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Casa de pensão


Aluísio Azevedo






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- I -

Seriam onze horas da manhã.

O Campos, segundo o costume, acabava de descer do almoço e, a pena atrás da orelha, o lenço por dentro do colarinho, dispunha-se a prosseguir no trabalho interrompido pouco antes. Entrou no seu escritório e foi sentar-se à secretária.

Defronte dele, com uma gravidade oficial, empilhavam-se grandes livros de escrituração mercantil. Ao lado, uma prensa de copiar, um copo de água, sujo de pó, e um pincel chato; mais adiante, sobre um mocho de madeira preta, muito alto, via-se o Diário deitado de costas e aberto de par em par.

Tratava-se de fazer a correspondência para o Norte. Mal, porém, dava começo a uma nova carta, lançando cuidadosamente no papel a sua bonita letra, desenhada e grande, quando foi interrompido por um rapaz, que da porta do escritório lhe perguntou se podia falar com o Sr. Luís Batista de Campos.

-Tenha bondade de entrar, disse este.

O rapaz aproximou-se das grandes de cedro polido que o separavam do comerciante.

Era de vinte anos, tipo do Norte, franzino, amorenado, pescoço estreito, cabelos crespos e olhos vivos e penetrantes se bem que alterados por um leve estrabismo.

Vestia casimira clara, tinha um alfinete de esmeralda na camisa, um brilhante na mão esquerda e uma grossa cadeia de ouro sobre o ventre. Os pés, coagidos em apertados sapatinhos de verniz, desapareciam-lhe casquilhamente nas amplas bainhas da calça.

-Que deseja o senhor? perguntou Campos, metendo de novo a pena atrás da orelha e pousando um pedaço de papel mata-borrão sobre o trabalho.

O moço avançou dois passos, com ar muito acanhado, o chapéu de pelo seguro por ambas as mãos, a bengala debaixo do braço.

-Desejo entregar esta carta, disse, cada vez mais atrapalhado com o seu chapéu e a sua bengala, sem conseguir tirar da algibeira um grosso maço de papéis que levava.

Não havia onde pôr o maldito chapéu, e a bengala tinha-lhe já caído no chão, quando Campos foi em seu socorro.

-Cheguei hoje do Maranhão, acrescentou o provinciano, sacando as cartas finalmente.

As últimas palavras do moço pareciam interessar deveras o negociante, porque este, logo que as ouviu, passou a considerá-lo da cabeça aos pés, e exclamou depois:

-Ora espere... O senhor é o Amâncio!

O outro sorriu, e, entregando-lhe a carta, pediu-lhe com um gesto que a lesse.

Não foi preciso romper o sobrescrito, porque vinha aberta.

-É de meu pai... disse Amâncio.

-Ah! é do velho Vasconcelos?... Como vai ele?

-Assim, assim... O que o atrapalha mais é o reumatismo. Agora está em uso da Salça-ecaroba, do Holanda.

-Coitado! lamentou Campos com um suspiro -Ele sofre há tanto tempo!...

E passou a ler a carta depois de dar uma cadeira a Amâncio, que já estava para dentro das grades.

-Pois, sim, senhor! disse ao terminar a leitura. -Está o meu amigo na Corte, e homem! Como corre o tempo!...

Amâncio tornou a sorrir.

-Parece que ainda foi outro dia que o vi, deste tamanho, a brincar no armazém de seu pai.

E mostrou com a mão aberta o tamanho de Amâncio naquela época.

-Foi há seis anos, observou o moço, limpando o suor que lhe corria abundante pelo rosto.

Fez-se uma pequena pausa e em seguida Campos falou do muito que devia ao falecido irmão e sócio do velho Vasconcelos; citou os obséquios que lhe merecera; disse que encontrara nele «um segundo pai» e terminou perguntando quais eram as intenções de Amâncio na Corte. -Se vinha estudar ou empregar-se.

-Estudar! acudiu o provinciano.

Queria ver se era possível matricular-se ainda esse ano na Escola de Medicina. Não negava que se havia demorado um pouquinho nos preparatórios... mas seria dele a culpa?... Só com umas sezões que apanhara na fazenda da avó, perdera três anos...

Campos escutava-o com atenção. Depois perguntou-lhe se já havia almoçado.

Amâncio disse que sim, por cerimônia.

-Venha então jantar conosco; precisamos conversar mais à vontade. Quero apresentá-lo à minha gente.

O rapaz concordou, mas ainda tinha que entregar várias cartas e várias encomendas que trouxera. Campos talvez conhecesse os destinatários.

Mostrou-lhe as cartas; eram quase todas de recomendação.

-O melhor é tomar um carro, aconselhou o negociante. -Olhe, vou dar-lhe um moço aí de casa, para o guiar.

E, pelo acústico, que havia a um canto do escritório, chamou um caixeiro.

Dali a pouco Amâncio saía, acompanhado por este, prometendo voltar para o jantar.

A casa de Luís Campos era na Rua Direita. Um desses casarões do tempo antigo, quadrados e sem gosto, cujo o ar severo e recolhido está a dizer no seu silêncio os rigores do velho comércio português.

Compunha-se do vasto armazém ao rés-do-chão, e mais dois andares; no primeiro dos quais estava o escritório e à noite aboletavam-se os caixeiros, e no segundo morava o negociante com a mulher -D. Maria Hortênsia, e uma cunhada -D. Carlotinha.

A mesa era no andar de cima. Faziam-se duas: uma para o dono da casa, a família, o guarda-livros e hóspedes, se os havia, o que era freqüente; e a outra só para os caixeiros, que subiam ao número de cinco ou seis.

Apesar de inteligente e de brasileiro, Campos nunca logrou espantar de sua casa o ar triste que a ensombrecia. À mesa, quando raramente se palestrava, era sempre com muita reserva; não havia risadas expansivas, nem livres exclamações de alegria. Os hóspedes, pobre gente de província, faziam uma cerimônia espessa; o guarda-livros poucas vezes arriscava a sua anedota e só se determinava a isso tendo de antemão escolhido um assunto discreto e conveniente.

Campos não apertava a bolsa em questões de comida; queria mesa farta: quatro pratos ao almoço, café e leite à discrição; ao jantar seis, sopa e vinho. Os caixeiros falavam com orgulho dessa generosidade e faziam em geral boa ausência do patrão, que, entretanto, fora sempre de uma sobriedade rara: comia pouco, bebia ainda menos e não conhecia os vícios senão de nome.

Aos domingos, às vezes mesmo em dia de semana, aparecia para o jantar um ou outro estudante comprovinciano dos Campos ou algum freguês do interior, que estivesse de passagem na Corte e a quem lhe convinha agradar.

Luís Campos era homem ativo, caprichoso no serviço de que se encarregava e extremamente suscetível em pontos de honra; quer se tratasse de sua individualidade privada, quer de sua responsabilidade comercial.

Não descia nunca ao armazém, ou simplesmente ao escritório, sem estar bem limpo e preparado. Caprichava no asseio do corpo: as unhas, os cabelos e dentes mereciam-lhe bons desvelos e atenções.

Entre os companheiros, passava por homem de vistas largas e espírito adiantado; nos dias de descanso dava-se todo ao Figuier, ao Flammarion e ao Júlio Verne; outras vezes, poucas, atirava-se à literatura; mas os verdadeiros mestres aborreciam-no e entreturbavam-no com os rigorismos da forma.

-É um bom tipo! diziam os estudantes à volta do jantar, e no seguinte domingo lá estavam de novo. O «bom tipo» tratava-o muito bem, levava-os com a família para a sala, oferecia-lhes charutos, cerveja, e nunca exigia que lhe restituíssem os livros que lhes emprestava.

Quanto à sua vida comercial, pouco se tem a dizer. Até aos dezoito anos, Campos estivera no Maranhão, para onde fora em pequeno de sua província natal, o Ceará. No Maranhão fez os primeiros estudos e deu os primeiros passos no comércio, pela mão de um velho negociante, amigo de seu pai.

Esse velho foi o seu protetor e seu guia; só com a morte dele se passou Campos para o Rio de Janeiro, onde, graças ainda a certas relações da família de seu benfeitor, conseguiu arranjar-se logo como ajudante de guarda-livros, em uma casa de comissões. Desta saiu para outra, melhorando sempre de fortuna, até que afinal o admitiram, como gerente, no armazém de uns tais Garcia, Costa & Cia.

O tal Garcia morreu, Campos passou a ser interessado na casa; morreu depois o Costa, e Campos chamou um sócio de fora, um capitalista, e ficou sendo a principal figura da firma.

Por esse tempo encontrou D. Maria Hortênsia, menina de boa família, sofrivelmente ajuizada e com dote. Pouco levou a pedi-la e a casar-se.

Nunca se arrependera de semelhante passo. Hortênsia saíra uma excelente dona de casa, muito arranjadinha, muito amiga de poupar, muito presa aos interesses de seu marido, e limpa, «limpa, que fazia gosto»!

O segundo andar vivia, pois, num brinco; nem um escarro seco no chão. Os móveis luziam, como se tivessem chegado na véspera da casa do marceneiro; as roupas da cama eram de uma brancura fresca e cheirosa; não havia teias de aranha nos tetos ou nos candeeiros e os globos de vidro não apresentavam sequer a nódoa de uma mosca.

E Campos sentiu-se bem no meio dessa ordem, desse método. Procurava todos os dias enriquecer os trens de sua casa, já comprando umas jardineiras, que lhe chamaram a atenção em tal rua; já trazendo uma estatueta, um quadro, uma nova máquina de fazer sorvetes, ou um sistema aperfeiçoado para esta ou aquela utilidade doméstica.

Gostava que em sua casa houvesse um pouco de tudo. Não aparecia por aí qualquer novidade, qualquer novo aparelho de bater ovos, gelar vinhos, regar plantas, que Campos não fosse um dos primeiros a experimentar.

A mulher, às vezes, já se ria quando ele entrava da rua abraçado a um embrulho.

-Que foi que se inventou?... perguntava com uma pontinha de mofa.

O marido não fazia esperar a justificação do seu novo aparelho, e, tal interesse punha em jogo, que parecia tratar de uma obra própria, de cujo sucesso dependesse a sua felicidade. E, logo que encontrasse algum amigo, não deixava de falar nisso; gabava-se da compra que fizera, encarecia a utilidade do objeto e aconselhava a todos que comprassem um igual.

Campos, depois do casamento, principiou a prosperar de um modo assombroso; dentro de três anos era o que vimos: -rico, muito acreditado e seguro na praça.

E, contudo, não tinha mais do que trinta e seis anos de idade.

-É um felizardo! resmungavam os colegas com o olhar fito. -É um felizardo! Quem o viu, como eu, há tão pouco tempo!...

-Mas sempre teve boa cabeça!...

-São fortunas, homem! Outros há por aí que fazem o dobro e não conseguem a metade!

-Não! ele merece, coitado! É muito bom moço, muito expedito e trabalhador!

-Homem! todos nós somos bons!... O que lhe afianço é que nunca em minha vida consegui pôr de parte um bocado de dinheiro!

E o caso era que Campos, ou devido à fortuna ou ao bom tino para os negócios, prosperava sempre.

***

À quatro horas da tarde apareceu de novo Amâncio.

Vinha esbaforido. O dia estava horrível de calor. Campos foi recebê-lo com muito agrado.

-Então? disse-lhe. Está livre das cartas?

-Qual! respondeu o moço -tenho ainda cinco para entregar. Uma estafa! No Maranhão nunca senti tanto calor!...

-Falta de hábito! observou o outro. Daqui a dias verá que isto é muito mais fresco!

-Estou desta forma!... queixava-se Amâncio, quase sem fôlego, a mostrar o colarinho desfeito e os punhos encardidos.

-Suba, volveu Campos, empurrando-o brandamente. -Tome qualquer coisa. Vá entrando sem-cerimônia.

E, já na escada do segundo andar, perguntou de súbito:

-É verdade! e a sua bagagem?...

-Está tudo no Coroa de Ouro. Hospedei-me lá.

-Bem.

E subiram.

Amâncio deixou-se ficar na sala de visitas; o outro correu a prevenir a mulher.

-Neném! disse ele. Sabes? hoje temos ao jantar um moço que chegou do Norte, um estudante. É preciso oferecer-lhe a casa.

Hortênsia respondeu com um gesto de má vontade.

-Não! replicou o negociante. É uma questão de gratidão!... Devo muitos obséquios à família deste rapaz! Lembras-te daquele velho, de que te falei, aquele que foi quem me deu a mão lá no Norte?... Pois este é o sobrinho, é filho do Vasconcelos. Não nos ficaria bem recebê-lo assim, sem mais nem menos!...

-Mas, Lulu, isto de meter estudantes em casa é o diabo! Dizem que é uma gente tão esbodegada!

-Ora, coitado! ele até me parece meio tolo! Além disso, não seria o primeiro hóspede!...

-Queres agora comparar um estudante com aqueles tipos de Minas que se hospedam aqui!...

-Mas se estou dizendo que o rapaz até parece tolo...

-Manhas, homem! Todos eles parecem muito inocentes, e depois... Enfim, tu farás o que entenderes!... Só te previno de que esta gente é muito reparadeira!

-Não há de ser tanto assim!...

E Campos voltou à sala.

Amâncio soprava, estendido em uma cadeira de balanço a abanar-se com o lenço.

-Muito calor, hein? perguntou Campos, entrando.

-Está horroroso, disse aquele.

E resfolegou-se com mais força.

-Venha antes para este lado. Aqui para a sala de jantar é mais fresco. Venha! Eu vou dar-lhe um paletó de brim.

Amâncio esquivava-se, fazendo cerimônia; mas o outro, com o segredo da hospitalidade que em geral possui o cearense, obrigou-o a entrar para um quarto e mudar de roupa.

O jantar, como sempre, correu frio e contrafeito. Amâncio não tinha apetite, porque pouco antes comera mães-bentas em um café; Campos, porém, desfazia-se em obséquios e empregava todos os meios de lhe ser agradável.

-Vá, mais uma fatia de pudim, insistia ele a tentá-lo.

-Não, não é possível, respondia o hóspede, limpando sempre o rosto com o lenço.

À sobremesa falou-se no velho Vasconcelos e mais no irmão. O negociante lembrou ainda as obrigações que devia à família de Amâncio, citou pormenores de sua vida no Maranhão; elogiou muito a província; disse que havia lá mais sociabilidade que no Rio de Janeiro, e acabou brindando a memória de seu benfeitor, de seu segundo pai.

Maria Hortênsia parecia tomar parte no reconhecimento do marido e, sempre que se dirigia ao estudante, tinha nos lábios um sorriso de amabilidade.

Carlotinha não dera uma palavra durante o jantar. Comia vergada sobre o seu prato e só ergueu a cabeça na ocasião de deixar a mesa.

Amâncio, todavia, não a perdera de vista.

À sete horas da tarde, quando se despediu, estava já combinado que no dia seguinte ele voltaria com as malas, para hospedar-se em casa do Campos.

-É melhor... disse este -é muito melhor! Ali o senhor não pode estar bem; sempre é vida de hotel! venha para cá; faça de conta que minha família é a sua!

Amâncio prometeu, e saiu, reconsiderando pelo caminho todas as impressões desse dia.

Mais tarde, deitado na cama do Coroa de Ouro, com o corpo moído, o espírito saturado de sensações, procurava recapitular o que tinha a fazer no dia seguinte; e, bocejando, via, de olhos fechados, o vulto amoroso de Hortênsia a sorrir para ele, estendendo-lhe no ar os belos braços, palpitantes e carnudos.




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- II -

No dia seguinte mudava-se Amâncio para a casa do Campos. Seria por pouco tempo -até que descobrisse um «cômodo definitivo».

Deixou com algum pesar o hotel. Aquela vida boêmia, com os seus almoços em mesa-redonda, o seu quartinho, uma janela sobre os telhados, e a plena liberdade de estar como bem entendesse, tinha para ele um sedutor encanto de novidade.

Nunca saíra do Maranhão; vira de longe a Corte através do prisma fantasmagórico de seus sonhos. O Rio de Janeiro, afigurava-se-lhe um Paris de Alexandre Dumas ou de Paulo de Kock, um Paris cheio de canções de amor, um Paris de estudantes e costureiras, no qual podia ele à vontade correr as suas aventuras, sem fazer escândalo como no diabo da província.

Há muito tempo ardia de impaciência por tal viagem: pensara nisso todos os dias; fizera cálculos, imaginara futuras felicidades. Queria teatros bufos, ceias ruidosas ao lado de francesas, passeios fora de horas, a carro, pelos arrabaldes. Seu espírito, excessivamente romântico, como o de todo maranhense nessas condições, pedia uma grande cidade, velha, cheia de ruas tenebrosas, cheias de mistérios, de hotéis, de casas de jogo, de lugares suspeitos e de mulheres caprichosas; fidalgas encantadoras e libertinas, capazes de tudo, por um momento de gozo. E Amâncio sentia necessidade de dar começo àquela existência que encontrara nas páginas de mil romances. Todo ele reclamava amores perigosos, segredos de alcova e loucuras de paixão.

Entretanto, o seu tipo franzino, meio imberbe, meio ingênuo, dizia justamente o contrário. Ninguém, contemplando aquele insignificante rosto moreno, um tanto chupado, aqueles pômulos salientes, aqueles olhos negros, de uma vivacidade quase infantil, aquela boca estreita, guarnecida de bons dentes, claros e alinhados, ninguém acreditaria que ali estivesse um sonhador, um sensual, um louco.

Sua pequena testa, curta e sem espinhas, margeada de cabelos crespos, não denunciava o que naquela cabeça havia de voluptuoso e ruim. Seu todo acanhado, fraco e modesto, não deixava transparecer a brutalidade daquele temperamento cálido e desensofrido.

Amâncio fora muito mal-educado pelo pai, português antigo e austero, desses que confundem o respeito com o terror. Em pequeno levou muita bordoada; tinha um medo horroroso de Vasconcelos; fugia dele como de um inimigo, e ficava todo frio e a tremer quando lhe ouvia a voz ou lhe sentia os passos. Se acaso algumas vezes se mostrava dócil e amoroso, era sempre por conveniência: habituou-se a fingir desde esse tempo.

Sua mãe, D. Ângela, uma santa de cabelos brancos e rosto de moço, não raro se voltava contra o marido e apadrinhava o filho. Amâncio agarrava-se-lhe às saias fora de si, sufocado de soluços.

Aos sete anos entrou para a escola. Que horror!

O mestre, um tal de Antônio Pires, homem grosseiro, bruto, de cabelo duro e olhos de touro, batia nas crianças por gosto, por um hábito de ofício. Na aula só falava a berrar, como se dirigisse uma boiada. Tinha as mãos grossas, a voz áspera, a catadura selvagem; e quando metia para dentro um pouco mais de vinho, ficava pior.

Amâncio, já na Corte, só de pensar no bruto, ainda sentia os calafrios dos outros tempos, e com eles vagos desejos de vingança. Um malquerer doentio invadia-lhe o coração, sempre que se lembrava do mestre e do pai. Envolvia-os no mesmo ressentimento, no mesmo ódio surdo e inconfessável.

Todos os pequenos da aula tinham birra ao Pires. Nele enxergavam o carrasco, o tirano, o inimigo e não o mestre; mas, visto que qualquer manifestação de antipatia redundava fatalmente em castigo, as pobres crianças fingiam-se satisfeitas; riam muito quando o beberrão dizia alguma chalaça, e afinal, coitadas! iam-se habituando ao servilismo e à mentira.

Os pais ignorantes, viciados pelos costumes bárbaros do Brasil, atrofiados pelo hábito de lidar com escravos, entendiam que aquele animal era o único professor capaz de «endireitar os filhos».

Elogiavam-lhe a rispidez, recomendavam-lhe sempre que «não passasse a mão pela cabeça dos rapazes» e que, quando fosse preciso, «dobrasse por conta deles a dose de bolos».

Ângela, porém, não era dessa opinião: não podia admitir que seu querido filho, aquela criaturinha fraca, delicada, um mimo de inocência e de graça, um anjinho, que ela afagava com tanta ternura e com tanto amor, que ela podia dizer criada com os seus beijos -fosse lá apanhar palmatoadas de um brutalhão daquela ordem! «Ora! isso não tinha jeito!»

Mas o Vasconcelos saltava-lhe logo em cima: Que deixasse lá o pequeno com o mestre!... Mais tarde ele havia de agradecer aquelas palmatoadas!

Assim não sucedeu. Amâncio alimentou sempre contra o Pires o mesmo ódio e a mesma repugnância. Verdade é que também fora sempre tido e havido pelo pior dos meninos da aula, pelo mais atrevido e insubordinado. Adquiriu tal fama com o seguinte fato:

Havia na escola um rapazito, implicante e levado dos diabos, que se assentava ao lado dele e com quem vivia sempre de turra.

Um dia pegaram-se mais seriamente. Amâncio teria então oito anos. Estava a coisa ainda em palavras, quando entrou o professor, e os dois contendores tomaram à pressa os seus competentes lugares.

Fez-se respeito. Todos os meninos começaram a estudar em voz alta, com afetação. Mas, de repente, ouviu-se o estalo de uma bofetada.

Houve rumor. Pires levantou-se, tocou uma campainha, que usava para esses casos, e sindicou do fato.

Amâncio foi único acusado.

-Sr. Vasconcelos! -gritou o mestre -por que espancou aquele menino?

Amâncio respondera humildemente que o menino insultara sua mãe.

-É mentira! protestou o novo acusado.

-Que disse ele?! perguntou Pires.

Amâncio repetiu o insulto que recebera. Toda a escola rebentou em gargalhadas.

-Cale-se atrevido! berrou o professor encolerizado a tocar a campainha. -Mariola! Dizer tal coisa em pleno recinto de aula!

E, puxando a pura força o delinqüente para junto de si, ferrou-lhe meia dúzia de palmatoadas.

Amâncio, logo que se viu livre, fez um gesto de raiva.

-Ah! ele é isso? exclamou o professor. -Tens gênio, tratante?! Ora espera! isso tira-se.

E voltando-se para o rapazito que levou a bofetada, entregou-lhe a férula e disse-lhe que aplicasse outras tantas palmatoadas em Amâncio.

Este declarou formalmente que não se submetia ao castigo. O professor quis submetê-lo à força; Amâncio não abriu as mãos. Os dedos pareciam colados contra a palma.

O professor, então, desesperado com semelhante contrariedade, muito nervoso, deixou escapar a mesma frase que pouco antes provocara tudo aquilo.

Amâncio recuou dois passos e soltou uma nova bofetada, mas agora na cara do próprio mestre. Em seguida deitou a fugir, correndo.

Um «Oh!» formidável encheu a sala. Pires, rubro de cólera, ordenou que prendessem o atrevido. A aula ergueu-se em peso, com grande desordem. Caíram bancos e derramaram-se tinteiros. Todos os meninos abraçaram sem hesitar a causa do mestre, e Amâncio foi agarrado no corredor quando ia alcançar a rua.

Mas quatro pontapés puseram em fugida os dois primeiros rapazes que lhe lançaram os dedos. Dois outros acudiram logo e o seguraram de novo, depois vieram mais três, mais oito, vinte, até que todos os quarenta ou cinqüenta estudantes o levaram à presença do Pires, alegres, vitoriosos, risonhos, como se houvessem alcançado uma glória.

Amâncio sofreu novo castigo; serviu de escárnio aos seus condiscípulos e, quando chegou a casa, o pai, informado do que sucedera na escola, deu-lhe ainda uma boa sova e obrigou-o a pedir perdão, de joelhos, ao professor e ao menino da bofetada.

Desde esse instante, todo o sentimento de justiça e de honra que Amâncio possuía, transformou-se em ódio sistemático pelos seus semelhantes. Ficou fazendo um triste juízo dos homens:

-Pois se até seu próprio pai, diretamente ofendido na questão, abraçara a causa mais forte!...

Só Ângela, sua adorada, sua santa mãe, à noite, ao beijá-lo antes de dormir, depois de lhe perguntar se ficara muito magoado com o castigo, segredara-lhe entre lágrimas que «ele fizera muito bem...»

Como aquele, outros fatos se deram na meninice de Amâncio. Todas às vezes que lhe aparecia um ímpeto de coragem, sempre que lhe assistia um assomo de dignidade, sempre que pretendia repelir uma afronta, castigar um insulto, o pai, ou professor, caía-lhe em cima, abafando-lhe os impulsos pundonorosos.

Ficou medroso e descarado.

No fim de algum tempo já podiam na escola insultar a mãe quantas vezes quisessem que ele não se abalaria; podiam lançar-lhe em rosto as ofensas que entendessem porque ele se conservaria impossível. Temia as conseqüências de qualquer desafronta. «Estava domesticado», segundo a frase do Pires.

Todavia, esses pequenos episódios da infância, tão insignificantes na aparência, decretaram a direção que devia tomar o caráter de Amâncio. Desde logo habituou-se a fazer uma falsa idéia de seus semelhantes; julgou os homens por seu pai, seu professor e seus condiscípulos. -E abominou-os. Principiou a aborrecê-los secretamente, por uma fatalidade de ressentimento; principiou a desconfiar de todos, a prevenir-se contra tudo, a disfarçar, a fingir que era o que exigiam brutalmente que ele fosse.

Nunca lhe deram liberdade de espécie alguma: Se lhe vinha uma idéia própria e desejava pô-la em prática, perguntavam-lhe «a quem vira ele fazer semelhante asneira».

Convenceram-mo de que só devemos praticar aquilo que outros já praticaram. Opunham-lhe sempre o exemplo das pessoas mais velhas; exigiam que ele procedesse com o mesmo discernimento de que dispunham seus pais.

E os rebentões da individualidade, e o que pudesse haver de original no seu caráter e na sua inteligência, tudo se foi mirrando e falecendo, como os renovos de uma planta que regassem diariamente com água morna.

À mesa devia ter a sisudez de um homem. Se lhe apetecia rir, cantar, conversar, gritavam-lhe logo: «Tenha modo, menino! Esteja quieto! comporte-se!»

E Amâncio, com medo da bordoada, fazia-se grave, e cada vez ia-se tornando mais hipócrita e reservado. Sabia afetar seriedade, quando tinha vontade de rir; sabia mostrar-se alegre, quando estava triste; calar-se, tendo alguma recriminação a fazer; e, na igreja, ao lado da família, sabia fingir que rezava e sabia agüentar por mais de uma hora a máscara de um devoto.

Como o pai o queria inocente e dócil, ele afetava grande toleima, fazia-se um ingênuo, muito admirado com as coisas mais simples.

-É uma menina!... dizia a mãe, convicta -Amâncinho tem já dez anos e conserva a candura de um anjo!

Vasconcelos nunca o puxava para junto de si, nem conversava com ele, o interrogava; e quando a infeliz criança, justamente na idade em que a inteligência se desabotoa, ávida de fecundação, fazia qualquer pergunta, respondiam-lhe com um berro: «Não seja bisbilhoteiro, menino!»

Amâncio emudecia e abaixava os olhos, mas logo que o perdiam de vista, ia escutar e espreitar pelas portas.

Com semelhante esterco não podia desabrochar melhor no seu temperamento o leite, que lhe deu a mamar uma preta da casa.

Diziam que era uma excelente escrava: tinha muito boas maneiras; não respingava aos brancos, não era respondona: aturava o maior castigo sem dizer uma palavra mais áspera, sem fazer um gesto mais desabrido. Enquanto o chicote lhe cantava nas costas, ela gemia apenas e deixava que as lágrimas lhe corressem silenciosamente pelas faces.

Além disso -forte, rija para o trabalho. Poderia nesse tempo valer bem um conto de réis.

Vasconcelos a compara, todavia, muito em conta, «uma verdadeira pechincha!», porque o demônio da negra estava então que valia duas patacas; mas o senhor a metera em casa, dera-lhe algumas garrafadas de laranja-da-terra, e a preta em breve começou a deitar corpo e a endireitar, que era aquilo que se podia ver!

O médico, porém, não ia muito em que a deixassem amamentar o pequeno.

-Esta mulher tem reuma no sangue, dizia ele -e o menino pode vir a sofrer para o futuro.

Vasconcelos sacudiu os ombros e não quis outra ama.

-O doutor que se deixasse de partes!

A negra tomou muita afeição à cria. Desvelava por ela noites consecutivas e, tão carinhosa, tão solícita se mostrou, que o senhor, quando o filho deixou a mama, consentiu em passar-lhe a carta de alforria por seiscentos mil-réis, que ela ajuntara durante quinze anos. Mas a preta não abandonou a casa de seus brancos e continuou a servir, como dantes; menos, está claro, no que dizia respeito aos castigos, porque a desgraçada, além de forra, ia já caindo na idade.

Amâncio dera-lhe bastante que fazer. Fora um menino levado da breca; só não chorava enquanto dormia e quando se punha a espernear, não havia meio de contê-lo.

Era muito feio em pequeno. Um nariz disforme, uma boca sem lábios e dois rasgões no lugar dos olhos. Não tinha um fio de cabelo e estava sempre a fazer caretas.

A princípio -muito achacado de feridas, coitadinho! Os pés frios, o ventre duro constantemente.

Levou muito para andar e custou-lhe a balbuciar as primeiras palavras. Ângela adorava-o com entusiasmo do primeiro parto; por duas vezes supôs vê-lo morto e deu promessas aos santos da sua devoção.

Conseguiram faze-lo viver, mas sempre fraquinho, anêmico, muito propenso aos ingurgitamentos escrofulosos.

Quando acabou as primeiras letras, não era, entretanto, dos rapazes mais débeis da aula do Pires. Para isso contribuíram em grande parte uns passeios que costumava dar, pelas férias, à fazenda de sua avó materna, em São Bento.

Esses passeios representavam para Amâncio a melhor época do ano. A avó, uma velha quase analfabeta, supersticiosa e devota, permitia-lhe todas as vontades e babava-se de amores por ele. O rapaz, escondia-lhe o cachimbo, pisava-lhe os canteiros da horta, divertia-se em quebrar a pedradas as lamparinas dos santos suspensas na capela, e, às vezes, quando não estava de boa maré, atirava com os pratos nos escravos que serviam à mesa.

A avó ralhava, mas não podia conter o riso. O netinho era o seu encanto, o fraco de sua velhice; só um pedido daquele diabrete faria suspender o castigo dos negros e desviar do serviço da roça algum dos moleques -para ir brincar com Nhôzinho. Estava sempre a dizer que se queixava ao genro e que o devolvia para a cidade; mas no ano seguinte, se Amâncio não aparecia logo no começo das férias, choviam os recados da velha em casa de Vasconcelos, rogando que lhe mandassem o neto.

-Mande! mande o pequeno! aconselhava o médico.

E lá ia Amâncio.

Só aos doze anos fez o seu exame de português na aula do Pires.

Houve muita formalidade. A congregação era presidida pelo Sotero dos Reis; havia vinte e tantos examinandos. Amâncio tremia naqueles apuros. Não tinha em si a menor confiança.

Foi, contudo, «aprovado plenamente». Mas não sabia nada, quase que não sabia ler. Da gramática apenas lhe ficaram de cor algumas regras, sem que ele compreendesse patavina do que elas definiam. Pires nunca explicava: -se o pequeno tinha a lição de memória, passava outra, e, se não tinha, dava-lhe algumas palmatoadas e dizia-lhe que trouxesse a mesma para o dia seguinte.

Mas, enfim, estava habilitado a entrar para o Liceu onde iria cursar as aulas de francês e geografia.

O Liceu, que bom! -oh! Aí não havia castigos, não havia as pequenas misérias aterradoras da escola! Não poderia faltar às aulas, é certo; mas, em todo o caso, estudaria quando bem entendesse e, lá uma vez por outra, havia de «fazer a sua parede»!

E, só com pensar nisso, só com se lembrar de que já não estava ao alcance das garras do maldito Pires, o coração lhe saltava por dentro, tomado de uma alegria nervosa.

***

O Vasconcelos quis festejar o exame do filho, com um jantar oferecido aos senhores examinadores e aos velhos amigos da família.

À noite houve dança. Amâncio convidou os companheiros do ano; compareceram somente os pobres -os que não tinham em casa também a sua festa.

O pai, por instâncias de Ângela, fizera-lhe presente de um relógio com a competente cadeia, tudo de ouro. A avó, que se abalara da fazenda para assistir ao regozijo do seu querido mimalho, trouxera-lhe de presente um moleque o Sabino.

Amâncio, todo cheio de si, a rever-se na sua corrente e a consultar as horas de vez em quando, foi nesse dia o alvo de mil felicitações, de mil brindes e de mil abraços.

Alguns amigos do pai profetizavam nele uma glória da pátria e diziam que o João Lisboa, o Galvão e outros, não tinham tido melhor princípio.

Lembraram-se todas as partidas engraçadas de Amâncio, vieram à baila os repentes felizes que o diabrete tivera até aí. Na cozinha a mãe preta, a ama, contava às parceiras as travessuras do menino e, com os olhos embaciados de ternura, com uma espécie de orgulho amoroso, referia sorrindo os trabalhos que ele lhe dera, as noites que ela desvelara.

-Já em pequeno, diziam -era muito sabido, muito esperto! enganava os mais velhos; tinha lábias, como ninguém, para conseguir as coisas, e sabia empregar mil artimanhas para obter o que desejava! -Não! definitivamente não havia outro!

Ângela, a um canto da varanda, assentada entre as suas visitas, seguia o filho com um olhar temperado de mágoa e doçura.

-O que lhe estaria reservado?... o que o esperaria no futuro?... cismava a boa senhora, meneando tristemente a cabeça -oh! às vezes cria-se um filho com tanto amor, com tanto amor, com tanta lágrima, para depois vê-lo andar por aí aos trambolhões, nesse mundo de Cristo!... E a idéia de que, talvez, nem sempre o teria perto de si, que nem sempre o poderia obrigar a mudar a camisa quando estivesse suado; obrigá-lo a tomar o remédio quando estivesse doente; obrigá-lo a comer, a dormir com regularidade; a evitar, enfim, tudo que lhe pudesse prejudicar a saúde; oh! a idéia de tudo isso lhe entrava no coração como um sopro gelado, e fazia tremer a pobre mãe.

-Ai! ai! disse ela.

-Que suspiros são esses, D. Ângela? perguntou o Dr. Silveira, que estava ao seu lado. Homem íntimo da casa e figura conhecida na política da terra.

-Malucando cá comigo... respondeu a senhora. E como o outro estranhasse a resposta: -Quem tem filho, tem cuidados, senhor doutor!...

-Oh! oh! exclamou este, com um gesto autorizado, abrindo muito a boca e os olhos. -A quem o diz, Sr.ª D. Ângela, a quem o diz... Só eu sei o que me custam esses quatro pecados que aí tenho!...

E para provar que dizia a verdade, teria falado nos seus cabelos brancos, se não os pintasse.

Quando Ângela se afligia daquele modo, sendo rica; quanto mais ele -pobre jurisconsulto, com pequenos vencimentos e uma família enorme!...

-Ah os tempos vão muito maus...

Puseram-se logo a falar na ruindade dos tempos. «Estava tudo pela hora da morte! -Comia-se dinheiro!»

Mas Silveira voltara-se rapidamente para dar atenção a Amâncio, que acabava de aproximar-se, em silêncio, com o ar presumido de quem tinha consciência de que toda aquela festa lhe pertencia.

-Então, meu estudante! -disse o jurisconsulto, empinando a cabeça. -Já escolheu a carreira que deseja seguir?

-Marinha, respondeu Amâncio secamente.

A farda seduzia-o. Nada conhecia «tão bonito» como um oficial de marinha.

A mãe riu-se com aquela resposta, e olhou em torno de si, chamando a atenção dos mais para o desembaraço do filho.

À meia-noite foram todos de novo para a mesa. Vasconcelos era muito rigoroso quando recebia gente em casa; queria que houvesse toda a fartura de vinhos e comidas. Os brindes reapareceram. Abriram-se garrafas de Moscato d'Asti, Chateau Yquem e Champagne.

Conversou-se a respeito dos vinhos de Vasconcelos. «O Maranhão era incontestavelmente uma das províncias onde melhor se bebia!»

Do meio para o fim da ceia, Amâncio sentiu-se outro.

Em uma ocasião que o pai se afastara da mesa, ele pediu um brinde e cumprimentou as «pessoas presentes».

Este fato causou delírios. O próprio pai não se pôde conter e disse entredentes, a rir:

-Ora o rapaz saiu-me vivo!

Ângela abraçou o filho, chorando de comovida.

-Que lhe disse eu?... resmungou delicadamente Silveira ao ouvido dela. -Este menino promete! Dêem-lhe asas e hão de ver... dêem-lhe asas!...

Amâncio foi coberto de ovações. Batiam-se no copo, faziam-lhe saúdes. Ele a todos respondia, rindo e bebendo.

Daí a uma hora recolheram-no à cama da mãe, porque lhe aparecera uma aflição na boca do estômago; mas vomitou logo e adormeceu depois, completamente aliviado.

Foi a sua primeira bebedeira.

***

Aos quatorze anos prestou exame de francês e geografia e matriculou-se na aulas de gramática geral e inglês.

Já eram válidos felizmente, os exames do Liceu do Maranhão, e com as cartas que daí houvesse, podia entrar nas academias da Corte.

Amâncio, depois da escola do Pires, nunca mais voltou a passar férias na fazenda da avó. Preferia ficar na cidade: tinha namoros, gostava loucamente de dançar, já fumava e já fazia pândegas grossas com os colegas do Liceu.

Como o pai não lhe dava liberdade, nem dinheiro, e como exigia que ele às nove horas da noite se recolhesse à casa, Amâncio arranjava com a mãe os cobres que podia e, quando a família já estava dormindo, evadia-se pelos fundos do quintal. Era Sabino quem lhe abria e fechava o portão.

O moleque gostava muito dessas patuscadas. O senhor-moço levava-o às vezes em sua companhia. Amigos esperavam por eles lá fora, reuniam-se; tinham um farnel de sardinhas, pão, queijo, charutos e vinhos. Era pagodear até pela madrugada!

Se havia chinfrim -entravam, ou então iam tomar banho no Apicum ou cear ao Caminho Grande. Em noites de luar faziam serenatas; aparecia sempre alguém que tocasse violão ou flauta ou soubesse cantar chulas e modinhas. Aos sábados o passeio era maior; no dia seguinte Amâncio estava a cair de cansaço, aborrecido, necessitando de repouso.

Mas não deixava de ir -Era tão bom passear pela rua, quando toda a população dormia, fumar, quando tinha certeza de que nenhum dos amigos de seu pai o pilharia com o charuto no queixo; era tão bom beber pela garrafa, comer ao relento e perseguir uma ou outra mulher que encontrassem desgarrada, a vagar pelos becos mal iluminados da cidade!

Tudo isso lhe sorria por prisma voluptuoso e romanesco.

À vezes entrava em casa ao amanhecer. Não podia dormir logo; vinha excitado, sacudido pelas impressões e pela bebedeira da noite. Atirava-se à rede, com uma vertigem impotente de conceber poesias byronianas, escrever coisas no gênero de Álvares de Azevedo, cantar orgias, extravagâncias, delírios.

E afinal adormecia, lendo Mademoiselle de Maupin, Olympia de Clèves ou Confession d'un enfant du siècle.

Não penetrava bem na intenção deste último livro, mas tinha-o em grande conta e, visto conhecer a biografia de Musset, embriagava-se com essa leitura; ficava a sonhar fantasias estranhas, amores céticos, viagens misteriosas e paixões indefinidas.

As criadas da casa ou as mulatinhas da vizinhança já o enfaravam; era preciso descobrir amores mais finos, mais dignos, que, nem só lhe contentassem a carne, como igualmente lhe socorres sem as ânsias da imaginação.

Por esse tempo leu a Graziella e o Raphael de Lamartine. Ficou possuído de uma grande tristeza; as lágrimas saltaram-lhe sobre as páginas do livro. Sentiu necessidade de amar por aquele processo, mergulhar na poesia, esquecer-se de tudo que o cercava, para viver mentalmente nas praias de Nápoles, ou nas ilhas adoráveis da Sicília, cujos nomes sonoros e musicais lhe chegavam ao coração como o efeito de uma saudade, de uma nostalgia inefável, profunda, sem contornos, que o atraía para um outro mundo desconhecido, para uma existência que lhe acenava de longe, a puxá-lo com todos os tentáculos do seu mistério e da sua irresistível melancolia.

Uma ocasião, deitado ao pé da janela de seu quarto, pensava em Graziella.

À tarde precipitava-se no crepúsculo, e enchia a natureza de tons plangentes e doloridos. A um canto da rua um italiano tocava uma peça no seu realejo. Era a Marselhesa.

Amâncio conhecia algumas passagens da revolução de França: lera os Girondinos, de Lamartine. E a reminiscência do sentimentalismo enfático dessa obra, coada pela retórica poderosa da música de Lisle, trouxe-lhe aos nervos um sobressalto muito mais veemente que das outras vezes.

Julgou-se infeliz, sacrificado nas suas aspirações, no seu ideal. Precisava viver, gozar, gozar sem limites!... Não ali, perto da família, estudando miseráveis lições do Liceu, mas além, muito além, onde não fosse conhecido, onde tudo para ele apresentasse surpresas de uma outra vida, atrativos de um mundo vasto, enorme, que sua imaginação mal podia delinear.

Por isto estimou deveras ter de seguir para o Rio de Janeiro. A Corte era «um Paris», diziam na província, e ele, por conseguinte, havia de lá encontrar boas aventuras, cenas imprevistas, impressões novas e amores, -oh! amores principalmente!

E, com efeito, desde que pôs o pé a bordo, principiou a gozar a impressão de novidade, produzida no seu espírito pela viagem.

A circunstância de achar-se em um paquete sozinho, ouvindo o ronrom monótono da máquina e sentindo, como nos romances, as vozes misteriosas dos elementos sussurrarem à volta de seus ouvidos -encantava-o. Prestava muita atenção ao mais pequeninos episódios de bordo: olhava interessado para a grossa figura dos marinheiros que baldeavam pela manhã o tombadilho, a dançar com a vassoura aos pés; estudava o tipo dos outros passageiros, procurando descobrir em cada qual um personagem de seus livros favoritos; ao abrir e fechar das portas do camarotes, espiava sempre, e às vezes lobrigava de relance, ao fundo no beliche, uma figura pálida, ofegante, toda descomposta na imprudência do enjôo.

Ele é que nunca enjoava. À noite ia fumar para a tolda, estendido sobre um banco, as pernas cruzadas, os olhos perdidos pelo oceano.

Vinham-lhe então as nostalgias da província: o coração dilatava-se por um sentimento morno de saudade. Via defronte de si o vulto carinhoso de sua mãe, a chorar, com o rosto escondido no lenço, o corpo sacudido pelos soluços.

Quanto não custou à pobre mulher separar-se ao filho?... Que violência não foi preciso para lho arrancarem dos braços! foi como se pela segunda vez lho tirassem a ferro das entranhas.

Antes mesmo da partida de Amâncio, muito sofrera a mísera com a idéia daquela separação. Pensava nisso a todo instante, sem se poder capacitar de que ele devia ir, atirado a bordo de um vapor, tão sozinho, tão em risco de perigos. «Oh! era muito duro! Era muito duro!...» Mas Vasconcelos opunha-lhe argumentos terríveis: -O rapaz precisava fazer carreira, ter uma posição! Não seria agarrado às saias da mãe que iria pra diante! Há muito mais tempo devia ter seguido -o filho de fulano fora aos quinze anos; o de beltrano voltara com vinte e três, e Amâncio já tinha vinte. Ia tarde! Ângela que se deixasse de pieguices. Justamente por estimá-lo é que devia ser a primeira a querer que ele fosse, que se instruísse, que se fizesse homem! além disso o rapaz poderia visitá-la pelas férias, nem sempre, mas de dois em dois anos.

Ângela parecia resignar-se com as palavras de Vasconcelos; fazia-se forte: jurava que «não era egoísta», que «não seria capaz de cortar a carreira de seu filho»; mal porém, o marido lhe dava as costas, voltava-lhe a fraqueza; vinham-lhe as lágrimas, tornavam as agonias. Por vezes, no meio do jantar, enquanto os outros riam e conversavam, ela, que até aí estivera a pensar, abria numa explosão de soluços e retirava-se para o quarto, aflita, envergonhada de não poder dominar aquele desespero. Outras vezes acordava por alta noite, a gritar, a debater-se, a reclamar o filho, a disputá-lo contra os fantasmas do pesadelo.

No dia da viagem não se pôde levantar da cama, tinha febre, vertigens; a cabeça andava-lhe à roda. E não queria mais ninguém perto de si, além do filho, só ele! «Não a privassem de Amâncio ao menos naquele dia!» E tomava-o nos braços, procurava agasalhá-lo ao colo, com fazia dantes, quando ele era pequenino. Afagava-lhe a cabeça, beijava-lhe os cabelos, prendia-o contra o seio. Depois, voltava a acarinhá-lo, beijava-lhe de novo as mãos, os olhos, o pescoço, envolvia-o tudo em mimos, como, se, na santa loucura de seu amor, imaginasse que eles lhe preservariam o filho contra os escolhos da jornada e contra os futuros perigos que o ameaçavam.

-Minha pobre mãe!... suspirava Amâncio no tombadilho, derramando o olhar lacrimoso pela inconstante planície das águas.

-Minha pobre mãe!...

E vinham-lhe então fundas saudades de sua terra, de sua casa e de seus parentes. As palavras de Ângela palpitavam-lhe em torno da cabeça, com uma expressão de beijos estalados. Lembrava-se dos últimos conselhos que ela lhe dera, das suas recomendações, das suas pequeninas providências; de tudo isso, porém, o que mais lhe ficara grudado à memória foi o que lhe disse a boa velha, muito em particular, a respeito de dinheiro. «Se te não chegar a mesada, ou se te vierem a faltar os recursos, escreve-me logo duas linhas, que eu te mandarei o que precisares. Mas não convém que teu pai saiba disto...»

Para as primeiras despesas na corte e para os gastos nas províncias, juntem, ao que dera Vasconcelos ao filho, mais quinhentos mil-réis; não achava bom, entretanto, que Amâncio saltasse em todos os portos. «Era muito arriscado! Ele não se devia expor de semelhante forma!»

E a lembrança do dinheiro puxou logo outras consigo e arremessou-o no frívolo terreno de seus devaneios voluptuosos. Vieram as recordações; começou a desenfiar mentalmente o rosário dos amores que acumulara dos quinze anos até ali.

Era um rosário extravagante; havia contas de todos os matizes e de todos os feitios.

Entre elas, porém, só três se destacavam, três belas contas de marfim: a filha mais velha do Costa Lobo, a mulher de um comendador, amigo de seu pai, e uma viúva de um oficial do Exército.

E só. Todas as suas outras conquistas não valiam nada; de algumas tinha, contudo, bem boas recordações: a Francisca de Vila do Paço, por exemplo -uma caboclinha, que se apaixonou por ele e vinha persegui-lo até à cidade, uma espanhola, mulher de um tipo barbado e calvo, que andava a mostrar figuras de cera pelas províncias do Norte, uma senhora gorda, amasiada com um boticário, da qual elogiavam muito as virtudes, mas que um dia atirou-se brutalmente sobre Amâncio, dizendo que o amava e trincando-lhe os beiços.

E como estas, outras e outras recordações foram-se enfiando e desenfiando pelo espírito sensual e mesquinho do vaidoso, até deixá-lo mergulhado na apatia dos entes sem ideais e sem aspirações.

Mas, já não queria pensar nesses amores da província; tudo isso agora se lhe afigurava ridículo e acanhado. A Corte, sim! é que lhe havia de proporcionar boas conquistas. «Ia principiar a vida!!»

E, nessa disposição, chegou ao Rio de Janeiro.




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- III -

Estava hospedado havia dois dias em Casa do Campos; esse tempo levara ele a entregar cartas e encomendas. À noite, fatigado e entorpecido pelo calor, mal tinha ânimo para dar uma vista de olhos pelas ruas da cidade.

Entretanto, a vida externa o atraía de um modo desabrido; estalava por cair no meio desse formigueiro, desse bulício vertiginoso, cuja vibração lhe chegava aos ouvidos como os ecos longínquos de uma saturnal. Queria ver de perto o que vinha a ser essa grande Corte, de que tanto lhe falavam; ouvira contar maravilhas a respeito das cortesãs cínicas e formosas, ceias pela madrugada, passeios pelo Jardim Botânico, em carros descobertos, o champanha ao lado, o cocheiro bêbado; -e tudo isso o atraía em silêncio, e tudo isso o fascinava, o visgava com o domínio secreto de um vício antigo.

Mas por onde havia de principiar?... Não tinha relações, não tinha amigos que o encaminhassem!... Além disso, Campos estava sempre a lhe moer o juízo com as matrículas, com a entrada na academia, com um inferno de obrigações a cumprir, cada qual mais pesada, mais antipática, mais insuportável!

-Olhe, seu Amâncio, que o tempo não espicha -encolhe!... É bom ir cuidando disso!... repetia-lhe o negociante, fazendo ar sério e compenetrado. Veja agora se vai perder o ano! Veja se quer arranjar por aí um par de botas!...

Amâncio fingia-se logo muito preocupado com os estudos e falava calorosamente na matrícula.

-Mexa-se então, homem de Deus! bradava o outro. Os dias estão correndo!...

Afinal, graças aos esforços do Campos, conseguiu matricular-se na academia, duas semanas depois, de ter chegado ao Rio de Janeiro.

O medo às matemáticas levara-o a desistir da Marinha e agarrar-se à Medicina, como quem se agarra a uma tábua de salvação: pois o Direito, se bem que, para ele, fosse de todas as formaturas as mais risonha, não lhe servia igualmente, visto que Amâncio não estava disposto a deixar a Corte e ir ser estudante na província.

A Medicina, contudo, longe de seduzi-lo, causava-lhe um tédio atroz. Seu temperamento aventuroso e frívolo não se conciliava com as frias verdades da cirurgia e com as pacientes investigações da terapêutica. Pressentia claramente que nunca daria um bom médico, que jamais teria amor à sua profissão.

Esteve a desistir logo nos primeiros dias de aula: o cheiro nauseabundo do anfiteatro da escola, o aspecto nojento dos cadáveres, as maçantes lições de Química, Física e Botânica, as troças dos veteranos, a descrição minuciosa e fatigante da Osteologia, a cara insociável dos explicadores; tudo isso, o fazia vacilar; tudo isso lhe punha no coração um duro sentimento de má vontade, uma antipatia angustiosa, um não querer doloroso e taciturno.

À vezes, no entanto, pretendia reagir: atirava-se ao Baunis Bouchard e ao Vale, disposto a ler durante horas consecutivas, disposto a prestar atenção, a compreender; mal, porém, ele se entregava aos compêndios, o pensamento, pé ante pé, ia-se escapando da leitura, fugia sorrateiramente pela janela, ganhava a rua, e prendia-se ao primeiro frufru de saia que encontrasse.

E Amâncio continuava a ler a estranha tecnologia da ciência, a repetir maquinalmente, de cor, os caracteres distintivos das vértebras, ou a cismar abstrato nas propriedades do cloro e do bromo, sem todavia conseguir que patavina daquilo lhe ficasse na cabeça.

-Não haver uma academia de Direito no Rio de Janeiro! lamentava ele, bocejando, a olhar vagamente a sua enfiada de vértebras, que havia comprado no dia anterior.

Porque, no fim de contas, tudo que cheirasse a ciência de observação o enfastiava: «Deixassem lá, que a tal Osteologia e a tal Química nada ficavam a dever às Matemáticas!...»

Ah! o Direito, o Direito é que, incontestavelmente, devia ser a sua carreira. Preferia-o por achá-lo menos áspero, mais tangível, mais dócil, que outra qualquer matéria. E esse mesmo...Valha-me Deus! tinha ainda contra si o diabo do latim, que era bastante para o tornar difícil.

E lembrar-se Amâncio de que havia por aí criaturas tão dotadas de paciência, tão resignadas, tão perseverantes, que se votavam de corpo e alma ao cultivo das artes... das artes, que, segundo várias opiniões, exigiam ainda mais constância e mais firmeza do que as ciências!... Com efeito! Era preciso ter muita coragem, muito heroísmo, porque as tais belas-artes, no Brasil, nem sequer ofereciam posição social, nem davam sequer um titulozinho de doutor!

-Qual! Não seria com ele!... Fosse gastando quem melhor quisesse a existência na concepção de um bom quadro, de uma boa estátua, de uma ópera genial ou de um bom livro de literatura, que ele ficava cá de fora -para apreciar. O mais que podia fazer, era -aplaudir; aplaudir e pagar! -E já não fazia pouco!...

Isso justamente ouviu, por mais de uma vez, da boca de seu pai. O velho Vasconcelos nunca tomou a sério os artistas «Uns pedaço-d'asnos!» qualificava ele, e, de uma feita em que o Franco de Sá lhe comunicou os seus projetos de estudar pintura na Europa, o negociante fez uma careta e exclamou, batendo-lhe no ombro: «Homem, seu Sazinho! não seria eu que lhe aconselhasse semelhante cabeçada... porque, meu amigo, isto de artes é uma cadelagem! Procures meios de obter cobres, e o senhor terá à sua disposição os artistas que quiser!»

-E nisto tinha o velho toda a razão, pensava Amâncio. Acho apenas que devia estender a sua teoria até o estudo de certas ciências... como a Medicina... Sim! porque, afinal, com dinheiro também obtemos os médicos de que precisamos, e não vale a pena, por conseguinte, gramar seis anos de academia e curtir as maçadas que estou aqui suportando, sabe Deus como!

-Mas, neste caso, a questão muda muito de figura!... dizia-lhe em resposta uma voz que vinha de dentro do seu próprio raciocínio. Não se trata aqui de fazer um «médico», trata-se de fazer um «doutor», seja ele do que bem quiser! Não se trata de ganhar uma «profissão», trata-se de obter um «título». Tu não precisas de meios de vida, precisas é de uma posição na sociedade.

-Visto isso, porém, objetava Amâncio, quero crer que o mais acertado seria comprar uma carta na Bélgica ou na Alemanha, e mandar ao diabo, uma vez por todas, aquela peste de Medicina!

Ora, Medicina! Medicina servia para algum moço pobre que precisasse viver da clínica; ele não estava nessas circunstâncias. Era rico! só com o que lhe tocava por parte materna, podia passar o resto da vida sem se fatigar!... Por que, pois, sofrer aquelas apoquentações do estudo? Por que razão havia de ficar preso aos livros, entre quatro paredes, quando dispunha de todos os elementos para estar lá fora, em liberdade, a divertir-se e a gozar?!...

Mas uma idéia sustinha-lhe o vôo do pensamento; o vulto angélico de sua mãe vinha colocar-se defronte dele, abrindo os braços, como se o quisesse proteger de um abismo.

Ah! quanto empenho não fazia a pobre velha em vê-lo formado às direitas, numa faculdade do Brasil... Vê-lo doutor!...

-Doutor, hein?! repetia Amâncio, meio animado com o prestígio que ao nome lhe daria o título.

E ligava-os mentalmente, para ver o efeito que juntos produziam:

-Doutor Amâncio! Doutor Amâncio de Vasconcelos! Não fica mal! não fica! A mãe tinha razão. Era preciso ser doutor!

E quanto gosto, que prazer, não sentiria nisso a querida velha!... Oh! ele agora pensava em Ângela com muito mais ternura; nela resumia toda a família e tudo que houvesse de bom no seu passado. Só com a ausência pôde avaliar o muito que a respeitava e o muito que a estremecia. Ele, que não chorara ao despedir-se da mãe; ele, que algumas vezes chegou até a aborrecer-se de seus desvelos e da insistência de seus carinhos -agora não a podia ter na memória, sem ficar com o coração opresso e os olhos relentados de pranto. Pungia-lhe a consciência uma espécie de remorso por não se ter mostrado mais afetuoso e mais amigo, enquanto a possuiu perto de si, por não ter melhor aproveitado essa ocasião para deixar bem patente que sabia ser «bom filho».

E punha-se então a mentalizar planos de melhor conduta para quando voltasse ao lado de Ângela; considerava os mimos que teria com ela, os afagos que lhe havia de dispensar, os beijos que lhe havia de pedir.

-Ah! Se naquele momento ele a tivesse ali, o que não lhe diria!

E, por uma necessidade urgente de expansão, levantou-se da cadeira em que estava e correu à secretária, disposto a escrever uma carta, longa, à sua mãe. Precisava queixar-se do isolamento em que vivia, contar-lhe as suas tristezas, as suas contrariedades, justamente como fazia dantes, em pequeno, ao voltar da aula de Pires. Sua alma tornava atrás, fazia-se muito infantil, muito criança, muito ingênua e carecida de amparo.

A mãe, enquanto esteve ao lado dele, foi sempre um coração aberto para lhe receber as lágrimas e os queixumes.

Também, só elas, só as mães, podem servir a tão delicado mister. O que se lança ao peito da amante desde logo arde e se evapora, porque aí o fogo é por demais intenso; o que se atira ao de um estranho gela-se de pronto na indiferença e na aridez; mas, tudo aquilo que um filho semeia no coração materno -brota, floreja e produz consolações. Neste não há chama que devore, nem frio que enregele, mas um doce amornecer, suave e fecundo, como a palidez de um seio intumescido e ressumbrante de leite.

E escreveu: «Mamãe.»

Hesitou logo. Aquele modo de tratar não lhe pareceu conveniente; queria uma carta de efeito, com estilo, uma carta a primor, que desse idéia de seu talento e ao mesmo tempo de sua afeição:

...«Minha querida mãe.

Eis-me na grande Corte, que aliás me parece estúpida e acanhada por achar-me longe de vosse-mecê...»

Vinham, em seguida, muitos protestos de amor filial e depois uma extensa descrição da cidade, a qual ocupava duas laudas da carta. Na terceira escreveu o seguinte:

«Desde que vim daí, o Sabino só me tem dado maçadas; a bordo vivia a brigar com os outros criados; aqui nunca me aparece; sai pela manhã e já faz muito quando volta à noite. Pilhou-se sem castigo e abusa desse modo. Ainda não lhe consegui arranjar a matrícula no Tesouro e nem sei como isso se obtém: o Campos é que há de ver.

Como sabe, há mês e meio que me acho hospedado em casa deste. Aqui nada me falta, é certo, mas igualmente nada me satisfaz, porque estou muito isolado e aborrecido. A família é atenciosa o quanto pode ser comigo; eu, porém, apesar disso, não deixo de ser para eles um estranho, como tal, apenas recebo cortesias e hospitalidade. D. Maria Hortênsia é amável, mas por uma simples questão de delicadeza; da irmã, D. Carlotinha, nem é bom falar! Esta, se já me dispensou duas palavras, foi o máximo, parece até que tem medo de olhar para mim; talvez com receio de desagradar ao guarda-livros, que, pelos modos, é lá o seu namorado. O que não resta dúvida é que o tal guarda-livros é de todos o mais antipático e difícil de suportar. Um hipócrita! Está sempre com a carinha na água e já, por várias vezes, se tem querido meter a espirituoso cá para o meu lado. -São ditinhos, indiretas de instantes a instante. Eu, qualquer dia destes, o chamo à ordem! Ainda não há uma semana, veja isto! fui a um espetáculo dramático no São Pedro de Alcântara e à volta, quando cheguei a casa, quis acender a vela para estudar. Quem disse?... o fogo não se comunicava ao pavio. Verifico: no lugar da torcida haviam posto um prego; fiquei com os dedos queimados. E esta graça não foi de outro senão do tal cara de mono!

»Já me lembrou mudar-me; o Campos, porém, acha que o não devo fazer enquanto não descobrir por aí um bom cômodo, em alguma casa de pensão.»

E no mesmo teor ia por diante, até encher duas folhas de papel marca pequena. Amâncio narrava à mãe todos os seus passos e todos os seus desgostos, sem lhe confessar, todavia, que o principal motivo daquele descontentamento estava em não se poder recolher de noite às horas que entendesse; em ter por único companheiro de passeios o Luís Campos, cuja sobriedade nos gestos e costumes, cuja discrição nos termos, cujo aspecto repreensivo e pedagógico de mentor faziam-no já perfeitamente insuportável aos olhos do estudante.

-Ora adeus! considerava este, deveras enfiado. -Não foi para me fazer santo que vim ao Rio de Janeiro!

Boas! Podia lá estar disposto a sofrer aquele maçante do Campos!... Mas também não seria muito divertido andar sozinho pela cidade, a trocar pernas, sem um companheiro, sem um amigo. Além disso temia do seu provincialismo, receava «fazer figura triste»; ainda não conhecia o preço das coisas e o nome das ruas. No Maranhão falavam com tanto assombro dos gatunos da Corte! -os tais capoeiras! E Amâncio sobressaltava-se pensando num encontro desagradável, em que lhe cambiassem o dinheiro e as jóias por uma navalhada.

Seu maior desejo era ter ali um dos amigos da província, a quem confiasse as impressões recebidas e com quem pudesse conversar livremente, à franca, sem maior palavras, nem tomar as enfadonhas reservas e composturas, que lhe impunha a censória presença do negociante.

Por isso, numa ocasião, em que atravessava pela manhã o Beco do Cotovelo, sentiu grande alegria ao dar cara a cara com Paiva Rocha. O Paiva era seu comprovinciano e fora seu condiscípulo; pertenceram à mesma turma de exames na aula do Pires e matricularam-se juntos no Liceu. Mas, enquanto o filho de Vasconcelos estudou as três primeiras matérias, o outro fez todos os preparatórios.

Abraçaram-se. Houve exclamações de parte a parte.

-Ora Paiva! disse Amâncio afinal, encarando o amigo com um olhar muito satisfeito. -Não te fazia aqui na Corte!

-Estou na Politécnica.

-Ah! exclamou Amâncio, com interesse. -Que ano?

-Terceiro.

-Bom. Estás quase livre!

-Qual! resmungou Paiva, mascando o cigarro. -Tenho ainda muito que aturar!

E passaram então a falar de estudos. Amâncio fazia recriminações: «Só encontrara dificuldades». Disse a sua antipatia pelas ciências práticas; queixou-se de alguns veteranos, que, por serem mais antigos na escola, se julgavam com direito de maltratar os outros. «Era estúpido! simplesmente estúpido!»

-Tradições respondeu Paiva, com a indiferença de quem não preocupam tais bagatelas. -Isso há de acabar... A natureza não dá saltos!

Amâncio, como qualquer provinciano que ainda não tivesse ocasião de apreciar o Rio de Janeiro, julgava-se tão desiludido a respeito dele, quanto a respeito de estudos.

-Sempre imaginei que fosse outra coisa!... disse. -A tal Rua do Ouvidor, por exemplo!...

Paiva já não o ouvia, era todo atenção para um cartaz de teatro que um sujeito pregava na parede defronte.

Amâncio prosseguiu, declarando que, até ali, nada encontrara de extraordinário na Corte.

-Com franqueza -antes o Maranhão! Com franqueza que antes! Não achas?... perguntou.

-É! respondeu o outro, distraído.

Mas Amâncio precisava desabafar e não se contentou com aquela resposta. Insistiu na pergunta; chamou a atenção do Paiva, agarrando-lhe à gola esgarçada do fraque.

-Não, filho, deixa-te disso, retorquiu o interrogado. A Corte sempre é Corte!...

-Ora qual!

-É porque ainda não estás acostumado, ainda não conheces o Rio! Hás de ver depois!...

Amâncio duvidava.

-Verás! repetia Paiva. Daqui a um ou dois anos é que te quero ouvir!

E passaram de novo a falar de estudos, de matrícula e de exames.

Paiva bocejou; o outro estava «caceteando». Quis safar-se.

-Espera! implorou Amâncio, apoderando-se-lhe de novo da gola do fraque. -Espere! Onde vais tu?... Conversa mais um pouco! suplicava ele com voz infeliz de quem pede uma esmola. Não te vás ainda! Que pressa!

Paiva tinha de ir almoçar com um amigo. Estava muito ocupado! «Naquele dia não dispunha de um momento de seu!» Depois, depois se encontrariam!

-Não! Vem cá! Espera!

Paiva levantou as sobrancelhas, impacientando-se.

-Mas, vem cá, dize-me uma coisa: o que é que tanto tens hoje a fazer?... inquiriu o outro.

-Filho, questões de interesse respondeu aquele, procurando abreviar explicações. Veio-lhe, porém, um ímpeto de raiva e começou a falar alto sobre dinheiro; havia brigado na véspera com o seu correspondente.

-Um burro! exclamava -um vinagre! Imagina tu que o malvado sabe perfeitamente que não tenho ninguém por mim aqui no Rio, e põe-se com dúvidas para me dar a mesada!... Como se aquele dinheiro lhe saísse do bolso! Diabo da peste!

-Ele então não te quis dar a mesada?... perguntou Amâncio muito espantado.

-É o costume aqui! retrucou Paiva desabridamente. -Eles julgam que nos fazem grande obséquio em dar-nos aquilo que nos pertence!

E, olhando para Amâncio com os olhos apertados:

-Mas também, filho, disse-lhe meia dúzia de desaforos, como ele nunca ouviu em sua vida! Cão!

E expôs a descompostura por inteiro, na qual as palavras galego, ladrão, cachorro entravam repetidas vezes.

-De sorte que, terminou o estudante mais tranqüilo, como se houvesse despejado um peso das costas -não tenho lá ido! Questão de capricho, sabes? olha, estou assim!

E bateu nas algibeiras.

-Isso arranja-se... disse Amâncio timidamente, receoso de humilhar o colega. E depois, com um vislumbre: Vamos almoçar a um hotel?!

Paiva concordou, sacudindo os ombros. E, como Amâncio perguntasse onde deviam ir, começou a citar os melhores hotéis, já sem deixar transparecer o menor indício de pressa.

Fazia-se grande conhecedor da Corte, muito carioca, saboreando voluptuosamente o efeito de pasmaceira, que a sua superioridade causava no amigo. Deu-se logo ares de cicerone; mostrou-se habituadíssimo com tudo aquilo que pudesse causar admiração a um provinciano recém-chegado; fingiu desdém por umas tantas coisas, que à primeira vista pareciam boas e falou de outras, menos conhecida, com entusiasmo, com interesse pessoal e com orgulho.

Amâncio escutava-o em recolhido silêncio, mas, como estivesse a cair de apetite, voltou logo à idéia do almoço: lembrou que poderiam ir ao Coroa de Ouro.

Paiva fitou-o espantado, e espocou depois uma risada falsa:

-Aquela era mesma de quem vinha do norte! Almoçar no Coroa de Ouro! Vade retro!

Amâncio não teve ânimo de defender a sua proposta, e seguiu o companheiro que se pusera a andar com ímpeto.

Entraram na Rua do Carmo, atravessaram a de São José e, ao caírem na da Assembléia, Paiva, que ia a pensar, voltou-se de súbito para Amâncio e perguntou-lhe decisivamente.

-Tu queres almoçar bem?!

E feriu a última palavra.

-É! respondeu o outro.

-Pois então vamos ao Hotel dos Príncipes!

E seguiram pela Rua Sete de Setembro até o Rocio.

Ao penetrarem no largo, uma menina italiana, de alguns dez anos de idade, toda vestida de luto, morena, e ar suplicantemente risonho e cheio de miséria, abraçou-se às pernas de Amâncio, pedindo-lhe dinheiro -para levar à mãe que estava em casa morrendo de fome.

-Sai gritou-lhe o Paiva, procurando arredá-la.

Mas a pequena ajoelhou-se, sem largar as pernas do calouro, de cujas mãos já se tinha apoderado e cobria de beijos.

-Então, papai! papaizinho bonito! uma esmolinha sim?... dizia ela, voltando para o moço seus belos olhos de criança, e rindo com uns dentes muito brancos que se lhe destacavam vivamente da cor morena do rosto.

-Coitadinha! lamentou Amâncio, fazendo-lhe uma festa no queixo e procurando dinheiro na algibeira das calças.

Puxou um maço grosso de cédulas.

-Não seja tolo! gritou-lhe o companheiro. -Isto é especulação de algum vadio! Vestem por aí essas bichinhas de luto e mandam-nas perseguir a humanidade! É uma esperteza, não seja tolo!

A pequena lançou ao Paiva um gesto de raiva e sorriu para Amâncio, suplicando.

-Em todo o caso faz dó, coitada! murmurou este dando-lhe uma cédula de dois mil-réis.

A italianinha agarrou-se ao dinheiro e olho surpresa para o calouro. Depois beijou-lhe novamente as mãos e fugiu, atirando-lhe beijos.

-Coitada! repetiu ele.

-Ainda estás muito peludo! resmungou o Paiva. Olha que isto por cá não é o Maranhão!...

E pôs-se logo a falar nas especulações do Rio de Janeiro. Contou fatos horrorosos de cinismo e gatunagem. «Amâncio que se acautelasse: no caminho em que ia, haviam de arrancar-lhe até os olhos. -Ali, a ciência de cada um consistia em fazer com que o dinheiro passasse das algibeiras dos outros para as próprias algibeiras.» Estava indignado! «Não podia, a sangue frio, ver assim se atirar à rua -dois mil-réis! Ah! se o outro soubesse quanto o dinheiro custava a ganhar, não teria as mãos tão rotas!»

E mostrava-se extremamente empenhado nos interesses do colega: dava-lhe conselhos; havia de abrir-lhe os olhos, indicar-lhe o verdadeiro caminho a seguir. «Não! Que ele não era desses, que só querem desfrutar!... Quando simpatizava com um rapaz, sabia ser amigo! Amâncio o veria no futuro!...»

-Olha! segredou-lhe, passando-lhe um braço nas costas. -Hás de encontrar por aí muito artista! Acautela-te, filho! acautela-te, que os cabras sabem levar água ao seu moinho! Digo-te isto, porque te estimo, porque sou teu amigo, percebes?

Amâncio percebia e jurava muito grato àquela dedicação. Tiveram, porém, de interromper o diálogo: dois outros estudantes acabavam de parar defronte deles.

Eram amigos do Paiva. Houve logo novas exclamações e cumprimentos rasgados.

-Meus senhores, exclamou aquele, apresentando Amâncio. O nosso colega, Amâncio de Vasconcelos, estudante de medicina. Escuso dizer que é muito talentoso e um caráter excelente.

Os dois apertaram a mão de Amâncio com solenidade, e afiançaram que tinham imenso gosto em conhecê-lo.

-João Coqueiro e Salustiano Simões! nomeou o Paiva, indicando os dois. -São ambos da Politécnica.

E acrescentou em voz baixa, ao ouvido de Amâncio, mas de modo que fosse ouvido por todos:

-Muitos distintos!...

O Coqueiro observava em silêncio o novo colega, enquanto o Paiva e o Salustiano reatavam um velho colóquio, interrompido à última vez que estiveram juntos; aquele saiu do seu recolhimento para indagar de que província era Amâncio, como se ia dando nos estudos e onde estava hospedado. Entretanto o Simões afrouxava lentamente na conversa com o outro e caía aos poucos na sua habitual concentração; já respondia apenas por monossílabos e só despregava o cigarro dos dentes para bocejar. Afinal, sem conter a impaciência, quis dissolver o grupo; mas Amâncio tolheu-lhe a idéia perguntando-lhe e mais ao Coqueiro se já tinham almoçado e, visto que não, pediu-lhes que lhe fizessem companhia.

Aceitaram, depois de alguma resistência por parte do último; e os quatro rapazes seguiram imediatamente caminho do hotel, a rir e a dar língua, como se fossem todos amigos de muito tempo.

Paiva Rocha pediu um gabinete particular e aí se instalou com os outros.

Amâncio estava maravilhado. O aspecto daquelas salas afestoadas, cheias de espelhos, de cortinas e douraduras, no gênero pretensioso dos hotéis, o ar parisiense dos criados, vestidos de preto e avental branco; a cor estridente do gabinete; o perfume das flores que guarneciam jarras de proporções luxuosas; o alvoroço palavroso e alegre dos que faziam a sobremesa; o crepitar do riso das mulheres, cujos penteadores branquejavam sobre o escuro dos tapetes; a reverberação dos cristais; a expectativa de um bom almoço, que seria devorado com apetite, e finalmente a circunstância de que Amâncio, havia muito não gozava uma pândega; tudo isso lhe refrescava o humor e o fazia feliz naquele momento.

-Garçom! gritou o Paiva, entrando no gabinete com um ar sem-cerimônia. La carte!

O criado disparou.

-Tu falas francês?... inquiriu Amâncio, já com admiração na voz.

-Ora respondeu Paiva, levantando os ombros. Aqui na Corte será difícil encontrar alguém que não fale francês!...

-Pois eu ainda não sei... disse aquele tristemente.

-Questão de prática! observou o outro.

Coqueiro, que acabava nesse momento de entrar no gabinete, conversando com Simões, propôs que se despissem os paletós.

Principiaram a comer.

O Paiva encarregara-se do menu. Estava radiante; parecia empenhado na direção do almoço, como se tratasse de um trabalho difícil e glorioso. Escolhia pratos esquisitos e determinava os vinhos que os deviam acompanhar.

-Este Paiva é terrível para um menu! observou Simões em ar de troça.

-Não! disse aquele. -Não admito que ninguém dirija um almoço melhor do que eu!

-Sim, considerou Coqueiro -mas vais ver por que preço sai tudo isso!...

-Não faz mal!... apressou-se Amâncio a declarar. -Sinto-me tão bem entre os senhores... há tanto tempo não tinha um momento livre, que...

-Bem, de acordo, respondeu Coqueiro, mas é preciso deixar esse tratamento de «senhor». Entre rapazes não deve haver cerimônias, mal-entendidos; somos colegas, temos de ser amigos, por conseguinte tratemo-nos desde já por «tu». Não és da mesma opinião, ó Paiva?

-In totum!respondeu este, abraçando Amâncio pela cintura. -Nós cá somos camaradas velhos! Vem de longe!

E parecia querer provar que os seus direitos sobre o comprovinciano eram muito mais legítimos que os dos outros dois; que Amâncio lhe pertencia quase exclusivamente, como um tesouro, como uma fortuna que se traz do berço. E para deixar isso bem patente, fazia-se muito íntimo com ele: batia-lhe nas pernas; evocava recordações; lembrava-lhes as correrias da província:

-Ah! nós éramos muito camaradas! Lembras-te, Amâncio, daquele passeio que fizemos ao Portinho?...

-Em que Malheiros tomou uma bebedeira de charuto? Perguntou o interrogado a rir. -Naquele dia do barulho no Liceu; quando o Chico moleque foi expulso!...

-É verdade! que fim levou esse rapaz! quis saber Paiva -Era um bom tipo. Inteligente!

-Morreu, coitado! de bexigas. Ultimamente estava no comércio.

E aquele pequeno, o...

-Qual?

-Aquele bonito, de cabelos grandes... ora, como se chamava ele?... o...

-Ah! exclamou Amâncio, soltando uma risada -o Dominguinhos?

-Isso! isso! Dominguinhos justamente! Que fim levou?

-Não sei, não! Creio que seguiu para Manaus com a família. Um bobo! Lembra-se da troça que lhe fizemos no convento?...

E os dois riram-se muito com a mesma idéia.

Simões, que até aí parecia pouco disposto à pândega, foi-se animando na proporção das garrafas que se enxugavam. O almoço aquecia. João Coqueiro propôs um brinde a Amâncio e declarou, depois de lhe fazer muitos elogios, que folgaria imenso em ser recebido no rol de seus amigos.

Amâncio abraçou-o e prometeu que o iria visitar no primeiro domingo.

-Vá feito! sustentou Coqueiro. Ali não há cerimônia, minha família é muito despida dessas coisas.

-Ah! mora com a família? interrogou o provinciano.

-Sou casado, respondeu o outro. -Isso, porém, nada quer dizer. Apareça.

Ficou decidido que Amâncio iria sem falta no próximo domingo.

Simões principiou então a falar sobre casamento; daí passou às mulheres: descreveu a sua indiferença por elas. Só lhe conhecia dois gêneros: «a mulher cínica e a mulher hipócrita.»

Paiva Rocha protestava: -Havia muita mulher honesta, verdadeiros anjos de virtude! E que deixassem lá falar! em certas ocasiões uma boa rapariga tinha o seu cabimento! Sim! Quem não gostava da estética?...

Amâncio era da mesma opinião, e queixou-se de sua infelicidade no Rio a esse respeito.

-Ainda é cedo elucidou o Salustiano. -Quando te começarem as aventuras, há de ver o que vai por essa sociedade!

-Não é tanto assim! opôs Coqueiro. -Vocês são todos homens dos extremos!

E voltando-se confidencialmente para Amâncio:

-O Doutor, decerto, encontrará muita mulher perigosa, de quem deve fugir como o diabo da cruz; mas terá também ocasião de ver algumas raparigas bem educadas, honestas e inteligentes. Não as vá procurar na alta sociedade, não, que aí se escondem as piores! mas indague-as cá por baixo, na mediocracia, que as há de descobrir. E olhe, se quer aceitar um conselho de amigo, case-se! Não há melhor vidinha! Estou casado há três anos e ainda não tive um segundo de arrependimento!... Ao menos conserva-se a saúde, desenvolve-se o espírito e trabalhe-se mais... O método, homem! o método é o segredo da existência!

E, puxando a cadeira para mais perto de Amâncio falou-lhe em voz baixa. Que no Rio de Janeiro era preciso ter um amigo sincero, não que «primasse nos menus», mas que fosse capaz, que tivesse imputabilidade moral! -Amâncio estava defronte de duas estradas; uma que conduzia à verdadeira felicidade e outra que conduzia à desordem, ao vício e à completa desmoralização! Que se não deixasse levar pelos pândegos!... E olhava à esconsa os dois outros companheiros. Aquilo era gente sem nada a perder!... Amâncio, enfim, que aparecesse no domingo e teriam ocasião de falar mais de espaço. Não deixasse de ir: havia muito o que dizer e conversar.

Amâncio prometeu de novo.

O almoço chegara ao ponto em que os comensais falam todos ao mesmo tempo e em voz alta. Havia agitação; afogueavam-se as faces ao reflexo vermelho das paredes do gabinete. Simões discutia com Paiva a incompetência dos professores da Politécnica.

-Uma súcia! uma cambada! sintetizava ele. -Se fosse preciso despedir dali os que não prestam, não ficaria nenhum!

O outro protestava, gritando e batendo punhadas sobre a mesa. Havia já dois copos quebrados.

O criado trouxera a sobremesa -uma salada russa.

Paiva pediu gelados e quis que lhe dessem uma omelete ao rum. «Não podia passar sem isso no almoço!»

Suavam.

Amâncio tornava-se expansivo: falou de seus amores na província; contou as suas intenções a respeito da mulher do Campos.

-Ela parece que tem medo, dizia. -Mas eu sou perseverante! Espero!

-Menino segredou-lhe Paiva. -Vai aproveitando, vai aproveitando, porque é isso o que se leva deste mundo!

-E o mais são histórias... concluiu o filho de Vasconcelos.

E fazia-se muito fino, perigoso, e continuava a parolar com embófia, loquaz, um pouco sacudido pelo almoço.

Coqueiro estudava-o de socapa, a seguir-lhe os gestos, a fariscar-lhe as intenções. Dos quatro era o único que não estava tonto: seus olhos, pequenos e de cor duvidosa, conservavam a mesma penetração e a mesma fixidez incisiva de ave de rapina; sua boca, estreita, bem guarnecida e quase sem lábios, tinha o mesmo riso arqueado, mal seguro e frio, de quem escuta e observa.

Era de altura regular, compleição ética, rosto comprido, de um moreno embaciado, pouca barba, pescoço magro, nariz agudo, mãos pálidas e secas, voz doce e cabelo muito crespo, de colorido incerto, entre castanho e fulvo. Tinha vinte e sete anos, mas aparentava, quanto muito, vinte e dois.

Paiva erguera-se para fazer um bestialógico, e soltava de enfiada frases sonoras e ocas de sentido: ouvia-se-lhe falar em «gazofiliáceos, camelos da Patagônia e constelações híbridas do mapa-mundi». Simões, o macambúzio, derreara a cadeira contra a parede, e jazia palitar a boca, estendido para trás, em uma posição de homem farto: barriga ao vento, braços moles e um olhar muito pando, que se lhe entornava por todo o rosto em sorrisos de preguiça. Amâncio reatava a sua conversa com Coqueiro.

-É como lhe digo, recapitulava este. -Aquilo não é um hotel, é uma -casa de família! Não temos hóspedes, temos amigos! Minha mulher é quem toma conta de tudo!... E dando à voz um tom grave: -Ela é muito asseada, muito exigente em questões de comida! Você não imagina!... Ao almoço temos três pratos a escolher, leite, chá ou café, e vinho; pelo almoço pode calcular o que não será o jantar! -E depois é preciso observar a qualidade dos gêneros!... enfim, só mesmo você indo ver!

Amâncio reprometia.

-Fica-se muito melhor em uma casa de família, continuava o outro. A vida em hotel ou a vida em república é o diabo: estraga-se tudo -o estômago, o caráter, a bolsa; ao passo que ali, você têm o seu banho frio pela manhã, torradas à noite e, se cair doente (o que lhe não desejo), há quem o trate, quem lhe prepare um remédio, um caldo, um suadouro, um escalda-pés... Olhe! até, se você quiser, eu...

Mas a porta abriu-se com violento empurrão, e uma mulher loura, gorda, vestida de seda amarela, precipitou-se no gabinete, espavorida, a soltar gritos. Vinha-lhe no encalço um sujeito idoso, cheio de corpo, o chapéu à ré, o olhar desvairado e convulso.

-Podes ir para onde quiseres, que eu não te deixo! berrava ele com fúria, a dardejar o guarda-chuva sobre as costas da perseguida. Esta corria de uma lado para outro, procurando escapar-lhe, mas o sujeito agarrou-a pelos cabelos e conseguiu arrebatá-la, levando os dois, aos trambolhões, tudo o que encontravam no caminho.

Em menos de um segundo era completa a desordem no gabinete. Caíram cadeiras; a mesa estremeceu com um encontrão e a saleira e duas garrafas perderam o equilíbrio e tombaram, varrendo copos e esmagando pratos. O guarda-chuva do sujeito havia com um só golpe espatifado os globos do candeeiro e reduzido um espelho a mil pedaços.

-Isto não tem jeito! gritou Paiva ao homem. -O senhor faz mal em invadir desta forma um gabinete ocupado!

Mas o invasor já não ouvia coisa alguma e acabava de sair aos pescoções com a sujeita.

Paiva atirou-se-lhe à pista, armado de uma garrafa. O gerente do hotel apareceu, porém, cortando-lhe o passo e pedindo-lhe, por amor de Deus que não fizesse caso, que deixasse lá os dois se esbordoarem à vontade!

-Era o costume! Acabariam por entender-se perfeitamente!

-O senhor então acha que isto é razoável?! perguntou Paiva furioso.

-Não, decerto!

E o gerente dava aos rapazes toda a razão: -Deviam estar maçados, mas que tivessem paciência! que desculpassem! Não fora possível evitar tão grande sensaboria: O Brás, em questões de mulheres, perdia sempre a cabeça! E ele não sabia que diabo de rabicho tinha o basbaque pelo demônio da Rita Baiana, que, de vez em quando, era aquilo!

-Pois que se vá enrabichar para o diabo que o carregue!

-Decerto, decerto! apoiava o gerente, procurando acalmar o estudante.

-Ajuste as suas contas onde quiser, menos nos gabinetes ocupados pelos outros! Arre!

-É exato! Os senhores têm todo o direito, mas por quem são, não façam caso! Não façam caso.

-E esta?! insistia Paiva. -Pois se a gente paga muito mais para ficar em liberdade, como o diabo há de admitir isto?!...

-Tem toda a razão! Tem toda a razão!... repetia o gerente, erguendo as cadeiras e apanhando do tapete os cacos de vidro.

Só então intervieram os outros rapazes. Amâncio, até aí, parecia colado à cadeira. Estava lívido e as pernas tremiam-lhe.

O gerente ia responder a todos, quando a porta se tornou a abrir, e Brás, ainda transformado pela comoção da briga, ofegante e pálido, quase sem poder falar, entre, dizendo -que ia pedir desculpa da grosseria por ele praticada há pouco.

-Mas estava possesso! Justificava-se ele. -Aquela não-sei-que-diga lhe fazia perder as estribeiras! Que o desculpasse, porque um homem em certas ocasiões nem se podia conter! Uma mulher, com quem já havia gasto para mais de dez contos de réis!... exclamava ele fora de si. Uma mulher «que erguera da lama» podia assim dizer! Uma desgraçada, que, antes de o conhecer, não podia ir a parte alguma por não ter um vestido capaz!... Uma miserável, que dantes, para matar a fome, precisava aviar encomendas de costura e se andar alugando na casa das modistas... Era duro! Pois não achavam?!...

Os estudantes meneavam a cabeça, afirmativamente.

-Ah! continuou o Brás. Aquelas contas tinham-se de ajustar na primeira ocasião em que ele a encontrasse com o tal troca-tintas! Ah! Já não podia! Era demais! Uf!

E passeava no gabinete, a empurrar com o pé os cacos esquecidos no chão, e a sorver o ar em grandes haustos, consoladamente, como se acabasse de alijar um peso da consciência.

As palavras do Brás tranqüilizaram os rapazes, cuja embriaguez parecia ter fugido com o susto. Simões chegou mesmo a rir do fato, jactando-se mais uma vez da sua eterna indiferença pelas mulheres! Com ele é que nunca haveria de suceder semelhante coisa!... afirmava.

Amâncio convidou Brás a beber, e vazou-lhe vinho num copo.

-Aquela descarada! resmungava o ciumento, examinando uma arranhadura que vinha de descobrir na mão direita. -Ela, porém, comigo está iludida! -ou me anda muito direitinha ou há de me ficar debaixo dos pés! Pedaço de uma ingrata!

E, voltando-se para o gerente, que acabava de entrar:

-O sujeitinho foi-se, hein?

-Ora!... respondeu aquele com um riso servil. -Ganhou logo a rua e... por aqui é o caminho! Ela é que, pelos modos, ficou bem convidada! Meteu-se no quarto a chorar.

-Pois que chore na cama, que é lugar quente! Não fosse ordinária! Faça lá o que bem entender, mas, com os diabos! não enquanto estiver comigo! Vá divertir-se com o boi! Sebo!

E passando logo em seguida para um tom de voz calma e amiga, disse baixo ao gerente:

-Veja de quanto foi o prejuízo e faça-me uma conta à parte.

Pediu ainda uma vez desculpa aos rapazes, afiançou que eles tinham um criado na Ladeira da Glória, número tanto, e saiu, sempre às voltas com a sua arranhadura da mão direita.

Amâncio quis condenar o fato, mas Paiva observou-lhe que aquilo se dava todos os dias no Rio de Janeiro.

-Eu já não estranho, disse. -Falta de educação!...

-Bem, meus senhores, são horas de eu me ir também chegando, advertiu Coqueiro, erguendo-se e enfiando o paletó.

Simões fez igual movimento e declarou que o acompanhava.

-Então, que é isto, já? exclamou Amâncio, querendo detê-los.

-É. Está se fazendo tarde, respondeu Coqueiro, a consultar o relógio. -Três horas.

-Impossível! negou Amâncio.

Era exato.

E Coqueiro, já de chapéu na cabeça e guarda-chuva debaixo do braço, apertou-lhe a mãos com as duas, dizendo que folgava em extremo haver travado relações com ele e que o esperava, sem falta, no domingo. Simões fez igualmente as suas despedidas, e os dois saíram a conversar sobre o quanto poderia custar a Amâncio aquele almoço.

-Também que diabo ficamos nós fazendo aqui? lembrou Paiva, quando se viu a sós com o amigo. -Paga isso e vamo-nos embora. Queres tu ir até lá a casa?...

-Mas eu já estou há muito tempo na rua... considerou Amâncio.

-E o que tem isso?!... Deves contas de ti a alguém?! Ora essa!

-É que Campos pode reparar!...

-Pois que repare! Manda plantar batatas o tal Campos! Tu não és nenhum caixeiro dele... Eu, no teu caso, nem ficava ali mais um dia! Que necessidade tens agora de passar às sopas de um negociante, e sujeitar-te a regulamentos comerciais? É de mau gosto estar hospedado em casa de negócio! Olha! Se quiseres, muda-te lá para a república. Sempre é outra coisa morar com rapazes! Aprende-se!

O criado, a quem já tinham pedido a conta, entrou com uma pequena salva na mão e foi, instintivamente, depô-la em frente de Amâncio.

-Espere, disse este, tirando dinheiro do bolso. E entregou-lhe uma nota de cem mil-réis.

O moço saiu correndo.

-Quanto foi? desejou saber Paiva.

-Oitenta e cinco mil-réis, respondeu o outro.

-Oitenta e cinco mil-réis! Oh! que grande ladroeira!

E logo que o criado voltou com o troco:

-Tomem, faça o favor de dizer em que se gastaram aqui oitenta e cinco mil-réis... Salvo se vossemecês metem também na conta o que quebrou Brás!

-Não senhor! Eu só cobrei os copos, que já estavam partidos antes do rolo.

-Que enorme ladroeira! insistia Paiva, a sacudir a cabeça.

-Deixa lá! aconselhou Amâncio, puxando-o para fora.

Precisava andar e tomar fresco. Aqueles gabinetes eram um forno -sentia-se mal.

-É que não posso ver extorquir desta forma o dinheiro de ninguém! disse Paiva indignado.

E principiou a fazer as contas pelo que se lembrava de ter vindo à mesa.

Amâncio o puxou de novo:

-Deixa lá isso, homem!

-Nada! Pelo menos hei de vingar-me aqui em alguma coisa!

O criado havia saído. Paiva Rocha principiou a derramar o resto das garrafas no açucareiro, a emporcalhar o damasco da cortina e a cuspir dentro das chávenas.

Amâncio ria-se formalmente, mas, no íntimo, aborrecido:

-Agora podemos ir! disse afinal o outro. -Ao menos deixo-lhes um prejuízo!

E ainda meteu no bolso um paliteiro e duas colheres.

Lá na república precisava-se daqueles objetos! acrescentou rindo.

Já na rua, Amâncio reparou que a cabeça lhe estava muito pesada e queixou-se de suores frios. Paiva chamou um carro, e, uma vez dentro com o colega, mandou tocar para a Rua de Mata-Cavalos.

-Esqueceste aquilo de que falamos? perguntou em viagem ao companheiro.

Amâncio já não se lembrava.

Paiva respondeu, fazendo um sinal com os dedos.

-Ah! Quanto queres?

-Dá cá daí uns cinqüenta ou sessenta... depois te pagarei.

-Pois não, gaguejou Amâncio, passando-lhe três notas de vinte mil-réis.




ArribaAbajo

- IV -

Amâncio chegou à república muito indisposto. Quase que não dava conta dos quatro lances de escada que a precediam.

Também foi só chegar e atirar-se à primeira cama, gemendo e resbunando ao peso de uma grande aflição. Estava mais branco do que a cal da parede; o suor escorria-lhe por todo o corpo; respirava com dificuldade, a abrir a boca e a retorcer os olhos.

-Então? disse Paiva, batendo-lhe no ombro.

-Mal! respondeu Amâncio, sem levantar a cabeça, que deixara cair sobre o peito. E com um gesto pediu água.

-Isso passa! afiançou o colega, entregando-lhe o púcaro cheio. Estás é com um formidável pifão.

E riu-se.

-Eu quero vomitar! exclamou Vasconcelos, apressado pela agonia, e mal teve tempo de erguer o rosto.

-És um fracalhão! ponderou o companheiro, amparando-o pela testa -Que diabo! quem não pode com o tempo não inventa modas!

Amâncio não respondia: os engulhos vinham-lhe uns sobre os outros.

-Ai! ai! gemia oprimido.

-Ora que tipo! disse Paiva, atirando-o sobre os travesseiros. -Vê se consegues dormir! Isto não é nada!

E narrou um caso idêntico que experimentara.

Amâncio sentia-se um pouco mais aliviado, continuava, porém, a suar frio; tinha a cabeça completamente ensopada e não dispunha de forças para coisa alguma. Os olhos fechavam-se-lhe com um entorpecimento pesado de sono. Pediu mais água. E, depois de a tomar, deu a entender que era preciso que o despissem e descalçassem.

Paiva entrou a tirar-lhe a roupa, safou-lhe com dificuldade as botinas, porque as meias estavam suadas.

Amâncio, muito prostrado, mole, a virar-se de uma para outra banda, aiava sempre. Afinal sossegou, parecia adormecido; mas, ergueu-se logo, com ímpeto, e começou a vomitar de novo, sem dizer palavra.

-Que pifão! reconsiderava o colega, encarando-o com as mãos cruzadas atrás.

-Homem! Vê se lhe dás um pouco de amônia! lembrou do fundo do quarto uma voz arrastada e um pouco fanhosa.

Só então Amâncio percebeu que ali, a seis ou sete passos distante dele, estava um rapaz magro, muito amarelo, em ceroulas e corpo nu, estendido numa cama, a ler, todo preocupado, um grosso volume que tinha sobre o estômago. Parecia deveras ferrado no seu estudo, porque até aí não dera fé do que se lhe passava em derredor.

-Olha! disse ao Paiva. -Creio que está acolá, sobre a mesa, por detrás do Comte. É um frasquinho quadrado, com rolha de vidro.

Dito isto, recolheu-se de novo à leitura, como se nada houvesse sucedido.

Amâncio serenou de todo com algumas gotas de amoníaco em um copo d'água, e afinal pegou no sono profundamente.

Só acordou no dia seguinte, quando o sol já entrava pela única janela do quarto.

Sentia a boca amarga e o corpo moído. Assentou-se na cama e circunvagou em torno os olhos assombrados, com a estranheza de um doido ao recuperar o entendimento.

O sujeito magro da véspera lá estava no mesmo sítio; agora, porém, dormia, amortalhado a custo num insuficiente pedaço de chita vermelha.

Do lado oposto, no chão, sobre um lençol encardido e cheio de nódoas, a cabeça pousada num jogo de dicionários latinos, jazia Paiva, a sono solto, apenas resguardado por um colete de flanela. Mais adiante, em uma cama estreita, de lona, viam-se dois moços, ressonando de costas um para outro, com as nucas unidas, a disputarem silenciosamente o mesmo travesseiro.

O quarto respirava todo um ar triste de desmazelo e boêmia. Fazia má impressão estar ali: o vômito de Amâncio secava-se no chão, azedando o ambiente; a louça, que servira ao último jantar, ainda coberta de gordura coalhada, parecia dentro de uma lata abominável, cheia de contusões e roída de ferrugem. Uma banquinha, encostada à parede, dizia com o seu frio aspecto desarranjado que alguém estivera aí a trabalhar durante a noite, até que se extinguira a vela, cujas últimas gotas de estearina se derramavam melancolicamente pelas bordas de um frasco vazio de xarope Larose, que lhe fizera as vezes de castiçal. Num dos cantos amontoava-se roupa suja; em outro repousava uma máquina de fazer café, ao lado de uma garrafa de espírito de vinho. Nas cabeceiras das três camas e ao comprido das paredes, sobre jornais velhos e desbotados, dependuravam-se calças e fraques de casimira; em uma das ombreiras da janela umas lunetas de ouro, cuidadosamente suspensas num prego. Por aqui e por ali pontas esmagadas de cigarro e cuspalhadas ressequidas. No meio do soalho, com o gargalo decepado, luzia uma garrafa.

A luz franca e penetrante da manhã dava a tudo isso um relevo ainda mais duro e repulsivo; o coração de Amâncio ficou vexado e corrido, como se todos os ângulos daquela imundície o espetassem a um só tempo. Ergueu-se cautelosamente, para não acordar os outros, e foi à janela. O vasto panorama lá de fora estremulhou-lhe os sentidos com o seu aspecto.

A república era no alto, sobre três andares, dominando uma grande extensão. Viam-se de cima as casas acavaladas umas pelas outras, formando ruas, contornando praças. As chaminés principiavam a fumar; deslizavam as carrocinhas multicores dos padeiros; as vacas de leite caminhavam com o seu passo vagaroso, parando à porta dos fregueses, tilintando o chocalho; os quiosques vendiam café a homens de jaqueta e chapéu desabado; cruzavam-se na rua os libertinos retardios com os operários que se levantavam para a obrigação; ouvia-se o ruído estalado dos carros d'água, o rodar monótono dos bondes. Mais para além pressentiam-se os arrabaldes pelo verdejar das árvores; ao fundo encadeavam-se cordilheiras, graduando planos esfumados de neblina. O horizonte rasgava-se à luz do sol, num deslumbramento de cores siderais. E lá muito longe, quase a perder de vista, reverberava a baía, laminando as águas na praia.

Embaixo, na área da casa, uma ilhoa, de braços nus, a cabeça embrulhada em um lenço de ramagens, lavava a um tanque de cimento romano; um homem, em mangas de camisa, varrias as pedras do chão, cantarolando com os dentes cerrados, para não deixar cair a ponta do cigarro. Numa janela, um sujeito, de óculos azuis, areava os dentes e com a boca atirava duchas sobre um papagaio, cuja gaiola pousava no balcão. Dentro de um cercado cacarejavam galinhas, mariscando na terra; e o homem do lixo entrava e saía, familiarmente, com o seu gigo às costas.

Um relógio da vizinhança bateu seis horas.

Amâncio reparou que estava com muita sede, mas não descobria a talha d'água. Afinal encontrou-a, num sótão que havia ao lado do quarto e onde só se entrava vergando o corpo.

Bebeu até à saciedade.

Depois lavou o rosto e a boca. E com a idéia de sair antes que os mais acordassem, vestiu-se apressado, contou o dinheiro que lhe restava, lamentando interiormente o que na véspera esbanjara; viu no chão uma escova de fato, apanhou-a, escovou a roupa, e, todo cautela e ponta de pé, abriu a porta e ganhou a escada.

Entre o primeiro e o segundo andar encontrou uma rapariguita de alguns dezesseis anos, que subia com dois copos de leite, um em cada mão, fazendo mil esforços para não os entornar. Ao ver Amâncio ela emperrou, cosendo-se à parede, a fim de lhe dar passagem, e olhou-o de esguelha, com medo de afastar a vista dos copos.

Era bonitinha, corada, os cabelos castanhos apanhados na nuca. Parecia portuguesa.

Amâncio, ao passar por ela, estacou também, a fitá-la. De repente lançou-lhe as mãos.

A pequena, muito contrariada, fez uma cara de raiva e gritou -que a soltasse! que não fosse atrevido!

E desviava o corpo, querendo defender-se, mas sem se descuidar dos copos.

-Mau! mau! siga o seu caminho e deixe os outros em paz!

Amâncio não fez caso e conseguiu beijá-la a pura força. Derramaram-se algumas gotas de leite.

-Maus raios te partam! clamou a rapariga, assim que o viu pelas costas. -Peste ruim de um estudante!

A peste ruim do estudante saiu, e só interrompeu a caminhada para entrar num botequim, onde pediu café. Então, defronte ao espelho, pôde admirar o belo estado em que se achava.

-Como diabo havia de apresentar-se naquele gosto em casa do Campos?... Também que triste idéia a sua -de se enterrar numa casa comercial! Não! com certeza estava mal hospedado... nem lhe convinha permanecer ali! -Oh! Bastava já de ser governado, de ser vigiado a todo instante! -Já era tempo de gozar um pouco de liberdade.

E enquanto sorvia compassadamente o café, recapitulava na memória todo o seu passado de terror e submissão: -Antes de entrar para a escola de primeira letras, nunca lhe deixaram transpor a porta da rua ou a porta do quintal; os outros meninos de sua idade tinham licença para empinar papagaios, brincar entrudo, queimar fogos pelo tempo de São Pedro; -ele não! depois caiu nas garras no professor -aquela fera! Nunca saía de casa, sem levar atrás de si um escravo para o vigiar, para o impedir de fazer travessuras e obrigá-lo a caminhar com modo, direito, sério como um homem. Afinal escapou ao professor, sim! mas continuou sob a dura vigilância do pai, do tio e das tias; todos o rondavam; todos o traziam «num cortado». Só na fazenda da avó conseguia desfrutar alguma liberdade, mas essa mesma não era completa e, ai! durava tão pouco tempo!...

Agora compreendia a razão pela qual, no mês de férias que passava aí, se tornava tão travesso e tão maligno -é que naturalmente queria desforrar o resto do ano, que levava coagido em casa do pai. De sua infância eram aqueles meses privilegiados a coisa única que lhe merecia verdadeira saudade; o mais estrangulavam tristes reminiscências de castigos, de sustos, apoquentações de todo o gênero.

A própria idéia de sua mãe nunca lhe vinha só; havia sempre ao lado da venerada imagem alguma recordação enfadonha e constrangedora. -As poucas vezes em que estavam juntos, o pai chegava no melhor da intimidade e Ângela se retraía, cortando em meio as carícias do filho, como se as recebera de um amante, em plena ilegalidade do adultério.

E a memória desses beijos a furto e medrosos, a memória desses carinhos cheios de sobressalto, relembravam-lhe às vezes que ele em pequeno se metia no quarto dos engomados, de camaradagem com as mulatas da casa que aí trabalhavam conjuntamente.

Era quase sempre pelo intervalo das aulas, no meio do dia, quando o calor quebrava o corpo e punha nos sentidos uma pasmaceira voluptuosa.

Em casa do velho Vasconcelos havia, segundo o costume da província, grande número de criadas; só no «quarto da goma» como lá se diz, reuniam-se quatro ou cinco. Umas costuravam; outras faziam renda, assentadas no chão, defronte da almofada de bilros; outras, vergadas sobre a «tábua de engomar», passavam roupa a ferro.

Amâncio, quando criança, gostava de meter-se com elas, participar de suas conversas picadas de brejeirice, e deixar correr o tempo, deitado sobre as saias, amolentando-se ao calor penetrante das raparigas, a ouvir, num êxtase mofino, o que elas entre si cochichavam com risadinhas estaladas à socapa. Por outro lado, as mulatas folgavam em tê-lo perto de si, achavam-no vivo e atilado, provocavam-lhe ditos de graça, mexiam com ele, faziam-lhe perguntas maliciosas, só para «ver o que o demônio do menino respondia». E, logo que Amâncio dava a réplica, piscando os olhos e mostrando a ponta da língua, caíam todas num ataque de riso, a olharem umas para as outras com intenção.

De resto, ninguém melhor do que ele para subtrair da despensa um punhado de açúcar ou de farinha, sem que Ângela desse por isso.

-O demoninho era levado!

E assim se foi tornando mulherengo fraldeiro, amigo de saias.

A mãe, quando ouvia da varanda as risadas da criadagem, gritava logo pelo filho.

-Já vou, mamãe! respondia Amâncio.

-Lá estava o diabrete do menino às voltas com as raparigas no quarto da goma! Oh! que birra tinha ela disso!...

Mas Amâncio não se corrigia. É que ali ao menos não chegaria o pai.

À vezes, quando ia passear à casa de alguma família conhecida, arranjava-se com as moças, gostava de acompanhá-las por toda parte, fazendo-se muito dócil e amigo de servir. Como era ainda perfeitamente criança e bonitinho, elas lhe faziam festas e davam-lhe doces, figurinos de papel recortado e caixinhas vazias. Algumas lhe perguntavam brincando se ele as queria para mulher, se queria «ser seu noivo». Amâncio respondia que sim com um arrepio. E daí a pouco ficavam as moças muito surpreendidas quando ao demônio do menino lhes saltava ao colo e principiava a beijar-lhes sofregamente o pescoço e os cabelos ou a meter-lhes a língua pelos ouvidos.

-Credo! disse uma delas em situação idêntica. -Que menino! Vá para longe com as suas brincadeiras!

Outras, porém, lhe achavam muita graça e eram as primeiras a puxar por ele.

De todos os brinquedos o que Amâncio em pequeno mais estimava, era o de «fazer casa». A casa fazia-se sempre debaixo de uma mesa, com um lençol em volta, figurando as paredes. Uma de suas primas, filha do protetor Campos, ou alguma menina que estivesse passando o dia com ele, representava de mulher; Amâncio de marido. A menina ficava debaixo da mesa enquanto ele andava por fora, «a ganhar a vida» até que se recolhia também à casa, levando compras e preparos para o almoço. Amarravam um lenço em duas pernas da mesa, fingindo rede, e aí metiam uma boneca, que era o filho.

Gostava infinitivamente dessa brincadeira. Mas um belo dia veio abaixo o lençol que servia de parede, e desde então Ângela não consentiu que o filho se divertisse a fazer casa.

Muitos anos depois, aos quinze, notou-se incomodado por um padecimento estranho. Não disse nada à família e procurou um homem que havia na província com grande habilidade para curar moléstias, viessem elas até do mau-olhado e do feitiço.

Santo homem! O mal do nosso estudante desapareceu como por milagre; o que, aliás, não impediu que tivesse daí a pouco de voltar à cama, debaixo de um novo e mais formidável carregamento que o ia varrendo ao cemitério. Foram esses os três anos de sezões a que se referia, quando pela primeira vez falou ao Campos.

E Amâncio, quanto mais rememorava tudo isso, quanto mais remexia no cinzeiro do passado, tanto mais impacientes lhes rosnavam os sentidos e tanto mais desabrida lhe vinha a necessidade de gozar, de viver em liberdade, de recuperar o tempo que levou sopeado e preso.

-Enfim! concluiu ele erguendo-se distraído e abandonando o café -a casa do Campos não me convém! de forma alguma!

Mas a idéia de Hortênsia, que, para se apresentar só esperava o termo daquelas considerações, invadiu-lhe o espírito e foi a pouco e pouco se estendendo e se esticando por todo ele, até ocupá-lo inteiramente com a sua imagem branca e palpitante, como uma bela mulher que desperta e, entre voluptuosos espreguiçamentos, alonga pela cama os seus membros ainda entorpecidos de sono.

E ele, quando deu por si, estava a fazer conjecturas sobre o amor de Hortênsia:

-Seria ardente ou calmo? Meigo ou arrebatador? Que atitude tomaria a bela mulher nos momentos supremos de ventura? Quais seriam as suas palavras, as frases do seu delírio?...

E, aguilhoado pelos sentidos, perdia-se em cálculos infames, em degradantes suposições; tentando, embalde, adivinhar-lhe os pensamentos, penetrar-lhe nos escaninhos do coração e devassar-lhe todos os segredos do corpo.

-Oh! Como seria?...

E seu desejo vil começava a despi-la, peça por peça, até deixá-la completamente nua.

-Mas não! não havia possibilidade! contrapunha-lhe a razão. -Tudo aquilo era loucura, simples loucura! Hortênsia não podia ser mais séria, mais amiga do marido! Qual fora a palavra, o gesto, que lhe dera a ele o direito de pensar em semelhante coisa?... Sim! que fizera a pobre senhora para autorizá-lo a tanto?... Onde estava o fundamento daqueles sonhos, pelos quais queria trocar a liberdade, os seus prazeres, tudo, e ficar encurralado em uma casa comercial, com obrigação de entrar às tantas, comer às tantas, e guardar todas as conveniências ao lado de uma gente impossível!?... Ora! que se deixasse de asneiras! Não fosse tolo!

Hortênsia Campos aparecia-lhe então como em verdade o era: carinhosa e altiva, afável para todos igualmente, sem dar a nenhum o direito de supor uma preferência. Amâncio já não a tinha descomposta defronte dos olhos, mas respeitosamente restituída ao seu vestidinho de chita, às suas botinas de duraque, quase sem salto, e às suas tranças honestamente penteadas.

-Mudava-se! Que dúvida! Sim! Uma vez que Hortênsia nada mais era do que uma senhora virtuosa, que diabo ficava ele fazendo ali?... Não seria decerto pelos bonitos olhos do Campos!

***

À oito horas, quando entrou em casa tinha já resolvido não ficar ali nem mais um dia. -Era fazer as malas e bater quanto antes a bela plumagem!

Mas também, se por um lado não lhe convinha ficar em companhia do Campos, por outro, a idéia de se manter na república do Paiva não o seduzia absolutamente. Aquela miséria e aquela desordem lhe causavam repugnância. Queria a liberdade, a boêmia, a pândega -sim senhor! tudo isso, porém, com um certo ar, com uma certa distinção aristocrática. Não admitia uma cama sem travesseiros, um almoço sem talheres, e uma alcova sem espelhos. Desejava a bela crápula, -por Deus que desejava! mas não bebendo pela garrafa e dormindo pelo chão de águas-furtadas! -Que diabo! -não podia ser tão difícil conciliar as duas coisas!...

Pensando deste modo, subiu ao quarto. Sobre a cômoda estava uma carta que lhe era dirigida; abriu-a logo:

«Querido Amâncio.

Desculpe tratá-lo com esta liberdade; como porém, já sou amigo, não encontro jeito de lhe falar doutro modo. Ontem, quando combinamos no Hotel dos Príncipes a sua visita para domingo, não me passava pela cabeça que hoje era dia santo e que fazíamos melhor em aproveitá-lo; por conseguinte, se o amigo não tem algum compromisso, venha passar a tarde conosco, que nos dará com isso um grande prazer. Minha família, depois que lhe falei a seu respeito, está impaciente para conhecê-lo e desde já fica à sua espera.»

Assinava «João Coqueiro» e havia o seguinte pós-escrito: «Se não puder vir, previna-mo por duas palavrinhas; mas venha.»

Amâncio hesitou em se devia ir ou não. Coqueiro, com a sua figurinha de tísico, o seu rosto chupado e quase verde, os seus olhos pequenos e penetrantes, de uma mobilidade de olho de pássaro, com a sua boca fria, deslabiada, o seu nariz agudo, o seu todo seco, egoísta, desenganado da vida, não era das coisas que mais o atraíssem. No entanto, bem podia ser que ali estivesse o que ele procurava -um cômodo limpo, confortável, um pouquinho de luxo, e plena liberdade. Talvez aceitasse o convite.

-Esta gente onde está? perguntou, indicando o andar de cima a um caixeiro que lhe apareceu no corredor com a sua calça domingueira, cor de alecrim, o charuto ao canto da boca.

-Foram passear ao Jardim Botânico, respondeu aquele, descendo as escadas.

-Todos? ainda interrogou Amâncio.

-Sim, disso o outro entre os dentes, sem voltar o rosto. E saiu.

-Está resolvido! pensou o estudante. -Vou à casa do Coqueiro. Ao menos estarei entretido durante esse tempo!

E voltando ao quarto:

-Não! É que tudo ali em casa do Campos já lhe cheirava mal!... Olhassem para o ar impertinente com que aquele galeguinho lhe havia falado!... E tudo mais era pelo mesmo teor. -Uma súcia de asnos!

Começou a vestir-se de mau humor, arremessando a roupa, atirando com as gavetas. O jarro vazio causou-lhe febre, sentiu venetas de arrojá-lo pela janela; ao tomar uma toalha do cabide, porque ela se não desprendesse logo, deu-lhe tal empuxão que a fez em tiras.

-Um horror! resmungava, a vestir-se, furioso sem saber do quê.

-Um horror!

E, quando passou pela porta da rua, teve ímpetos de esbordoar o caixeiro, que nesse dia estava de plantão.




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- V -

João Coqueiro era fluminense e fluminense da gema. Nascera na Rua do Parto em uma das casas de seus pais, quando estes eram ricos.

Que o foram. Viera-lhes a fortuna do avô materno, um português ambicioso e econômico, que a conquistara no tráfico dos negros africanos; ao morrer legou à filha, ainda criança, para cima de quinhentos contos de réis. Esta, mais tarde, foi solicitada em casamento pelo homem a quem pertenceu para sempre -Lourenço Coqueiro, os maiores bigodes que nesse tempo negrejavam na Corte do Império.

Lourenço, todavia, era já um destroço quando casou. Do que fora e do que possuíra, apenas lhe restava, além do bigode, o hábito de não fazer coisa alguma; nos melhores grupos citava-se, entretanto, o seu ar distinto de fidalgo e falava-se com boa vontade de seus dotes pessoais e do seu belo espírito eternamente galhofeiro.

O casamento representou para ele uma tábua de salvação. A mulher adorava-o; tinha-o na conta de um ente superior; jamais vira homem tão lindo de rosto, tão insinuante no falar, tão delicado de maneiras.

Mas, pouco depois de casado, Lourenço começou a desgostá-la: era um nunca terminar de festas; a casa vivia num rebuliço constante; os intervalos das pândegas não davam sequer para a trazer arrumada e limpa. Quando não fossem bailes, eram passeios, piqueniques, manhãs no campo, dias passados na Tijuca ou no Jardim Botânico. Lourenço, às vezes, voltava ébrio, a cachimbar no fundo do carro, e a fazer carícias piegas à mulher, que ao lado, chorava silenciosamente. Ela, coitada! tinha muito medos sempre que o via nesse gosto, porque o demônio do homem dava então para brigar, mexia com quem passava, metia a bengala nos cocheiros e quebrava com os pés tudo que encontrasse no caminho.

Tiveram o primeiro filho -Janjão. Criancinha feia, dessangrada, cheia de asma. Até aos cinco anos parecia idiota: passavam os dois a babar-se debaixo da mesa de jantar ao pé de um moleque encarregado de vigiá-la.

A mãe desfazia-se em mil cuidadozinhos com a criança; era esta o seu enlevo, a sua vida. Mas o pai não estava por isso: -temia que o rapaz lhe saísse um maricas. Desejava-o forte, decidido!

E, com enormes sobressaltados da mulher, tomava-o pelas perninhas magras e suspendia-o no ar.

-Os homens assim é que se fazem, minha filha! dizia ele a rolar o pequeno entre as mãos.

E não admitia igualmente que o menino tivesse outra cama que não fosse um enxergão. Não o queria calçado, nem vestido e, em vez de estar ali a babar-se defronte do moleque, seria muito melhor que fosse correr para a chácara.

-Ele pode machucar-se, Lourenço, cair! observava a esposa timidamente.

-Pois deixa-o cair! deixa-o machucar-se! Quanto mais trambolhões levar em pequeno, melhor, depois se agüentará nas pernas!

-Mas ele é tão fraquito, coitadinho!

-Por isso mesmo! por isso mesmo precisamos torná-lo forte! E previno-te de que já é mais que tempo de acabar com esse insuportável tratamento de «Janjão!» Aqui não há janjões! Meu filho chama-se João! Tem o nome do avô, um herói, um fidalgo! Não desses que hoje se fazem aí a três por dois, mas dos legítimos, dos bons! -Entendes tu? -dos bons!

E inflamava-se, como sempre que se referia à sua procedência. Vinha, com efeito, de fidalgos: era sobrinho bastardo de um conde português.

À mesa exigia que o filho lhe ficasse ao lado e obrigava-o a comer bifes sangrentos e tomar vinho sem água.

Um dia a esposa revoltou-se:

-Pois tu vais dar conhaque ao menino, Lourenço?! exclamou ela escandalizada.

-Deixa-o cá comigo, senhora! Eu sei o que faço!

-Olha que isso pode sufocá-lo, homem de Deus!

-Qual sufocar o quê! Por essas e outras é que, para os estrangeiros, não passamos de «uns macacos»!

A mulher que se desse ao trabalho de saber como se fazia na Europa a educação física das crianças! Queria que ela visse a criação que tiveram D. Pedro e D. Miguel! E eram príncipes! -Entendia? -eram príncipes legítimos!

E, voltando-se para o filho, gritou, arregalando os olhos e soprando os bigodes, que já então se faziam cinzentos:

-Tu não queres ser um homem forte, João?! Queres ser um descendente degenerado de teus avós?!

Janjão olhou o pai com medo, e abriu a chorar.

-Aí tens o que procuravas! disse a mulher, correndo para junto do filho. -Assustar desse modo a pobre criança!

Janjão chorava mais.

-Isso! Isso é o que há de pôr pra diante! berrou Lourenço encolerizando-se. Beba já esse conhaque, menino!

-Deixa a criança!... suplicava a mãe. -Olha como treme o pobrezinho!... o coração parece que lhe quer saltar!...

E tomou-o ao colo.

-É melhor mesmo que leves daí esse mono! Tira-mo dos olhos! Já estou vendo a boa lesma que isso há de dar! -Mães ignorantes!...

Quando Janjão principiou a crescer, o pai levava-o a toda a parte, dava-lhe charutos, obrigava-o a tomar cerveja nos cafés. Foi, porém, uma campanha conseguir uma vez que o pequeno se assentasse por dois minutos na sela de um cavalo em que Lourenço havia chegado do seu passeio favorito a Botafogo.

Janjão, trêmulo da cabeça aos pés, agarrava-se com ambas as mãos nas crinas do animal e berrava pela mãe de toda a força de que era capaz. Tiveram de desmontá-lo para não o verem rebentar ali mesmo.

-Ora, como diabo havia de sair este mono! lamentava o pai desesperado. -Ninguém acreditaria que aquele choramingas era seu filho!

Não foram mais felizes com as primeiras tentativas de natação ou as primeiras experiências de atirar ao alvo: Janjão, só com a vista do mar ou a presença de um revólver, desatava a soluçar e a berrar pela mãe.

-Não! Isso agora hás de ter paciência! resmungava Lourenço. -Tu ao menos ficarás sabendo dar um tiro! Sou eu quem te assegura!

E, com muita sutileza, comprou para o filho uma bela pistolinha de brinquedo que estalava fulminantes, e depois uma outra, mais séria, que admitia carga de pólvora.

Janjão era, porém, cada vez mais refratário a tudo isso. Preferia ficar a um canto da sala, entretido a vestir os seus bonecos ou a fazer de cozinheiro. A mãe por esse tempo dava-lhe uma irmãzinha, que se ficou chamando Amélia, e desde aí o maior encanto do menino era tomar conta do caixão em que estava a pequerrucha toda envolvida em panos, e não consentir que as moscas lhe pousassem na moleira.

Um dia, o pai, descendo ao quintal, encontrou-o muito empenhado com o moleque a armar um oratório. Iam fazer procissão: o andor e o santo estavam prontos; uma sombrinha enfeitada de franjas, faria as vezes de pálio.

Lourenço ficou desesperado, e com dois pontapés reduziu tudo aquilo a frangalhos.

-Era o que lhe faltava! -que o basbaque do filho, além de tudo, lhe saísse carola!

E quando subiu, disse terminantemente à mulher que não admitia que o filho corrompesse o espírito com as patacoadas daquela ordem.

-Se me constar, bradou ele ao pequeno -que me tornas a fazer igrejinhas, racho-te de meio a meio, pedaço de uma lesma! Ora vamos a ver! Cai noutra, e terás uma sapeca que te deixa a paninhos de sal! Experimenta e verás!

Ele queria lá filhos devotos! Era só o que lhe faltava! Era só! Aquele menino parecia o seu castigo! parecia a sua maldição!

Aos doze anos Janjão entrou para o internato de Pedro II. A princípio custou-lhe bastante compreender as lições, mas, como era muito estudioso e muito paciente, os professores em breve o elogiavam. Tinham-no em boa estima pelo seu espírito católico, pela docilidade de seu gênio e pelo irrepreensível de sua conduta. João Coqueiro, de fato, fora sempre um menino sossegado metido consigo, respeitador dos mestres e dos preceitos estabelecidos, devoto e extremamente cuidadoso de seus livros e de suas obrigações. Ninguém lhe ouvia palavra mais áspera ou gesto menos conveniente, e às vezes entrava pela hora do recreio grudado aos livros sem os querer deixar.

O pai via-o então com orgulho. Profetizava já que ali estivesse um sábio.

Tirou distinção nos primeiros exames. A mãe quase morre de alegria. Lourenço quis solenizar o acontecimento com um banquete correlativo; mas as suas condições de fortuna já não eram as mesmas; o dinheiro ia minguando de um modo assustador. Se lhe viesse a falhar uma especulação, em que se havia lançado ultimamente, como recurso extremo -Adeus! estaria tudo perdido! a ruína seria inevitável!

Fez-se a festa, não obstante, e o menino voltou aos estudos.

Mas Lourenço principiava a sofrer gravemente de uma lesão cardíaca. Tinha ataques nervosos, sufocações, e caía, de vez em quando, em fundas melancolias, durante as quais se enterrava no quarto, sem poder suportar a presença de ninguém, muito frenético, cheio de apreensões, com grande medo de morrer.

A mulher assustava-se: o marido não lhe parecia o mesmo homem. Estava acabado; crescera-lhe o ventre, o nariz tomara uma vermelhidão gordurosa, o cabelo encanecera totalmente, a cabeça despira-se, a pele do rosto fizera-se opaca e suja. Comprazia-se agora ir à noite pelas igrejas, embrulhado na sua sobrecasaca russa, apoiando-se à grossa bengala de cana-da-índia, os pés à vontade em sapatos rasos. Ajoelhava-se a um canto da nave, em cima das pedras, e aí permanecia longamente, a ouvir os sons lamentosos do órgão, com o rosto descansado sobre as mãos que se cruzavam no castão da bengala.

Às vezes chorava.

Seu estômago irritado já não queria os alimentos; era preciso enganá-lo de instante a instante com um pouco de noz-vômica ou carbonato de magnésia. Não se lhe podia suportar o hálito.

Quando recebeu a notícia de que a sua especulação falhara, estava no quarto, não conseguiu sair do lugar em que se achava. Uma onda vermelha subira-lhe à cabeça: os objetos principiaram a dançar-lhe em torno dos olhos; o chão fugia-lhe debaixo dos pés. Tentou ainda dar alguns passos, mas cambaleou e caiu afinal sobre as pernas embambecidas -como uma trouxa.

Morreu no dia seguinte.

A família ficou pobre. Foi preciso vender o melhor de dois prédios que restavam, para saldar as dívidas do defunto.

A viúva principiou então a tomar encomendas de costura e de engomagem.

Isso, porém, não bastava; era necessário, a todo o transe, que o menino continuasse nos estudos. Em tal aperto, lembrou-se a pobre mãe de admitir hóspedes; a casa que ficou tinha bastante cômodos e prestava-se admiravelmente para a coisa.

Vieram os primeiros inquilinos; arranjaram-se fregueses para o almoço e jantar, e o órfão prosseguiu nas suas aulas.

Dentro de pouco tempo, o sobrado da viúva de Lourenço era a mais estimada e popular casa de pensão do Rio de Janeiro.

Foi nela que Janjão se fez homem. Aí o viram bacharelar-se e aí se matriculou na Escola Central. A irmã respeitava-o como a um pai.

Amélia, por conseguinte, cresceu em uma -casa de pensão. Cresceu no meio da egoística indiferença de vários hóspedes, vendo e ouvindo todos os dias novas caras e novas opiniões, absorvendo o que apanhava da conversa dos caixeiros e estudantes irresponsáveis; afeita a comer em mesa redonda, a sentir perto de si, ao seu lado, na intimidade doméstica -homens estranhos, que não se preocupavam com lhe aparecer em mangas de camisa, chinelas e peito nu.

Ainda assim deram-lhe mestres. Aprendera a ler e a escrever, tocava já o seu bocado de piano e -se Deus não mandasse o contrário -havia de ir muito mais longe.

Um novo desastre, veio, porém, alterar todos esses planos: a viúva de Lourenço, depois de dois meses de cama, sucumbiu a uma pneumonia.

João Coqueiro estava então no segundo ano da Politécnica; Amélia a fazer-se mulher por um daqueles dias; parentes -não os tinham... capitais -ainda menos... Como, pois, sustentar a casa de pensão?... Oh! Era preciso despedir os hóspedes, alugar o prédio, abandonar os estudos e obter um emprego.

Arranjou-o de fato -na estrada de ferro de Pedro II. Coqueiro dissolveu logo a casa de pensão e foi mais a irmã residir em companhia de uma francesa, muito antiga no Brasil, e que durante longo tempo se mostrou amiga íntima da defunta.

Chamava-se Mme. Brizard.

Era mulher de cinqüenta anos, viúva de um afamado hoteleiro, que lhe deixara muitas saudades e dúzia e meia de apólices da dívida pública.

***

Estava ainda bem disposta, apesar da idade. Gorda, mas elegante com uns vestígios assaz pronunciados de antiga formosura. Tinha os olhos azuis e os cabelos pretos, no tipo peculiar ao meio-dia da França. Carne opulenta e quadril vigoroso.

Notava-se-lhe a boca, com um desses lábios superiores que formam como duas camadas; o que aliás não obstava a que Mme. Brizard tivesse um sorriso gracioso, e ainda tirasse partido da brancura privilegiada de seus dentes. Mas a sua riqueza e a sua vaidade era o pescoço, um grande pescoço pálido, cheio de ondulações macias a fartas.

Nascera em Marselha.

Depois de certa idade tornara-se muito caída para o romantismo: desde então apreciava uma noite de luar; dava-se à leitura prolongada de poetas tristes; fazia-se mais infeliz do que era de fato, e contava a todos a sua história. -Um romance!

Aos quinze anos saíra da família pelo braço de um diplomata russo, que a idolatrava; -ia casada. O russo tresandava a genebra e recendia sarro de cachimbo; ela abominou-o logo, abominou-o entre uma enorme corte de adoradores fascinados por sua beleza e sequiosos por um de seus sorrisos; era, porém, honesta: -conservou-se pura e fiel ao marido.

Mme. Brizard quando chegava a este ponto de romance, abaixava os olhos, levando lentamente o leque à boca para disfarçar um suspiro.

Enviuvou aos vinte anos; o russo não lhe deixara filhos; -voltou à família. Aí lhe apareceu então Mr. Brizard, homem de talento, político e escritor, grande republicano. A subida de Luís Felipe ao trono atirou com ele ao Brasil, onde se fez hoteleiro.

Tiveram aqui três filhos; duas mulheres e um homem. Este era o último e muito se distanciava das irmãs em idade; quando lhe faltou o pai tinha apenas sete anos.

A filha mais velha representava a glória da família: unira-se a um ministro plenipotenciário; a outra, coitada, não casou mal, porém com a morte do marido e de um filhinho que lhe ficara, tornou-se muito nervosa, histérica, e até meio pateta; agora vivia e mais o irmão em companhia da mãe.

***

Nessas condições, a proposta de João Coqueiro pareceu vantajosa a Mme. Brizard -Ele que trouxesse a irmã, a bela Amelita, e tudo se arranjaria pelo melhor.

Juntaram-se. Mme. Brizard revelou pronto interesse pelos dois hóspedes, principalmente pelo «Coqueirinho», como lhe chamavam em família. Fazia-se muito carinhosa com ele, queria ser a sua «segunda mãe», apreciava-lhe o talento, e andava a mostrar os versos do rapaz a todas as pessoas que apareciam à noite, para as torradas.

Reuniam-se em volta da mesa de jantar; iam buscar o loto e jogavam. Coqueiro lia a um canto, ou ficava no quarto, a cachimbar soturnamente, olhando o fumo e cismando na vida.

Mme. Brizard fazia perfeitamente as honras da casa; dava-se por mulher de muito espírito e de uma educação peregrina. Se havia então alguém que a visitasse pela primeira vez -a coisa ia mais longe. Desenfiava os seus melhores ditos, contava, como por incidente, as suas anedotas de mais efeito, falava gravemente de sua filha casada com o ministro e exibia todos os seus conhecimentos literários.

Que os tinha, inegavelmente. Lamartine lá estava no quarto dela, sobre o velador, encadernado com esmero. Mas não desdenhava os poetas brasileiros e lia Camões. Uma sua amiga, muito chegada, dizia que lhe ouvira páginas inéditas de um livro sobre o Brasil -livro para fazer «sensação»!

Mme. Brizard confirmava este boato, sorrindo com modéstia.

João Coqueiro, esse, não sorria, ao contrário, parecia cada vez mais triste; passava tempos sem aparecer a ninguém, depois que largava o trabalho. Por mais de uma vez houve quem lhe visse lágrimas nos olhos.

A francesa, que se achava então no seu período mais agudo de sentimentalismo, respeitava muito as melancolias do pobre moço, falava a respeito dele com a voz baixa, cheia de um acatamento religioso. Só lhe passava pelo quarto na pontinha dos pés, e, quando o triste hóspede saía para o emprego, ela corria a lhe arrumar a mesa, com desvelo, ordenando os livros, reunindo os papéis esparsos, lendo, sobre a pasta, os versos começados na véspera.

Uma tarde, acharam-se os dois um defronte do outro, assentados sozinhos na varanda da sala de jantar, que dava para um lugar plantado de bananeiras. O sol descia lentamente no horizonte por uma escadaria de fogo; as cigarras estridulavam no fundo da chácara; a noite ia emanando.

Coqueiro olhava à toa para isso, absorto e mudo; depois, suspirou e escondeu o rosto nas mãos, Mme. Brizard passou-lhe um braço no ombro.

-Coqueirinho! que é isso?...

Queria saber o motivo daquelas tristezas. Começou a interrogá-lo, com a voz untuosa, cheia de amor.

Ele então falou abertamente de suas aspirações, de seus estudos interrompidos, de sua incompatibilidade com o emprego que exercia.

-Sou muito caipora! exclamava. -Sou muito caipora!

E chorava.

Mme. Brizard procurou consolá-lo, falou do futuro, lembrou a idade de Coqueiro e aconselhou-o a que não desanimasse.

Foi daí que lhes veio a idéia do casamento.

Mme. Brizard era muito mais velha do que ele, mas talvez por isso mesmo, fosse a esposa que melhor lhe convinha.

-Ah! ela estava no caso de fazê-lo feliz, porque o amava! Oh! se o amava! Seria talvez uma loucura; talvez viessem a censurá-la; -ela mesma não sabia explicar o que aquilo era, como aquilo acontecera! Mas dava a sua palavra de honra, jurava pela memória de seu pai -em como nunca sentira por ninguém o que então sentia por Coqueiro! Ah! sabia perfeitamente que bem poucos compreenderiam a sua paixão! Sabia que muitos haveriam de ridicularizá-la, haveriam de escarnecê-la; ela própria, até ali, nunca imaginara que se pudesse amar tanto!... Durante a sua vida nunca se sentiu tão possuída por uma idéia, tão escrava, tão vencida, como naquele instante! Contudo, se desejava o casamento não era decerto pelo fato de possuir um homem. -Oh! não! -deixava isso para as almas grosseiras... e Coqueiro bem sabia o quanto seu coração tinha de espiritual e de puro!... Desejava aquele enlace para licitamente poder aplicar todo o seu esforço, toda a sua coragem, todas as suas diligências, na conquista de um bom futuro para o esposo. Queria casar-se, porque entendia que isso se tornava necessário à felicidade de Coqueiro. Toda a sua vida, todos os seus recursos, dela, seriam empregados para o mesmo fim: -facultar ao marido os meios de estudar, os meios de crescer, desenvolver-se, luzir. Alcançasse ele um nome, uma posição brilhante, uma atitude gloriosa, e tudo o mais lhe seria indiferente. Que lhe importava o resto?... Se ela, porventura, fosse esquecida fosse desprezada, se viesse mesmo a falecer dali a pouco tempo -que valia tudo isso, se o objeto de seus extremos era ditoso e vivia cercado de admiração e de aplauso?...

E Mme. Brizard, depois de falar na posteridade e depois de convencer ao Coqueiro de que aquele casamento era um dever sagrado, pois que não realizá-lo equivalia a privar o Brasil de uma de suas glórias futuras e ao século um de seus vultos talvez mais grandiosos, Mme. Brizard, depois disso, entrou nos pormenores de seu plano.

-Uma vez casados, ressuscitariam a antiga casa de pensão. Ela dispunha de algum dinheiro; o outro dispunha de um prédio: -era restaurá-lo e dar começo à vida! Coqueiro abandonaria o emprego e voltava de novo aos estudos; ela encarregava-se da gerência da casa e, nesse ponto, deixando de parte a modéstia, supunha-se mais habilitada que ninguém.

Até já tinha projetos, já tinha as suas idéias sobre a instalação da casa!... Sentia-se disposta a trabalhar por vinte!... Coqueiro havia de ver! Seu estabelecimento seria uma casa de pensão modelo! Coisa para dar «uma fortuna e render à Amelinha um bom casamento. -Um casamentão!» Ah! Ela, a francesa, sabia perfeitamente como tudo isso se arranjava no Brasil.

E concluiu, jurando ainda uma vez, que -para si não queria nada! que só desejava a felicidade do Coqueiro e de sua irmã, dele.

Era assim que entendia o amor!

Três meses depois estavam casados.

Boquejou-se alegremente sobre isso na Escola Politécnica. Os amigos de Coqueiro acharam ocasião de rir, e a tal mulher do ministro plenipotenciário, a glória da família, escreveu à mãe uma carta carregada de recriminações, declarando que nunca lhe perdoaria semelhante loucura. -Loucura de que para o futuro haveria Mme. Brizard de se arrepender muito seriamente.

Os recém-casados fecharam, porém, ouvidos a tais palavras e cuidaram de ir pondo em prática os seus novos planos de vida.

Meteram mãos à obra. Coqueiro deixou o emprego, contratou um empreiteiro para restaurar o seu velho prédio da Rua do Resende, e a casa de pensão de Mme. Brizard (como teimosamente insistiam em lhe chamar a mulher), surgiu ameaçadora, escancarando para a população do Rio de Janeiro a sua boca de monstro.




ArribaAbajo

- VI -

Foi justamente três anos depois disso que Amâncio chegou ao Rio de Janeiro.

A casa de Mme. Brizard estava então no seu apogeu; de todos os lados choviam hóspedes, entre os quais se notavam pessoas de importância. Pelo tempo das câmaras reuniam-se ali alguns deputados da província, homens sérios, em geral gordos, o ar discreto, um sorriso infantil à superfície dos lábios e um fraseado imaginoso, cheio de poesia. Fazia-se política no salão, depois da comida, em chinelas de tapete, ao remansado soprar do fumo da Bahia.

A dona da casa gozava para eles de muita consideração; só um ou outro, mais atirado à pilhéria, ousava atribuir a algum dos seus «nobres colegas» os sorriso de Mme. Brizard.

Outros entusiasmavam-se por ela.

-Não! diziam. -Aquela mulher devia ter sido um pancadão no seu tempo! Tudo que era pescoço e ombros ainda se podia ver! Quem dera a muitas novas um colo daqueles!...

De uma feita, um deputado de Minas, criatura baixa, socada, rosto curto, poucas palavras e muita barba, empalmou-lhe a cintura, quando a pilhou sozinha na sala de jantar.

A francesa abaixou os olhos, afastou-se dignamente e foi logo dizer ao marido que era necessário por aquele homem na rua.

-O Moura! Por quê?

-Não te posso dizer por que... mas afianço que o Moura não nos convém!...

-Fez-te alguma coisa?

-Faltou-me ao respeito!

-Hein?!

-Agarrou-me a cintura e ter-me-ia beijado o pescoço, se eu lho permitisse.

Esta última parte da queixa fazia mais uma honra ao espírito inventivo de Mme. Brizard do que ao seu espírito de verdade; ela, porém, não resistia ao gostinho de falar no seu rico pescoço sempre que se oferecia ocasião.

E o Moura teria posto os ossos na rua, se a própria Mme. Brizard não intercedesse por ele no dia seguinte, alegando que o pobre homem havia na véspera carregado um pouco mais no virgem.

Também foi só. Nunca mais, que constasse, palpitou ali sombra de escândalo, e a famosa casa de pensão continuava a sustentar a melhor aparência deste mundo. Até se dizia à boca cheia que, por mais de uma vez, já se hospedaram verdadeiras celebridades, e eram todos de acordo em que no Rio de Janeiro ninguém fazia espetada de camarão tão saborosa como as da simpática irmãzinha do João Coqueiro, a Amelita. Uma verdadeira especialidade. Constava até que vinha gente de longe ao cheiro daqueles camarões.

A casa tinha dois andares e uma boa chácara no fundo. O salão de visitas era no primeiro. -Mobília antiga, um tanto mesclada; ao centro, grande lustre de cristal, coberto de filó amarelo. Três largas janelas de sacada, guarnecidas de cortinas brancas, davam para a rua; do lado oposto, um enorme espelho de moldura dourada e gasta, inclinava-se pomposamente sobre um sofá de molas; em uma das paredes laterais, um detestável retrato a óleo de Mme. Brizard, vinte anos mais moça, olhava sorrindo para um velho piano, que lhe ficava fronteiro; por cima dos consolos vasos bonitos de louça da Índia, cheios de areia até à boca.

Imediato à sala, com uma janela igual àquelas outras, havia um gabinete, comprido e muito estreito, onde o Coqueiro tinha a sua biblioteca e a sua banca de estudos. Via-se aí uma pasta cheia de papéis, um tinteiro e um depósito de fumo, representando o busto de um barbadinho; ao fundo, uma conversadeira de palhinha, encostada à parede, por debaixo de um pequeno caixilho de madeira com o retrato de Vítor Hugo em gravura.

Seguia-se o aposento de Mme. Brizard e mais do marido, onde também dormia o menino, o César, que teria então doze anos; logo depois estava o quarto de Amelinha e da tal viúva histérica, Léonie, a quem a família só tratava por «Nini».

Vinha depois a grande sala de jantar, forrada de papel alegre; nas paredes distanciavam-se pequenos cromos amarelados, representando marujos de chapéu de palha, tomando genebra, e assuntos de conventos -frades muito nédios e vermelhos refestelados à mesa ou a brincarem com mulheres suspeitas. Um guarda-louça expunha, por detrás das vidraças, os aparelhos de porcelana e os cristais; defronte -um aparador cheio de garrafas, ao lado de outro em que estavam os moringues.

Ainda havia um corredor, a despensa, a cozinha, uma escada que conduzia à chácara, outra ao segundo andar e mais três alcovas para hóspedes, todas do mesmo tamanho e numeradas.

A numeração dos quartos principiava aí nesses três para continuar em cima. Em cima é que estava o grande recurso da casa, porque Mme. Brizard dividira todo o segundo pavimento em oito cubículos iguais, ficando quatro de cada lado e o corredor no centro. Os da frente davam janelas para a rua e os do fundo para a chácara. As paredes divisórias eram de madeira e forradas de papel nacional.

João Coqueiro, quando saiu do Hotel dos Príncipes na manhã do almoço, ia preocupado; Simões, que caminhava à sua esquerda um pouco sacudido pelos vinhos, em vão tentou, repetidas vezes, puxá-lo à palestra; o outro respondia apenas por monossílabos e, na primeira esquina, despediu-se e correu logo para casa.

Ao chegar foi direto à mulher, dizendo-lhe em voz baixa, antes de mais nada:

-Olha cá, Loló...

E encaminhou-se para o quarto. Mme. Brizard largou o que tinha entre as mãos e seguiu-o atentamente.

-Sabes? disse ele, sem transição, assentando-se ao rebordo da cama. -É preciso arranjarmos cômodo para um rapaz que há de vir por aí domingo.

-Um rapaz! Mas tu sabes perfeitamente que os quartos acham-se todos ocupados. Se tivesses prevenido... o n.º 2 ainda ontem estava vazio... Mas quem é?

-Há de se arranjar, seja lá como for! disse o Coqueiro.

-Mas quem é?... insistiu Mme. Brizard.

-É um achado precioso! Ainda não há dois meses que chegou do Norte, anda às apalpadelas! Estivemos a conversar por muito tempo: -é filho único e tem a herdar uma fortuna! Ah! Não imaginas: só pela morte da avó, que é muito velha, creio que a coisa vai para além de quatrocentos contos!...

Mme. Brizard escutava, sem despregar os olhos de um ponto, os pés cruzados e com uma das mãos apoiando-se no espaldar da cama.

-Ora, continuou o outro gravemente. -Nós temos de pensar no futuro de Amelinha... ela entrou já nos vinte e três!... se não abrirmos os olhos... adeus casamento!

-Mas daí... perguntou a mulher, fugindo a participar da confiança que o marido revelava naquele plano.

-Daí -é que tenho cá um palpite! explicou ele. -Não conheces o Amâncio!... A gente leva-o para onde quiser!... Um simplório, mas o que se pode chamar um simplório.

Mme. Brizard fez um gesto de dúvida.

-Afianço-te, volveu Coqueiro -que, se o metermos em casa e se conduzirmos o negócio com um certo jeito, não lhe dou três meses de solteiro!

A francesa torcia e destorcia em silêncio uma de suas madeixas de cabelo preto, que lhe caíam na testa.

-E ele terá fraco pelas mulheres? perguntou afinal.

O estudante respondeu com um gesto de convicção, e acrescentou:

-Negócio decidido! A questão é arranjar-lhe o cômodo, e já! Tu -fala com franqueza à Amelinha; a mim não fica bem... Olha, até me lembrou dar-lhe o gabinete... Hein? Por pouco tempo... é só enquanto não se desocupa algum dos quartos...

-O gabinete?... mas tão atravancado... e tão apertadinho!...

-Dá-se-lhe um jeito! Arranja-se! contanto que o nosso homem não deixe de vir; porque, Loló, lembra-te de que é «um filho único, com muito dinheiro e tolo!» Hoje não se encontra disso a cada passo!... Se perdermos a ocasião, duvido que apareça outra tão boa! Enfim, resumiu ele -eu já fiz o que tinha a fazer; o resto é contigo! Fala à Amelinha, mas fala-lhe com jeito, tu sabes! -pinta-lhe a coisa como ela é!... e não te esqueça de arranjar o gabinete. Até logo, tenho ainda que ir à rua, mas volto daqui a pouco.

Nessa mesma tarde Mme. Brizard entendeu-se com a cunhada. Falou-lhe sutilmente no «futuro», disse-lhe que «uma menina pobre, fosse quanto fosse bonita, só com muita habilidade e alguma esperteza poderia apanhar um marido rico».

E tocando-lhe intencionalmente no queixo:

-Anda lá, minha sonsa, que sabes disso tão bem como eu!...

Amélia riu, concentrou-se um instante e prometeu fazer o que estivesse no seu alcance, para agradar ao tal sujeitinho.

Ardia, com efeito, por achar marido, por se tornar dona de casa. A posição subordinada de menina solteira não se compadecia com a sua idade e com as desenvolturas do seu espírito. Graças ao meio em que se desenvolveu, sabia perfeitamente o que era pão e o que era queijo; por conseguinte as precauções e as reservas, que o irmão tomava para com ela, faziam-na sorrir.

Às vezes tinha vontade de acabar com isso. «Que diabo significavam tais cautelas?... Se a supunham uma toleirona, enganavam-se -ela era muito capaz de os enfiar a todos pelo ouvido de uma agulha!»

-Agora, por exemplo, neste caso do tal Amâncio, que custava ao Coqueiro explicar-se com ela francamente?... Por que razão, se ele precisava de seu auxílio, não a procurou e não lhe disse às claras: «Fulana, domingo vem aqui um rapaz, nestas e nestas condições: vê se o cativas, porque ali está o noivo que te convém!» Mas, não senhor! -meteu-se nas encolhas e entregou tudo nas mãos da mulher!

-Ora! disse consigo a rapariga. -Isto até nem sei que me parece! Ou bem que somos, ou bem que não somos!... Se Janjão queria alguma coisa de mim, era falar com franqueza e deixar-se de recadinhos por detrás da cortina!

E Amélia, quanto mais refletia no caso, tanto mais se revoltava contra a reserva do irmão.

-Ele já devia conhecê-la melhor! pelo menos já devia saber que aquela que ali estava era incapaz de cair em qualquer asneira; aquela que não «dava ponto sem nó». Outra, que fosse, quanto mais -ela, que conhecia os homens, como quem conhece a palma das próprias mãos! -Ela, que vira de perto, com os seus olhos de virgem, toda a sorte de tipos! -ela, que lhes conhecia as manhas, que sabia das lábias empregadas pelos velhacos para obter o que desejam e o modo pelo qual se portam depois de servidos! -Ela! tinha graça!

-Ela, que até ali dera as melhores provas de sagacidade e de esperteza; já «convencendo» tal freguês remisso que não queria pagar, nem a mão de Deus Padre, o aluguel do quarto pelo preço cobrado; já respondendo a tal credor, que em tal época, veio receber tal conta; já sofismando tal compromisso; já resolvendo tal aperto, uma vez em que nem a própria Mme. Brizard sabia que fazer! E ainda a suporiam criança?... ainda teriam medo de qualquer asneira de sua parte?... Pois então que se lembrassem da questão do Pereirinha!

Pereirinha foi um dos primeiros hóspedes de Coqueiro. Rapaz bonito, perfumado, muito prosa. Amélia representava para ele a mesma inocência em pessoa, só lhe falava de olhos baixos, voz sumida, o ar todo candura e vexame. Pereirinha jurava-lhe uma paixão sem bordas, fazia-lhe versos, tocava-lhe nos pés por baixo da mesa, e, depois do jantar, quando os mais se alheavam no egoísmo da saciedade, ele a fitava tristemente, pedindo, com os olhos fosse lá o que fosse. Pois bem, ela a tudo isso correspondia com muito agrado, submetia-se resignadamente a todos esses requisitos do namoro vulgar, mas... um belo dia em que o pedaço de asno do Pereirinha quis ir adiante, Amélia aconselhou-o sorrindo a que primeiro a fosse pedir em casamento ao irmão.

E, quando se convenceu de que o tipo não queria casar, disse-lhe abertamente: «Ora, meu amigo, outro ofício!»

E Coqueiro sabia de tudo isso, tão bem como a própria Amélia -para que, pois, aqueles escrúpulos ridículo e amoladores?...

***

Só à noite, à costumada palestra em torno da mesa de jantar, lembraram-se de que o dia seguinte era de grande gala.

-Ó diabo! considerou Coqueiro. -E eu que podia ter dito ao Amâncio para vir amanhã! Escusávamos de esperar até domingo. -Ora, senhores! onde diabo tinha eu a cabeça!...

-Queres saber de uma coisa? disse, tomando a mulher de parte. -Vai tu e mais Amelinha arranjar o gabinete, que eu escrevo uma carta ao nosso homem; pode ser que amanhã mesmo o tenhamos por cá. Anda, vai! O segredo das grandes coisas está às vezes nestas pequenas deliberações!

E enquanto Mme. Brizard aprontava com Amélia o gabinete, escreveu ele a carta que Amâncio encontrou sobre a cômoda.

Não descansaram mais um instante. Desde pela manhã do dia seguinte andava a casa em grande alvoroço. Foi preciso varrer, escovar, remover do gabinete os móveis que o atravancavam. Preparou-se uma bela caminha, coberta de lençóis claros e cheirosos; estendeu-se um tapete no chão; colocou-se a um canto o lavatório, encheu-se o jarro que ficou dentro da bacia, ao lado da toalha. E feito isto, puseram-se todos à espera de Amâncio.

Ele, até aquelas horas, não havia declarado por escrito se iria ou não, logo -era provável que fosse.

E com efeito, pela volta do meio-dia, um tílburi parou à porta, e Amâncio, muito intrigado com a numeração das casas, entrou no corredor, a olhar para todos os lados.

Um moleque, que ficara de alcatéia à espera dele correu logo ao primeiro andar, gritando que «o moço já estava aí».

-Cala a boca, diabo! respondeu Mme. Brizard em voz abafada e discreta.

Coqueiro ergueu-se prontamente do lugar onde se achava e atirou-se com espalhafato para o corredor, alegre e expansivo, como se recebera, depois de longa ausência, um velho amigo da infância.

-Bravo! exclamava, sacudindo os braços e correndo ao encontro de Amâncio. -Bravo! Assim é que entendo os amigos! Não te perdoaria se faltasses!

E com muita festa, a apressá-lo:

-Vem entrando para a sala de jantar! Estás em tua casa! Entra! Entra!

Amâncio deixava-se conduzir, em silêncio. Já não tinha o mesmo tipo mal ajeitado com que se apresentara ao Campos; agora, um terno de casimira cinzenta, comprado nessa mesma manhã a um alfaiate da Rua do Ouvidor, dava-lhe ares domingueiros de janotismo. Vinha de barba feita, as unhas limpas, os dentes cintilantes, o cabelo dividido ao meio, formando sobre a testa duas grandes pastas lustrosas e do feitio de uma borboleta de asas abertas. Os olhos não denunciavam os incômodos da véspera, e de todo ele respirava um cheiro ativo de sândalo.

-Estimei bem que me escrevesses... disse atravessando o corredor, ao lado do Coqueiro. Não tinha para onde ir hoje. Campos está de passeio com a família lá para o tal Jardim Botânico.

-Pois eu estimei ainda mais que viesses. Entra!

Penetraram na sala de jantar. Estava tudo muito bem arrumado e muito limpo; não se podia desejar melhor aspecto de felicidade caseira; em tudo -a mesma aparência austera e calma de uma velha paz inquebrantável e honesta. Mme. Brizard, assentada à cabeceira da mesa, parecia ler atentamente um livro que tinha aberto defronte dos olhos; mais adiante trabalhava Amelinha em uma máquina de costura, a cabeça vergada, os olhos baixos, numa expressão tranqüila de inocência.

Logo que Amâncio apareceu na varanda, Mme. Brizard desviou os olhos do livro, deixou cair as lunetas do nariz e foi recebê-lo solicitamente; a outra limitou-se a cumprimentá-lo com um modesto e gracioso movimento de cabeça.

-Dr. Amâncio de Vasconcelos! gritou o Coqueiro, empurrando o colega para junto das senhoras. E acrescentou, designando-as: -Minha mulher e minha irmã...O amigo já sabe que são duas criadas que aqui tem às suas ordens!

Amâncio agradecia, desfazendo-se em reverências e apertando as mãos de ambas, todo vergado para a frente, as faces incendiadas pela comoção daquela primeira visita.

-Põe-te à vontade, filho! disse-lhe Coqueiro, com ar quase de censura. -Olha uma cadeira. Senta-te!

E tirando-lhe a bengala e o chapéu das mãos: -Aqui estás em tua casa! Minha gente não é de cerimônias!

Entretanto Mme. Brizard o tomava a si com perguntas: -Há quanto tempo havia chegado; de que província era filho; se tinha saudades da família; se gostava do Rio de Janeiro; que tal achava as fluminenses, e se já estava embeiçado por alguma?

E vinham os risos exagerados e sem pretexto, de quando se deseja agradar visitas.

O provinciano respondia a tudo, inclinando a cabeça, procurando armar bem a frase e fazendo esforços para se mostrar de boa educação. Ia-lhe já fugindo o primitivo acanhamento e as palavras acudiam-lhe à ponta da língua, sonoras e fáceis.

-Não tenho desgostado da Corte, dizia a brincar com a sua medalha da corrente -mas, confesso, esperava melhor... Lá de fora, sabe V. Excia? a coisa parece outra. Fala-se tanto do Rio!... Pintam-no tão grande, tão bonito, que o pobre provinciano, ao chegar aqui, logo sofre uma terrível decepção!... Pelo menos comigo foi assim!

-O Sr. Vasconcelos já visitou os arrabaldes?... perguntou Mme. Brizard muito delicadamente.

-Ainda não, minha senhora. Apenas fui a Botafogo, de passagem, para entregar uma carta; mas, tenciono percorrê-los, todos, na primeira ocasião.

E Amâncio olhava a espaços Amélia, que parecia muito preocupada com o trabalho.

-Pois suspenda esse juízo a respeito do Rio, até que conheça os arrabaldes, acrescentou a dona da casa. -Só por eles se poderá julgar o quanto é bela e grandiosa esta cidade! Oh! A natureza do Brasil! não há coisa nenhuma que se lhe possa comparar!...

E fitando-o, depois de um gesto de entusiasmo:

-Para um espírito contemplativo e apaixonado, essa esplêndida natureza vale por todas as maravilhas da velha Europa!

-V. Excia. parece gostar muito do Brasil...

-Habituei-me a isso com o meu segundo marido... ele era louco por este país! Quantas vezes, depois que caiu doente e que os médicos lhe recomendaram que viajasse, quantas vezes não o aconselhei a que liquidasse aqui os seus negócios e fôssemos viver para a Europa... Já não havia sombra de perseguição política (porque foi uma perseguição política que o atirou no Brasil), não havia razões, por conseguinte, para não voltar à pátria, não havia razões para se deixar morrer aqui, como morreu!... Pois bem: sabe o senhor o que ele me respondia sempre? Dizia-me: «Bebê.» (Era assim que me tratava). «Bebê, compreendes um homem apaixonado por uma mulher, a ponto de não a poder deixar um só instante? compreendes um escravo, um cão?... assim sou eu por esta natureza. Não a posso abandonar! -estou apaixonado, louco!» Entretanto, -veja o Dr.! -Hipólito, aqui nunca foi devidamente apreciado e compreendido; nunca recebeu a mais insignificante prova de gratidão do governo deste país, que ele idolatrava daquele modo! Trabalhou muito para o Brasil, e de graça! Estão aí as empresas, os jornais, as sociedades que fundou! Pois o governo -nem uma palavra, nem uma consideração, nem um «muito obrigado!». Se o pobre homem não tivesse posto de parte algum dinheiro, ficava eu na miséria, perfeitamente na miséria!

Amâncio principiava a desconfiar que aquela francesa era nada menos que um formidável «cacete».

-Uma verdadeira paixão!... insistiu ela. -Uma paixão que o prendia aqui! porque, senhores, Hipólito, se quisesse, podia representar um invejável papel na Europa! Tinha lá o seu lugar seguro, e...

Foi interrompida pelo César que entrara de carreira mas estacara de repente ao dar com Amâncio. Coqueiro havia se afastado para mandar servir alguma coisa.

-Este é o meu César, meu último filho, elucidou Mme. Brizard, e gritou logo: -Vem cá, César! Vem falar com este moço!

César aproximou-se, vagarosamente, com o silêncio de quem observa um estranho.

-Lindo menino! considerou Amâncio, puxando-o para junto de si.

-E não calcula o senhor que talento! afirmou a mãe, em voz baixa e grave, estendendo a cabeça para o lado da visita: -Uma coisa extraordinária!

-Já fez uma poesia! Acrescentou João Coqueiro que, nessa ocasião, junto ao aparador, enchia copos de cerveja.

-Mas, coitado! prosseguiu Mme. Brizard -não se pode puxar por ele; sofre muito do peito! O médico recomendou que não o fatigassem por ora; é preciso esperar que ele se desenvolva mais um pouco.

-É pena! disse Amâncio com tristeza, afagando a cabeça de César.

-Nunca vi uma criatura para aprender as coisas com tanta facilidade! Nada vê, nada ouve que não decore logo! que não repita -tintim por tintim!

-Sim?... perguntou Amâncio, com um gesto cerimonioso de pasmo.

-E então para a música?... Aprendeu a escala em um dia! E já toca variações ao piano... tudo de ouvido!

-É admirável! repetia Amâncio, para dizer alguma coisa. Deve estar muito adiantado nos estudos!...

-Ah! estaria decerto, se pudesse estudar, mas, coitado, ainda não sabe ler!

-Ah! fez Amâncio, sem achar uma palavra.

-Mas, também, quando principiar...

-Irá longe! concluiu Amâncio, satisfeito por ter enfim uma frase. -Deve ir muito longe!

E afiançava que, pela fisionomia de César, logo se lhe adivinhava a inteligência.

-Esta fronte não engana! Dizia a suspender-lhe o cabelo da testa. -E é travesso?...

Mme. Brizard soltou uma exclamação: -Não lhe falasse nisso! Só ela sabia o capetinha que ali estava!

César abaixou o rosto com uma risada, e Amâncio declarou que «a travessura era própria daquela idade!».

E, porque o moleque se aproximava com uma bandeja na mão, cheia de copos, ergueu-se para oferecer um a Mme. Brizard e outro a Amélia.

-Muito agradecida, disse esta, sorrindo. -Sou um pouco nervosa; a cerveja faz-me mal.

-Ah! V. Excia. é nervosa?

-Um pouco. E quem neste mundo não sofre mais ou menos dos nervos?...

E riu de todo, mostrando a sua dentadura provocadora.

Amâncio considerou intimamente que a achava deliciosa. -Um mimo!

E, de fato, Amélia nesse dia estava encantadora. Vestia fustão branco, sarapintado de pequenas flores cor-de-rosa. O cabelo, denso e castanho, prendia-se-lhe no toutiço por um laço de seda azul, formando um grande molho flutuante, que lhe caía elegantemente sobre as costas. O vestido curto, muito cosido ao corpo, eluvava-lhe as formas, dando-lhe um ar esperto de menina que volta do colégio a passar férias com a família.

Era muito bem feita de quadris e de ombros. Espartilhada, como estava naquele momento, a volta enérgica da cintura e a suave protuberância dos seios, produziam nos sentidos de quem a contemplava de perto uma deliciosa impressão artística.

Sentia-se-lhe dentro das mangas do vestido a trêmula carnadura dos braços; e os pulsos apareciam nus, muito brancos, chamalotados de veiazinhas sutis, que se prolongavam serpeando. Tinhas as mãos finas e bem tratadas, os dedos longos e roliços, a palma cor-de-rosa e as unhas curvas como o bico de um papagaio.

Sem ser verdadeiramente bonita de rosto, era muito simpática e graciosa. Tez macia, de uma palidez fresca de camélia; olhos escuros, um pouco preguiçosos, bem guarnecidos e penetrantes; nariz curto, um nadinha arrebitado, beiços polpudos e viçosos, à maneira de uma fruta que provoca o apetite e dá vontade de morder. Usava o cabelo cofiado em franjas sobre a testa, e, quando queria ver ao longe, tinha de costume apertar as pálpebras e abrir ligeiramente a boca.

Amâncio, bebendo aos goles distraídos a sua cerveja nacional, via e sentia tudo isso, e, sem perceber, deixava-se tomar das graças de Amélia. Já lhe preava a carne o mordente calor daquele corpo; já o invadiam o perfume sombroso daquele cabelo e a luz embriagadora daqueles olhos; já o enleava e cingia a doce sensibilidade elástica daquela voz, quebrada, curva, cheia de ondulações, como a cauda crespa de uma cobra.

E, enquanto palavreava abstraído com Mme. Brizard e com Coqueiro, percebia que alguma coisa se apoderava dele, que alguma coisa lhe penetrava familiarmente pelos sentidos e aí se derramava e distendia, à semelhança de um polvo que alonga sensualmente os seus langorosos tentáculos. E, sempre dominado pelos encantos da rapariga, alheava-se de tudo que não fosse ela; queria ouvir o que lhe diziam os outros, prestar-lhes atenção, mas o pensamento libertava-se à força e corria a lançar-se aos pés de Amélia, procurando enroscar-se por ela, à feição do tênue vapor do incenso, quando vai subindo e espiralando, abraçado a uma coluna de mármore.

Coqueiro fazia não dar por isso e, ao topar com os olhos os da mulher, entre eles corria um raio de satisfação, mais ligeiro que um telegrama.

Amâncio, entretanto, quase nada conversou com Amélia; apenas trocaram palavras frias de assuntos sem interesse. Mas seus olhares também se encontravam no ar, e logo se entrelaçavam, prendiam-se e confundiam-se no calor do mesmo desejo.

Naquela mulher havia incontestavelmente o que quer que fosse, difícil de determinar, que não obstante, se entranhava pela gente e, uma vez dentro, crescia e alastrava. O seu modo de falar, as reticências de seus sorrisos, o langor púdico e ao mesmo tempo voluptuoso de seus olhos que espiavam, inquietos, através do franjado das pestanas; a doçura dos seus movimentos ofídicos e preguiçosos, o cheiro de seu corpo; tudo que vinha dela zumbia em torno dos sentidos, como uma revoada de cantáridas.

Vinham-lhe preocupações. Começava a imaginar como seria a sua existência naquela casa, se ele, porventura, resolvesse a mudança; calculava situações; encontros inesperados com Amélia nos corredores desertos; manhãs frias, de chuva, em que fosse preciso gazear as aulas, e deixar-se ficar ali, a «prosar» naquela varanda, ao lado dela, a encher o tempo, a dizer «tolices».

-Que tal seria tudo isso?... Seria tão bom que valera a pena suportar às caceteações de Mme. Brizard e sofrer a convivência do tal Coqueiro?... Seria tão bom que merecera a renúncia de sua liberdade, tão sacrificada ali quanto em casa do Campos? Não! não valia a pena!... Mas... Amélia?... quem sabe lá o que daria de si aquele ladrãozinho?...

E pensando deste modo, ergueu-se disposto a acompanhar Coqueiro, que insistia em lhe mostrar a casa.

Principiaram pela chácara.

-Olha. Isto aqui é como vês!... dizia o proprietário. -Boa sombra, caramanchões de maracujá, flores, sossego!... Bom lugar para estudo! E vai até o fundo. Vem ver!

Amâncio obedecia calado.

-Parece que se está na roça!... acrescentou o outro. -De manhã é um chilrear de passarinhos, que até aborrece! Quando aqui não houver fresco, não o encontrarás também em parte alguma! Cá está o terraço. -Sobe!

Subiram três degraus de pedra e cal.

-Vês?!... exclamou Coqueiro, parando em meio do pequeno quadrado de velhos tijolos. E, depois com as pernas abertas e um braço estendido:

-Creio que não se pode desejar melhor!

Desceram, em seguida, para visitar o banheiro, o tanque, o repuxo e outras comodidades que havia no quintal, e a cada uma dessas coisas -novas exclamações e novos elogios.

Subiram outra vez ao primeiro andar, pela cozinha. Um preto, de avental e boné de linho branco, à moda dos cozinheiros franceses, trabalhava ao fogão. Coqueiro exigiu que o amigo olhasse para aquele asseio; atentasse para a nitidez das caçarolas de metal areado, para a limpeza das panelas, para a fartura de água na pia.

-A Madame, dizia ele a rir-se, com ar interessado de quem deseja convencer -a Madame traz isto num brinco! Pode-se comer no chão!

E continuaram a revista da casa. Amâncio, porém, ia distraído, tinha a cabeça cheia de Amélia.

-Que dentes! pensava -e que cintura! que olhos!...

-É excelente! segredou-lhe Coqueiro, pondo mistério na voz. -Um serviço admirável!

-Hein?! exclamou o provinciano, voltando-se rapidamente para o colega.

-Cozinheiros daquela ordem encontram-se poucos no Rio! respondeu este ainda em segredo.

-Ah! o cozinheiro... disse Amâncio.

-Divino! acrescentou o outro.

E, mudando logo de tom:

-Cá está a despensa. Compramos tudo em porção do mais caro, mas também podes ver a fazenda! Tudo de primeira! Ah! Eu cá sou assim -mostro! Meus hóspedes não podem se queixar!

E destapava vivamente a lata das farinhas e dos feijões, mostrava o vinho engarrafado em casa, as mantas de carne-seca ressumbrando sal, o arroz, o café, e o resto.

-Tudo de primeira! repetia com entonação mercantil, a passar ao colega um punhado de feijões. -Tudo de primeira!

-É exato, resmungo Amâncio, sem ver.

Isto agora são quartos de hóspedes, enunciou Coqueiro seguindo adiante. -Aqui embaixo só temos três. Neste, disse mostrando o n.º 1, está Dr. Tavares, um advogado de mão-cheia; caráter muito sério!

No segundo declarou que morava o Fontes:

-Não era mau sujeito, coitado! Fora infeliz nos negócios: quebrara havia dois anos e ainda não tinha conseguido levantar a cabeça.

E abafando a voz:

-Dizem que ficou arranjado... não sei!... Paga pontualmente as suas despesas, mas é um «unha-de-fome», regateia muito, chora -vintém por vintém -o dinheiro que lhe sai das mãos! Está sempre com uma cara muito agoniada, sempre se queixando. E agora, vão ver: -furão como ele só; especula com tudo; tem o quarto cheio de fazendas, fitas e tetéias de armarinho; vende essas miudezas pelas casas particulares, e dizem que faz negócio. A mulher, uma francesa coxa, é empregada na Notre Dame e só vem a casa para dormir.

E, indicando o n.º 3.

-Aqui é o Piloto.

-Que Piloto? perguntou logo Amâncio.

-O Piloto, homem! Aquele repórter da Gazeta!

Amâncio não conhecia.

-Ora quem não conhece o Piloto! um rapaz tão popular. Um que anda sempre muito ligeiro, olhando para os lados, aos pulinhos, como um calango. Não conheces?!

Amâncio disse que saiba quem era -para acabar com aquilo.

-Bom hóspede! acrescentou o outro. -Também só aparece à noite: não incomoda pessoa alguma.

-Bem... disse Amâncio com um bocejo. São horas de ir-me chegando.

-Quê?! bradou Coqueiro. -Tu jantas conosco! Minha gente conta contigo... não te dispensamos! E demais, quero mostrar-te o resto da casa. Vem cá ao segundo andar.

O provinciano lembrou timidamente que isso podia ficar para outra ocasião; mas Coqueiro respondeu puxando-o pelo braço na direção da escada:

-Venha cá! Não seja preguiçoso!

Depois de subir, acharam-se em corredor estreito e oprimido pelo teto. Ao fundo uma janela de grades verdes coava tristemente a luz que vinha de fora. Lia-se nas portas, em algarismos azuis, pintados sobre um pequeno círculo branco, os números de 4 a 11.

-Aquilo tinha aspecto de casa de saúde... pensou Amâncio, com tédio. -Não devia ser muito agradável morar ali. Todos os quartos, entretanto, estavam tomados.

Coqueiro principiou logo, em voz soturna, a denunciar os competentes moradores: -N.º 4 -Campelo, um esquisitão, porém bom sujeito, de comércio; não comia em casa senão aos domingos e isso mesmo só de manhã. N.º 5 -Paula Mendes e a mulher; casal de artistas, davam lições e concertos de piano e rabeca; muito conhecidos na Corte. N.º 6 -Um guarda-livros; bom moço; tinha o quarto sempre muito asseadinho e à noite, quando voltava do trabalho, estudava clarineta. O n.º 7 era de um pobre rapaz português; doente: vivia embrulhado em uma manta de lã, por cima do sobretudo, e saía todas as manhãs a passeio para as bandas da Tijuca.

A porta do n.º 8 estava aberta e Amâncio viu, de relance, a cauda de uma saia que fugia para o interior do quarto. E logo uma voz aflautada, de mulher, gritou:

-Cora! Fecha essa porta!

-É uma tal Lúcia Pereira... segredou Coqueiro -mora aí com o marido, um tipo!

Estavam na casa há muito pouco tempo. Coqueiro não podia dizer ainda que tais seriam, porque só formava o seu juízo depois de paga a primeira conta.

O n.º 9 era do Melinho -uma pérola! Empregado na Caixa de Amortização; não comia em casa, mas, às vezes, trazia frutas cristalizadas para Mme. Brizard e Amelinha. Belo moço!

Coqueiro não se lembrava como era ao certo o nome do sujeito que ocupava o n.º 10: «Lamentosa ou Latembrosa, uma coisa por aí assim!» Ele tinha o nome escrito lá embaixo. -Mas que homem fino! delicadíssimo! um verdadeiro gentleman! E tocava violão com muito talento.

O n.º 11, que ficava justamente encostado à janela do corredor, pertencia a um excelente médico, Dr. Correia; estava, porém, quase sempre fechado, visto que o doutor só se utilizava do quarto para certos trabalhos e certos estudos, que, por causa das crianças, não podia fazer em casa da família. Vinha às vezes com freqüência e às vezes não aparecia durante um mês inteiro; mas pagava sempre, e bem.

Esse quarto, como o outro que ficava na extremidade oposta do corredor, tinha saída para a chácara.

Amâncio propôs a Coqueiro que descessem por aí.

-De sorte que, foi-lhe dizendo este pela escada -à mesa só temos diariamente os seguintes: Dr. Tavares, Paula Mendes e a mulher, Lúcia e o marido, e o tal sujeito de nome esquisito. Só! Aos domingos, então, fica-se em completa liberdade, porque jantam fora quase todos. -Vês, pois, que em parte alguma estarias melhor do que aqui!...

-Mas, filho, observou Amâncio -teus quartos estão todos ocupados!...

O outro respondeu com um risinho. E, depois de ligeiro silêncio, passando-lhe um braço nas costas:

-Tu, aqui, não quero que sejas um hóspede, mas um amigo, um colega, um filho da família, uma espécie de meu irmão, compreendes? São dessas coisas que se não explicam -questão de simpatia! Conhecemo-nos de ontem e é como se tivéssemos sido criados juntos; em mim podes contar com um amigo para a vida e para a morte!

E, estacando defronte de Amâncio, olhou para ele muito sério, dizendo em tom grave:

-E acredita que isto em mim é raro! Pergunta aí aos meus colegas se sou de muitas amizades; todos eles te dirão que ninguém há mais concentrado e metido consigo. Mas, quando simpatizo deveras com uma pessoa, é assim, como vês, trago-a para o seio de minha família e trato-a como irmão!

E, descaindo no tom primitivo da conversa:

-Se ficares aqui, como espero, verás com o tempo a sinceridade do que te estou dizendo! É que gostei de ti, acabou-se.

Amâncio jurava corresponder àquela amizade, mas, no íntimo, ria-se de Coqueiro, que agora lhe parecia tolo, e cujo casamento com a francesa velhusca o tornava, a seus olhos cada vez mais ridículo.

Ao passarem pelo salão concordaram que aquilo era uma excelente lugar para um «boa prosa».

Amâncio teria tudo isso às suas ordens; podia dispor!... acrescentou o outro. E, abrindo cuidadosamente a porta do gabinete que ficava ao lado, disse, com a entonação de um guarda de museu que vai mostrar uma raridade:

-Eis o ninho que te destino! É o lugar mais catita de toda a casa; isto, porém, não quer dizer que os outros cômodos não estejam à tua disposição!... Se, mais tarde, te apetecer trocar de quarto...

E, logo que entraram, foi-lhe mostrando a caminha cheirosa, o pequeno lavatório de pedra-mármore; fê-lo notar o bom estado da cômoda, a elegância do velador, o artístico das escarradeiras.

-E ali, o grande mestre! exclamou com ênfase, apontando para a gravura da parede.

-«Vítor Hugo», leu Amâncio debaixo do retrato. -Bom poeta! acrescentou.

-Creio que não ficarás mal, hein?... disse o outro.

-Ah! não! respondeu o provinciano, assentando-se fatigado em uma cadeira. E o preço?

-Ah! Isso depois... minha mulher é quem sabe dessas coisas, mas não havemos de brigar!...

E riu.

-Ficas aqui muito bem! Serás tratado como um filho; quando precisares de qualquer cuidado, numa moléstia, numa dor de cabeça, hás de ver que te não faltará nada! Além disso -podes entrar e sair à vontade, livremente, às horas que entenderes; se gostas de teu chazinho à noite, com torradas, hás de encontrá-lo, abafado, à tua espera sobre aquela mesa... De manhã, se quiseres o café na cama, também terás o teu café e, quando estiveres aborrecido do quarto, tens o salão, tens a sala de jantar, a chácara, o jardim; finalmente, tens tudo às tuas ordens!

-Agora, quanto a certas visitas... concluiu João Coqueiro, fazendo-se muito sisudo e abaixando a voz -isso, filho, tem paciência... Lá fora o que quiseres, mas daquela porta para dentro...

-Decerto! apressou-se a declarar o outro, com escrúpulo.

-Sim! Sabes que isto é uma casa de família e, para a boa moral...

-Mas certamente, certamente! repetiu Amâncio.

E acendeu um cigarro.




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- VII -

Dos hóspedes de cama e mesa só três compareceram ao jantar -Lúcia, o marido e o tal gentleman de nome difícil. Paulo Mendes estava de passeio, com a mulher, em casa de um artista.

Amâncio foi apresentado àqueles três pelo João Coqueiro. Trocaram bonitas palavras de etiqueta; fizeram-se os mentirosos protestos da cortesia e cada um tomou à mesa o seu lugar competente.

Mme. Brizard, como era de costume, ocupou a cabeceira, defronte de uma pilha enorme de pratos fundos, os quais ia enchendo de sopa, um a um, paulatinamente, depois de rodar a concha três vezes no fundo da terrina; e, à proporção que os enchia, passava-os ao marido que nesse dia lhe ficara à esquerda, visto que à direita, seu lugar favorito, cedera-o ele ao novo hóspede.

Na ocasião de conferir-lhe semelhante honra, bateu-lhe carinhosamente no ombro e disse-lhe baixinho: -Ficas bem! Ficas junto a Loló!

Mme. Brizard, que ouvira estas palavras, acrescentou sorrindo:

-O Sr. Vasconcelos preferia talvez ficar entre as moças...

-Ó minha senhora!... balbuciou Amâncio, vergando-se para o lado da francesa. -Estou muito bem aqui; não podia desejar melhor vizinhança!...

E voltou o olhar para a sua direita, onde Lúcia acabava de tomar assento.

Examinou-a logo, à primeira vista, sem o dar a conhecer, e a impressão recebida não foi das melhores. Achou-a esquisita, um tanto feia, um ar pretensioso, de doutora.

Era de estatura regular, tinha as costas arqueadas e os ombros levemente contraídos, braços moles, cintura pouco abaixo dos seios, desenhando muito a barriga. Quando andava, principalmente em ocasiões de cerimônia, sacudia o corpo na cadência dos passos e bamboleava a cabeça com um movimento de afetada languidez. Muito pálida, olhos grandes e bonitos, repuxados para os cantos exteriores, em um feitio acentuado de folhas de roseira; lábios descorados e cheios, mas graciosos. Nunca se despregava das lunetas, e a forte miopia dava-lhe aos olhos uma expressão úmida de choro.

Em seguida via-se o marido. Um homenzinho gordo, de barba por fazer e pequeno bigode castanho, em parte lourejado pelo fumo. A fronte abria-lhe para o crânio em dois semicírculos constituídos na ausência do cabelo. Fisionomia inalterável, de uma tranqüilidade irracional e covarde. Fechava de vez em quando os olhos, por um sestro antigo, e então parecia dormir profundamente.

Percebia-se que ele e a mulher estiveram, antes de vir para a mesa, empenhados em alguma discussão desagradável, porque, mal se furtaram às apresentações e aos cumprimentos da chegada, Lúcia pôs-se a falar-lhe em voz baixa, com azedume disfarçado. Ele, porém, não dava resposta, e, quando a mulher insistia, cerrava os olhos como se fugira para dentro de si mesmo.

César, ao lado, acompanhava-lhe os movimentos com persistência tão grosseira que a outro qualquer constrangeria.

Defronte perfilava-se o gentleman. Teso, o pescoço imobilizado no rigor de uns grandes colarinhos; as sobrancelhas franzidas diplomaticamente; o olhar grave, de quem medita coisa de alta importância; a boca engolida por um farto bigode grisalho; o queixo escanhoado, formando largas pregas, sempre que Lambertosa voltava o rosto com amabilidade para responder o que lhe diziam da direita ou da esquerda. Bonita figura, bem apessoado, fronte espaçosa, cabelo branco, puxando de trás sobre as orelhas.

Entre ele e Coqueiro, Amelinha, cheia de piscos de olhos e de gestozinhos passarinheiros, recebia do irmão os pratos de sopa e passava-os adiante.

-E Nini?... perguntou Mme. Brizard com interesse.

E, como Amâncio a fitasse, quando lhe ouviu aquela pergunta, ela explicou que Nini era uma filha sua, «muito doente, coitadinha!»... E contou logo a história da pobre menina -a viuvez, a dolorosa morte do filhinho «que lhe havia ficado como extrema consolação», e, afinal, falou daquela «maldita moléstia que sobreviera a tantas calamidades e que parecia disposta a não abandonar mais a infeliz».

-Não dá idéia do que foi! disse após um suspiro. -Era uma beleza e tinha o gênio mais alegre deste mundo! Ah! Está muito mudada! muito mudada! Impressiona-se com tudo, tem exigências pueris, caprichos, coisas de uma verdadeira criança! E ninguém a contraria, que aparecem as crises, os ataques! Uma campanha! -Ainda outro dia porque não lhe deixaram ver um desenho que meu marido achou na chácara...

E, voltando-se rapidamente para Amâncio:

-O Sr. Vasconcelos não se serve de vinho?... -Um desenho indecente; pois ficou prostrada e eu tive sérios receios de a ver perdida para sempre! Desde então está nervosa que se lhe não pode dizer nada! É preciso não insistir com ela em coisa alguma: se a chamam duas vezes para a mesa, começa a chorar e não vem; se a querem constranger a pôr um vestido melhor, um penteado mais decente, são gritos, soluços, repelões, e agarra-se à cama, que não há meio de tirá-la! Eu já não sei o que faço!...

-Por que, Madame, não experimenta os banhos de mar? perguntou o gentleman, limpando energicamente o seu grosso bigode no guardanapo que atara ao pescoço.

-Qual! Não produzem efeito nenhum! Ela já tomou quarenta seguidos. Acho até que ficou pior.

-É estranho!... volveu o gentleman, franzindo o sobrolho e passando à Lúcia a corbelha de farinha. -É estranho, porque, segundo Durand Fardel, não há enfermidades nervosas que resistam a um bom regime de banhos marítimos; mas aconselha também o uso interno de água salgada, e prova que a mineralização desta é muito mais rica em cloreto se sódio do que a das águas minerais da fonte.

-Não sei, Sr. Lamber...

Mme. Brizard não se lembrava do nome dele.

-Lambertosa, Madame, Lambertosa!

-Não sei, Sr. Lambertosa, não sei... O caso é que Nini não consegue melhorar. Temos experimentado tudo, tudo!

E, mudando de tom, bateu no braço de Amâncio, segredando-lhe com um sorriso:

-Não se esqueça de provar daqueles camarões. São especiais!... E descreveu uma olhadela entre ele e Amélia.

-O casamento talvez a restabelecesse! observou o provinciano, servindo-se dos afamados camarões. -Dizem que há muitos exemplos de...

Amélia afetou um sobressaltozinho, e olhou para ele que procurando disfarçar o mau efeito de sua proposição, citou Le Bon.

-O doutor acha então que o histerismo se pode curar com o casamento?... perguntou Lúcia da direita.

-Parece, minha senhora, a dar crédito aos fisiologistas...

A sonoridade desta palavra consolou-o.

-E é exato!... confirmou Pereira, marido de Lúcia.

-Tu mesmo entendes disto!... respondeu-lhe a mulher desdenhosamente.

Pereira fechou os olhos e não deu mais palavra.

Lambertosa havia já limpado o bigode para emitir a sua conceituada opinião, mas teve de renunciar a essa idéia, porque Nini acabava de assomar à porta do quarto, arrastando-se dificilmente ao peso de suas inchações.

Vestia uma bata de lã parda, enxovalhada e sem cinta. A gordura balofa e anêmica tirava-lhe o feitio do corpo; as suas costas formavam-se de uma só curva e os quadris pareciam duas grandes almofadas.

Contudo ainda se lhe reconhecia a mocidade e ainda se alcançavam os vestígios desbotados dos encantos, que a moléstia foi pouco a pouco devastando.

Só depois de assentada, Nini desmanchou o ar aflito que fazia, pelo esforço de andar.

-Ah! respirou, quase sem fôlego. E correu os olhos em torno de si, abstratamente, como se despertasse de um desmaio. Ao dar com Amâncio, ficou a encará-lo com insistência de criança; depois, contraiu os músculos do rosto e espalhou a vista, vagarosamente, a tomar longos sorvos de ar.

Um silêncio formou-se em torno de sua chegada; percebia-se que pensavam nela.

-Queres sopa, Nini? perguntou afinal Mme. Brizard, com ternura. E, como a filha fizesse um movimento afirmativo de cabeça, passou-lhe um prato cheio.

Nini sorveu-o todo, a colheradas seguidas e pediu mais.

A mãe aconselhou-a que comesse antes outra qualquer coisa.

Nini largou a colher no prato, sem dizer palavra, e pôs-se de novo a encarar para Amâncio, com um olhar tão dolorido e tão persistente, que o rapaz ficou impressionado.

E não lhe tirou mais a vista de cima. O estudante remexia-se na cadeira, importunado por aqueles dois olhos grandes, rasos, de um azul duvidoso, que se fixavam sobre ele, imóveis e esquecidos.

Disfarçava, procurava não dar por isso, nada, porém, conseguia. Os dois importunos lá estavam, sempre, assentados sobre ele a lhe queimar a paciência, como se fossem dois vidros de aumento colocados contra o sol.

-Que embirrância! dizia consigo o provinciano.

Entretanto o jantar esquentava. A conversa explodia já de vários pontos da mesa com mais freqüência; ouviam-se tinir os garfos de encontro a louça, e os copos esvaziavam-se e de novo se enchiam, sem ninguém dar por isso.

Mme. Brizard não se descuidava um minuto de Amâncio. Apontava-lhe os pratos preferíveis, puxava as garrafas para junto dele, sempre a falar da salubridade da casa, do bem que se ficava ali, da simpatia que toda a família parecia lhe dedicar, desde o primeiro momento em que o viu.

-Pois se até a pobre Nini não se fartava de olhar para o Sr. Vasconcelos!...

Amâncio sorriu.

O Lambertosa atirou-lhe diretamente a palavra sobre o Maranhão. Tratou com respeito dessa «judiciosa província», a qual merecia de justiça o honroso título que lhe fora conferido de -Atenas Brasileira!. E, depois de citar nomes ilustres, dispôs-se a contar as façanhas de um tal Maranhense, célebre pelas suas espertezas.

-Perdão! acudiu Amâncio. -Esse cavalheiro de indústria, além do nome, nada tem de comum com a minha província!

-Ah! fez o gentleman. -Pois eu o julgava filho de lá...

-Felizmente não é, respondeu o outro, ferido no seu bairrismo.

-E ainda que fosse!... observou Lúcia -que mal havia nisso?

-Certamente! confirmou Coqueiro, a encher o prato.

-Pois meu amigo, volveu Lambertosa, dirigindo-se a Amâncio -eu o felicito! E levou o copo à boca. Eu o felicito, porque, francamente, considero um padrão de glória ver a luz do dia em uma província tão...

Faltou-lhe o termo.

-Tão, tão gigantesca! Estude, caminhe, caminhe, que tem uma grande estrada aberta defronte de si!

E engrossando a voz:

-Assiste-lhe uma responsabilidade enorme! É caminhar e caminhar firme! Ah! terminou ele com um gesto lamentoso. -Quem me dera a sua idade, meu amigo! Quem me dera a sua idade!

Continuou-se a falar sobre o Maranhão. Lúcia quis informações; Amâncio voltou-se logo para ela, solicitamente, e na febre de falar de sua terra, começou, sem reparar que mentia, a pintar coisas extraordinárias. O Maranhão segundo o que ele dizia, era um viveiro de talentos; os grêmios e os jornais literários brotavam ali de toda a parte; cada indivíduo representava um gramático de pulso; as senhoras -ilustradíssimas; os homens_ poços de instrução; as crianças saíam da escola bons poetas e prosadores.

Coqueiro afetava acompanhá-lo naquele entusiasmo, mais ria-se por dentro. O outro lhe parecia cada vez mais tolo.

Lúcia perguntou se Amâncio tinha algumas produções dos seus comprovincianos, que lhe pudesse emprestar. Ele prometeu que traria as que tivesse em casa. E recomendou Entre o Céu e a Terra, de Flávio Reymar.

-Há em sua província um poeta que eu adoro, disse ela, cortando em pedacinhos uma fatia de carne assada que tinha no prato.

-O Franco de Sá? perguntou o maranhense.

-Não, refiro-me ao Dias Carneiro.

Amâncio sentiu um calafrio percorrer-lhe a espinha. Nunca em sua vida ouvira falar de semelhante nome.

-É, disse, entretanto. -É um grande poeta!

-Enorme! corrigiu Lúcia, levando à boca uma garfada. -Enorme! Conhece aquela poesia dele, o...

Novo calafrio, desta vez, porém, acompanhado de suores. E não lhe acudia um título para apresentar, um título qualquer, ainda que não fosse verdadeiro.

-Ora, como é mesmo? insistia a senhora. -Tenho o nome debaixo da língua!

E, voltando com superioridade para o marido:

-Como se chama aquela poesia, que está no álbum de capa escura, escrita a tinta azul?

Pereira abriu os olhos e disse lentamente:

-O Cântico do Calvário!

-És um idiota! respondeu a mulher.

A resposta de Pereira provocou hilaridade. Amâncio consultou logo a opinião de Lúcia sobre o Varela. Mme. Brizard falou então dos versos do marido, prometeu que os mostraria depois do jantar.

Amâncio soltou uma exclamação de espanto:

-Ignorava que Coqueiro também fizesse versos!

-Faço-os, confirmou este -mas só para mim, publiquei já alguns com pseudônimo. Receio a convivência dos literatos que formigam por aí, esfarrapados e bêbedos. Não me quero misturar com eles. Faço versos, é verdade, mas tenho a presunção de escrevê-los como devem ser e não acumulando extravagâncias e disparates para armar ao efeito! Faço versos, mas não tomo parte nessas panelinhas de elogio mútuo e nesses grupos de imbecis escrevinhadores!

E, com muito azedume, com durezas de inveja, principiou a dizer mal dos rapazes que no Rio de Janeiro se tornavam mais conhecidos pelas letras.

-Pedantes! resmungava. -Súcia de idiotas! Hoje todos querem ser escritores; sujeitinhos que não sabem ligar duas idéias, arrogam-se, da noite para o dia, os foros literatos! Uma cambada!

E ria-se com um gesto amargo de desgosto.

Lúcia e Lambertosa defendiam timidamente alguns nomes.

-Ora o que, senhores! replicava Coqueiro furioso e pálido. -Qual é aí o tipo da tal «geração moderna» que se possa aproveitar?... Não me apontam nenhum! São todos umas bestas!

-Coqueiro!... repreendeu Mme. Brizard em voz baixa.

-São todos umas nulidades, uns zeros!...

Era a primeira vez que Amâncio via o colega sair de si. Não o supunha capaz daquelas explosões.

Mme. Brizard compreendeu o pensamento do provinciano e apressou-se a dizer-lhe ao ouvido:

-Também é só o que o faz sair do sério... a literatura!

Amélia indagou se Amâncio também escrevia. Ele disse que sim, a desculpar-se com os outros.

-Quem neste mundo não rabiscava mais ou menos?...

Ela mostrou logo empenho em lhe conhecer as produções.

-Não vale a pena! disse o moço. -Não vale a pena!

-Ai, ai! suspirou Nini, que parecia adormecida com os olhos abertos.

Mme. Brizard que já conhecia o alcance daquele suspiro, perguntou à filha o que desejava. Nini apontou melancolicamente para um prato, onde fatias transparentes de abacaxi nadavam em calda de vinho.

-Não senhora, volveu a mãe -isso não pode ser; faz-te mal.

Nini suspirou de novo e ficou e a olhar para Amâncio, resignadamente, o semblante muito pesaroso, a cabeça vergada para o lado.

-Serve-te antes de doce, aconselhou Mme. Brizard.

O Lambertosa apressou-se a passar a Nini a compoteira.

-Pouco, Sr. Lambertosa, dê-lhe pouco!

Veio o café. César levantou-se da mesa e foi brincar a um canto da sala. Mme. Brizard queria saber se estavam todos satisfeitos; ela, quanto a si, jantara perfeitamente, confessava.

E, com um aspecto regalado, deixava-se ficar prostrada na cadeira, entorpecida no bem-estar do seu estômago.

O copeiro, um preto alto de pernas compridas, levantou a toalha, acendeu o gás e trouxe curaçau e conhaque. Amélia bebericou o seu cálice de licor e levantou-se logo para ir à janela. Afastaram-se as cadeiras da mesa, e a conversa reapareceu com mais força.

O Lambertosa, Mme. Brizard e Coqueiro formaram grupo, a discutir o preço excessivo e a falsificação dos gêneros alimentícios. O gentleman reclamava uma junta de higiene, rigorosa, que mandasse lançar à praia todos os gêneros deteriorados que encontrasse. «Era assim que se fazia na Europa!»

Lúcia, do outro lado da mesa, continuava a falar com Amâncio sobre literatura. Já estavam em Théophile Gautier, Théodore de Banville e Baudelaire, depois de haverem tocado de passagem em alguns escritores de Portugal. Agora sentia-se mais eloqüente o provinciano; acudiam-lhe opiniões e juízos perfeitamente armados; percebia que as suas palavras causavam bom efeito; ia bem.

Pereira e Nini conservavam-se um defronte do outro, igualmente concentrados e mudos; ela, porém, com os olhos muito abertos sobre Amâncio. O outro afinal ergueu-se, atravessou, lentamente, como um sonâmbulo, a sala de jantar, e foi estender-se em uma preguiçosa que ficava junto à janela.

Vibrou então o piano no salão de visitas.

-É melhor irmos todos para lá, alvitrou a dona da casa.

O marido e o Lambertosa aceitaram logo a idéia, e Amâncio, sem interromper a sua conversa com a mulher do Pereira, a esta deu o braço e seguiu o exemplo daqueles.

Lúcia caminhava toda reclinada sobre ele, falando-lhe em tom mui vagaroso, com acentuações finas de boa educação.

A sala iluminada tinha um caráter imponente. O gentleman encaminhou a conversa geral para a música, aconselhou a Amâncio a que solicitasse da Sr.ª D. Lúcia um pouco do Guarani, que ela tocava admiravelmente.

Lúcia queixou-se de que ultimamente sofria de certa fraqueza nos dedos e não tocava com a mesma expressão, mas sempre foi, pelo braço de Lambertosa tomar ao piano o lugar que Amélia deixara nesse instante. E logo as primeiras notas da introdução do Guarani encheram a sala com a sua corajosa e dominadora solenidade.

Fizeram silêncio.

Ela tocava bem, com muita energia e destreza. Amâncio encostara-se sozinho ao canto de uma janela e sentia-se ir pouco a pouco arrastando pela irresistível corrente daquelas frases musicais. Seu estômago, perfeitamente confortado, dava-lhe ao corpo um bem-estar beatífico e predispunha-lhe o espírito para as vagas concentrações e para os místicos arrebatamentos da fantasia. Um profundo langor, muito voluptuoso, apoderava-se de todo ele, e os vapores duvidosos de um princípio de embriaguez acamavam-se em torno de sua cabeça, anuviando-lhe os objetos exteriores.

E ali, da janela, suspenso ainda pelas novas impressões que lhe deparavam os novos aspectos de sua existência, abstrato e perdido em cismas indefinidas, enxergava, por entre as névoas de seu enlevo, o vulto melancólico de Lúcia, assentado defronte do piano, a tocar o teclado com os dedos, num frenesi delicioso.

Depois da música, principiou a simpatizar com ela; já gostava de a ver, misteriosa e pálida, arrastando a vida com a languidez de uma convalescente.

Estava todo embevecido a pensar nesta simpatia, quando voltou por acaso o rosto e deu com os olhos de Nini, que o fitavam sem pestanejar.

-É birra, não tem que ver! pensou ele aborrecido.

Duas horas depois tornavam à sala de jantar. Serviam-se as torradas. Parecia, com o César adormecido sobre as pernas, ressonava profundamente na mesma preguiçosa em que o tinham deixado.

Mme. Brizard chamou o copeiro e ordenou-lhe que recolhesse o menino. Pereira espreguiçou-se, abriu vagarosamente os olhos, mas tornou a fechá-los, bocejando.

Já estavam à mesa, quando os hóspedes principiaram a chegar.

Veio o Paula Mendes e mais a mulher. Ele de pequena estatura, grosso, os movimentos acanhados, a voz branda e a fisionomia triste; ela muito alta, cheia de corpo, despejada de maneiras e com feições de homem.

Chamava-se Catarina, estava sempre a implicar com as coisas e tinha muita força de gênio. Entrou na sala como uma fúria; o marido atrás. Cumprimentou a todos com um -«boas noites» terrível, e, atirando-se a uma cadeira, declarou, a bater com a mão na mesa, que vinha desesperada! -Pois, se em vez de piano, lhe haviam dado um tacho, um verdadeiro tacho, para executar um noturno de Chopin, dificílimo!

-Pouca-vergonha! exclamava ela, rangendo os dentes. -Canalhas!

-Mas o culpado foste tu, lesma de uma figa! -já devias conhecer melhor aquela súcia!

-Mas... ia responder o marido.

-Cale-se, berrou ela. -Não me dê uma palavra, que não estou disposta a lhe ouvir a voz! Diabo do basbaque!

Fez uma pausa, estava arquejante, mas continuou logo:

-Também ali, acabou-se! cruz na porta! Nunca mais! nunca mais! Nem admito que me falem na rua! Corja!

E, levantando-se com ímpeto, cumprimentou a todos com um arremesso, e subi para o segundo andar, levando o marido na frente, aos empurrões.

-Safa, disse Amâncio consigo.

O Dr. Tavares é que vinha satisfeito. Estivera em casa de um amigo, pessoa de muita consideração, onde se reunia a mais fina sociedade.

E, necessitando de expandir o seu bom humor, entabulou conversa com Amâncio. Falou-lhe a um só tempo de mil coisas diferentes; tratou muito de si; das suas pretensões na Corte que apenas conhecia de alguns meses; das suas esperanças de obter o que desejava: do que lhe dissera tal ministro; do que lhe prometera tal conselheiro, e, afinal, da sua profissão de advogado, profissão que ele exercia com entusiasmo, com delírio, porque, desde pequeno, toda a sua queda fora sempre para falar em público, para dominar as massas.

E, esquentando-se ao calor de suas próprias palavras, discursava, como se já estivesse no tribunal. Armava posições; recorria aos efeitos da tribuna, vergava para trás a cabeça, ameaçando espetar o auditório com a ponta de sua barba triangular.

Sentia-se radiante por ver que todos os mais não abriam a boca, enquanto ele estivesse com a palavra.

Seu tipo indeciso, de cearense do interior, uma dessas fisionomias confusas e duvidosas, nas quais o fulvo castanho dos cabelos quase que não se distingue do moreno da pele e do pardo verdoengo dos olhos, seu tipo transformava-se na febre da eloqüência e parecia acentuar-se por instantes.

E, já de pé, com uma das mãos apoiada nas costas da cadeira, jogava freneticamente com a outra, ora espalmando-a em cheio sobre o peito, ora apontando terrível para o teto, ora indicando o chão, horrorizado, como se aí estivesse um abismo, ora dando com o indicador ligeiras e repetidas facadinhas no ar; ao passo que a voz, pelo contrário, se lhe arrastava em trêmulos prolongados, como as notas graves de um harmonium.

Enquanto ele parolava, outros hóspedes se recolhiam aos competentes quartos, atravessando a varanda pelo fundo na ponta dos pés, com medo da «caceteação».

Aquele homem era o terror da casa. Às vezes, depois do jantar, quando ele abria as torneiras da loquacidade, iam todos, um por um, fugindo sorrateiramente, até deixá-lo a sós com o Pereira que, afinal, adormecia.

Amâncio principiava a sentir cansaço. Quis retirar-se; não lho consentiram.

-Passava já da meia-noite, a casa de Campos devia estar fechada àquela hora. -O melhor seria ficar, observou a francesa.

-Que diabo, acudiu Coqueiro. -Fica! não incomodarás ninguém... Está tudo providenciado; a cama feita... Além disso, olha! E mostrando o céu pela janela: -Vamos ter chuva!

Com efeito sopravam os ventos do sul. Amâncio ainda opôs algumas razões, mas finalmente cedeu.

***

Era mais de uma hora quando se dispersou a roda e cada um, depois de novos protestos e oferecimentos se recolheu à competente alcova.

Mme. Brizard recomendou muito a Amâncio que ficasse à vontade; que não tivesse escrúpulos em reclamar qualquer coisa de que sentisse falta. Supunha, porém, não haver ocasião disso, porque fora ela própria e mais a Amelinha quem lhe arranjara o quarto.

Coqueiro acompanhou-o até à cama, examinou rapidamente se estava tudo no seu lugar e depois, dando mais luz ao bico do gás, e tirando um folheto da algibeira, disse-lhe com um sorriso:

-Sempre te vou mostrar os versos...

Amâncio, já meio despido, estremeceu, mas não opôs a menor consideração, e meteu-se debaixo dos lençóis.

O outro, em pé, ao lado da cama, folheava amorosamente o seu caderno de versos, à procura do que deveria ler em primeiro lugar.

Descobriu afinal e, com a voz clara e sonora, principiou:

«Estamos em plena Roma. Os Césares devassos...»



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