e que rimo
25

tudo isso que à luz se regre,

na vibração mais alegre

as criancinhas estimo.

Portanto, assim, sem refolhos

beijando a Olga, beijando
30

meus sonhos vão, irradiando,

se derramar em seus olhos!


Ser pássaro

Ah! Ser pássaro! ter toda a amplidão dos ares

para as asas abrir, ruflantes e nervosas,

dos parques através e dos moitais de rosas,

nos floridos jardins, nas hortas e pomares.

Ser pássaro, cantar, subir, voar na altura,
5

pelos bosques sem fim, perder-se nas florestas,

das folhagens do campo em meio da espessura,

das auroras de abril nas cristalinas festas.

Tecer no tronco seco ou no tronco viçoso

o quente lar do amor, o carinhoso ninho,
10

de onde sairá mais tarde o pipilar mavioso

de um outro mais gentil e meigo passarinho.

Não temer o verão e não temer o inverno

para tudo alcançar na leve subsistência,

no contínuo lidar, no labutar eterno,
15

que é talvez da alegria a mais feliz essência.

Viver, enfim, de luz e aromas delicados,

nascido dentre a luz, gerado dentre aromas,

sonorizando o azul, sonorizando os prados

e dormindo da flor sob as cheirosas comas.
20

Voar, voar, voar, voar eternamente,

extinguir-se a voar, no matinal gorjeio,

é ser pássaro, é ter em cada asa fremente

um sol para aquecer o frio de algum seio.


Saudação

Ao Liceu de Artes e Ofícios


Como esta luz é serena,

como esta luz é sincera;

como eu vejo a primavera

num lápis e numa pena.

Que prismas de luz ardente,
5

que prismas de luz suave;

como eu sinto um canto de ave

em cada boca inocente.

Sim! Que o estudo é como a aurora

que nos entra pela casa,
10

num vivo fulgor de brasa,

vibrante, alegre, sonora.

Ele rasga a treva espessa,

num só momento -cantando;

vai estrelas semeando
15

em cada tenra cabeça.

Tira os crânios do letargo

da ignorância -pois entra

como um sol e se concentra

num esplendor muito largo.
20

Quem, ó Arte imaculada,

medisse o ser da criança,

pela alma de uma esperança

pela alma de uma alvorada.

Quem aos páramos subindo,
25

eternamente pudesse,

dos astros a loura messe

arrancar -depois abrindo

os peitos das criancinhas

jogá-los dentro e beijá-las
30

cheias de pompa e das galas

que a luz concede às rainhas!...

Pois que a treva entre fulgores,

é como, dentre ataúdes,

rebentar como virtudes,
35

as mais simpáticas flores.

Ah! Ninguém sabe, por certo,

quanto é bom, quanto é saudável,

sentir a crença adorável

como um clarão sempre aberto.
40

Ver os germens do futuro

no campo eterno da escola,

brilhando como a corola

de um lírio cândido e puro.

Ver morrer -como uns invernos
45

da vida, os velhos colossos

e ver erguerem-se os moços

como verões sempiternos.

Mães, ó mães tão extremosas,

dos vossos ventres fecundos
50

saem todos esses mundos

das idéias fulgurosas.

Tudo isso quanto há escrito

de pensamento e crenças

saiu das fontes imensas
55

de um grande amor infinito.

E desde a escrita à leitura

e desde um livro a uma carta,

a bondade sempre farta

das mães -esplende e fulgura.
60

Bom dia ao mestre que é guia

das belas crianças louras!

Bom dia às mães porvindouras,

à mocidade -Bom dia!


Gusla da saudade

A Santos Lostada pela morte do seu velho pai


Nunca mais, nunca mais esses teus olhos

palpitarão nos olhos seus honestos

nem hão de vê-lo em ânsias por escolhos.

Ele morreu, morreu -e os mais funestos

lutos da dor feriram como abrolhos
5

teu lar e os teus -serenos e modestos.

Que incalculável explosão de prantos

não inundou as almas preciosas

dos teus irmãos, da tua mãe -uns santos.

Que peregrinam nestas lacrimosas
10

sendas da vida, em mágoas, sem encantos

como sem luz e sem orvalho as rosas.

Ah! formidável lei cruel da vida,

lei da matéria, da mudez das lousas,

da eterna noite atroz, indefinida;
15

tens o segredo intérmino das cousas,

e nessa dura e tenebrosa lida,

oh! nem sequer um dia só repousas.

Quem sabe, ó morte, ó lúgubre, quem sabe

o teu poder fatal, desapiedado
20

onde se oculta e se resume e cabe.

Pois nem que o céu puríssimo, azulado

cair aos pedaços, tombe e se desabe

na profundez do abismo ilimitado

e a crença humana espavorida, em gritos,
25

palpando o nada, esquálida, gemendo,

rasgue a amplidão de estranhos infinitos,

nunca da morte saberão o horrendo

mistério rijo e surdo dos granitos

os corações que vivem combatendo?!...
30

Não! A Ciência penetrou, o estudo

do pensador, abriu mais horizontes

nesse problema silencioso e mudo.

O pensamento constelou as frontes,

Deu à razão o mais brunido escudo
35

e construiu as luminosas pontes

de onde se vai, com grande olhar, seguro,

atravessar as regiões sonoras

dos Ideais que irrompem do Futuro;

e sem contar dos séculos as horas,
40

e sem temer as mil visões do Escuro,

alegremente ao fresco das auroras.

Mas entretanto, ó meu amigo, escuta,

toda a saudade, a grande nostalgia

nos deixa frios, mortos para a luta.
45

Porque, olha, a morte é sempre uma agonia!


Smorzando

O véu da tarde cai pelas quebradas

das serras altaneiras;

as aves condoreiras

rompem da mata em místicas risadas

o largo espaço intérmino cindindo.
5

A livre natureza,

humildemente, pura, vai caindo,

caindo de joelhos

como esse denso véu

cai na viril e rútila grandeza
10

do sol que desce em borbotões vermelhos

como uma mancha tropical no céu.

E vibra a Ave-Maria

como um soluço, estranho, indefinido;

talvez como um gemido
15

dentre a escalvada e agreste serrania.

E desce e desce e desce

de toda a imensidade

a salutar carícia de uma prece,

o eflúvio da saudade
20

que alaga o nosso peito heroicamente

como o luar de um treno

mavioso e emoliente,

mais doce que o sorrir do Nazareno.


Versos à infância

[I]

Nos roseirais, ao vir da madrugada,

desabrocham no val todas as rosas,

nos galhos cheios de uma luz doirada,

meigas e frescas, rubras, perfumosas,

nos roseirais, ao vir da madrugada.
5

Como em bocas cheirosas e vermelhas

pousam beijos de amor e de ventura,

o mel lhe sugam todas as abelhas

pousando em cima da corola pura

como em bocas cheirosas e vermelhas.
10

Desde os campos, o bosque, até aos montes

tudo renasce num jardim de flores;

e pelo azul do céu, nos horizontes,

há os mais vivos, raros esplendores,

desde os campos, o bosque, até aos montes.
15

Pelos ninhos sonoros, delicados,

cantam e trinam muitos passarinhos

nos altos arvoredos enflorados,

à margem verdejante dos caminhos,

pelos ninhos sonoros, delicados.
20

As borboletas brancas e amarelas,

azuis, cor de ouro, cor de prata e brasa,

leves, ligeiras, tênues e singelas,

abrem a fina talagarça da asa,

as borboletas brancas e amarelas.
25

Tudo no val acorda de desejos

à musica dos cantos mais risonhos;

e as aves soltas, peregrinos beijos,

dizem, cantando, que através de sonhos

tudo no val acorda de desejos.
30

II

Na alma da infância, tal e qual roseiras,

abrem festões de límpida fragrância

os sonhos e as quimeras passageiras

que são mais próprias do vergel da infância,

na alma da infância, tal e qual roseiras.
35

O pequenino coração ditoso

canta canções de uma ave pequenina;

e é um encanto ver assim radioso

no peito de uma cândida menina

o pequenino coração ditoso.
40

A existência de sol das criancinhas

lembra um pomar de frutas bem serenas,

por onde os colibris e as andorinhas

gozam amores sacudindo as penas,

a existência de sol das criancinhas.
45

Não sei dizer se adore mais crianças

ou mais também as flores de um arbusto;

nessas tão puras, castas semelhanças

eu, para ser bem carinhoso e justo,

não sei dizer se adore mais crianças.
50


(Desterro)

Triste

Em junho, que é mês do frio,

perdes todo o colorido,

tens um tom vago e sombrio

de dor, de mágoa e gemido.

Não sei que tristeza é essa
5

de tão doloroso cunho

que perdes a cor depressa

assim que vem vindo junho.

Ficas branca e desmaiada,

lembrando a lua serena,
10

fraca, pálida e gelada,

como frágil açucena.

Vão-se-te as rosas da face

emurchecendo e sumindo

num crepúsculo vivace
15

de tudo o que estás sentindo.

Ai! no entanto pelos prados

onde os dias resplandecem

risonhas como noivados

em junho as rosas florescem...
20


(Desterro)

Fonte de amor

Trago-a à tua presença

para que vejas a imensa

mágoa atroz que a devorou.

E saibas, ó flor das flores,

que a fonte dos seus amores
5

eternamente secou.

Foste à fonte buscar água

e tinha secado a fonte.

aí, flor azul do monte,

tiveste a primeira mágoa.
10

Porém se uma alma na frágua

das dores sem horizonte

queres ver, sentir defronte

dos olhos, manda que eu trago-a.


Castelã

Bela e mais encantadora

do que todas as belezas,

graça leve de pastora

que canta pelas devesas.

Enleios de passarinho
5

e brilhos de primavera,

com magnetismos de vinho

no olhar azul de quimera.

Feita de um jorro sadio

de auroras purpureadas
10

carne mais fresca que um rio

de frescas águas prateadas.

Tudo é frio e tudo é raso

para dizer-te a capricho

que és magnólia para um vaso,
15

que és arcanjo para um nicho.

És um mito da Alemanha

vivendo em montanha alpestre,

no castelo da montanha,

como ardente flor silvestre.
20

E tens as pomas à farta

polposas, cheias de aromas.

És assim a loura Marta

com abundância de pomas.

Esse príncipe que te ama,
25

cismando, trágico e grave,

quando o luar se derrama

cuida ouvir-te os vôos de ave.

Ele vive, airoso e belo,

como se vive num sonho,
30

no seu nevoento castelo

junto de um lago tristonho.

E através do pó flutuante

do luar saudoso e vago

julga que és a garça errante
35

das águas verdes do lago.


O sol e o coração

Sol, coração do Espaço que flamejas,

o coração é qual tu, sol de utopias...

Mas, coração, dize-me: -Que desejas?...

Foram-se já todas as alegrias,

ó; Sol! E tu, coração, que ainda adejas,
5

que fazes sobre as mortas fantasias?!...

Podes brilhar, ó Sol, vivo e fulgente!

E tu, coração, que me iludiste,

também podes bater, inutilmente.

Crença, Ilusão, Amor, já nada existe,
10

não mais levarás sobre a corrente

da tenebrosa dúvida mais triste.

Longe, mui longe, em regiões caladas,

emudecidos pelo Esquecimento,

estão hoje esses sonhos de alvoradas.
15

Foram-se, há muito, soltos pelo vento

entre as grandes ruínas derrocadas

do meu amargo e pobre pensamento,

Entre as profundas, tétricas ruínas

em que o doce fantasma desses sonhos
20

atravessou em lágrimas divinas.

Fantasma ideal, de cânticos risonhos

que da vida encontrei pelas colinas

e hoje vaga entre bulcões medonhos!

Fantasma que eu amei, visão errante
25

que sempre junto a mim vivia perto,

por mais longe que eu fosse e mais distante.

Visão que era como a água do deserto

para o meu coração sempre anelante,

sequioso de amor e sempre aberto...
30

Ó pobre coração, em vão te agitas,

em vão tu bates, coração estreito,

tal qual tu, Sol, nos páramos crepitas.

Nada mais, para mim, de satisfeito

brilha com o Sol nas plagas infinitas,
35

como não canta o coração no peito...

Podes, enfim, sumir-te nos Espaços

sol! E tu, coração, sempre batendo,

quebrar da terra os «Transitórios Laços»

eternamente desaparecendo!...
40


Cambiantes - sonetos e outros versos

Risadas

Às criaturas alegres


Fantasia, ó fantasia, tropo ardente

da aurora alegre undiflavando as bandas

do adamascado e rúbido oriente,

ó fantasia, águia das asas pandas.

Tu que os clarins do sonho mais fulgente
5

das Julietas, feres, nas varandas,

ó fantasia dos Romeus, ó crente,

por que países meridionais tu andas?!

Vem das esferas, entre os sons que vibras.

vem, que desejo emocionar as fibras,
10

quero sentir como este sangue impulsas.

Noiva do sol que os sóis preclaros gozas

para rimar umas canções de rosas,

como risadas de cristal, avulsas...


Ave! Maria...

Ave! Maria das Estrelas, Ave!

Cheia de graça do luar, Maria!

Harmonia de cântico suave,

das harpas celestiais branda harmonia...

Nuvem d'incensos através da nave
5

quando o templo de pompas irradia

e em prantos o órgão vai plangendo grave

a profunda e gemente litania...

Seja bendito o fruto do teu ventre,

Jesus, mais belo dentre os astros e entre
10

as mulheres judaicas mais amado...

Ó Luz! Eucaristia da beleza,

chama sagrada no Evangelho acesa,

maravilha do Amor e do Pecado!


Rir!

Rir! Não parece ao século presente

que o rir traduza, sempre, uma alegria...

Rir! Mas não rir como essa pobre gente

que ri sem arte e sem filosofia.

Rir! Mas com o rir atroz, o rir tremente,
5

com que André Gil eternamente ria.

Rir! Mas com o rir demolidor e quente

duma profunda e trágica ironia.

Antes chorar! Mais fácil nos parece.

porque o chorar nos ilumina e nos aquece
10

nesta noite gelada do existir.

Antes chorar que rir de modo triste...

pois que o difícil do rir bem consiste

só em saber como Henri Heine rir!...


Aspiração

Quisera ser a serpe astuciosa

que te dá medo e faz-te pesadelos

para esconder-me, ó flor luxuriosa,

na floresta ideal dos teus cabelos.

Quisera ser a serpe venenosa
5

para enroscar-me em múltiplos novelos,

para saltar-te aos seios cor-de-rosa.

E bajulá-los e depois mordê-los.

Talvez que o sangue impuro e rutilante

do teu divino corpo de bacante,
10

sangue febril como um licor do Reno

completamente se purificasse

pois que um veneno orgânico e vorace

para ser morto é bom outro veneno.


Sensibilidade

Como os audazes, ruivos argonautas,

intrépidos, viris e corajosos

que voltam dos orientes fantasiosos,

dos países de Núbios e Aranautas.

Como esses bravos, que por naus incautas,
5

regressam dos oceanos borrascosos,

indo encontrar nos lares harmoniosos

de luz, vinho e alegria as mesas lautas.

Tal o meu coração, quando aparece

a tua imagem, canta e resplandece,
10

sem lutas, sem paixões, livre de abrolhos.

A meu pesar, louco de ver-te, louco,

as lágrimas me correm pouco a pouco,

como o champanhe virginal dos olhos...


Glórias antigas

Rubras como gauleses arruivados,

voltam da guerra as hostes triunfantes,

trazem nas lanças d'aço lampejantes,

os louros das batalhas pendurados.

Os escudos e arneses dos soldados
5

rutilam como lascas de diamantes

e na armadura os músculos vibrantes,

rijos, palpitam, batem nervurados.

Dentre estandartes, flâmulas de cores,

trazem dos olhos rufos de tambores,
10

ruídos de alegria estranha e louca.

Chegam por fim, à pátria vitoriosa...

e então, da ardente glória belicosa,

há um grito vermelho em cada boca!


Magnólia dos trópicos

A Araújo Figueredo


Com as rosas e o luar, os sonhos e as neblinas,

ó magnólia de luz, cotovia dos mares,

formaram-te talvez os brancos nenúfares

da tua carne ideal, de correções felinas.

O teu colo pagão de virgens curvas finas
5

é o mais imaculado e flóreo dos altares,

donde eu vejo elevar-se eternamente aos ares

viáticos de amor e preces diamantinas.

Abre, pois, para mim os teus braços de seda

e do verso através a límpida alameda
10

onde há frescura e sombra e sol e murmurejo;

vem! com a asa de um beijo a boca palpitando,

no alvoroço febril de um pássaro cantando,

vem dar-me a extrema-unção do teu amor num beijo.


Supremo anseio

Esta profunda e intérmina esperança

na qual eu tenho o espírito seguro,

a tão profunda imensidade avança

como é profunda a idéia do futuro.

Abre-se em mim esse clarão, mais puro
5

que o céu preclaro em matinal bonança;

esse clarão, em que eu melhor fulguro,

em que esta vida uma outra vida alcança.

Sim! Inda espero que no fim da estrada

desta existência de ilusões cravada
10

eu veja sempre refulgir bem perto

esse clarão esplendoroso e louro

do amor de mãe -que é como um fruto de ouro,

da alma de um filho no eternal deserto.


Nerah

Inspirado no elegante conto de Virgílio Várzea

A Vítor Lobato


Nerah não brinca mais, não dança mais. -E agora

que vão-se apropinquando os tempos invernosos,

nerah traz uns receios tímidos, nervosos,

de quem teme mudar-se em noite, sendo aurora.

Seus sonhos de cristal, translúcidos, antigos
5

se vão embora, embora à vinda dos invernos,

seguindo em debandada os úmidos galernos-

-lembrando um roto bando informe de mendigos.

Não canta o sabiá que triste na gaiola,

parece, com o olhar, pedir-lhe a casta esmola
10

de um riso -aquela flor que esvai-se, branca e fria.

Em tudo a fina seta aguda de aflições!

Na própria atmosfera um caos de interjeições!

em tudo uma mortalha, em tudo uma agonia.


Amor

Nas largas mutações perpétuas do universo

o amor é sempre o vinho enérgico, irritante...

Um lago de luar nervoso e palpitante...

Um sol dentro de tudo altivamente imerso.

Não há para o amor ridículos preâmbulos,
5

nem mesmo as convenções as mais superiores;

e vamos pela vida assim como os noctâmbulos

à fresca exalação salúbrica das flores.

E somos uns completos, célebres artistas

na obra racional do amor -na heroicidade,
10

com essa intrepidez dos sábios transformistas.

Cumprimos uma lei que a seiva nos dirige

e amamos com vigor e com vitalidade,

a cor, os tons, a luz que a natureza exige!...


Filetes

A J. L.


De cravos, de rosas,

de lírios, perfumes,

de beijos, ciúmes,

de coisas formosas;

de cantos suaves
5

de músicas, vinhos

de aromas, arminhos

dos trinos das aves;

das cismas radiadas,

de esperanças aladas
10

por vagos escombros,

são feitos, são feitos

teus olhos perfeitos,

repletos de assombros.


Filetes

I

Ó pérola nitente,

ó pérola do amor,

ó imã redolente

das pétalas da flor;

ó lágrima sutil,
5

ó lágrima ideal,

do côncavo de anil

caída no cristal

do lago transparente,

harmoniosamente,
10

aos flocos do luar...

Tu és como as essências,

conheces as ciências

ocultas... de matar!

II

Cintila a estrela-d'alva
15

bem como o olhar do crente!

Perpassa no ambiente

o fresco olor da malva.

Um tic de lirismo,

simpático e harmônico,
20

derrama no sinfônico

riacho -um misticismo.

Há músicas supremas,

um mundo de problemas

nos montes seculares.
25

E como um lírio roxo,

a alma em canto frouxo

emigra para os ares.


(Desterro)

Arte

Como eu vibro este verso, esgrimo e torço,

tu, Artista sereno, esgrime e torce;

emprega apenas um pequeno esforço

mas sem que a Estrofe a pura idéia force.

Para que surja claramente o verso,
5

livre organismo que palpita e vibra,

é mister um sistema altivo e terso

de nervos, sangue e músculos, e fibra.

Que o verso parta e gire -como a flecha

que d'alto do ar, aves, além, derruba;
10

e como os leões, ruja feroz na brecha

da Estrofe, alvoroçando a cauda e a juba.

Para que tenhas toda a envergadura

de asa e o teu verso, de ampla cimitarra

turca, apresente a lâmina segura,
15

poeta, é mister, como os leões, ter garra.

Essa bravura atlética e leonina

só podem ter artistas deslumbrados:

Que souberam sorver pela retina

a luz eterna dos glorificados.
20

Busca palavras límpidas e castas,

novas e raras, de clarões radiosos,

dentre as ondas mais pródigas, mais vastas

dos sentimentos mais maravilhosos.

Busca também palavras velhas, busca,
25

limpa-as, dá-lhes o brilho necessário

e então verás que cada qual corusca

com dobrado fulgor extraordinário.

Que as frases velhas são como as espadas

cheias de nódoa, de ferrugem, velhas
30

mas que assim mesmo estando enferrujadas

tu, grande Artista, as brunes e as espelhas.

Faz dos teus pensamentos argonautas

rasgando as largas amplidões marinhas,

soprando, à lua, peregrinas flautas,
35

louros pagãos sob o dossel das vinhas.

Assim, pois, saberás tudo o que sabe

quem anda por alturas mais serenas

e aprenderás então como é que cabe

a Natureza numa estrofe apenas.
40

Assim terás o culto pela Forma,

culto que prende os belos gregos da Arte

e levará no teu ginete, a norma

dessa transformação, por toda a parte.

Enche de estranhas vibrações sonoras
45

a tua Estrofe, majestosamente...

Põe nela todo o incêndio das auroras

para torná-la emocional e ardente.

Derrama luz e cânticos e poemas

no verso e torna-o musical e doce
50

como se o coração, nessas supremas

estrofes, puro e diluído fosse.

Que as águias nobres do teu verve esvoacem

alto, no Azul, por entre os sóis e as galas,

cantem sonoras e cantando passem
55

dos Anjos brancos através das alas...

E canta o amor, o sol, o mar e as rosas,

e da mulher a graça diamantina

e das altas colheitas luminosas

a lua, Juno branca e peregrine.
60

Vibra toda essa luz que do ar transborda

toda essa luz nos versos vai vibrando

e na harpa do teu Sonho, corda a corda,

deixa que as Ilusões passem cantando.

Na alma do artista, alma que trina e arrulha
65

que adora e anseia, que deseja e que ama

gera-se muita vez uma fagulha

que se transforma numa grande chama.

Faz estrofes assim! E após na chama

do amor, de fecundá-las e acendê-las,
70

derrama em cima lágrimas, derrama,

como as eflorescências das Estrelas...


Arte

[Variação]

Como eu vibro este verso, esgrimo e torço,

tu, ó poeta moderno, esgrime e torce;

emprega apenas um pequeno esforço

mas sem que nada a pura idéia force.

Para que saia vigoroso o verso,
5

como organismo que palpita e vibra,

é mister um sistema altivo e terso

de nervos, sangue e músculos e fibra.

Que o verso parta e gire como a flecha

que do alto do ar, aves, além, derruba
10

e como um leão ruja feroz na brecha

da estrofe, alvoroçando a cauda e a juba.

Para que tenhas toda a envergadura

de asa, o teu verso, como a cimitarra

turca apresente a lâmina segura,
15

poeta, é mister como um leão, ter garra.

Essa bravura atlética e leonina

só podem ter artistas deslumbrados

que sorvem com lábios e retina

a luz do amor que os fez iluminados.
20

Nem é preciso, poeta, que te esbofes

para ferir um verso que fuzile;

põe a alma e muitas almas nas estrofes

e deixa, enfim, que o verso tamborile.

Busca palavras límpidas e novas,
25

resplandecentes como sóis radiosos

e sentirás como te surgem trovas

belas de madrigais deliciosos.

Busca também palavras velhas, busca,

limpa-as, dá-lhes o brilho necessário
30

e então verás que cada qual corusca,

com dobrado fulgor extraordinário.

Que as frases velhas são como as espadas

cheias de nódoas de ferrugem, velhas,

mas que assim mesmo estando enferrujadas
35

tu, grande artista, as brunes e as espelhas.

Que toda a vida e sensação de estilo

está na frase, quando se coloca,

antiga ou nova, mas trazendo aquilo

que soa como um tímpano que toca.
40

Como o escultor que apenas faz de um bloco

a estátua -com supremo e nobre afinco

estuda a natureza num só foco:

a prata, o bronze, o cobre, o ferro, o zinco.

Estuda dos rubis, estuda do ouro
45

e dos corais, da pérola e safira,

todo esse íris febril radiante e louro

que é a centelha de sol em toda a lira.

Estuda todos os metais, estuda,

desce à matéria prodigiosa e vasta,
50

estuda nela a natureza muda,

os veios de cristal da origem casta.

Estuda toda a intensa natureza

feita de aromas, de canções e de asas

e sente a luz da cor e da beleza
55

rir, flamejar e arder, iriar em brasas.

Faz dos teus pensamentos argonautas

rasgando as largas amplidões marinhas,

soprando, à lua, peregrinas flautas,

como os pagãos sob o dossel das vinhas.
60

Assim, pois, saberás tudo o que sabe

quem anda por alturas mais serenas

e aprenderás então como é que cabe

a natureza numa estrofe apenas.

Assim terás o culto pela forma,
65

culto que prende os belos gregos da arte

e levarás no teu ginete, a norma

dessa transformação por toda a parte.

Enche de alegres vibrações sonoras

a tua idéia pródiga e valente,
70

põe nela todo o incêndio das auroras

para torná-la emocional e ardente.

Derrama luz e cânticos e poemas

no verso e fá-lo musical e doce

como se o coração, nessas supremas
75

estrofes, puro e diluído fosse.

Que a abelha de ouro do teu verso esvoace,

fulja como um fuzil numa borrasca;

que o verso quando é bom por qualquer face

lembra um fruto saudável desde a casca.
80

Com arte, forma, cor, tudo isso em jogo,

engrinaldado e rútilo de crenças,

o sonho cresce -o pássaro de fogo

que habita as altas regiões imensas.

E canta o amor, o sol, o mar e o vinho,
85

as esperanças e o luar e os beijos

e o corpo da mulher -esse carinho-

canta melhor, vibra com mais desejo.

Canta-lhe a sinfonia dos olhares

a cálida magnólia austral das pomas,
90

e quando então tudo isso enfim cantares

em tudo põe a fluidez de aromas.

Vibra toda essa luz que do ar transborda

como todo o ar nos seres vai vibrando

e da harpa do teu sonho, corda a corda,
95

deixa que as ilusões passem cantando.

Na alma do artista, alma que trina e arrulha,

que adora e anseia, que deseja e ama,

gera-se muita vez uma fagulha

que explose e se abre numa grande chama.
100

Pois essa chama que a fagulha gera,

que enche e que acende o espírito de força,

sobe pela alma como primavera

de rosas sobe por coluna torsa.

Faz estrofes assim, de asas de rima,
105

depois de fecundá-las e acendê-las

de amor, de luz -põe lágrimas em cima,

como as eflorescências das estrelas.


O duque

Quando o duque voltava da caçada

alegre, num clarim d'aço vibrante

de alacridade moça e evigorada

dum ruidoso e trêfego estudante.

Quando ele vinha com seu ar bizarro
5

de atravessar os vales e as colinas,

sadio aspecto fresco como um jarro

cheio de leite às horas matutinas.

Em toda a aristocrática varanda

alta e vistosa, ampla, aberta em janelas,
10

ele vibrava, de uma e outra banda,

canções de amor, nostálgicas e belas.

Do salão nobre entre tapeçarias

de Gobelins, riquíssimas e raras,

iam vibrando aladas harmonias
15

da sua voz, esplêndidas e claras.

Todas as fluidas, leves, calmas, frescas

manhãs azuis, serenas e formosas,

loura mulher das regiões tudescas

o seu bom dia era mandar-lhe rosas.
20

Floria, é certo, em grande amor, floria

gerado pelo eflúvio dessas flores,

pois quando o duque não as recebia

era o mais infeliz dos caçadores.

Tão doce amor lembrava aquelas lendas
25

dos medievais castelos esquecidos,

quando visões de nuvens e de rendas

apareciam nos balcões floridos.

A caça, a caça, eternamente a caça!

Quanto melhor, mais fácil não lhe fora
30

a conquista das aves do que a graça

de conquistar essa beleza loura!

Para possuí-la como noiva amada,

aceso há muito nas paixões insanas,

arrostaria a caça mais ousada
35

dos javalis nas selvas africanas.

E sempre as lindas rosas matutinas

vinham-no perfumar todos os dias,

quando saltava aos vales e às colinas,

bizarro e são, dentre as tapeçarias.
40

Tempos passaram sobre tais amores!

Mas depois de casado fez surpresa

saber que o duque, o rei dos caçadores,

não tinha o mesmo amor pela duquesa.


A espada

I

Cavalheiros, os tempos já passados,

de pajens, de canzéis, de fidalguia,

de castelos, de reinos brasonados.

Ar cortesão de graça e fantasia

através dos olhares e dos beijos
5

-No silêncio de cada galeria...

Foi nesse bravo tempo dos lampejos

de espadas, de punhais e de couraças

por combater frementes de desejos.

No tempo dos floreios e das caças
10

dos assaltos alegres e bizarros

como as sonoras vibrações das taças.

Em que as almas airosas como jarros,

cheios de vinho espumejante e ardente

eram de glória vencedores carros!
15

Foi no tempo fidalgo e refulgente,

quando o heroísmo fantasioso amava

a linha e a chama de luzida gente,

que esta cena galharda se passava,

quando um donzel partia para guerra
20

como a nobreza do solar mandava.

O pai, um tronco transudando a terra,

forte e viril, presença de profeta

que no seu flanco a valentia encerra.

Barbas serenas de bondoso asceta
25

em cuja alvura doce e veneranda

vê-se a vontade e a intrepidez completa.

Fronte banhada de meiguice branda

a que o dever e os ríspidos conselhos

dão sempre a austeridade que age e manda.
30

Lembra um ocaso de clarões vermelhos,

musgoso, triste, desolado muro,

por onde o luar abre fulgor d'espelhos.

E esse semblante que parece duro,

áspero e torvo, trouxe-o dos combates,
35

do torvelinho do nevoeiro escuro.

Dos pelouros sangüíneos escarlates,

de fogo aberto em turbilhões, vorazes,

dos impulsivos, bélicos rebates.

Mas, bem olhadas, as feições audazes
40

desse velho patriarca destemido

tinha a suavidade dos lilases.

Nos olhos, um passado consumido

entre aventuras e colóquios belos

como que faz um verdadeiro ruído...
45

Sente-se neles noites de castelos

gozadas em amores dadivosos,

em madrigais, em íntimos desvelos.

Cavalgadas, torneios donairosos,

sonho feliz de rica mocidade,
50

requintes ideais, cavalheirosos.

Tudo se sente na tranqüilidade

desse deus varonil da força antiga

feito com o rijo bloco da Verdade.

Tudo se sente nessa paz amiga
55

que as crenças do passado às outras crenças

vagas, futuras, para sempre liga.

Tudo se sente vir das névoas densas

e da ridente e cândida meiguice

das suas barbas límpidas e imensas.
60

Sim! tudo da quase criancice

que dão aos homens esses tons nevoentos

da enregelada e trêmula velhice.

Porém, reatando aéreos pensamentos...

comecemos na cena detalhada
65

que já das eras se espalhou nos ventos.

É nada mais que a história duma espada,

história curta, mas interessante

duma espelhante lâmina timbrada.

Não é pelo aço ou lâmina espelhante
70

que irei contar, pois são comuns os aços,

mas pelo nobre e original rompante.

Pelo ardimento que os primeiros braços

que a manejaram com pujança e brio

nela gravaram, com profundos traços.
75

II

O velho, em pé, atlético e sombrio

diante do filho armado cavaleiro,

no aspecto dum leão ruivo e bravio.

Fala-lhe claro, d'alto e sobranceiro,

numa solene e enérgica atitude
80

de quem nos prélios sempre foi primeiro.

O filho, grave o escuta e atende a rude

lhanez estóica de palavra augusta

que dos lábios lhe sai, com tal saúde.

Calmo, sem se mover, firme a robusta
85

figura solarenga do estoicismo,

o velho disse esta nobreza justa:

«Aqui tens esta espada que o heroísmo

dos teus avós honrou nessas campanhas,

com o mais ousado, intrépido civismo.
90

Freme ainda hoje em convulsões estranhas,

palpita e anseia dentro da bainha

sonhando a luta, as implacáveis sanhas.

Tu, para a teres, como eu sempre a tinha,

num triunfo imortal, quase divino,
95

de gládio que o valor maior continha;

É necessário um grande ardor leonino,

que sejas bem idólatra do nome

que fez de mim o extremo paladino.

A ferrugem, tu vês, o aço consome...
100

porém, neste aço que ainda aqui fulgura,

se houver ferrugem, tira-a com o renome.

Aqui tens, pois, a lâmina segura,

alma e brasão da nossa velha casa

coberta de ovações, famosa e pura».
105

Calou-se um instante, como a ave que a asa

fechou no voar, já quase que abatida,

caindo exausta junto à moita rasa.

O filho, mudo e respeitoso, erguida

a valente cabeça leal de moço,
110

formoso estava, porejando vida.

E enquanto o velho, impávido colosso,

calara-se num momento, emocionado

ficara o filho em íntimo alvoroço.

Mas de repente, como iluminado
115

por um clarão de glórias já extintas,

tornou o velho, aos poucos transformado:

«Podes partir! Porém nunca desmintas

nas pelejas o dom da nossa fama,

por menos força que no peito sintas.
120

Como um clarim, por toda a parte aclama

o vigor deste ferro e do teu pulso

no combate que ruja, ulule e brama.»

E cada vez mais pálido e convulso,

mais nervoso e febril e mais altivo
125

bradou ainda, num tremendo impulso:

«Se tu, que és da minh'alma o exemplo vivo,

meu filho, tens de ser como um cobarde,

como um vilão abjeto e repulsivo;

não faças mais de fidalguia alarde,
130

pega esta espada, meu Afonso, pega

e quebra-a de uma vez, que não é tarde.

Pois em lugar de fazer dela entrega

aos sequiosos, feros inimigos

antes a quebre a cólera mais cega.
135

Ei-la, aqui tens, a leoa dos perigos,

que como outrora em minha mão lampeja

da bravura e da fama nos abrigos.

Se não a tens de honrar nessa peleja

escuta bem, ó meu amado filho,
140

quebra-a, e o teu nome nem manchado seja.

Como eu faria noutra idade e brilho,

com outras energias musculares,

segue-me tu no denodado trilho.»

E assim falando, em gestos singulares,
145

e agigantado corpo retesando

e um tom sinistro esparso nos olhares;

A cabeça nos ares agitando

numa alucinação, -enorme ereto,

como heróica visão, deblaterando...
150

Fitando bem o filho predileto,

como se de repente lhe brotasse

a força hercúlea dum poder secreto.

O velho, qual um templo que abalasse,

mão crispada, lívida e nervosa,
155

com todo o esforço a lhe afluir na face,

partiu no joelho a espada vitoriosa.


Desmoronamento

Dentro do coração, no côncavo do peito

choro a grande ilusão do amor, desfalecida,

dentre o gozo feliz, nostálgico da vida;

Já exangue, afinal, já morto, já desfeito.

Por visões que adorei num vago tempo incerto
5

não sei por que razão avivo agora as mágoas,

num pranto doloroso e triste, como as águas

do mar grosso a bater sobre o costão deserto.

Tu, ó doce visão de perfumosas tranças,

todo o meu puro e terno sentimento invades
10

e eu não sei o que fiz das minhas esperanças

que de longe que vão parecem mais saudades.

Tudo o que houve em meu ser de compaixão e crença

para sempre secou, secou já como um rio;

para sempre também subi ao escombro frio
15

da dúvida mortal, avassalante, imensa.

Para sempre me achei sem bússola e sem rumo

no fundo de regiões estranhas e afastadas...

As almas que eu amei, vi mudas e apagadas,

vi tudo se sumir numa espiral de fumo.
20

Bem depressa fiquei como um ermo remoto

como torvo areal sem plantas e sem fontes,

donde apenas se vê rasgar a terra o broto

do cardo retorcido e áspero dos montes.

Muitas vezes, porém, como entre os arvoredos
25

onde juntas, no val, todas as aves cantam

no meio do rumor, de sombras e segredos,

sinto dentro de mim que uns sonhos se levantam.

Borboleteio, a rir, por entre os sons e as flores,

como um pássaro azul de uma plumagem linda
30

e canto alegremente a canção dos amores,

que este peito viril sabe cantar ainda.

Lembro então corações que já me abandonaram,

que eu senti palpitar, por sobre o meu pulsando,

que vão hoje através das afeições chorando,
35

que sofreram comigo e que comigo amaram.

Entretanto a minh'alma em vôo largo e ufano,

de repente triunfal, de súbito gloriosa,

tem a pompa de sol, vermelha e luminosa,

da púrpura esvoaçante e aberta de um romano.
40

E esse fulgor, que vem dos meus sonhos dispersos

na névoa do passado, errantes e dolentes;

dá-me ardidos corcéis fogosos e frementes

para atrelar, jungir ao carro destes versos.

Claramente recordo e penso nas estradas
45

que percorri, que andei às ilusões, sozinho,

vendo que todo o amor das virginais amadas,

tinha a mesma fatal embriaguez do vinho.

Quantos entes febris, que o amor embriaga e ofusca

assim, durante a vida, ansiosamente exaustos,
50

não encontram, talvez, dessas visões em busca,

as Margaridas vãs dos ilusórios Faustos!


Clarões apagados

Flor de planta aromática, sinistra,

nascida nas inóspitas geleiras,

célebre flor que o meu Ideal registra,

trepadeira das raras trepadeiras.

Serpe nervosa entre as nervosas serpes,
5

carnívora bromélia da luxúria

de gozo tetaniza como as herpes

da tua boca a polpa atra e purpúrea.

O teu amor, que lembra vinhos de Hebe

e essa áspera feição do abeto fusco,
10

como um réptil que salta numa sebe,

saltou-me ao peito, impetuoso e brusco.

Eu ia por estranhos descampados,

por extensos desertos impassíveis,

na trágica visão dos naufragados
15

perdidos entre os temporais terríveis.

Sem rumo certo, num sombrio inferno,

sozinho, sobre a desolada areia

arrastando a existência, de onde, eterno

um sapo coaxa e um rouxinol gorjeia.
20

Quando tu de repente, então surgiste

beleza das belezas redentoras,

tendo essa meiga formosura triste

das formosas e flébeis pecadoras.

Fosse talvez uma tremenda insânia
25

tão alta erguer o meu amor, tão alto;

mas este coração frio, da Ucrânia,

anelava galgar o céu de um salto.

E fui, galguei, subi, voei na altura,

além dos verdes píncaros do monte,
30

donde resplende a tua formosura

no clarão das estrelas do horizonte.

Foi o mesmo que se eu num templo entrasse

e aí num formidável sacrilégio,

as angélicas vestes arrancasse
35

das santas de áureo diadema régio.

Como um leão sem juba e garra, preso,

na indiferença, já morreu comigo

todo esse amor profundamente aceso

na ideal constelação de um sonho antigo.
40

Apenas pelo Saara imorredouro

do longínquo passado, ergue, altaneira,

majestosa folhagem no sol d'ouro,

dessas recordações a alta palmeira...


Asas perdidas

A Carlos Jansen Júnior


Afora, pelo azul indefinido e largo,

passam asas sutis, pelo éter, longe, afora,

como que a demandar outra mais doce aurora

que a desta vida atroz, toda veneno amargo.

Não as asas assim, bem longe, pela curva,
5

no Vago, na Amplidão, perdidas pelos ares

até virem caindo os véus crepusculares,

toda a angústia do Ocaso, emocional e turva.

E diante dessa dor das tardes que esmaecem

as asas, pelo Azul, em vôos desgarrados
10

como a oração final dos tristes naufragados,

longinquamente, além, tênues desaparecem

cai então de uma vez a sombra dos Segredos...

E na serena paz das noites adormidas,

entre o fundo chorar dos calmos arvoredos,
15

ninguém verá jamais essas asas perdidas.

E as asas o que são no firmamento errantes,

perdidas pelo Tempo, esparsas pelas Eras,

senão os sonhos vãos, Mundos alucinantes

cheios do resplendor das flóreas primaveras?!
20

Por isso, eu quando o Azul repleto de asas vejo,

muito alto, céu acima, os páramos rasgando,

toda a minh'alma oscila e treme num desejo

em busca das regiões da Dúvida, chorando!


Anjo Gabriel

Na calma irradiação das noites estreladas

alto e claro aparece, alto, aparece, claro,

alvo, claro, no luar das estrelas prateadas,

no triunfal esplendor celestemente raro.

O seu busto de Excelso, a sua graça fina,
5

a linha de harpa ideal do seu perfil augusto,

estremecem de luz, de uma luz peregrina,

do secreto fulgor de um sentimento justo.

Serenidade e glória e paz do Paraíso

flutuam-lhe na face alvorecida e doce
10

e quando ele sorri é como se o sorriso

claros astros semear por todo o espaço fosse.

Leve, loura,.radial, a soberba cabeça

eleva-se da flor do níveo colo louro

e não há outro sol que tanto resplandeça
15

como o sol virginal dessa cabeça de ouro.

As mãos esculturais, de ebúrnea transparência,

de divina feitura e de divino encanto,

lembram flores sutis de sonhadora essência

da etérea languidez e de etéreo quebranto.
20

Das madeixas reais largo deslumbramento

num flavo jorro cai, com sagrado abandono...

E sai do Anjo o quer que é de vago e de nevoento

que lembra o despertar sonâmbulo de um sono...

De alto a baixo, do Azul, desfilando das brumas,
25

abre todo ele em flor como nevado lírio,

belo, branco, eteral, do candor das espumas,

banhado nos clarões e cânticos do Empíreo.

Maravilhoso e nobre ergue no braço ovante

um gládio singular que rútilo cintila...
30

Enquanto o seu olhar de mágico diamante

aflora em plenilúnio através da pupila.

Que o seu olhar, então, esse, recorda tudo

o quanto há de tranqüilo e luminoso e casto.

maio de ouro a florir meigos céus de veludo
35

e a neve a cintilar sobre o monte mais vasto.

Do puro albor astral das asas majestosas,

desprendem-se no Azul mistérios de harmonia...

Entre as angelicais suavidades radiosas

parece o Anjo Gabriel o alto Enviado do Dia!
40

Na chama virginal de tão rara beleza

brilha a força de um Deus e a mística doçura...

E sai das seduções de tamanha pureza

toda a melancolia errante da ternura.

Do suntuoso agitar das delicadas vestes
45

tecidas de jasmins, de rosas, de açucenas,

vem o aroma cristão dos aromas celestes,

todas as imortais emanações serenas...

Transfigurado, excelso, agigantado, imenso,

na candidez hostial das formas impecáveis,
50

fica parado no ar, levemente suspenso

de raios siderais, de fluidos inefáveis.

Mas quando o seu perfil nas amplidões floresce

e das asas se lhe ouve a música sonora

quando ele agita o gládio e as madeixas, parece
55

que vai noctambular pelo Infinito afora.

E alto, branco, de pé, destacado no Espaço,

eleito das Regiões de estranhas Primaveras,

traça, com o gládio no ar, alevantando o braço,

uma cruz de Perdão na mudez das Esferas!
60


O cego do harmonium

Esse cego do harmonium me atormenta

e atormentando me seduz, fascina.

A minh'alma para ele vai sedenta

por falar com a sua alma peregrina.

O seu cantar nostálgico adormenta
5

como um luar de mórbida neblina.

o harmonium geme certa queixa lenta,

certa esquisita e lânguida surdina.

Os seus olhos parecem dois desejos

mortos em flor, dois luminosos beijos
10

fanados, apagados, esquecidos...

Ah! eu não sei o sentimento vário

que prende-me a esse cego solitário,

de olhos aflitos como vãos gemidos!


Ocasos

Morrem no Azul saudades infinitas,

mistérios e segredos inefáveis...

Ah! Vagas ilusões imponderáveis,

esperanças acerbas e benditas.

Ânsias das horas místicas e aflitas,
5

de horas amargas das intermináveis

cogitações e agruras insondáveis

de febres tredas, trágicas, malditas.

Cogitações de horas de assombro e espanto

quando das almas num relevo santo
10

fulgem de outrora os sonhos apagados.

E os bracos brancos e tentaculosos

da Morte, frios, álgidos, nervosos,

abrem-se pare mim torporizados.


Naufrágios

I

O mar! O mar! Quem nunca viajasse...

Quem nunca dentre dúvidas sentisse

o coração e ai, nunca embarcasse.

Oh! quem do mar as cóleras punisse!

Ora o mar é sereno, é calmo, é manso,
5

as vagas são melódicos arpejos

dando à embarcação leve balanço,

como um afago maternal de beijos.

Ora o mar franco, livre e transparente,

tão tranqüilo que está, tão brando, rindo,
10

que até parece, que até cuida a gente

que os corações podem boiar, dormindo.

Ora ferve, rebenta, estoura, estala,

rude, feroz, em convulsões, profundo,

abrindo a corpos pavorosa vala
15

e mundos de agonia num só mundo!

II

Filho! Filho! Adeus, querido,

vou viajar para além,

sejas de Deus protegido...

Que sempre me queiras bem.
20

Vou deixar-te nesta terra,

entregue aos destinos teus;

filho, o que este adeus encerra

só o pode saber Deus.

Levo as crenças em pedaços,
25

como pedaços de céus.

Vou ver mar, vou ver espaços

ver temporais, escarcéus.

Filho amado, vou deixar-te

cá na terra, pelo mar;
30

porem, crê, de qualquer parte,

crê, meu filho, hei de voltar.

III

Adeus, noiva, vou-me embora,

vou-me com Deus, é preciso.

Que colhas em cada aurora
35

muita messe de sorriso.

Sou soldado, o meu destino

é viver bem longe, é certo,

longe do canto divino

da tua voz, sol aberto.
40

Custa bem esta partida

a mim que entanto sou forte.

Ninguém sabe o que é a vida

para quem vive da morte.

Da morte, sim, pomba amada;
45

que as minhas crenças já mortas

tu, com essa alma estrelada

sem tu sequer me confortas.

Perdi pai, perdi carinhos

de mãe, de irmãos e de todos.
50

Eu sou como a flor de espinhos

nascida por entre lodos.

Tu vieste, ó noiva, apenas,

como um íris de esperanças,

dar-me alvoradas serenas,
55

encher-me de confianças.

Só em ti confio, espero

com ardor, com fé veemente,

pomba de luz que eu venero,

doce vésper do oriente.
60

Adeus, pois chegou a hora,

vou-me com Deus, minha filha;

não chores, que o mar não chora:

-Olha, vê que canta e brilha.

IV

Adeus, esposa extremosa,
65

vou-me, não sei para quando

voltar -minh'alma saudosa

por meus filhos vai chorando.

Ficam-te eles no entretanto

pra tirarem-te os pesares,
70

para enxugarem-te o pranto

que há de ser maior que os mares.

Maior que os mares, não minto,

não exagero tão pouco,

porque ai, só tu e só eu sinto
75

o nosso amor como é louco.

Vou-me às viagens, aos dias

passados entre horizontes

e mares e ventanias

sem arvoredos, sem montes.
80

Os dias de céus eternos

e de mar ilimitado,

com tempo de atroz infernos

com tempo de sol doirado.

Adeus! Cá dentro do peito
85

há dois corações unidos;

sobre um -o mar tem direito,

sobre outro -os filhos queridos.

V

Eis as canções e adeuses de saudade

que as desgraçadas almas palpitantes
90

soluçam na sombria imensidade

desta vida de angústias lacerantes.

Ao mar! Ao mar! Frescas aragens puras

aflam nas ondas maviosamente.

Que balada de plácidas venturas,
95

que sinfonias, que gemer dolente!

Os céus abertos, claros, luminosos

lembram a candidez branda das virgens.

Vítreos ares, magníficos, radiosos

onde o sol arde em férvidas vertigens.
100

Lindíssimos painéis, bela paisagem

abre na vista do viajante o ouro

da luz que salta como uma homenagem

de oriental, esplêndido tesouro.

Vai bem, vai muito bem, mesmo, o navio.
105

as vagas desenrolam-se de leve.

Parece um berço por de sobre um rio

manso, prateado, espúmeo, cor de neve.

Vive-se a bordo como em terra. -As vagas

nunca foram tão doces e tão meigas,
110

como em desertas, viridentes plagas

é doce e meigo o mole chão das veigas.

Viver assim, na realidade, é gozo

que até parece não haver na terra!

Tão belo é o mar, tão calmo e bonançoso,
115

tal confiança nos semblantes erra!

Vogando assim a embarcação, quem pensa

ir acordado afora pela Vida?!

Tudo é um sonho de esperança imensa

um bom sonho de aurora indefinida.
120

VI

Súbito os ares enchem-se de noite

e grita e zune, zargunchando o vento

que esbraveja, morde com rijo açoite

o mar que espuma e empola num momento.

Não estrugem os raios pela treva
125

não há trovões bravios rebentando

como canhões que estouram, -mas se eleva

do oceano um vendaval que vai urrando

Com fúrias e com cóleras enormes

como potros sanhudos relinchando
130

em pinotes e berros desconformes.

Caiu talvez no mar o etéreo espaço,

toda a cúpula azul tombou, quem sabe?

Céus! há lutas ali, de braço a braço.

Horror! Crível será que o mundo acabe?
135

Ninguém calcula o que será tudo isso...

Mas os ventos elétricos, largados

nas amplidões do mar antes submisso,

rugindo vão como desesperados.

Deus, ó meu Deus, todas as bocas gritam,
140

e se afervora mais e mais a crença.

Mas, onde os astros muita vez palpitam

no céu, há noite cada vez mais densa.

Ah! que mudez de túmulo nos ares.

Nada responde, oh! nada então responde;
145

mas onde está o grande Deus dos mares

e da terra, onde está, aonde, aonde?

Tudo está mudo -a natureza inteira,

tudo emudece e não responde nada;

e só os vendavais têm a maneira
150

de responder dando uma gargalhada.

Gargalhada de lágrimas atrozes,

de lágrimas de morte e de agonia

que abafa e extingue na garganta as vozes,

gera a coragem que é a luz do dia.
155

O valentes e rudes marinheiros

vindos da pátria para pátria nova,

que sepultais amores verdadeiros

do tão profundo coração na cova;

ó viajantes de longe, de países
160

onde a vida cintila e canta alerta

como um turbilhão de aves felizes

numa campina de rosais, deserta;

ó vós todos que vindes lá do oceano,

entre as mais bruscas e hórridas tormentas.
165

Lá do mar alto, à vela, a todo o pano,

com as almas ansiosas e sedentas

De chegar cedo ao porto desejado,

calculai, calculai o quanto é triste

ver dar à praia um pobre desgraçado
170

em cuja carne a podridão existe!

À praia! À praia! Dai à praia, morto,

rejeitado por ondas convulsivas,

indo encontrar na sepultura o porto,

deixando ao mundo as ilusões mais vivas.
175

O eterno amor de mãe, de filho, esposa,

tanta fé, tanto riso de alegria,

tanta coisa dourada, ai tanta coisa

que ao recordar toda a nossa alma esfria.

Morrer no mar, os nervos contraídos,
180

numa asfixia atroz, cerrando os dentes,

num abismo de dores e gemidos,

de maldições e de uivos de descrentes;

morrer no mar, sem o farol amigo,

esse farol que os náufragos anima,
185

fora de proteção, fora de abrigo,

sem sequer uma luz no espaço, em cima;

morrer no mar, sem astros no infinito,

na solidão das águas, fria, imensa,

enquanto a treva dura de granito,
190

ri-se de tudo, com indiferença;

morrer no mar, só e desamparado

e num terror que não acaba nunca,

vendo rasgar o corpo enregelado

o desespero como garra adunca.
195

É horrível! Bem sei! Mas ai daqueles

que morrem mesmo assim lá no mar fundo

sem ter alguém que ao menos neste mundo

derrame uma só lágrima por eles!


(Desterro)

Poesias para um livro derradeiro

Violinos

Pelas bizarras, góticas janelas

de um templo medieval o sol ondula:

Nunca os vitrais viram visões mais belas

quando, no ocaso, o sol os doura e oscula...

Doces, multicores aquarelas
5

sobre um saudoso céu que além se azula...

calma, serena, divinal, entre elas,

a pomba ideal dos Ângelus arrula...

Rezam de joelhos anjos de mãos postas

através dos vitrais, e nas encostas
10

dos montes sobe a claridade ondeando...

É a lua de Deus, que as curvas meigas

foi ondular pelos vergéis e veigas

magnólias e lírios desfolhando...


Na fonte

Bem ao lado da gruta a fonte corre

trepidamente, as águas encrespando,

em murmúrios crebros, levantando

uns chamalotes prateados -morre

no monte o sol que a luz no oceano escorre
5

e ainda eu vejo, as sombras afrontando,

uma mulher que lava, mesmo quando

o sol mais rubro, mais vermelho jorre.

-É num sítio afastado, um sítio ermo...

Pássaros cortam vastidões sem termo,
10

borboletas azuis roçam nas águas.

-E a mulher lava, enrubescida a face;

lava, cantando, como se lavasse

as suas tristes e profundas mágoas.


[A fonte de águas cristalina corre]

A fonte de águas cristalinas corre

chamalotes de prata levantando,

e através de arvoredos murmurando,

entre arvoredos murmurando morre...

No ocaso, o sol, a luz no oceano escorre
5

e sempre vejo, as sombras afrontando,

uma mulher que canta e ri, lavando,

mesmo que o sol muito abrasado jorre.

É verde o campo, deleitável e ermo.

Pássaros cortam vastidões sem termo,
10

borboletas azuis roçam nas águas.

E cantando, a mulher, a rir a face,

lava cantando como se lavasse

as suas grandes e profundas mágoas.


Plenilúnio

Vês este céu tão límpido e constelado

e este luar que em fúlgida cascata,

cai, rola, cai, nuns borbotões de prata...

Vês este céu de mármore azulado...

Vês este campo intérmino, encharcado
5

da luz que a lua aos páramos desata...

vês este véu que branco se dilata

pelo verdor do campo iluminado...

Vês estes rios, tão fosforescentes,

cheios duns tons, duns prismas reluzentes,
10

vês estes rios cheios de ardentias...

Vês esta mole e transparente gaze...

pois é, como isso me parecem quase

iguais, assim, às nossas alegrias!


Manhã

Alta alvorada. -Os últimos nevoeiros

a luz que nasce levemente espalha;

move-se o bosque, a selva que farfalha

cheia da vida dos clarões primeiros.

da passarada os vôos condoreiros,
5

os cantos e o ar que as árvores ramalha

lembram combate, estrídula batalha

de elementos contrários e altaneiros.

Vozes, trinados, vibrações, rumores

crescem, vão se fundindo aos esplendores
10

da luz que jorra de invisível taça.

E como um rei num galeão do Oriente

o sol põe-se a tocar bizarramente

fanfarras marciais, trompas de caça.


Hóstias

A Emílio de Menezes


Nos arminhos das nuvens do infinito

vamos noivar por entre os esplendores,

como aves soltas em vergéis de flores,

ou penitentes de um estranho rito.

Que seja nosso amor -sidério mito!-
5

o límpido turíbulo das dores,

derramando o incenso dos amores

por sobre o humano coração aflito.

Como num templo, numa clara igreja,

que o sonho nupcial gozado seja,
10

que eu durma e sonhe nos teus níveos flancos.

Contigo aos astros fúlgidos alado,

que sejam hóstias para o meu noivado

as flores virgens dos teus seios brancos!


Boca imortal

Abre a boca mordaz num riso convulsivo

ó fera sensual, luxuriosa fera!

Que essa boca nervosa, em riso de pantera,

quando ri para mim lembra um capro lascivo.

Teu olhar dá-me febre e dá-me um brusco e vivo
5

tremor às carnes, que eu, se ele em mim reverbera,

fico aceso no horror da paixão que ele gera,

inflamada, fatal, dum sangue rubro e ativo.

Mas a boca produz tais sensações de morte,

o teu riso, afinal, é tão profundo e forte
10

e tem de tanta dor tantas negras raízes;

rigolboche do tom, ó flor pompadouresca!

Que és, para mim, no mundo, a trágica e dantesca

imperatriz da Dor, entre as imperatrizes!


Psicologia humana

A Santos Lostada


Por trás de uns vidros d'óculos opacos

muita vez um leão e um tigre rugem,

e como um surdo temporal estrugem

os ódios dos covardes e dos fracos.

Partir pudesses, ó poeta, em cacos,
5

vidros que ocultam almas de ferrugem,

que espumam de ira, tenebrosas mugem,

mugem como de dentro de uns buracos.

Que essas sombrias, dúbias almas foscas

que parecem, no entanto, como moscas,
10

inofensivas, babam como as lesmas.

Mas tu, em vão, tais vidros partirias,

pois que no mundo, eternamente, as frias

almas humanas serão sempre as mesmas!


Os mortos

Ao menos junto dos mortos pode a gente

crer e esperar n'alguma suavidade:

crer no doce consolo da saudade

e esperar do descanso eternamente.

Junto aos mortos, por certo, a fé ardente
5

não perde a sua viva claridade;

cantam as aves do céu na intimidade

do coração o mais indiferente.

Os mortos dão-nos paz imensa à vida,

dão a lembrança vaga, indefinida
10

dos seus feitos gentis, nobres, altivos.

Nas lutas vãs do tenebroso mundo

os mortos são ainda o bem profundo

que nos faz esquecer o horror dos vivos.


Verônica

Não a face do Cristo, a macilenta

face do Cristo, a dolorosa face...

O martírio da Cruz passou fugace

e este Martírio, esta Paixão é lenta.

Um vivo sangue a face te ensangüenta,
5

mais vivo que se o Deus o derramasse;

porque esta vã paixão, para que passe,

é mister dos Titãs a luta incruenta.

Se tu, Visão da Luz, Visão sagrada

queres ser a Verônica sonhada,
10

consoladora dessa dor sombria

impressa ficará no teu sudário

não a face do Cristo do Calvário

mas a face convulsa da Agonia!


Símiles

Pedro traiu a fé do Apostolado.

Madalena chorou de arrependida;

e nessa mágoa triste e indefinida

havia ainda uns laivos de pecado.

Tudo que a Bíblia tinha decretado,
5

tudo o que a lenda humilde e dolorida

de Jesus Cristo apregoou na vida,

cumpriu-se à risca, foi executado.

O filho-Deus da cândida Maria,

da flor de Jericó, na cruz sombria
10

os seus dias amáveis terminou.

Pedro traiu a fé dos companheiros.

Madalena chorou sob os olmeiros

Jesus Cristo sofreu e... perdoou.


(Desterro)

Exilada

Bela viajante dos países frios

não te seduzam nunca estes aspectos

destas paisagens tropicais. Secretos,

os teus receios devem ser sombrios.

És branca e és loura e tens os amavios
5

os incógnitos filtros prediletos

que podem produzir ondas de afetos

nos mais sensíveis corações doentios.

Loura Visão, Ofélia desmaiada,

deixa esta febre de ouro, a febre ansiada
10

que nos venenos deste sol consiste.

Emigra destes cálidos países,

foge de amargas, fundas cicatrizes,

das alucinações de um vinho triste...


A freira morta

Muda, espectral, entrando as arcarias

da cripta onde ela jaz eternamente

no austero claustro silencioso -a gente

desce com as impressões das cinzas frias...

Pelas negras abóbadas sombrias
5

donde pende uma lâmpada fulgente,

por entre a frouxa luz triste e dormente

sobem do claustro as sacras sinfonias.

Uma paz de sepulcro após se estende...

e no luar da lâmpada que pende
10

brilham clarões de amores condenados...

Como que vem do túmulo da morta

um gemido de dor que os ares corta,

atravessando os mármores sagrados!


(Desterro)

Claro e escuro

Dentro -os cristais dos tempos fulgurantes,

músicas, pompas, fartos esplendores,

luzes, radiando em prismas multicores,

jarras formosas, lustres coruscantes,

púrpuras ricas, galas flamejantes,
5

cintilações e cânticos e flores;

promiscuamente férvidos odores,

mórbidos, quentes, finos, penetrantes,

por entre o incenso, em límpida cascata,

dos siderais turíbulos de prata,
10

das sedas raras das mulheres nobres;

clara explosão fantástica de aurora,

deslumbramentos, nos altares! -Fora,

uma falange intérmina de pobres.


Horas de sombra

Horas de sombra, de silêncio amigo

quando há em tudo o encanto da humildade

e que o anjo branco e belo da saudade

roga por nós o seu perfil antigo.

Horas que o coração não vê perigo
5

de gozar, de sentir com liberdade...

Horas da asa imortal da Eternidade

aberta sobre tumular jazigo.

Horas da compaixão e da clemência,

dos segredos sagrados da existência,
10

de sombras de perdão sempre benditas.

Horas fecundas, de mistério casto,

quando dos céus desce, profundo e vasto,

o repouso das almas infinitas.


Aleluia! Aleluia!

Dentre um cortejo de harpas e alaúdes

ó Arcanjo sereno, Arcanjo níveo,

baixas-te à terra, ao mundanal convívio...

Pois que a terra te ajude, e tu me ajudes.

Que tu me alentes nas batalhas rudes,
5

que me tragas a flor de um doce alívio

aos báratros, às brenhas, ao declívio

deste caminho de ânsias e ataúdes...

Já que desceste das regiões celestes,

nesse clarão flamívomo das vestes,
10

através dos troféus da Eternidade,

traz-me a Luz, traz-me a Paz, traz-me a Esperança

para a minh'alma que de angústias cansa,

errando pelos claustros da Saudade!


Rosa negra

Nervosa Flor, carnívora, suprema,

flor dos sonhos da Morte, Flor sombria,

nos labirintos da tu'alma fria

deixa que eu sofra, me debata e gema.

Do Dante o atroz, o tenebroso lema
5

do Inferno à porta em trágica ironia,

eu vejo, com terrível agonia,

sobre o teu coração, torvo problema.

Flor do delírio, flor do sangue estuoso

que explode, porejando, caudaloso,
10

das volúpias da carne nos gemidos.

Rosa negra da treva, Flor do nada,

dá-me essa boca acídula, rasgada,

que vale mais que os corações proibidos!


Vozinha

Velha, velhinha, da doçura boa

de uma pomba nevada, etérea, mansa.

Alma que se ilumina e se balança

dentre as redes da Fé que nos perdoa.

Cabeça branca de serena leoa,
5

carinho, amor, meiguice que não cansa,

coração nobre sempre como a lança

que não vergue, não fira e que não doa.

Olhos e voz de castidades vivas,

pão ázimo das Páscoas afetivas,
10

simples, tranqüila, dadivosa, franca.

Morreu tal qual vivera, mansamente,

na alvura doce de uma luz algente,

como que morta de uma morte branca.


No egito

Sob os ardentes sóis do fulvo Egito

de areia estuosa, de candente argila,

dos sonhos da alma o turbilhão desfila,

abre as asas no páramo infinito.

O Egito é sempre o antigo, o velho rito
5

onde um mistério singular se asila

e onde, talvez mais calma, mais tranqüila

a alma descansa do sofrer prescrito.

Sobre as ruínas d'ouro do passado,

no céu cavo, remoto, ermo e sagrado,
10

torva morte espectral pairou ufana...

E no aspecto de tudo em torno, em tudo,

árido, pétreo, silencioso, mudo,

parece morta a própria dor humana!


Repouso

A cabeça pendida docemente

em sonhos, sonha o sonhador inquieto,

repousa e nesse repousar discreto

é sempre o sonho o seu bordão clemente.

Cego desta Prisão impenitente
5

da Terra e cego do profundo Afeto,

o sonho é sempre o seu bordão secreto,

o seu guia divino e refulgente.

Nem no repouso encontra a paz que espera,

para lhe adormecer toda a quimera,
10

os círculos fatais do seu Inferno.

Entre a calma aparente, a estranha calma,

o seu repouso é sempre a febre d'alma,

o seu repouso é sonho, e sonho eterno.


Requiescat...

Grande, grande Ilusão morta no espaço,

perdida nos abismos da memória,

dorme tranqüila no esplendor da glória,

longe das amarguras do cansaço...

Ilusão, Flor do sol, do morno e lasso
5

sonho da noite tropical e flórea,

quando as visões da névoa transitória

penetram na alma, num lascivo abraço...

Ó Ilusão! Estranha caravana

de águias, soberbas, de cabeça ufana,
10

de asas abertas no clarão do Oriente.

Não me persiga o teu mistério enorme!

Pelas saudades que me aterram, dorme,

dorme nos astros infinitamente...


Doce abismo

Coração, coração! a suavidade,

toda a doçura do teu nome santo

é como um cálix de falerno e pranto,

de sangue, de luar e de saudade.

Como um beijo de mágoa e de ansiedade,
5

como um terno crepúsculo d'encanto,

como uma sombra de celeste manto,

um soluço subindo à Eternidade.

Como um sudário de Jesus magoado,

lividamente morto, desolado,
10

nas auréolas das flores da amargura.

Coração, coração! onda chorosa,

sinfonia gemente, dolorosa,

acerba e melancólica doçura.


Harpas eternas

Hordas de Anjos titânicos e altivos,

serenos, colossais, flamipotentes,

de grandes asas vívidas, frementes,

de formas e de aspectos expressivos.

Passam, nos sóis da Glória redivivos,
5

vibrando as de ouro e de Marfim dolentes,

finas harpas celestes, refulgentes,

da luz nos altos resplendores vivos.

E as harpas enchem todo o imenso espaço

de um cântico pagão, lascivo, lasso,
10

original, pecaminoso e brando...

E fica no ar, eterna, perpetuada

a lânguida harmonia delicada

das harpas, todo o espaço avassalando.


Dupla via-láctea

Sonhei! Sempre sonhar! No ar ondulavam

os vultos vagos, vaporosos, lentos,

as formas alvas, os perfis nevoentos

dos Anjos que no Espaço desfilavam.

E alas voavam de Anjos brancos, voavam
5

por entre hosanas e chamejamentos...

Claros sussurros de celestes ventos

dos Anjos longas vestes agitavam.

E tu, já livre dos terrestres lodos,

vestida do esplendor dos astros todos,
10

nas auréolas dos céus engrinaldada

dentre as zonas de luz flamo-radiante,

na cruz da Via-Láctea palpitante

apareceste então crucificada!


Titãs negros

Hirtas de Dor, nos áridos desertos,

formidáveis fantasmas das Legendas,

marcham além, sinistras e tremendas,

as caravanas, dentre os céus abertos...

Negros e nus, negros Titãs, cobertos
5

das bocas vis, das chagas vis e horrendas,

marcham, caminham por estranhas sendas,

passos vagos, sonâmbulos, incertos...

Passos incertos e os olhares tredos,

na convulsão de trágicos segredos,
10

de agonias mortais, febres vorazes...

Têm o aspecto fatal das feras bravas

e o rir pungente das legiões escravas,

de dantescos e torvos Satanases!...


Entre chamas...

Sonhei que de astros no Infinito presa

vagavas, brandamente adormecida,

nas chamas siderais resplandecida,

a carne, em chamas, no Infinito, acesa...

E eu pasmava de encanto e de surpresa
5

vendo a constelação indefinida

da tua carne flamejando vida,

dentre os íris radiantes da beleza...

E o teu corpo, nas chamas palpitando,

os astros em redor maravilhando,
10

por entre a auréola dos clarões cantava...

Então, de sonho em sonho, absorto, mudo,

eu senti alastrar, vibrar por tudo

toda a infinita sensação da lava!...


O anjo da redenção

Soberbo, branco, etereamente puro,

na mão de neve um grande facho aceso,

nas nevroses astrais dos sóis surpreso,

das trevas deslumbrando o caos escuro.

Portas de bronze e pedra, o horrendo muro
5

da masmorra mortal onde estás preso

desce, penetra o Arcanjo branco, ileso

do ódio bifronte, torto, torvo e duro.

Maravilhas nos olhos e prodígios

nos olhos, chega dos azuis litígios,
10

desce à tua caverna de bandido.

E sereno, agitando o estranho facho,

põe-te aos pés e à cabeça, de alto a baixo,

auréolas imortais de Redimido!


Salve! Rainha!...

Ó sempre virgem Maria,
concebida sem pecado original,
desde o primeiro instante do teu ser...


Mãe de Misericórdia, sem pecado

original, desde o primeiro instante!

Salve! Rainha da Mansão radiante,

Virgem do Firmamento constelado...

Teu coração de espadas lacerado,
5

sangrando sangue e fel martirizante,

escute a minha Dor, a torturante,

a Dor do meu soluço eternizado.

A minha Dor, a minha Dor suprema,

a Dor estranha que me prende, algema
10

neste Vale de lágrimas profundo...

Salve! Rainha! por quem brado e clamo

e brado e brado e com angústia chamo,

chamo, através das convulsões do mundo!...


Mendigos

Mendigos! Ah! são mendigos

que voltam de vãos caminhos,

que atravessaram perigos,

urzes, pântanos, espinhos.

Que chegam desiludidos
5

das portas a que bateram:

Humanos, grandes gemidos

que nos tempos se perderam.

Que voltam como partiram,

com mais amargor na volta
10

e mais sonhos que se abriram

das estrelas na recolta.

Mendigos ricos no entanto,

das pompas da natureza

e das auréolas do Encanto,
15

os vinhos da sua mesa.

Mendigos que o sol, apenas,

torna nababos felizes,

torna um pouco mais serenas

as convulsas cicatrizes.
20

Mendigos que acham requinte

na fumaça de um cachimbo,

deixando que labirinte

o sonho em tão leve nimbo.

Mendigos da luz da aurora
25

cantando celestemente,

fresca, límpida, sonora,

pelas fanfarras do Oriente.

Mendigos de áureas estradas,

de sonâmbulas veredas,
30

de riquezas encantadas,

sem pedrarias e sedas.

Mendigos d'estranho aspecto

e sempiterna vigília,

filhos nômades, sem teto,
35

de milenária Família.

Mendigos que erram eternos

sem fadigas e sem sono,

sob o augúrio dos Infernos,

das Ilusões sobre o trono.
40

Mendigos de plaga nova,

de novas terras e mares,

divinizados na cova

como as hóstias nos altares.

Mendigos da grande esmola
45

da luz das estrelas nobres,

que fulge e dos altos rola,

entre as suas mãos tão pobres!

Mendigos de céus remotos,

de sóis dos mais velhos ouros;
50

com a sua fé e os seus votos

e os seus secretos tesouros.

Mendigos de olhar severo,

boca murcha, meio amarga...

Tendo um vago reverbero
55

de sonhos na fronte larga.

Mendigos de ínvias florestas

e de bosques fabulosos,

de melancólicas sestas

nos crepúsculos brumosos.
60

Mendigos da Eternidade,

tremendo dos sóis, dos frios,

nas mortalhas da Saudade

amortalhados sombrios.

Mendigos dos Infinitos,
65

das Esferas inefáveis,

noctambulando malditos

nos rumos imponderáveis.

Mendigos de fome e sede

de água e pão de outros mundos,
70

embalados pela rede

dos Idealismos profundos.

Mendigos do azul Mistério,

cuja alma -nívea sereia-

fica saciada no aéreo
75

pão branco da lua cheia!


[QUANDO EU PARTIR] ou [ESFUMINHAMENTO]

Quando eu partir, que eterna e que infinita

há de crescer-me a dor de tu ficares;

quanto pesar e mesmo que pesares,

que comoção dentro desta alma aflita.

Por nossa vida toda sol, bonita,
5

que sentimento, grande como os mares,

que sombra e luto pelos teus olhares

onde o carinho mais feliz palpita...

Nesse teu rosto da maior bondade

quanta saudade mais, que atroz saudade...
10

Quanta tristeza por nós ambos, quanta,

qando eu tiver já de uma vez partido,

o meu amor, ó meu muito querido

amor, meu bem, meu tudo, ó minha santa!


Sempre e... sempre

A M. B. Augusto Varela


Sempre se amando, sempre se querendo.

Oliveira Paiva



De longe ou perto, juntas, separadas,

olhando sempre os mesmos horizontes,

presas, unidas nossas duas fontes

gêmeas, ardentes, novas, inspiradas;

vendo cair as lágrimas prateadas,
5

sentindo o coro harmônico das fontes,

sempre fitando a cúspide dos montes

e o rosicler das frescas alvoradas;

sempre embebendo os límpidos olhares

na claridão dos humildes luares,
10

no loiro sol das crenças se embebendo,

vão nossas almas brancas e floridas

pelo futuro azul das nossas vidas,

sempre se amando, sempre se querendo.


O órgão

Um largo e lento vento dormente

taciturnas lágrimas sonâmbulas, sinfônicas

um esquecimento amargo

uma sombria clausura de almas

suspirando e gemendo solitárias harmonias
5

vago luar de esquecimento e prece,

dessa melancolia que anda errando

no mar e nas estrelas ondulando,

pela minh'alma etereamente desce.

Na minh'alma, dos Sonhos anoitece
10

o Sentimento que ando transformando

em hóstia de ouro

sombra e silêncio


Siguiente