Criei para mim algumas idéias teóricas sobre o drama.
Algum dia, se houver tempo e vagar, talvez as escreva e de a
lume.
O
meu protótipo seria alguma coisa entre o teatro
inglês, o teatro espanhol e o teatro grego: -a forca das
paixões ardentes de Shakespeare, de Marlowe e Otway, a
imaginação de Calderon de la Barca e Lope de Vega, e
a simplicidade de Ésquilo e Eurípedes: -alguma coisa
como Goethe sonhou, e cujos elementos eu iria estudar numa parte
dos dramas dele, em Goetz de Berlichingen, Clavijo,
Egmont, no episódio da Margarida de Faust e a
outra na simplicidade ática de sua Ifigênia.
Estudá-lo-ia talvez em Schiller, nos dois dramas do
Wallenstein, nos Salteadores, no D. Carlos;
estudá-lo-ia ainda na Noiva de Messina com seus
coros, com sua tendência à regularidade.
É um tipo talvez novo, que não se parece com o
misticismo do teatro de Werner, ou as tragédias
teogônicas de Oehlenschläger e ainda menos com o de
Kotzebue ou o de Victor Hugo e Dumas.
Não se pareceria com o de Ducis, nem com aquela
tradução bastarda, verdadeira castração
do Otelo de Shakespeare, feita pelo poeta sublime do
Chatterton, o conde Vigny. Quando não se tem alma adejante
para emparelhar com o gênio vagabundo do autor de
Hamlet, haja ao menos modéstia bastante para
não querer emendá-lo. Por isso o Otelo de
Vigny é morto. Era uma obra de talento, mas devia ser um
rasgo de gênio.
Emendá-lo! pobres pigmeus que querem limar as
monstruosidades do Colosso! Raça de Liliput que queria
aperfeiçoar os membros do gigante disforme para eles de
Gulliver!
E
digam-me; que é o disforme? há ai um anão ou
um gigante? Não é assim que eu o entendo. Haveria
enredo, mas não a complicação exagerada da
comédia espanhola. Haveria paixões, porque o peito da
tragédia deve bater, deve sentir-se ardente; mas não
requintaria o horrível, e não faria um drama daqueles
que parecem feitos para reanimar
corações-cadáveres, como a pilha
galvânica as fibras nervosas do morto!
Não; o que eu penso é diverso. É uma grande
idéia que talvez nunca realize. É difícil
encerrar a torrente de fogo dos anjos decaídos de Milton ou
o pântano de sangue e lágrimas do Alighieri dentro do
pentâmetro de mármore da tragédia antiga.
Contam que a primeira idéia de Milton foi fazer do
Paraíso perdido uma tragédia, um
mistério... não sei o quê...: não o
pôde: o assunto transbordava, crescia; a torrente se tornava
num oceano. É difícil marcar o lugar onde pára
o homem e começa o animal, onde cessa a alma e começa
o instinto, onde a paixão se torna ferocidade. É
difícil marcar onde deve parar o galope do sangue nas
artérias, e a violência da dor no crânio.
Contudo deve haver -e o há-um limite às
expansões do autor, para que não haja
exageração, nem degenere num papel de fera o papel de
homem. O Pobre Idiota tem esse defeito entre mil outros. A
cena do subterrâneo é interessante, mas é de um
interesse semelhante àquele que excitava o Jocko ou o homem
dos matos, aquele macaco representado por Morietti que fazia chorar
a platéia.
A
vida e só a vida! mas a vida tumultuosa, férvida,
anelante, às vezes sangrenta-eis o drama. Se eu escrevesse,
se minha pena se desvairasse na paixão, eu a deixaria correr
assim: Iago enganaria o Mouro, traíria Cássio,
perderia Desdêmona e desfrutaria a bolsa de Rodrigo.
Cássio seria apunhalado na cena. Otelo sufocaria sua
Veneziana com o travesseiro, escondê-la-ia com o cortinado
quando entrasse Emília; chamaria sua esposa -a whore-
e gabar-se-ia de seu feito. O honest, most honest Iago viria
ver a sua vítima, Emília soluçando a mostraria
ao demônio; o Africano delirante, doido de amor, doido de a
ter morto, morreria beijando os lábios pálidos da
Veneziana. Hamlet no cemitério conversaria com os coveiros,
ergueria do chão a caveira de Yorick -o truão;
Ofélia coroada de flores cantaria insana as balatas obscenas
do povo: Laertes apertaria nos braços o cadáver da
pobre louca. Orlando no What you will penduraria suas rimas
de Rosalinda nos arvoredos dos Cevennes. Isto seria tudo assim.
Se
eu imaginasse o Otelo, seria com todo o seu esgar, seu desvario
selvagem, com aquela forma irregular que revela a paixão do
sangue. É que as nódoas de sangue quando caem no
chão não têm forma geométrica. As
agonias da paixão, do desespero e do ciúme ardente
quando coam num sangue tropical não se derretem em
alexandrinos, não se modulam nas falas banais dessa poesia
de convenção que se chama-conveniências
dramáticas.
Mas
se eu imaginasse primeiro a minha idéia, se a não
escrevesse como um sonâmbulo, ou como falava a Pitonisa
convulsa agitando-se na trípode, se pudesse, antes de fazer
meu quadro, traçar as linhas no painel, fálo-ia
regular como um templo grego ou como a Atália,
arquétipa de Racine.
São duas palavras estas: mas estas duas palavras têm
um fim: é declarar que o meu tipo, a minha teoria, a minha
utopia dramática, não é esse drama que
aí vai. Esse é apenas como tudo que até hoje
tenho esboçado, como um romance que escrevi numa noite de
insônia, como um poema que cismei numa semana de febre -uma
aberração dos princípios da ciência, uma
exceção às minhas regras mais íntimas e
sistemáticas. Esse drama é apenas uma
inspiração confusa, rápida, que realizei
à pressa como um pintor febril e trêmulo.
Vago como uma aspiração espontânea, incerto
como um sonho; como isso o dou, tenham-no por isso.
Quanto ao nome, chamem-no drama, comédia, dialogismo;
não importa. Não o fiz para o teatro; é um
filho pálido dessas fantasias que se apoderam do
crânio e inspiram a Tempestade a Shakespeare,
Beppo e o IX Canto de D. Juan a Byron; que fazem
escrever Annunziata e O Conto de Antônia a quem
é Hoffmann, ou Fantasio ao poeta de Namouna.

Primeiro episódio
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Numa estalagem da estrada.
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MACÁRIO.- (Falando para
fora.) Olá, mulher da venda! Ponham-me na sala uma
garrafa de vinho. Façam-me a cama, e mandem-me ceia: palavra
de honra que estou com fome! Dêem alguma ponta de charuto ao
burro que está suado como um frade bêbado! Sobretudo
não esqueçam o vinho!
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|
UMA VOZ.- Há aguardente unicamente, mas
boa.
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MACÁRIO.- Aguardente! Pensas que sou
algum jornaleiro?... Andar seis léguas e sentir-se com a
goela seca! Ó mulher maldita! aposto que também
não tens água?
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|
A MULHER.- E pura, senhor! Corre ali embaixo uma
fonte que é limpa como o vidro e fria como uma noite de
geada. (Sai.)
|
|
MACÁRIO.- Eis aí o resultado das
viagens. Um burro frouxo. uma garrafa vazia. (Tira uma
garrafa do bolso.) Conhaque! És um belo
companheiro de viagem. És silencioso como um vigário
em caminho, mas no silêncio que inspiras, como nas noites de
luar, ergue-se às vezes um canto misterioso que enleva!
Conhaque! Não te ama quem não te entende! Não
te amam essas bocas feminis acostumadas ao mel enjoado da vida, que
não anseiam prazeres desconhecidos, sensações
mais fortes! E eis-te aí vazia, minha garrafa! Vazia como
mulher bela que morreu! Hei de fazer-te uma nênia.
E
não ter nem um gole de vinho! Quando não há o
amor, há o vinho; quando não há o vinho,
há o fumo; e quando não há amor, nem vinho,
nem fumo, há o spleen. O spleen encarnado na sua forma mais
lúgubre naquela velha taverneira repassada de aguardente que
tresanda! (Entra A
MULHER com uma bandeja.)
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|
A MULHER.- Eis aqui a ceia.
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MACÁRIO.- Ceia! que diabo de comida verde
é essa? Será algum feixe de capim? Leva para o
burro.
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A MULHER.- São couves...
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MACÁRIO.- Leva para o burro.
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A MULHER.- É fritado em toucinho...
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MACÁRIO.- Leva para o burro com todos os
diabos! (Atira-lhe o prato na cabeça. A MULHER sai. MACÁRIO come.)
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UM DESCONHECIDO.-
(Entrando.) Boa-noite, companheiro.
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MACÁRIO.-
(Comendo.) Boa-noite.
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O DESCONHECIDO.- Tendes um apetite!
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MACÁRIO.- Entendo-vos. Quereis comer?
sentai-vos. Quereis conversar? esperai um pouco.
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O DESCONHECIDO.- Esperarei.
(Senta-se.)
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MACÁRIO.- (Comendo.)
Parece-me que não é a primeira vez que vos encontro.
Quando a noite caía, ao subir da garganta da serra.
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O DESCONHECIDO.- Um vulto com um ponche vermelho
e preto roçou a bota por vossa perna...
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MACÁRIO.- Tal e qual por sinal que era
fria como o focinho de um cão.
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O DESCONHECIDO.- Era eu.
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MACÁRIO.- Há um lugar em que
estende-se um vale cheio de grama. À direita corre uma
torrente que corta a estrada pela frente... Há uma ladeira
mal calçada que se perde pelo mato...
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O DESCONHECIDO.- Aí encontrei-vos outra
vez... A propósito, não bebeis?
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|
MACÁRIO.- Pois não sabeis? Essa
maldita mulher só tem aguardente; e eu que sou capaz de amar
a mulher do povo como a filha da aristocracia, não posso
beber o vinho do sertanejo... (O DESCONHECIDO tira uma garrafa do
bolso e derrama vinho no copo de MACÁRIO.)
Ah!
|
|
MACÁRIO.- Vinho!
(Bebe.) À fé que é vinho de
Madeira! À vossa saúde, cavalheiro!
|
|
O DESCONHECIDO.- À vossa. (Tocam
os copos.)
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MACÁRIO.- Tendes as mãos
tão frias!
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O DESCONHECIDO.- É da chuva.
(Sacode o ponche.) Vede: estou molhado
até os ossos!
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MACÁRIO.- Agora acabei:
conversemos...
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|
O DESCONHECIDO.- Vistes-me duas vezes. Eu vos vi
ainda outra vez. Era na serra, no alto da serra. A tarde
caía, os vapores azulados do horizonte se escureciam. Um
vento frio sacudia as folhas da montanha. E vós
contempláveis a tarde que caía. Além, nesse
horizonte, o mar como uma linha azul orlada de escuma e de areia...
e no vale, como bando de gaivotas brancas sentadas num paul, a
cidade que algumas horas antes tínheis deixado. Daí
vossos olhares se recolhiam aos arvoredos que vos rodeavam, ao
precipício cheio das flores azuladas e vermelhas das
trepadeiras, às torrentes que mugiam no fundo do abismo, e
defronte víeis aquela cachoeira imensa que espedaça
suas águas amareladas, numa chuva de escuma, nos rochedos
negros do seu leito. E olháveis tudo isso com um ar
perfeitamente romântico. Sois poeta?
|
|
MACÁRIO.- Enganai-vos. Minha mula estava
cansada. Sentei-me ali para descansá-la. Esperei que o
fresco da neblina a reforçasse. Nesse tempo divertia-me em
atirar pedras no despenhadeiro e contar os saltos que davam.
|
|
O DESCONHECIDO.- É um divertimento
agradável.
|
|
MACÁRIO.- Nem mais nem menos que cuspir
num poço, matar moscas, ou olhar para a fumaça de um
cachimbo A minha mala... (Chega à
janela.) Ó mulher da casa! olá! o de
casa!
|
|
UMA VOZ.- (De fora.)
Senhor!
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MACÁRIO.- Desate a mala de meu burro e
traga-m'a aqui.
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|
A VOZ.- O burro?
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|
MACÁRIO.- A mala, burro!
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A VOZ.- A mala com o burro?
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MACÁRIO.- Amarra a mala nas tuas costas e
amarra o burro na cerca.
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|
A VOZ.- O senhor é o moço que
chegou primeiro?
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|
MACÁRIO.- Sim. Mas vai ver o burro.
|
|
A VOZ.- Um moço que parece estudante?
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|
MACÁRIO.- Sim. Mas anda com a mala.
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|
A VOZ.- Mas como hei-de ir buscar a mala? Quer
que vá a pé?
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|
MACÁRIO.- Esse diabo é doido! Vai
a pé, ou monta numa vassoura como tua mãe!
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|
A VOZ.- Descanse, moço. O burro
há-de aparecer. Quando madrugar iremos procurar.
|
|
OUTRA VOZ.- Havia de ir pelo caminho do
Nhô Quito. Eu conheço o burro…
|
|
MACÁRIO.- E minha mala?
|
|
A VOZ.- Não vê? Está
chovendo a potes!...
|
|
MACÁRIO.- (Fecha a
janela.) Malditos! (Atira com uma cadeira no
chão.)
|
|
O DESCONHECIDO.- Que tendes, companheiro?
|
|
MACÁRIO.- Não vedes? O burro
fugiu...
|
|
O DESCONHECIDO.- Não será
quebrando cadeiras que o chamareis...
|
|
MACÁRIO.- Porém a raiva...
|
|
O DESCONHECIDO.- Bebei mais um copo de Madeira.
(Bebem.) Levais de certo alguma preciosidade na
mala? (Sorri-se.)
|
|
MACÁRIO.- Sim...
|
|
O DESCONHECIDO.- Dinheiro?
|
|
MACÁRIO.- Não, mas...
|
|
O DESCONHECIDO.- A coleção
completa de vossas cartas de namoro, algum poema em borrão,
alguma carta de recomendação?
|
|
MACÁRIO.- Nem isso, nem aquilo...
Levo...
|
|
O DESCONHECIDO.- A mala não pareceu-me
muito cheia. Senti alguma coisa sacolejar dentro. Alguma garrafa de
vinho?
|
|
MACÁRIO.- Não! não! mil
vezes não! Não concebeis, uma perda imensa,
irreparável... era o meu cachimbo...
|
|
O DESCONHECIDO.- Fumais?
|
|
MACÁRIO.- Perguntai de que serve o
tinteiro sem tinta, a viola sem cordas, o copo sem vinho, a noite
sem mulher... não me pergunteis se fumo!
|
|
O DESCONHECIDO.- (Dá-lhe um
cachimbo.) Eis aí um cachimbo primoroso. É
de pura escuma do mar. O tubo é de pau de cereja. O bocal
é de âmbar.
|
|
MACÁRIO.- Bofé! Uma Sultana o
fumaria! E fumo?
|
|
O DESCONHECIDO.- É uma
invenção nova. Dispensa-o. Acendei-o na vela.
(MACÁRIO
acende.)
|
|
MACÁRIO.- E vós?
|
|
O DESCONHECIDO.- Não vos importeis
comigo. (Tira outro cachimbo e fuma.)
|
|
MACÁRIO.- Sois um perfeito companheiro de
viagem. Vosso nome?
|
|
O DESCONHECIDO.- Perguntei-vos o vosso?
|
|
MACÁRIO.- O caso é que é
preciso que eu pergunte primeiro. Pois eu sou um estudante. Vadio
ou estudioso, talentoso ou estúpido, pouco importa. Duas
palavras só: amo o fumo e odeio o Direito Romano. Amo as
mulheres e odeio o romantismo.
|
|
O DESCONHECIDO.- Tocai! Sois um digno rapaz.
(Apertam a mão.)
|
|
MACÁRIO.- Gosto mais de uma garrafa de
vinho que de um poema, mais de um beijo que do soneto mais
harmonioso. Quanto ao canto dos passarinhos, ao luar sonolento,
às noites límpidas, acho isso sumamente
insípido. Os passarinhos sabem só uma cantiga. O luar
é sempre o mesmo. Esse mundo é monótono a
fazer morrer de sono.
|
|
O DESCONHECIDO.- E a poesia?
|
|
MACÁRIO.- Enquanto era a moeda de ouro
que corria só pela mão do rico, ia muito bem. Hoje
trocou-se em moeda de cobre; não há mendigo, nem
caixeiro de taverna que não tenha esse vintem azinhavrado.
Entendeis-me?
|
|
O DESCONHECIDO.- Entendo. A poesia, de popular
tornou-se vulgar e comum. Antigamente faziam-na para o povo; hoje o
povo fá-la-á para ninguém.
|
|
MACÁRIO.- (Bebe.) Eu
vos dizia pois... Onde tínhamos ficado?
|
|
O DESCONHECIDO.- Não sei. Parece-me que
falávamos sobre o Papa.
|
|
MACÁRIO.- Não sei: creio que o
vosso vinho subiu-me à cabeça. Puah! vosso cachimbo
tem sarro que tresanda!
|
|
O DESCONHECIDO.- Sois triste, moço...
Palavra que eu desejaria ver essa poesia vossa.
|
|
MACÁRIO.- Por quê?
|
|
O DESCONHECIDO.- Porque havia ser alegre como
Arlequim assistindo a seu enterro...
|
|
MACÁRIO.- Poesias a quê?
|
|
O DESCONHECIDO.- À luz, ao céu, ao
mar...
|
|
MACÁRIO.- Primeiramente -o mar é
uma coisa soberanamente insípida... O enjôo é
tudo quanto há mais prosaico. Sou daqueles de quem fala o
corsário de Byron «whose soul would sicken o'er the
heaving wave».
|
|
O DESCONHECIDO.- E enjoais a bordo?
|
|
MACÁRIO.- É a única
semelhança que tenho com D. Juan.
|
|
O DESCONHECIDO.- Modéstia!
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|
MACÁRIO.- Pergunta à taverneira se
apertei-lhe o cotovelo, pisquei-lhe o olho, ou pus-lhe a mão
nas tetas.
|
|
O DESCONHECIDO.- Um dragão!
|
|
MACÁRIO.- Uma mulher! Todas elas
são assim. As que não são assim por fora o
são por dentro. Algumas em falta de cabelos na cabeça
os têm no coração. As mulheres são como
as espadas, às vezes a bainha é de ouro e de esmalte,
e a folha é ferrugenta.
|
|
O DESCONHECIDO.- Falas como um descrido, como um
saciado! E contudo ainda tens os beiços de criança!
Quantos seios de mulher beijaste além do seio de tua ama de
leite? Quantos lábios além dos de tua
irmã?
|
|
MACÁRIO.- A vagabunda que dorme nas ruas,
a mulher que se vende corpo e alma, porque sua alma é
tão desbotada como seu corpo, te digam minhas noites. Talvez
muita virgem tenha suspirado por mim! Talvez agora mesmo alguma
donzela se ajoelhe na cama e reze por mim!
|
|
O DESCONHECIDO.- Na verdade és belo. Que
idade tens?
|
|
MACÁRIO.- Vinte anos. Mas meu peito tem
batido nesses vinte anos tantas vezes como o de um outro homem em
quarenta.
|
|
O DESCONHECIDO.- E amaste muito?
|
|
MACÁRIO.- Sim e não. Sempre e
nunca.
|
|
O DESCONHECIDO.- Fala claro.
|
|
MACÁRIO.- Mais claro que o dia. Se chamas
o amor a troca de duas temperaturas, o aperto de dois sexos, a
convulsão de dois peitos que arquejam, o beijo de duas bocas
que tremem, de duas vidas que se fundem... tenho amado muito e
sempre!... Se chamas o amor o sentimento casto e poro que faz
cismar o pensativo, que faz chorar o amante na relva onde passou a
beleza, que adivinha o perfume dela na brisa, que pergunta
às aves, à manhã, à noite, às
harmonias da música, que melodia é mais doce que sua
voz; e ao seu coração, que formosura mais divina que
a dela... eu nunca amei. Ainda não achei uma mulher assim.
Entre um charuto e uma chávena de café lembro-me
às vezes de alguma forma divina, morena, branca, loura, de
cabelos castanhos ou negros. Tenho-as visto que fazem empalidecer-e
meu peito parece sufocar meus lábios se gelam, minha
mão se esfria... Parece-me então que, se aquela
mulher que me faz estremecer assim, soltasse sua roupa de veludo e
me deixasse por os lábios sobre seu seio um momento, eu
morreria num desmaio de prazer! Mas depois desta vem outra, mais
outra e o amor se desfaz numa saudade que se desfaz no
esquecimento. Como eu te disse, nunca amei.
|
|
O DESCONHECIDO.- Ter vinte anos e nunca ter
amado! E para quando esperas o amor?
|
|
MACÁRIO.- Não sei. Talvez eu ame
quando estiver impotente!
|
|
O DESCONHECIDO.- E o que exigirias para a mulher
de teus amores?
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|
MACÁRIO.- Pouca coisa. Beleza,
virgindade, inocência, amor.
|
|
O DESCONHECIDO.- Mais nada?
|
|
MACÁRIO.- Notai que por beleza indico um
corpo bem feito, arredondado, setinoso, uma pele macia e rosada, um
cabelo de seda frouxa e uns pés mimosos...
|
|
O DESCONHECIDO.- Quanto à virgindade?
|
|
MACÁRIO.- Eu a quereria virgem na alma
como no corpo. Quereria que ela nunca tivesse sentido a menor
emoção por ninguém. Nem por um primo, nem por
um irmão... Que Deus a tivesse criado adormecida na alma
até ver-me, como aquelas princesas encantadas dos contos que
uma fada adormecera por cem anos. Quereria que um anjo a cobrisse
sempre com seu véu, e a banhasse todas as noites do seu
óleo divino para guardá-la santa... Quereria que ela
viesse criança transformar-se em mulher nos meus beijos.
|
|
O DESCONHECIDO.- Muito bem, mancebo! E esperas
essa mulher?
|
|
MACÁRIO.- Quem sabe!
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|
O DESCONHECIDO.- E é no lodo da
prostituição que hás-de
encontrá-la?
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|
MACÁRIO.- Talvez! É no lodo do
oceano que se encontram as pérolas.
|
|
O DESCONHECIDO.- Em mau lugar procuras a
virgindade! É mais fácil achar uma pérola na
casa de um joalheiro que no meio das areias do fundo do mar.
|
|
MACÁRIO.- Quem sabe!...
|
|
O DESCONHECIDO.- Duvidas pois?
|
|
MACÁRIO.- Duvido sempre. Descreio
às vezes. Parece-me que este mundo é um logro. O
amor, a glória, a virgindade, tudo é uma
ilusão.
|
|
O DESCONHECIDO.- Tens razão: a virgindade
é uma ilusão! Qual é mais virgem, aquela que
é deflorada dormindo, ou a freira que ardente de
lágrimas e desejos se revolve no seu catre, rompendo com as
mãos sua roupa de morte, lendo algum romance impuro?
|
|
MACÁRIO.- Tens razão: a virgindade
da alma pode existir numa prostituta, e não existir numa
virgem de corpo. -Há flores sem perfume, e perfume sem
flores. Mas eu não sou como os outros. Acho que uma
taça vazia pouco vale, mas não beberia o melhor vinho
numa xícara de barro.
|
|
O DESCONHECIDO.- E contudo bebes o amor nos
lábios de argila da mulher corrupta!
|
|
MACÁRIO.- O amor? Que te disse que era o
amor? É uma fome impura que se sacia. O corpo faminto
é como o conde Ugolino na sua torre-morderia até num
cadáver.
|
|
O DESCONHECIDO.- Tua comparação
é exata. A meretriz é um cadáver.
|
|
MACÁRIO.- Vale-nos ao menos que sobre seu
peito não se morre de frio!
|
|
O DESCONHECIDO.- Admira-me uma coisa. Tens vinte
anos: deverias ser puro como um anjo e és devasso como um
cônego!
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|
MACÁRIO.- Não é que eu
não voltasse meus sonhos para o céu. A cisterna
também abre seus lábios para Deus, e pede-lhe uma
água pura-e o mais das vezes só tem lodo. Palavra de
honra, que às vezes quero fazer-me frade.
|
|
O DESCONHECIDO.- Frade! Para quê?
|
|
MACÁRIO.- É uma loucura. Enche
esse copo. (Bebe.) Pela Virgem Maria! Tenho
sono. Vou dormir.
|
|
O DESCONHECIDO.- E eu também
Boa-noite.
|
|
MACÁRIO.- Ainda uma vez, antes de dormir,
o teu nome?
|
|
O DESCONHECIDO.- Insistes nisso?
|
|
MACÁRIO.- De todo o meu
coração. Sou filho de mulher.
|
|
O DESCONHECIDO.- Aperta minha mão. Quero
ver se tremes nesse aperto ouvindo meu nome.
|
|
MACÁRIO.- Juro-te que não, ainda
que fosses.
|
|
O DESCONHECIDO.- Aperta minha mão.
Até sempre: na vida e na morte!
|
|
MACÁRIO.- Até sempre, na vida e na
morte!
|
|
O DESCONHECIDO.- E o teu nome?
|
|
MACÁRIO.- Macário. Se não
fosse enjeitado, dir-te-ia o nome de meu pai e o de minha
mãe. Era de certo alguma libertina. Meu pai, pelo que penso,
era padre ou fidalgo.
|
|
O DESCONHECIDO.- Eu sou o diabo. Boa-noite,
Macário.
|
|
MACÁRIO.- Boa-noite, Satã.
(Deita-se. O
DESCONHECIDO sai.) O diabo! uma boa fortuna!
Há dez anos que eu ando para encontrar esse patife! Desta
vez agarrei-o pela cauda! A maior desgraça deste mundo
é ser Fausto sem Mefistófeles... Olá,
Satã!
|
|
SATÃ.- Macário.
|
|
MACÁRIO.- Quando partimos?
|
|
SATÃ.- Tens sono?
|
|
MACÁRIO.- Não.
|
|
SATÃ.- Então já.
|
|
MACÁRIO.- E o meu burro?
|
|
SAT.- Irás na minha garupa.
|
|
(Num caminho.)
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|
(SATÃ
montado num barro preto; MACÁRIO na
garupa.)
|
|
MACÁRIO.- Pára um pouco teu
burro.
|
|
SATÃ.- Não queres chegar?
|
|
MACÁRIO.- É que ele tem um trote
inglês de desesperar os intestinos.
|
|
SATÃ.- E contudo este burro descende em
linha reta do burro em que fez a sua entrada em Jerusalém o
filho do velho carpinteiro José. Vês pois que é
fidalgo como um cavalo árabe.
|
|
MACÁRIO.- Tudo isso não prova que
ele não trota danadamente. Falta-nos muito para chegar?
|
|
SATÃ.- Não. Daqui a cinco minutos
podemos estar à vista da cidade. Hás de vê-la
desenhando no céu suas torres escuras e seus casebres
tão pretos de noite como de dia, iluminada, mas sombria como
uma essa de enterro.
|
|
MACÁRIO.- Tenho ânsia de lá
chegar. É bonita?
|
|
SATÃ.- (Boceja.) Ah!
é divertida.
|
|
MACÁRIO.- Por acaso também
há mulheres ali?
|
|
SATÃ.- Mulheres, padres, soldados e
estudantes. As mulheres são mulheres, os padres são
soldados, os soldados são padres, e os estudantes são
estudantes: para falar mais claro: as mulheres são lascivas,
os padres dissolutos, os soldados ébrios, os estudantes
vadios. Isto salvo honrosas exceções, por exemplo, de
amanhã em diante, tu.
|
|
MACÁRIO.- Esta cidade deveria ter o teu
nome.
|
|
SATÃ.- Tem o de um santo: é quase
o mesmo. Não é o hábito que faz o monge.
Demais, essa terra é devassa como uma cidade,
insípida como uma vila e pobre como uma aldeia. Se
não estás reduzido a dar-te ao pagode, a suicidar-te
de spleen, ou a alumiar-te a rolo, não entres lá.
É a monotonia do tédio. Até as
calçadas!
|
|
MACÁRIO.- Que têm?
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SATÃ.- São intransitáveis.
Parecem encastoadas as tais pedras. As calçadas do inferno
são mil vezes melhores. Mas o pior da história
é que as beatas e os cônegos cada vez que saem, a cada
topada, blasfemam tanto com o rosário na mão que
já estou enjoado. Admiras-te? por que abres essa boca
espantada? Antigamente o diabo corria atrás dos homens, hoje
são eles que rezam pelo diabo. Acredita que faço-te
um favor muito grande em preferir-te à moça de um
frade que me trocaria pelo seu Menino Jesus, e a um cento de padres
que dariam a alma, que já não têm, por uma
candidatura.
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MACÁRIO.- Mas, como dizias, as
mulheres...
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SATÃ.- Debaixo do pano luzidio da
mantilha, entre a renda do véu, com suas faces cor-de-rosa,
olhos e cabelos pretos (e que olhos e que longos cabelos!)
são bonitas. Demais, são beatas como uma
bisavó; e sabem a arte moderna de entremear uma Ave-Maria
com um namoro; e soltando uma conta do rosário lançar
uma olhadela.
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MACÁRIO.- Oh! a mantilha acetinada! os
olhares de andaluza! e a tez fresca como uma rosa! os olhos negros,
muito negros, entre o véu de seda dos cílios!...
Apertá-las ao seio com seus ais, seus suspiros, suas
orações entrecortadas de soluços! Beijar-lhes
o seio palpitante e a cruz que se agita no seu colo, apertar-lhes a
cintura, e sufocar-lhes nos lábios uma
oração... Deve ser delicioso!
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SATÃ.- Tá! tá! tá...
Que ladainha... parece que já estás enamorado, meu
Dom Quixote, antes de ver as Dulcinéias!
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MACÁRIO.- Que boa terra! É o
Paraíso de Mafoma!
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SATÃ.- Mas as moças poucas vezes
tem bons dentes. A cidade colocada na montanha, envolta de
várzeas relvosas, tem ladeiras íngremes e ruas
péssimas. É raro o minuto em que não se
esbarra a gente com um burro ou com um padre. Um médico que
ali viveu e morreu deixou escrito numa obra inédita, que
para sua desgraça o mundo não há-de ler, que a
virgindade era uma ilusão. E contudo não há em
parte alguma mulheres que tenham sido mais vezes virgens que
ali.
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MACÁRIO.- Têm-se-me contado muito
bonitas histórias. Dizem na minha terra que aí,
à noite, as moças procuram os mancebos, que lhes
batem à porta, e na rua os puxam pelo capote Deve ser
delicioso! Quanto a mim, quadra-me essa vida excelentemente; nem
mais nem menos que um Sultão escolherei entre essas belezas
vagabundas a mais bela. Aplicarei contudo o ecletismo ao amor. Hoje
uma, amanhã outra: experimentarei todas as taças. A
mais doce embriaguez é a que resulta da mistura dos
vinhos.
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SATÃ.- A única que tu
ganharás será nojenta. Aquelas mulheres são
repulsivas. O rosto é macio, os olhos lânguidos, o
seio morno... Mas o corpo é imundo. Têm uma lepra que
ocultam num sorriso. Bofarinheiras de infâmia dão em
troco do gozo o veneno da sífilis. Antes amar uma
lazarenta!
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MACÁRIO.- És o diabo em pessoa.
Para ti nada há bom. Pelo que vejo, na criação
só há uma perfeição, a tua. Tudo o mais
nada vale para ti. Substância da soberba, ris de tudo o mais
embuçado no teu desdém. Há uma tradiço,
que quando Deus fez o homem, veio Satã; achou a criatura
adormecida, apalpou-lhe o corpo: achou-o perfeito, e deitou
aí as paixões.
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SATÃ.- Essa história é uma
mentira. O que Satã pôs aí foi o orgulho. E o
que são vossas virtudes humanas senão a
encarnação do orgulho?
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MACÁRIO.- Oh! Ali vejo luzes ao longe.
Uma montanha oculta no horizonte. Disséreis um pântano
escuro cheio de fogos errantes. Por que paras o teu animal?
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SATÃ.- Tenho uma casa aqui na entrada da
cidade. Entrando à direita, defronte do cemitério.
Sturn, meu pajem, lá está preparando a ceia.
Levanta-te sobre meus ombros: não vês naquele
palácio uma luz correr uma por uma as janelas? Sentiram a
minha chegada.
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MACÁRIO.- Que ruínas são
estas? É uma igreja esquecida? A lua se levanta ao longe nas
montanhas. Sua luz horizontal banha o vale, e branqueia os
pardieiros escuros do convento. Não mora ali ninguém?
Eu tinha desejo de correr aquela solidão.
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SATÃ.- É uma propensão
singular a do homem pelas ruínas. Devia ser um frade bem
sombrio, ébrio de sua crença profunda, o
Jesuíta que aí lançou nas montanhas a semente
dessa cidade. Seria o acaso quem lhe pôs no caminho, à
entrada mesmo, um cemitério à esquerda e umas
ruínas à direita?
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MACÁRIO.- Se quisesses, Satã,
podíamos descer pelo despenhadeiro, e ir ter lá
embaixo, enquanto Sturn prepara ceia.
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SATÃ.- Não, Macário. Minha
barriga está seca como a de um eremita; deves também
ter fome. Molhar os pés no orvalho não deve ser bom
para quem vem de viagem. Vamos cear. Daqui a pouco o luar
estará claro e poderemos vir.
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MACÁRIO.- Fiat voluntas tua.
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SATÃ.- Amen!
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(Ao luar.)
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(Junto de uma janela está uma mesa.)
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SATÃ.- Então, não bebes,
Macário? Que tens, que estás pensativo e sombrio?
Olha, desgraçado, é verdadeiro vinho do Reno que
desdenhas!
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MACÁRIO.- E tu és mesmo
Satã?
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SATÃ.- É nisso que pensavas?
És uma criança. De certo que querias ver-me nu e
ébrio como Calibã, envolto no tradicional cheiro de
enxofre! Sangue de Baco! Sou o diabo em pessoa! Nem mais nem menos:
porque tenha luvas de pelica, e ande de calças à
inglesa, e tenha os olhos tão azuis como uma alemã!
Queres que to jure pela Virgem Maria?
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MACÁRIO.- (Bebe.) Este
vinho é bom. Quando se têm três garrafas de
Johannisberg na cabeça, sente-se a gente capaz de escrever
um poema. O poeta árabe bem o disse: -o vinho faz do poeta
um príncipe, e do príncipe um poeta. Sabes quem
inventou o vinho?
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|
SATÃ.- É uma bela coisa o vapor de
um charuto! E demais, o que é tudo no mundo senão
vapor? A adoração é incenso e o incenso o que
é? O amor é o vapor do coração que
embebeda os sentidos. Tu o sabes-a glória é
fumaça.
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|
MACÁRIO.- Sim. É belo fumar! O
fumo, o vinho e as mulheres! Sabes... há ocasião em
que dão-me venetas de viver no Oriente.
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|
SATÃ.- Sim... o Oriente! mas que achas de
tão belo naqueles homens que fumam sem falar, que amam sem
suspirar? É pelo fumo? Fuma aqui... vê, o luar
está belo: as nuvens do céu parecem a fumaça
do cachimbo do Onipotente que resfolga dormindo. Pelas mulheres?
Faze-te vigário de freguesia...
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|
MACÁRIO.- É uma coisa singular
esta vida. Sabes que às vezes eu quereria ser uma daquelas
estrelas para ver de camarote essa Comédia que se chama o
Universo? essa Comédia onde tudo que há mais
estúpido é o homem que se crê um
espertalhão? Vês aquele boi que rumina ali deitado
sonolento na relva? Talvez seja um filósofo profundo que se
ri de nós. A filosofia humana é uma vaidade. Eis
aí, nós vivemos lado a lado, o homem dorme noite a
noite com uma mulher: bebe, come, ama com ela, conhece todos os
sinais de seu corpo, todos os contornos de suas formas, sabe todos
os ais que ela murmura nas agonias do amor, todos os sonhos de
pureza que ela sonha de noite e todas as palavras obscenas que lhe
escapam de dia... Pois bem-a esse homem que se deitou mancebo com
essa mulher ainda virgem, que a viu em todas as fases, em todos os
seus crepúsculos, e acordou um dia com ela ambos velhos e
impotentes, a esse homem, perguntai-lhe o que é essa mulher,
ele não saberá dizê-lo! Ter volvido e revolvido
um livro a ponto de manchar-lhe e romper-lhe as folhas, e
não entendê-lo! Eis o que é a filosofia do
homem! Há cinco mil anos que ele se abisma em si, e
pergunta-se quem é, donde veio, onde vai, e o que tem mais
juízo é aquele que moribundo crê que
ignora!
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|
SATÃ.- Eis o que é profundamente
verdade! Perguntai ao libertino que venceu o orgulho de cem virgens
e que passou outras tantas noites no leito de cem devassas,
perguntai a D. Juan, Hamlet ou ao Faust o que é a mulher,
e... nenhum o saberá dizer. E isso que te digo não
é romantismo. Amanhã numa taverna poderás
achar Romeu com a criada da estalagem, verás D. Juan com
Julietas, Hamlet ou Faust sob a casaca de um dandy. É que
esses tipos são velhos e eternos como o sol. E a humanidade
que os estuda desde os primeiros tempos ainda não entende
esses míseros, cuja desgraça é não
entender; e o sábio que os vê a seu lado deixa esse
estudo para pensar nas estrelas; o médico que talvez foi
moço de coração e amou e creu, e desesperou e
descreu, ri-se das doenças da alma e só vê a
nostalgia na ruptura de um vaso, o amor concentrado quando se
materializa numa tísica. Se Antony ainda vive e deu-se
à medicina é capaz de receitar uma dose de jalapa
para uma dor íntima; um cautério para uma dor de
coração!
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|
MACÁRIO.- Falas como um livro, como dizem
as velhas. Só Deus ou tu sabes se o La Ramée ou D.
Cesar de Basan, Santa Teresa ou Marion Delorme, o sábio ou o
ignorante, Creso ou Iro, Goethe ou o mendigo ébrio que
canta, entenderam a vida. Quem sabe onde está a verdade? nos
sonhos do poeta, nas visões do monge, nas
canções obscenas do marinheiro, na cabeça do
doido, na palidez do cadáver, ou no vinho ardente da orgia?
Quem sabe?
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|
SATÃ.- És triste como um sino que
dobra. Não falemos nisto. Fala-me antes na beleza de alguma
virgem nua, na languidez de uns olhos negros, na convulsão
que te abala nalguma hora de deleite. A minha guitarra está
ali: queres que te cante alguma modinha? Pela lua! estás
distraído como um fumador de ópio!
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MACÁRIO.- No que penso? Hás de rir
se contar-to. É uma história fatal.
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SATÃ.- Deixa-me acender outro charuto...
Muito bem. Conta agora. É algum romance?
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MACÁRIO.- Não: lembrei-me agora de
uma mulher. Uma noite encontrei na rua uma vagabunda. A noite era
escura. Eu ia pelas ruas à toa... Segui-a. Ela levou-me
à sua casa. Era um casebre. A cama era um catre: havia um
colchão em cima, mas tão velho, tão batido,
que parecia estar desfeito ao peso dos que aí haviam-se
revolvido. Deitei-me com ela. Estive algumas horas. Essa mulher
não era bela: era magra e lívida. Essa alcova era
imunda. Eu estava aí frio: o contato daquele corpo amolecido
não me excitava sensações; e contudo eu mentia
à minha alma, dando-lhe beijos. Eu saí dali. No outro
dia de manhã voltei. A casa estava fechada. Bati. Não
me responderam. Entrei: uma mulher saíu-me ao encontro.
Perguntei-lhe pela outra. Silêncio! me disse a velha,
está deitada ali no chão Morreu esta noite E com um
ar cínico... «Quereis vê-la? está nua...
vão amortalhá-la...»
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|
SATÃ.- Na verdade, é singular. E o
nome dessa mulher?
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|
MACÁRIO.- Esqueci-o. Talvez amanhã
eu to diga: amanhã ou depois... que importa um nome? E
contudo essa misérrima com quem deitei-me uma noite, que
pretendia ter o segredo da virgindade eterna de Marion Delorme, que
me falava de amanhã com tanta certeza, que mercadejava sua
noite de amanhã como vendera segunda vez a de seu hoje e que
de certo morreu pensando nos meios de excitar mais deleite, na
receita da virgindade eterna que ela sabia como a antiga Marion
Delorme... essa mulher que esqueci como se esquecem os que
são mortos, me fez ainda agora estremecer.
|
|
SATÃ.- E quem sabe se aquela mulher a
cujo lado estiveste não era a ventura?
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MACÁRIO.- Não te entendo.
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SATÃ.- Quem sabe se naquele pântano
não encontrarias talvez a chave de ouro dos prazeres que
deliram?
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MACÁRIO.- Quem sabe! Talvez.
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|
SATÃ.- É tarde. Agora é uma
caveira a face que beijaste -uma caveira sem lábios, sem
olhos e sem cabelos. O seio se desfez... A vulva onde a sede imunda
do soldado se enfurnava-como um cão se sacia de lodo-foi
consumida na terra. Tudo isso é comum. É uma
idéia velha não? E quem sabe se sobre aquele
cadáver não correram lágrimas de alguma
esperança que se desvaneceu? se com ela não se
enterrou teu futuro de amor? Não gozaste aquela mulher?
|
|
MACÁRIO.- Não.
|
|
SATÃ.- Se ali ficasse mais alguma hora,
talvez ela te morresse nos braços. Aquela agonia, o beijo
daquela moribunda talvez te regenerasse. Da morte nasce muitas
vezes a vida. Dizem que se a rabeca de Paganini dava sons
tão humanos, tão melodiosos, é que ele fizera
passar a alma de sua mãe, de sua velha mãe moribunda,
pelas cordas e pela caverna de seu instrumento. Sentes frio, que te
embuças assim no teu capote?
|
|
MACÁRIO.- Satã, fecha aquela
janela. O ar da noite me faz mal. O luar me gela. Demais, senti nas
folhagens ao longe um estremecer. Que som abafado é aquele
ao longe? Dir-se-ia o arranco de um velho que estrebucha.
|
|
SATÃ.- É a meia-noite. Não
ouves?
|
|
MACÁRIO.- Sim. É a meia-noite. A
hora amaldiçoada; a hora que faz medo às beatas, e
que acorda o ceticismo. Dizem que a essa hora vagam
espíritos, que os cadáveres abrem os lábios
inchados e murmuram mistérios É verdade,
Satã?
|
|
SATÃ.- Se não tivesses tanto frio,
eu te levaria comigo ao campo. Eu te adormeceria no
cemitério e havias ter sonhos como ninguém os tem, e
como os que os têm não querem crê-los.
|
|
MACÁRIO.- Bem, muito bem. Irei
contigo.
|
|
SATÃ.- Vamos pois. Dá-me tua
mão. Está fria como a de um defunto! Dentro em alguns
momentos estaremos longe daqui. Dormirás esta noite um sono
bem profundo.
|
|
MACÁRIO.- O da morte?
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|
SATÃ.- Fundo como o do morto: mas
acordarás, e amanhã lembrarás sonhos como um
ébrio nunca vislumbrou.
|
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MACÁRIO.- Vamos: -estou pronto.
|
|
SATÃ.- Deixa-me beber um trago de
curaçau. Vamos. A lua parou no céu. Tudo dorme.
É a hora dos mistérios. Deus dorme no seio da
criação como Lot no regaço incestuoso de sua
filha. Só vela satã. satã, com a mão
sobre o estômago de Macário, que está deitado
sobre um túmulo.
|
|
SATÃ.- Acorda!
|
|
MACÁRIO.-
(Estremece.) Ah! pensei nunca mais acordar! Que sono
profundo!
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|
SATÃ.- Divertis-te muito à noite,
não?
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|
MACÁRIO.- É horrível!
horrível!
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|
SATÃ.- Fala.
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MACÁRIO.- Meu peito se exauriu. Meus
lábios não podem transbordar estes
mistérios.
|
|
SATÃ.- Era pois muito medonho o que vias?
Levanta-te daí.
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|
MACÁRIO.- Não posso: quebrou-se
meu corpo entre os braços do pesadelo. Não posso.
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|
SATÃ.- Liba esse licor: uma gota bastaria
para reanimar um cadáver.
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|
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MACÁRIO.- (Toca-o nos
lábios.) Que fogo! meu peito arde. Ah! ah! que
dor!
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|
SATÃ.- Não sabes que para o metal
bruto se derreter e cristalizar é míster um fogo
ardente, ou a centelha magnética?
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MACÁRIO.- Que sonho! Era um ar abafado...
sem nuvens e sem estrelas!... Que escuridão! Ouvia-se apenas
de espaço a espaço um baque como o de um peso que cai
no mar e afunda-se... Às vezes vinha uma luz, como uma
estrela ardente, cair e apagar-se naquela lagoa negra... Depois eu
vi uma forma de mulher pensativa. Era nua... e seu corpo perfeito
como era de um anjo-mas era lívido como o mármore.
Seus olhos eram vidrados, os lábios brancos, e as unhas
roxeadas. Seu cabelo era louro, mas tinha uns reflexos de branco.
-Que dor desconhecida a gelara assim e lhe embranquecera os
cabelos? Não o sei. Ela se erguia às vezes,
cambaleando, estremecendo suas pernas indecisas, como uma
criança que tirita;... e se perdia nas trevas. Eu a segui.
Caminhamos longo tempo num chão pantanoso...
|
|
SATÃ.- E tu a viste parar numa torrente
que transbordava de cadáveres-tomá-los um por um nos
braços sem sangue, apertar-se gelada naqueles seios de gelo,
revolver-se, tremer, arquejar e erguer-se depois sempre com um
sorriso amargo.
|
|
MACÁRIO.- Quem era essa mulher?
|
|
SATÃ.- Era um anjo. Há cinco mil
anos que ele tem o corpo da mulher e o anátema de uma
virgindade eterna. Tem todas as sedes, todos os apetites lascivos,
mas não pode amar. Todos aqueles em que ela toca se gelam.
Repousou o seu seio, roçou suas faces em muitas virgens e
prostitutas, em muitos velhos e crianças, bateu a todas as
portas da criação, estendeu-se em todos os leitos e
com ela o silêncio... Essa estátua ambulante é
quem murcha as flores, quem desfolha o outono, quem amortalha as
esperanças.
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|
MACÁRIO.- Quem é?
|
|
SATÃ.- E depois o que viste?
|
|
MACÁRIO.- Vi muita coisa... Eram mil
vozes que rebentavam do abismo, ardentes de blasfêmia! Das
montanhas e dos vales da terra, das noites de amor e das noites de
agonia, dos leitos do noivado aos túmulos da morte erguia-se
uma voz que dizia: -Cristo, sê maldito! Glória,
três vezes glória ao anjo do mal! E as estrelas fugiam
chorando, derramando suas lágrimas de fogo... E uma figura
amarelenta beijava a criação na fronte, e esse beijo
deixava uma nódoa eterna...
|
|
SATÃ.- Estás muito pálido.
E contudo sonhaste só meia hora.
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|
MACÁRIO.- Eu pensei que era um
século. O que um homem sente em cem anos não equivale
a esse momento. Que estrela é aquela que caiu do céu,
que ai é esse que gemeu nas brisas?
|
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SATÃ.- É um filho que o pai
enjeitou. É um anjo que desliza na terra. Amanhã
talvez o encontres. A pérola talvez se enfie num colar de
bagas impuras, talvez o diamante se engaste em cobre. Aposto como
daqui a um momento será uma mulher, daqui a um dia uma Santa
Madalena!
|
|
MACÁRIO.- Descrido?
|
|
SATÃ.- O anjo é a criatura do
amor. E o que há mais aberto ao amor que a filha de
Jerusalém? Qual é a sombra onde mais vezes tem
vibrado essa pólvora mágica e incompreensível?
Qual é o seio onde têm caído ardentes mais
lágrimas de gozo?
|
|
MACÁRIO.- Não ouviste um ai? um
outro ai ainda mais dorido?
|
|
SATÃ.- É algum bacurau que passou:
algum passarinho que acordou nas garras de uma coruja.
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|
MACÁRIO.- Não: o eco ainda o
repete. Ouves? é um ai de agonia, uma voz humana! Quem geme
a essas horas? Quem se torce na convulsão da morte?
|
|
SATÃ.- (Dando uma
gargalhada.) Ah! ah! ah!
|
|
MACÁRIO.- Que risada infernal. Não
vês que tremo? que o vento que me trouxe esse ai me arrepiou
os cabelos? Não sentes o suor frio gotejar de minha
fronte?
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|
SATÃ.- (Ri-se.) Ah!
ah! ah!
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|
MACÁRIO.- atã! satã! Que ai
era aquele?
|
|
SATÃ.- Queres muito sabê-lo?
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MACÁRIO.- Sim! pelo inferno ou pelo
céu!
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|
SATÃ.- É o último suspiro
de uma mulher que morreu, é a última
oração de uma alma que se apagou no nada.
|
|
MACÁRIO.- E de quem é esse
suspiro? por quem é essa oração?
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|
SATÃ.- De certo que não é
por mim! Insensato, não adivinhas que essa voz é a de
tua mãe, que essa oração era por ti?
|
|
MACÁRIO.- Minha mãe! minha
mãe!
|
|
SATÃ.- Pelas tripas de Alexandre
Bórgia! Choras como uma criança!
|
|
MACÁRIO.- Minha mãe! minha
mãe!
|
|
SATÃ.- Então ficas aí?
|
|
MACÁRIO.- Vai-te, vai-te; Satã! Em
nome de Deus! em nome de minha mãe! eu te digo: -Vai-te!
|
|
SATÃ.-
(Desaparecendo.) É por pouco tempo. Amanhã
me chamarás. Quando me quiseres é fácil
chamar-me. Deita-te no chão com as costas para o céu;
põe a mão esquerda no coração: com a
direita bate cinco vezes no chão, e murmura
-Satã!
|
|
(A estalagem da estrada.)
|
|
(Do princípio. As janelas fechadas. Batem
à porta.)
|
|
MACÁRIO.- (Acordando.)
Que sonho! Foi um sonho... Satã! Qual Satã! Aqui
estão as minhas botas, ali está o meu ponche... A
ceia está intacta na mesa! Minha garrafa vazia do mesmo
modo! Contudo eu sou capaz de jurar que não sonhei!
Olá mulher da venda!
|
|
A MULHER.- (Batendo de
fora.) Senhor moço! Abra! abra!
|
|
MACÁRIO.- Que algazarra do diabo é
essa? (Abre a porta. Entra a mulher.)
|
|
A MULHER.- Ah! Senhor! estou cansada de bater
à sua porta! Pois o senhor dorme a sono solto até
três horas da tarde!
|
|
MACÁRIO.- Como?
|
|
A MULHER.- Nem ceou-aposto...: Nem ceou. A vela
ardeu toda. Ora vejam como podia pegar fogo na casa! Pegou no sono,
comendo de certo!
|
|
MACÁRIO.- Esta é melhor! Pois aqui
não esteve ninguém ontem comigo?
|
|
A MULHER.- Pela fé de Cristo!
ninguém.
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|
MACÁRIO.- Pois eu não saí
daqui de noite, alta noite, na garupa de um homem de ponche
vermelho e preto, porque meu burro tinha fugido para o sítio
do Nhô Quito?
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|
A MULHER.- N ao, senhor! não ouvi nada...
O burro está amarrado na baia. Comeu uma quarta de
milho...
|
|
MACÁRIO.- (Chega à
janela.) Como! Não choveu a cântaros esta
noite? É singular! Eu era capaz de jurar que cheguei
até a cidade, antes de meia-noite!
|
|
A MULHER.- Se não foi por artes do diabo,
o senhor estava sonhando.
|
|
MACÁRIO.- O diabo! (Dá
uma gargalhada à força.) Ora, sou um
pateta! Qual diabo, nem meio diabo! Dormi comendo, e sonhei nestas
asneiras!... Mas que vejo! (Olhando para o
chão.) Não vês?
|
|
A MULHER.- O que é? Ai! ai! uns sinais de
queimado aí pelo chão! Cruz! Cruz! minha Nossa
Senhora de S. Bernardo!... É um trilho de um
pé...
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MACÁRIO.- Tal e qual um pé!...
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|
A MULHER.- Um pé de cabra... um trilho
queimado... Foi o pé do diabo! o diabo andou por aqui!
|

Segundo episódio
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Na Itália.
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Um vale, montanhas à esquerda. Um rio torrentoso
à direita. No caminho uma mulher sentada no chão
acalenta um homem com a cabeça deitada no seu
regaço.
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MACÁRIO.-
(Cismando.) Morrer! morrer!... quando o vinho do amor
embebeda os sentidos, quando corre em todas as veias e agita todos
os nervos... parece que esgotou-se tudo. Amanhã não
pode ser tão belo como hoje. E acordar do sonho, ver
desfeita uma ilusão! Nunca!... Olá, mulher, afasta-te
do caminho. Quero passar.
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|
A MULHER.- Não o piseis, não, ele
dorme. Dorme... está cansado Não vedes como
está pálido? Coitado!
|
|
MACÁRIO.- Sim: está pálido:
não é o luar que o faz lívido. Eu o vejo.
É teu amante? A lua que alveja tuas tranças grisalhas
ri de teu amor. Messalina de cabelos brancos, quem apertas no seio
emurchecido? Tão alta noite, quem é esse mancebo de
cabelos negros que adormece no teu colo?. Como está
pálido... Que testa fria... Mulher! louca mulher, quem
acalentas é um cadáver.
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|
A MULHER.- Um defunto?... não... ele
dorme: não vedes? É meu filho... Apanharam-no boiando
nas águas levado pelo rio... Coitado! como está
frio!... é das águas. Tem os cabelos ainda
gotejantes... Diziam que ele morreu... Morrer! meu filho! é
impossível... Não sabeis? ele é a minha
esperança, meu sangue, minha vida. É meu passado de
moça, meus amores de velha... Morrer ele? É
impossível. Morrer? Como? Se eu ainda sinto
esperanças, se ainda sinto o sangue correr-me nas veias, e a
vida estremecer meu coração!
|
|
MACÁRIO.- Velha! estás doida.
|
|
A MULHER.- Não morreu, não... Ele
está dormindo. Amanhã há de acordar...
Há muito tempo que ele dorme... Que sono profundo... nem um
ressonar! Ele foi sempre assim desde criança Quando eu o
embalava ao meu seio, ele às vezes empalidecia... que
parecia um morto, tanto era pálido e frio... Meu filho!
Hei-de aquentá-lo com meus beiços, com meu
corpo...
|
|
MACÁRIO.- Pobre mãe!
|
|
A MULHER.- Falai mais baixo. Eu pedi ao vento
que se calasse, ao rio que emudecesse... Não vedes? tudo
é silencio. Escuta: sabes tocar? Vai ver tua viola-e canta
alguma cantiga da tua terra. Dizem que a música faz ter
sonhos sossegados...
|
|
MACÁRIO.- Sonhos! que sonhos soerguem teu
lençol, ó leito da. morte? (Passa
adiante.) Esta mulher está doida. Este moço
foi banhar-se na torrente e afogou-se. Eu vi carregarem seu
cadáver úmido e gelado. Pobre Mãe! embala-o nu
e macilento no seu peito, crendo embalar a vida. Lonca... Feliz
talvez! quem sabe se a ventura não é a
insânia?
|
|
(Mais longe, sentado num rochedo à beira do rio,
está PENSEROSO
cismando.)
|
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PENSEROSO.- É alta noite. Disseram-me
ainda agora que eram duas horas. É doce pensar ao
clarão da lua quando todos dormem. A solidão tem
segredos amenos para quem sente. O coração do mancebo
é como essas flores pálidas que só abrem de
noite, e que o sol murcha e fecha. Tudo dorme. A aldeia repousa.
Só além, junto das fogueiras os homens da montanha e
do vale conversam suas saudades. Mais longe a toada monótona
da viola se mistura à cantilena do sertanejo, ou aos
improvisos do poeta singelo da floresta, alma ignorante e pura que
só sabe das emoções do sentimento, e dos
cantos que lhe inspira a natureza virgem de sua terra. O rio corre
negro a meus pés, quebrando nas pedras sua escuma prateada
pelos raios da lua que parecem gotejar dentre os arvoredos da
margem. No silencio sinto minha alma acordar-se embalada nas redes
moles do sonho. É tão doce o sonhar para quem ama!...
No que estará ela pensando agora? Cisma, e lembra-se de mim?
Dorme e sonha comigo? Ou encostada na sua janela ao luar sente uma
saudade por mim?
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MACÁRIO.-
(Passando.) Penseroso! Boa noite, Penseroso! Que imaginas
tão melancólico?
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PENSEROSO.- Boa noite, Macário. Onde vais
tão sombrio?
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MACÁRIO.-
(Sombrio.) Vou morrer.
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PENSEROSO.- Eu sonhava em amor!
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MACÁRIO.- E eu vou morrer!
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PENSEROSO.- Tu brincas. Vi um sorriso nos teus
lábios.
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MACÁRIO.- É um sorriso triste,
não? Eu to juro pela alma de minha mãe, vou
morrer.
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PENSEROSO.- Morrer! tão moço! E
não tens pena dos que chorarão por ti? daquelas
pobres almas que regarão de lágrimas ardentes teu
rosto macilento, teu cadáver insensível?
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MACÁRIO.- Não; não tenho
mae. Minha mãe não me embalará endoidecida
entre seus joelhos, pensando aquentar com sua febre de louca o
filho que dorme. Ninguém chorará. Não tenho
mãe.
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PENSEROSO.- Pobre moço! não
amas!
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MACÁRIO.- Amo... amo sim. Passei toda
esta noite junto ao seio de uma donzela, pura e virgem como os
anjos.
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PENSEROSO.- Que tens? Cambaleias. Estás
ébrio?
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MACÁRIO.- Ébrio sim! ébrio
de amor... de prazer. Aquela criança inocente embebedou-me
de gozo. Que noite! Parece que meu corpo desfalece. E minha alma
absorta de ternura só tem um pensamento-morrer!
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PENSEROSO.- Amar e não querer viver!
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MACÁRIO.- Ela é muito bela. Eu
vivi mais nesta noite que no resto de minha vida. Um mundo novo se
abriu ante mim. Amei.
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PENSEROSO.- Não é verdade que a
mulher é um anjo?
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MACÁRIO.- Sim-é um anjo que nos
adormece, e nos seus braços nos leva a uma região de
sonhos de harmonias desconhecidas. Sua alma se perde conosco num
infinito de amor, como essas aves que voam à noite, e se
mergulham no seio do mistério.
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PENSEROSO.- A mulher! Oh! se todos os homens as
entendessem! Essas almas divinas são como as fibras
harmoniosas de uma rabeca. O ignorante não arranca dela um
som melodioso... embalde suas mãos grosseiras revolvem e
apertam o arco sobre elas-embalde! somente sons ásperos
ressoam. Mas que a mão do artista as vibre, que a alma do
músico se derrame nelas, e do instrumento grosseiro do
mendigo ignorante, ou do cego vagabundo, como do stradivarius
divino, exalam-se ais, vozes humanas, suspiros e acentos
entrecortados de lágrimas.
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MACÁRIO.- Oh! sim! Se na vida há
uma coisa real e divina é a arte; e na arte se há um
raio do céu é na música; na música que
nos vibra as cordas da alma, que nos acorda da modorra da
existência a alma embotada. Oh! é tão doce
sentir a voz vaporosa que trina, que nos enleva e que parece que
nos faz desfalecer, amar, e morrer!
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PENSEROSO.- E é tão doce amar! Eu
amei, eu amo muito. Sabe Deus as noites que me ajoelho pensando
nela!... A brisa bebe meus suspiros, e minhas lágrimas
silenciosas e doces orvalham meu rosto.
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MACÁRIO.- Oh! o amor! e por que
não se morre de amor! Como uma estrela que se apaga pouco a
pouco entre perfumes e nuvens cor-de-rosa, por que a vida
não desmaia e morre num beijo de mulher? Seria tão
doce inanir e morrer sobre o seio da amante enlanguescida! No
respirar indolente de seu colo confundir um último
suspiro!
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PENSEROSO.- Amar de joelhos, ousando a medo nos
sonhos roçar de leve num beijo os cílios dela, ou
suas tranças de veludo! Ousando a medo suspirar seu nome!
Esperando a noite muda para contá-lo à lua
vagabunda!
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MACÁRIO.- Morrer numa noite de amor!
Rafael no seio de sua Fornarina! Nos lábios perfumados da
Italiana, adormecer sonolento... dormir e não acordar!
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PENSEROSO.- Que tens? Estás fraco.
Senta-te junto de mim. Repousa tua cabeça no meu ombro. O
luar está belo, e passaremos a noite conversando em nossos
sonhos e nossos amores...
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MACÁRIO.-
(Desfalecendo.) Tudo se escurece... Não
sentes que tudo anda à roda?... Que vertigem!...
Dá-me tua mão!... Sim. Enxuga minha fronte. Que
suor!
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PENSEROSO.- Como estás abatido... Como
empalideces! Ah! Como resvalas... Que tens, meu amigo?
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MACÁRIO.- Se eu pudesse morrer!
(Desmaia.)
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(SATÃ
entra.)
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SATÃ.- Que loucura! Esse desmaio veio a
tempo; seria capaz de lancar-se à torrente. Porque amou, e
uma bela mulher e embriagou no seu seio, querer morrer!
(Carrega-o nos braços.)
Vamos... E como é belo descorado assim! com seus cabelos
castanhos em desordem, seus olhos entreabertos e úmidos, e
seus lábios feminis! Se eu não fora Satã, eu
te amaria, mancebo... (Vai levá-lo.)
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PENSEROSO.- Quem és tu? Deixa-o... eu o
levarei.
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SATÃ.- Quem eu sou? que te importa? Vou
deitá-lo num leito macio. Daqui a pouco seu desmaio
passará. É um efeito do ar frio da noite sobre uma
cabeça infantil ardente de febre. Adeus, Penseroso.
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|
PENSEROSO.- Quem és tu, desconhecido, que
sabes meu nome?
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MACÁRIO.- E Satã.
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|
MACÁRIO.- Tenho tédio, Sat!
Aborreces-me como se aborrecem as amantes esquecidas.
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|
SATÃ.- Tens cartas aí? Joguemos.
Que queres? a ronda, a barca, o lasquenet?
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MACÁRIO.- Sou infeliz no jogo. Queimo-me
e perco. Quando aposto e perco, tenho desejos de atirar com as
cartas à cara do banqueiro.
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|
SATÃ.- Pois eu jogo, perco e gosto de
jogar. É que somos como Adão e Eva, os ex ossibus,
caro ex carne. A propósito de jogo, queres que te conte uma
história?
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MACÁRIO.- Mentirosa ou verdadeira?
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|
SATÃ.- É o que não importa:
nem mais nem menos que as Mil e Uma Noites. Um dia deu-me à
lua para virar a cabeça de uma moca. Meti-me no
paletó de um mancebo pálido, alumiado de seus sonhos
de poeta, transbordando de orgulho: no mais nem feio nem bonito,
tinha olhos pardos, o cabelo longo em anéis e a barba
luzente como cetim. O moço tinha uma amante. Era uma moca
bonita, morena, de olhos muito lânguidos e muito
úmidos; o que tinha de mais melindroso era a boquinha de
rosa e mãozinhas as mais suaves do mundo.
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|
MACÁRIO.- Tua história é
velha como o dilúvio. É difusa como um folhetim.
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|
SATÃ.- Estás massante como
Falstaff bêbedo. Não importa Quero alegrar-te um
pouco. A história é divertida. Podia-se bem
torneá-la num volume em 8.° com estampas e retrato do
autor, com a competente carta-prólogo de moda. Mas escuta:
sou mais fiel que os Sermonistas, serei breve o mais
possível. Ora, a amante tinha uma irmã. Pálida
e suave como a mais bela das amantes de Filipe II: era o retrato
vivo da Calderona. Eram aquelas pálpebras rasgadas à
espanhola, uns olhos negros cheios de fogo meridional, o seio
adormecido. Acrescenta a essa imagem que a moça era virgem
como um botão de rosa... Fazia sonhar a amante do rei quando
seminua, sentada sobre as bordas do leito, repousando a mão
sobre a face, sentia as lágrimas do amor e da saudade
banharem-lhe os olhos ao luar. Isto que te digo o moço o
pensou. Foi um nunca findar de versos, de passeios românticos
pelos vales, pelas encostas das montanhas, um inteiro viver e
morrer por ela, como ele o dizia nalgum soneto... Vês que
torno-me poético... Quando vi o moço com a
cabeça tonta, revolvendo-se pálido nos seus
delírios esperançosos, à fé de bom
Diabo que sou, interessei-me por ele. Demais, pareciam morrer um
pelo outro. Os apertos de mãos a furto, os olhares cheios de
languidez, tudo isso parece que azoinou a mente virginal da
donzela. Uma noite na sombra, a medo beijaram-se. Aquele beijo
tinha amor e loucura nos lábios. O moço perdeu-se de
amor. Escreveu-lhe uma carta: transbordou aí todas as suas
poesias, toda a febre de seu devaneio... Não te rias,
é d'estilo, Macário. O que há de mais
sério e risível que o amor? As falas de Romeu ao
luar, os suspiros de Armida, os sonetos de Petrarca tomados ao
sério dão desejos de gargalhar...
A
partida estava proposta, as paradas feitas, e eu para assegurar o
jogo tinha chumbado os dados. Era de apostar a minha cabeça
contra a de um santo, todas as mulheres belas da terra por uma
bruxa.
|
|
MACÁRIO.- Adivinho... ganhaste?
|
|
SATÃ.- Que sofreguidão! Não
contava com o anjo da guarda da moça. Fez umas
cócegas na criancice da virgem, e lá se vai ela toda
chorosa levar a carta à irmã... O tal anjo que sabia
orelhar a sua sota bifou-me o jogo; velhaqueou com o velhaco,
surripiou os dados, e numa risada inocente chuleou-me a parada.
|
|
MACÁRIO.- Pobre moça!
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|
SATÃ.- E o rapaz que perdeu as suas
ilusões... Mas quero desforra.
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|
MACÁRIO.- Desforra? tomas duas vezes.
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|
SATÃ.- É doloroso. Mas o mundo
é do diabo, assim como o céu é dos tolos.
Falam de convento. Querem cortar os cabelos negros da moça e
cosê-la na mortalha da freira. Ora pois, se consigo ao mesmo
tempo virar a cabeça da moça e da freira, mandar o
anjo limpar a mão à parede, as santas que lhe peguem
com um trapo quente. Demais a partida começou.
|
|
MACÁRIO.- E ela quer?
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|
SATÃ.- Isso de mulheres, nem eu, que sou
o Diabo, as entendo. Quem entende o vento, as ondas e o murmurar
das folhas? A mulher é um elemento. A santa mais santa, a
virgem mais pura, há instantes em que se daria a
Quasímodo; e Messalina era capaz de enjeitar Romeu ou Don
Juan. Mas enfim... Macário?
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|
MACÁRIO.-
(Dormindo.) Hum!
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|
SATÃ.- Dorme como um cão. Boa
noite, minha criança. Vou fazer uma visita a uma bela da
vizinhança que anda regateando o que lhe resta de alma para
ser moça três dias. Até lá dará
meia-noite.
|
|
(MACÁRIO, PENSEROSO.)
|
|
MACÁRIO.- Que idéia rola no teu
cérebro inflamado, meu poeta Como um ramo despido de folhas
que se dobra ao peso de um bando de aves da noite, por que tua
cabeça se inclina ao peso dos pensamentos?
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|
PENSEROSO.- E contudo eu amei-a! eu amei tanto
Sagrei-a no fundo de minha alma a rainha das fadas, e ressumbrei
nela o anjo misterioso que me havia de conduzir adormecido no seu
batel mágico a um mundo maravilhoso de amores divinos. Se
fui poeta, se pedi a Deus os delírios da
inspiração, foi para encantar com seu nome as cordas
douradas do alaúde, para votar nos seus joelhos as
páginas de ouro de meus poemas, e semear o seu caminho dos
louros da minha glória!
|
|
MACÁRIO.- Oh! acordar como Julieta com
seu Romeu pálido no seio, com a cabeça
romântica ainda dourada do último reflexo do
crepúsculo da vida, acordar dos sonhos de noiva no
sudário da morte, com os goivos murchos dos finados na
fronte em vez da coroa nupcial cheirosa da amante de Romeu!
Apertá-lo embalde ao seio ardente, banhar-lhe de
lágrimas de fogo as faces pálidas, e de beijos os
lábios frios, e procurar-lhe insana pelos lábios um
derradeiro assomo de vida ou uma gota de veneno para ela. É
duro, é triste! é um caso que merece as
lágrimas mais doloridas dos olhos. -Mas dói ainda
mais fundo acordar dos sonhos esperançosos com o
cadáver frio das esperanças sobre o peito! Pobre
Penseroso! Amaste um instante que foi tua vida, como Julieta e como
Romeu: e não tiveste a conversa ao luar no jardim de
Capuleto, não tremeste nas falas amorosas da primeira noite
de amor, e não soubeste que doces que são os beijos
da longa despedida, e o pensar que não são as aves da
manhã, mas o rouxinol do vale quem gorjeia nas romeiras, que
o revérbero de luz branca nas nuvens do Oriente, e o apagar
das estrelas não crespusculava o dia, e crer na vida em si e
numa mulher com as mãos de uma pálida amante sobre o
coração!
|
|
PENSEROSO.- Por ela fui pedir à
solidão os murmúrios, fui abrir meu
coração aos hálitos moribundos do
crepúsculo, ajoelhei-me junto das cruzes da montanha, e no
sussurro das aves que adormeciam, no cintilar das primeiras
estrelas da noite, na gaze transparente e purpurina que desdobrava
seu véu luminoso por entre as sombras do vale, em toda essa
natureza bela que dormia fui escutar as vozes intimas do amor, e
meu peito acordou-se cantando e sonhando com ela!
|
|
MACÁRIO.- Tenho pena de ti. Mas
consola-te. Que valem as lágrimas insensatas? Todas elas
são assim. Eu também chorei, mas, como as gotas que
porejam da abóbada escura das cavernas, essas
lágrimas ardentes deixaram uma crosta de pedra no meu
coração. Não chores. Vem antes comigo.
Geórgio dá hoje uma ceia: uma orgia esplêndida
como num romance. Teremos os vinhos da Espanha, as pálidas
voluptuosas da Itália, e as americanas morenas, cujos beijos
têm o perfume vertiginoso das magnólias e o ardor do
sangue meridional. Não há melhor túmulo para a
dor que uma taça cheia de vinho ou uns olhos negros cheios
de languidez.
|
|
PENSEROSO.- Não: vai só. -Se tu
soubesses no que eu penso e no que tenho pensado! Enquanto eu falo
a minha alma desvaria, e a minha febre devaneia. Sonhei sangue no
peito dela, sangue nas minhas mãos, sangue nos meus
lábios, no céu, na terra... em tudo! Pareceu-me que
tremia nas escadas bambas do cadafalso... senti a risada amarela do
homem da vingança... depois minha cabeça
escureceu-se... Pensei no suicídio... Macário,
Macário, não te rias de mim! como o vagabundo, que se
debruça sobre um precipício sem fundo, senti a
vertigem regelar meus cabelos hirtos e um suor de medo banhar minha
fronte... tenho medo! Sou um doido, Macário, eu o sei. Que
longa vai essa noite! A lua avermelhada não lança luz
no céu escuro; nem a brisa no ar: é uma noite de
verão, ardente como se a natureza também tivesse a
febre que inflama meu cérebro!...
|
|
(Numa sala.)
|
|
(Sobre a mesa livros de estado. PENSEROSO encostado na mesa.
MACÁRIO
fumando.)
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|
PENSEROSO.- Li o livro que me deste,
Macário... Li-o avidamente. Parece que no
coração humano há um instinto que o leva
à dor, como o corvo ao cadáver. Aquele poema é
frio como um cadáver. É um copo de veneno. Se aquele
livro não é um jogo de imaginação, se o
ceticismo ali não é máscara de comédia,
a alma daquele homem é daquelas mortas em vida, onde a
mão do vabagundo podia semear sem susto as flores inodoras
da morte.
|
|
MACÁRIO.- E o ceticismo não tem a
sua poesia?... O que é a poesia, Penseroso? Não
é porventura essa comoção íntima de
nossa alma com tudo que nos move as fibras mais íntimas, com
tudo que é belo e doloroso?... A poesia será
só a luz da manhã cintilando na areia, no orvalho,
nas águas, nas flores, levantando-se virgem sobre um leito
de nuvens de amor, e de esperança? Olha o rosto
pálido daquele que viu, como a Niobe, morrerem uma por uma,
feridas pela mão fatal que escreveu a sina do homem, suas
esperanças nutridas da alma e do coração-e
dize-me se no riso amargo daquele descrido, se na ironia que lhe
cresta os beiços não há poesia como na
cabeça convulsa do Laocoonte. As dores do espírito
confrangem tanto um semblante como da carne. Assim como se cobre de
capelas de flores a cruz de uma cova abandonada, por que não
derramar os goivos da morte no cemitério das ilusões
da vida? A natureza é um concerto cuja harmonia só
Deus entende, porque só ele ouve a música que todos
os peitos exalam. Só ele combina o canto do corvo e o trinar
do pintassilgo, as nênias do rouxinol e o uivar da fera
noturna, o canto de amor da virgem na noite do noivado, e o canto
de morte que na casa junta arqueja na garganta de um moribundo.
Não maldigas a voz rouca do corvo-ele canta na impureza um
poema desconhecido, poema de sangue e dores peregrinantes como a do
bengali é de amor e ventura! Fora loucura pedir
vibrações a uma harpa sem cordas, beijos à
donzela que morreu, fogo a uma lâmpada que se apaga.
Não peças esperanças ao homem que descrê
e desespera.
|
|
PENSEROSO.- Macário! É ele
tão velho, teve tantos cadáveres que apertar nos
braços nas horas de despedida, que o seu sangue se gelasse,
e seus nervos que não dormem precisassem do ceticismo, como
Paganini do ópio para adormecer? Por que foi ele banhar sua
fronte juvenil na vertigem dos gotos amaldiçoados? Com as
maos virgens, por que vibrou o alaúde lascivo esquecido num
canto do lupanar? É um livro imoral, por que esse
moço entregou-se delirante a essa obra noturna de
envenenamento? Não te rias, Macário: pobre daquele
que não tem esperanças; porém maldito aquele
que vai soprar as cinzas de sua esterilidade sobre a cabeça
fecunda daquele que ainda era puro! O coração
é um oceano que o bafejar de um louco pode turvar, mas a
quem só o hálito de Deus aplaca as tormentas.
Esperanças! e esse descrido não palpita de entusiasmo
no rodar do carro do século, nos alaridos do progresso, nos
hosanas do industrialismo laurífero? Não sente ele
que tudo se move, que o século se emancipa e a cruzada do
futuro se recruta? Não sonha ele também com esse
Oriente para onde todos se encaminham sedentos de amor e de
luz?
Esperanças! e esse Americano não sente que ele
é o filho de uma nação nova, não a
sente o maldito cheia de sangue, de mocidade e verdor? Não
se lembra que seus arvoredos gigantescos, seus oceanos escumosos,
os seus rios, suas cataratas, que tudo lá é grande e
sublime? Nas ventanias do sertão, nas trovoadas do sul, no
sussurro das florestas à noite, não escutou nunca os
prelúdios daquela música gigante da terra que entoa a
manhã a epopéia do homem e de Deus? Não sentiu
ele aquela sua nação infante que se embala nos hinos
da indústria européia como Júpiter nas
cavernas do Ida ao alarido dos Coribantes-tem futuro imenso?
Esperanças! não tê-las quando todos as
têm! quando todos os peitos se expandem como as velas de uma
nau, ao vento do futuro! Por que antes não cantou a sua
América como Chateaubriand e o poeta de Virgínia,' a
Itália como a Mignon de Goethe, o Oriente como Byron, amor
dos anjos como Thomas Moore, o amor das virgens como Lamartine?
|
|
MACÁRIO.- Muito bem, Penseroso. Agora
cala-te: falas como esses oradores de lugares comuns que não
sabem o que dizem. A vida está na garrafa de conhaque, na
fumaça de um charuto de Havana, nos seios voluptuosos da
morena. Tirai isso da vida-o que resta? Palavra de honra que
é deliciosa a água morna de bordo de vossos navios!
que têm um aroma saudável as máquinas de vossos
engenhos a vapor! que embalam num far niente balsâmico os
vossos cálculos de comércio! Não sabeis da
vida. Acende esse charuto. Penseroso, fuma e conversemos.
Falas em esperanças. Que eternas esperanças que nada
parem! o mundo está de esperanças desde a primeira
semana da criação... e o que tem havido de novo? Se
Deus soubesse do que havia de acontecer, não se cansara em
afogar homens na água do dilúvio, nem mandar
crucificar, macilenta e ensangüentada, a imagem de seu Cristo
divino. O mundo hoje é tão devasso como no tempo da
chuva de fogo de Sodoma. Falais na indústria, no progresso?
As máquinas são muito úteis, concordo.
Fazem-se mais palácios hoje, vendem-se mais pinturas e
mármores, mas a arte-degenerou em ofício e o
gênio suicidou-se.
Enquanto não se inventar o meio de ter mocidade eterna, de
poder amar cem mulheres numa noite, de viver de música e
perfumes, e de saber-se a palavra mágica que fará
recuar das salas do banquete universal o espectro da morte... antes
disso pouco tereis adiantado.
Dizes que o mundo caminha para o Oriente. Não serei eu, nem
o sonhador daquele livro que ficaremos no caminho. O harém,
os cavalos da Arábia, o ópio, o hatchiz, o
café de Moka, e o latakiá são coisas
soberbas!
A
poesia morre: deixá-a que cante seu adeus de morimbunda.
Não escutes essa turba embrutecida no plagiar e na
cópia. Não sabem o que dizem esses homens que para
apaixonar-se pelo canto esperam que o hosana da glória tenha
saudado o cantor. São estéreis em si como a parasita.
Músicos-nunca serão Beethoven, nem Mozart.
Escritores-todas as suas garatujas não valerão um
terceto do Dante. Pintores-nunca farão viver na tela uma
carnação de Rubens ou erguer-se no fresco um fantasma
de Miguel Angelo. É a miséria das misérias!.
Como uma esposa árida, tressuam e esforçam-se debalde
para conceber. Todos os dias acordam de um sonho mentiroso em que
creram sentir o estremecer do feto nas entranhas reanimadas.
Falam nos gemidos da noite no sertão, nas
tradições das raças perdidas da floresta, nas
torrentes das serranias, como se lá tivessem dormido ao
menos uma noite, como se acordassem procurando túmulos, e
perguntando como Hamlet no cemitério a cada caveira do
deserto o seu passado.
Mentidos! Tudo isso lhes veio à mente lendo as
páginas de algum viajante que esqueceu-se talvez de contar
que nos mangues e nas águas do Amazonas e do Orenoco
há mais mosquitos e sezões do que
inspiração que na floresta há insetos
repulsivos, répteis imundos; que a pele furta-cor do tigre
não tem o perfume das flores, que tudo isto é sublime
nos livros, mas é soberanamente desagradável na
realidade!
Escuta-me ainda. O autor deste livro não é um velho.
Se não crê é porque o ceticismo é uma
sina ou um acaso, assim como é às vezes um fato de
razão. As cordas daquela lira foram vibradas por mãos
de moço, mãos ardentes e convulsas de febre... talvez
de inspiração.
Foi
talvez um delírio; mas foi da cabeça e do
coração que se exalaram aqueles cantos selvagens. Foi
numa vibração nervosa, com o sangue a galopar-lhe
febril pelas veias, com a mente ébria de seu sonho ou do seu
pesadelo que ele cantou. Se as fibras da harpa desafinam, se a
mão ríspida as estala, se a harpa destoa, é
que ele não pensou nos versos quando pensava na poesia,
é que ele cria e crê que a estância é uma
roupa como outra apenas, como o diz George Sand, a arte é um
manto para as belezas nuas: é que ele preferira deixar uma
estátua despida, a pespontar de ouro uma túnica de
veludo para embuçar um manequim. É que ele pensa que
a música do verso é o acompanhamento da harmonia das
idéias e ama cem vezes mais o Dante com sua
versificação dura, os rasgos de Shakespeare com seus
versos ásperos, do que os alexandrinos feitos a compasso de
Sainte-Beuve ou Turquety.
|
|
PENSEROSO.- Tudo isso nada prova. É uma
poesia, concordo, concordo; mas é uma poesia
terrível. É um hino de morte sem esperança do
céu, como o dos fantasmas de João Paulo Richter.
É o mundo sem a luz, como no canto da Treva, o
ateísmo como na Rainha Mab de Shelley. Tenho pena daqueles
que se embriagam com o vinho do ceticismo.
|
|
MACÁRIO.- Amanhã pensarás
comigo. Eu também fui assim. O tronco seco sem seiva e sem
verdor foi um dia o arvoredo cheio de flores e de sussurro.
|
|
PENSEROSO.- Não crer! e tão
moço! Tenho pena de ti.
|
|
MACÁRIO.- Crer? e no quê? No Deus
desses sacerdotes devassos? desses homens que saem do lupanar
quentes dos seios da concubina, com sua sotaina preta ainda
alvejante do cótão do leito dela para ir ajoelhar-se
nos degraus do templo! Crer no Deus em que eles mesmos não
crêem, que esses ébrios profanam até do alto da
tribuna sagrada?
|
|
PENSEROSO.- Não falemos nisto. Mas o teu
coração não te diz que se nutre de fé e
de esperanças?
|
|
MACÁRIO.- A filosofia é vã.
É uma cripta escura onde se esbarra na treva. As
idéias do homem o fascinam, mas não o esclarecem. Na
cerração do espírito ele estala o crânio
na loucura ou abisma-se no fatalismo ou no nada.
|
|
PENSEROSO.- Não; não é o
filosofismo que revela Deus. A razão do homem é
incerta como a chama desta lâmpada: não a excites
muito, que ela se apagará.
|
|
MACÁRIO.- Só restam dois caminhos
àquele que não crê nas utópias do
filósofo. O dogmatismo ou o ceticismo.
|
|
PENSEROSO.- Eu creio porque creio. Sinto e
não raciocino.
|
|
MACÁRIO.- Talvez seja a treva de meu
corpo que me escureça minha alma. Talvez um anjo mau
soprasse no meu espírito as cinzas sufocadoras da
dúvida. Não sei. Se existe Deus, ele me
perdoará se a minha alma era fraca, se na minha noite lutei
embalde com o anjo como Jacó, e sucumbi. Quem sabe?-eis tudo
o que há no meu entendimento. Às vezes creio, espero:
ajoelho-me banhado de pranto, e oro; outras vezes não creio,
e sinto o mundo objetivo vazio como um túmulo.
|
|
PENSEROSO.- Vê: o mundo é belo. A
natureza estende nas noites estreladas o seu véu
mágico sobre a terra, e os encantos da criação
falam ao homem de poesia e de Deus. As noites, o sol, o luar, as
flores, as nuvens da manhã, o sorriso da infância,
até mesmo a agonia consolada e esperançosa do
moribundo ungido que se volta para Deus... tudo isso será
mentira? As esperanças espontâneas, as crenças
que um olhar de virgem nos infiltra, as vibracões
unânimes das fibras sensiveis serão uma
irrisão? O amor de tua mãe, as lágrimas do teu
amor... tudo isso não te acorda o coração?
Serás como essas harpas abandonadas cujas cordas roem a
umidade e a ferrugem, e onde ninguém pode acordar uma
harmonia? Por que estalaram? que dor profunda as rebentou? Quando
tua alma ardente abria seus vôos para pairar sobre a vida
cheia de amor, que vento de morte murchou-te na fronte a coroa das
ilusões, apagou-te no coração o fanal do
sentimento, e despiu-te das asas da poesia? Alma de guerreiro,
deu-te Deus porventura o corpo inteiriçado do
paralítico? Coração de Romeu, tens o corpo do
lazarento ou a fealdade de Quasímodo? Lira cheia de
músicas suspirosas, negou-te a criação cordas
argentinas? Oh! não! abre teu peito e ama. Tu nunca viste
uma ilusão gelar-se na fronte da amante morta, teu amor
degenerar nos lábios de uma adúltera. Alma fervorosa,
no orgulho de teu ceticismo não te suicides na atonia do
desespero. A descrença é uma doença
terrível; destrói com seu bafo corrosivo o aço
mais puro: é ela quem faz de Rembrandt um avarento, de
Bocage um libertino... Para os peitos rotos, desenganados nos seus
afetos mais íntimos, onde sepultam-se como cadáveres
todas as crenças, para esses aquilo que se dá a todos
os sepulcros: uma lágrima! Aquele que jogou sua vida como um
perdulário, que eivou-se numa dor secreta, que sentiu
cuspirem-lhe nas faces sublimes esses que riam como
Demócrito, duvidem como Pirrhon, ou durmam indiferentes no
seu escárnio como Diógenes, o cínico, no seu
tonel. A esses leva uma torrente profunda: revolvem-se na treva da
descrença como Satã no infinito da
perdição e do desespero! Mas nós, mas tu e eu
que somos moços, que sentimos o futuro nas
aspirações ardentes do peito, que temos a fé
na cabeça e a poesia nos lábios, a nós o amor
e a esperança: a nós O lago prateado da
existência. Embalemo-nos nas suas águas
azuis-sonhemos, cantemos e creiamos! Se o poeta da
perdição dos anjos nos conta o crime da criatura
divina liba-nos da despedida do Éden o beijo de amor que fez
dos dois filhos da terra uma criatura, uma alma cheia de futuro. Se
na primeira página da história da passagem do homem
sobre a terra há o cadáver de Abel, e o ferrete de
Caim o anátema naquelas tradições ressoa o
beijo de mãe de Eva pálida sobre os lábios de
seu filho!
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MACÁRIO.- Ilusões! O amor, a
poesia, a glória... Ilusões! Não te ris tu
comigo da glória, como eu rio dela? A glória! entre
essa plebe corrupta e vil que só aplaude o manto do Tartufo
e apedreja as estátuas mais santas do passado!
Glória! Nunca te lembras do Dante, de Byron, de Chatterton,
o suicida? E Verner poeta, sublime e febril também, morto de
ceticismo e desespero sob sua grinalda de orgia? Glória!
São acaso os louros salpicados de lodo, manchados,
descridos, cuspidos do poviléu, e que o futuro só
consagra ao cadáver que dorme?
Escuta. Eu também amei. Eu também talvez possa amar
ainda. Às vezes quando a mente se me embebe na melancolia,
quando me passam na alma sonhos de homem que não dorme, e
que chamam poesia; eu sinto ainda reabrir-se o meu peito a amores
de mulher. Parece que, se aquela beleza de olhos e cabelos negros,
de colo arquejante e flutuoso me deixasse repousar a cabeça
sobre seu peito, eu poderia ainda viver e querer viver, e ter
alento bastante para desmaiar ali na voluptuosidade pura de um
espasmo, na vertigem de um beijo.
Mas
o que me agita as fibras ainda é voluptuosidade -é o
ademã de uma beleza lânguida, a sede insaciável
do gozo.
São sonhos! sonhos, Penseroso! É loucura abrir tanto
os véus do coração e essas brisas enlevadas
que vêm tão sussurrantes de enleio, tão
repassadas de aromas e beijos! É loucura talvez! E contudo
quando o homem só vive deles, quando todas as portas se
fecharam ao enjeitado por que não ir bater na noite de febre
ao palácio da fada das imaginações? Põe
a mão no meu coração. Tuas falas mo fizeram
bater. Havia uma voz dentro dele que eu pensava morta, mas que
estava só emudecida. Escuta-a. Há uma mulher em quem
eu pensei noites e noites: que encheu minhas noites de
insônia, meu sono de visões fervorosas, meus dias de
delírio. Eu amei essa mulher. Eu a segui passo a passo na
minha vida. Deite-me na calçada da rua defronte de sua
janela, para ouvir a sua voz, para entrevê-la a furto branca
e vaporosa, para respirar o ar que ela bebia, para sentir o perfume
de seus cabelos e ouvir o canto de seus lábios. Eu amei
muito essa mulher. E por vê-la uma hora ao pé de mim,
seminua, embora fosse adormecida, só por vê-la, e por
beijá-la de leve, eu daria minha vida inteira ao nada. E
essa mulher, essa mulher...
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PENSEROSO.- Que tem, fala...
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MACÁRIO.- Adeus, Penseroso. Eu pensei que
tu me acordavas a vida no peito. Mas a fibra em que tocaste e onde
foste despertar uma harmonia é uma fibra maldita, cheia de
veneno e de morte. Adeus. Penseroso. Ai daquele a quem um verme
roeu a flor da vida como a Werther! A descrença é a
filha enjeitada do desespero. Faust é Werther que
envelheceu, e o suicídio da alma é o cadáver
de um coração. O desfolhar das ilusões anuncia
o inverno da vida.
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PENSEROSO.- Onde vais, onde vais?
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MACÁRIO.- Onde vou todas as noites.
Vagarei à toa pelos campos até que o sono feche meus
olhos e que eu adormeça na relva fria das orvalhadas da
noite. Adeus.
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(A mesma sala.)
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PENSEROSO.- (Só.
Escreve.) Não escreverei mais: não. Calarei
o meu segredo e morrerei com ele.
Esqueceu tudo! tudo! Esqueceu as noites solitárias em que eu
estava a sós com ela, com sua mão na minha, com seus
olhos nos meus. Esqueceu! Deus lhe perdoe. E se eu morro por ela,
seja ela feliz!
Mas
por que mentia se ela se ria de mim? Por que aqueles olhares
tão lânguidos, aqueles suspiros tão doces? Por
que sua mão estremecia nas minhas e se gelava quando eu a
apertava? Por que naquela noite fatal, quando eu a beijei, ela
escondeu seu rosto de virgem nas mãos, e as lágrimas
corriam por entre seus dedos, e ela fugiu soluçando?
(Pensativo.)
Ela
não me ama...é certo. Nunca, nunca ela me teve amor:
a ilusão morreu... Oh! não morrerei com ela? Ontem
falei com Davi sobre o suicídio. Davi declamou, repetiu o
que dizem esses homens sem irritabilidade de coração,
que julgam que as palavras provam alguma coisa. Eu sorri. Davi
é feliz: ele sim, nunca amará, não há
de sentir esse sentimento único e queimador absorver como
uma casuarina toda a seiva do peito, alimentar-se de todas as
esperanças, todas as ambições, todos os amores
da terra e do céu, dos homens e de Deus, para fazer de tudo
isso uma única essência, para transubstanciar tudo
isso no amor de uma mulher! E depois, quando esse amor morrer,
achando o peito vazio como o de um esqueleto, não
terá animo para adormecer no seio da morte!
Eis
aí o veneno, ó minha terra! Ó minha
mãe! mais nunca te verei! Meu pai, meu santo pai! e tu,
mãe'! de minha mãe que sentias por mim, cuja vida era
uma oração por mim, que enxugavas tuas
lágrimas nos teus cabelos brancos pensando no teu pobre
neto! Adeus! Perdão! perdão!
Creio que chorei. Tenho a face molhada. A dor me enfraqueceria?
Não! não Não há remédio.
Morrerei.
(Páginas de PENSEROSO.)
Se
há um homem que cresse no futuro, fui eu. Tive
confiança no orgulho de meu coração e no
gênio que sentia na minha cabeça. Eu sinto-o. Deus me
fez poeta. Esse mundo, a natureza, as montanhas, o eflúvio
luminoso das noites de luar, tudo isso me acordava
vibrações, me revelava no peito cordas que nunca
escutei senão nos poetas divinos, que nunca senti no peito
cavernoso e vazio dos outros homens. Sou rico, moço,
morrerei pouco mais velho que o desgraçado Chatterton. E por
todo o meu futuro, minhas glórias, toda essa
ambição imensa, essa sede fogosa de uma alma que
não se sacia com os prazeres de convenção da
vida suntuosa dos palácios esplêndidos, e das
aclamações da fama, eu só queria seu peito
junto do meu... sua mão na minha. O andrajo do
miserável não me doeria se eu tivesse o manto de ouro
do seu amor.
Oh!
ela não me entendeu! Não merecia tamanho amor.
Tomei-a nua, fria e bruta como o escultor uma pedra de
mármore... a visão que vesti com a gaze acetinada das
minhas ilusões, a estátua que despertei do seio da
matéria, não estava aí. Estava no meu
coração e só nele. Fi-la bela, dessa beleza
divina que Deus me ressumbrou na alma de poeta. Talvez é
assim-mas assim mesmo eu morro por ela... Amo-a como o pintor a sua
Madona, como o escultor a sua Vênus, como Deus a sua
criatura.
Era
a única estátua da criação que se podia
aviventar ao bafo ardente de meu peito. Não amei nunca outra
mulher. Se o coração é um lírio que as
paixões desfloram, sou ainda virgem; no deleite das minhas
noites delirantes, tu o sabes, meu Deus, eu nunca amei!
E
por que viver se o coração é morto? Se eu hoje
dormisse sobre essa idéia, se eu pudesse adormecer no
ócio e no tédio, seria isso ainda viver?
Viver era sentir, era amar, era crer que a ventura não
é um sonho, e que eu tinha um leito de flores onde descansar
da vida, onde eu pudesse crer que a glória, o futuro
não valem um beijo de mulher!
Morrerei...! Não posso trazer no peito o cadáver de
minhas ilusões, como a infanticida o remorso a lhe tremer
nas entranhas. Há doenças que não têm
cura. A tempestade é violenta, e o cansado marinheiro
adormeceu no seio da morte. Antes isso que a lenta agonia do
desespero, do que esse corvo da descrença e da ironia que
rói as fibras ainda vivas como um cancro.
E
seria contudo tão bela a vida se ela me amasse! Oh! por que
me traiu... Por que embalou-me nos seus joelhos, nos acentos
mágicos da música dos anjos da esperanca, do amor,
para lançar-me na treva erma desse desalento e dessa saudade
eivada de morte!
Viveríamos tão bem! Era tão fácil minha
ventura! Por esses rios imensos da minha terra há tantas
margens viçosas e desertas, cheias de flores e de
berços de verdura, de retiros amenos, onde as aves cantam na
primavera eterna do nosso céu, e as brisas suspiram
tão docemente nas tardes purpurinas! Seríamos
sós, sós e essa solidão nós a
povoaríamos com o mundo angélico do nosso amor! Nos
crepúsculos de verão eu a levaria pelas montanhas a
embriagar-se de vida nos aromas da terra palpitante, pelos vales
ainda úmidos de orvalho e ao tom das águas sem pensar
na vida, pensando só que o amor é o oito dos rochedos
brancos da existência, a estrela dos céus misteriosos,
a palavra sacramental e mágica que rompe as cavernas do
infinito e da ventura! Oh! deitado nos seus joelhos, ouvindo sua
voz misturar-se ao silêncio do deserto, vendo sua face mais
bela no véu luminoso e pálido do luar, como seria
doce viver! Era assim que eu esperava amar, era assim que eu podia
morrer sem saudades da vida, suspirando de amor! Sou um doido, meu
Deus! Por que mergulhar mais o meu coração nessa
lagoa venenosa das ilusões? Quero ter ânimo para
morrer. Estalou-se nas minhas mãos o último ramo que
me erguia sobre o abismo. Para que sonhar mais o que é
impossível?
É ainda um sonho o que vou escrever.
Eu
sonhei esta noite... e sonhei com ela. Era meio-dia na floresta. A
sombra caía no ar calmoso.
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(Uma rua.)
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PENSEROSO.- Tenho febre. É o efeito do
veneno? Para que obre melhor tenho-o tomado aos poucos. Tenho
às vezes estremecimentos que me gelam. Sinto um fogo no
estômago e as veias do meu cérebro parecem queimar o
meu crânio e inundá-lo de sangue fervente. A
cabeça me dói: às vezes parece-me que os ossos
do meu crânio estalam, a minha vista se escurece e meus
nervos tremem... meu coração parece abafado e palpita
ansioso a respiração me custa. Oh! custa tanto
morrer!
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O DOUTOR LARIUS.- (Passando a
cavalo.) Penseroso! Penseroso! Onde vais tão
pálido?
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PENSEROSO.- Doutor, bom-dia. Acha-me
pálido?
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O DOUTOR.- Como tua mão está
ardente! Como tua testa queima! Tens febre, Penseroso.
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PENSEROSO.- Tenho febre, não é
assim? Ponha a mão no meu coração, veja como
bate!
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O DOUTOR.- Como teu peito está
úmido de suor! Como pulsa teu coração!
Penseroso, Penseroso! o que tens, meu amigo?
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PENSEROSO.- O que tenho? não tenho
nada... absolutamente nada. Adeus, doutor.
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O DOUTOR.- Onde vais? O sol está ardente,
e tens febre. Descansemos aqui na sombra. Ou então vamos
para casa e deita-te.
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PENSEROSO.- Sim. Adeus, doutor. (Vai-se
apressado.)
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O DOUTOR.- Penseroso! Penseroso!
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(Uma sala.)
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(Num canto da sala, junto do piano, PENSEROSO só com A ITALIANA. Ouve-se o falar confuso
partindo de outros lados da sala. Risadas, murmúrios de
homens e mulheres que conversam.)
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PENSEROSO.- Adeus, senhora: eu me vou. Adeus,
mas ao menos dai-me um olhar de compaixão para que se eu
morrer de abandono, não morra sem uma
bênção: e o vosso olhar é uma
bênção!
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A ITALIANA.- Que dizeis, senhor Penseroso?
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PENSEROSO.- Sim... não me entendeis: eu
sou um insensato. Pobre daquele a quem não compreendem!
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A ITALIANA.- Por que o dizeis? não vos
prometi a minha mão? Por quem se espera no altar? É
por mim? Não Penseroso, é pela vontade de teu pai...
Não te dei eu minha alma, assim como te darei meu corpo?
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PENSEROSO.- Ó virgem! se acaso um
só momento de tua vida tu consagraste um suspiro ao
desgraçado, se um só momento tu o amaste, ah! que
Deus em paga desse instante te dê um infinito de ventura!
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A ITALIANA.- Penseroso! Que tens? Nunca te vi
assim. Eras pensativo e estás sombrio. Eras
melancólico e estás triste. Que tens, que me
não confias? Não sou eu tua noiva?
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PENSEROSO.- Ó senhora! Se uma eternidade
se pode comprar por um sonho, o sonho que me embalou na minha
existência bem valera ser comprado por uma eternidade!
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A ITALIANA.- O teu sonho é o
meu...é o nosso amor... a minha vida por ti, a tua vida por
mim: nós dois formando um único ser, uma única
alma, um mundo de delícias e de mistério só
para nós e por nós!
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PENSEROSO.- Oh! senhor e acordar!
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A ITALIANA.- Então...
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PENSEROSO.- Meu Deus! meu Deus! perdoai-me.
Adeus! adeus! (Com os olhos em lágrimas.)
Quem sabe se não será para sempre?
(Sai.)
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A ITALIANA.-
(Empalidecendo.) Para sempre? Ah!
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(O quarto de PENSEROSO.)
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PENSEROSO.- (Só.) Ela
não me ama. Que importa? eu lh'o perdôo. I'erdôo
a leviandade daquela criança pura e santa que me leva ao
suicídio... Oh! se eu pudesse vê-la ainda!
Passei toda a noite pelo campo que se estende junto à casa
dela. Vi as luzes apagarem-se uma por uma. Só o quarto dela
ficara iluminado. Havia ser muito tarde quando a luz se apagou.
Pareceu-me ver ainda depois uma imagem branca encostada na
janela...
Coitada! ela não sabe que eu estava ali, a seus pés,
com o desespero n'alma, e o veneno no peito, cheio de desejos e de
morte, cheio de saudades e de desesperança!
Vaguei toda a noite. Quando acordei estava muito longe. Assentei-me
à borda do caminho. A meus pés se estendia o
precipício coberto de ervaçal.
À direita, longe numa lagoa saíram os primeiros raios
do dia. O orvalho reluzia nas folhas das árvores antigas do
caminho, em cuja sombra imensa acordavam os passarinhos
cantando.
Perdoai-me, meu Deus! talvez seja uma fraqueza o
suicídio-por que será um crime ao pobre louco
sacrificar os seus sonhos da vida?
. . . . . . . . . . .
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
Este cordão de cabelos quero que seja entregue a ela:
são cabelos de minha mãe... de minha mãe que
morreu.
Trouxe-os sempre no meu peito. Quero que ela os beije às
vezes e lembre-se de mim.
. . . . . . . . . . .
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
Esse amor foi uma desgraça. Foi uma sina terrível.
Ó meu pai! ó minha segunda mãe! ó meus
anjos! meu céu! minhas campinas! É tào triste
morrer!
. . . . . . . . . . .
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
Ah!
que dores horríveis! tenho fogo no estômago... Minha
cabeça se sufoca... Ar! ar! preciso de ar... Eu te amei, eu
te amei tanto!... (Desmaia.)
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HUBERTO.-
(Entrando.) Penseroso! Que tens? Que convulsão! Ah!
é uma agonia! Depressa, depressa, chamem alguém... O
Dr. Larius... Ó meus companheiros, socorrei nosso amigo...
Penseroso morre! Davi! Davi! onde está Davi?
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UMA VOZ.- Está caçando.
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HUBERTO.- E Macário, onde está
também?
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A VOZ.- Tomou ontem uma bebedeira. Está
ébrio como uma cabra.
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(À porta de uma taverna.)
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(MACÁRIO
vai saindo e encontra SATÃ.)
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SATÃ.- Onde vais?
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MACÁRIO.- Sempre tu, maldito!
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SATÃ.- Onde vais? Sabes de Penseroso?
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MACÁRIO.- Vou ter com ele.
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SATÃ.- Vai, doido, vai! que
chegarás tarde! Penseroso morreu.
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MACÁRIO.- Mataram-no!
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SATÃ.- Matou-se.
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MACÁRIO.- Bem.
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SATÃ.- Vem comigo.
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MACÁRIO.- Vai-te.
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SATÃ.- És uma criança.
Ainda não saboreaste a vida e já gravitas para a
morte. O que te falta? Ouro em rios? eu t'o darei. Mulheres?
tê-las-ás virgens, adúlteras ou prostitutas -O
amor? dar-te-ei donzelas que morram por ti, e realizem na tua
fronte os sonhos de seu histerismo... Que te falta?
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MACÁRIO.- Vai-te, maldito!
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SATÃ.-
(Afastando-se.) Abrir a alma ao desespero é
dá-la a Satã. Tu és meu. Marquei-te na fronte
com meu dedo. Não te perco de vista. Assim te guardarei
melhor. Ouvirás mais facilmente minha voz partindo de tua
carne que entrando pelos teus ouvidos.
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(Uma rua.)
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(MACÁRIO
e SATÃ de
braços dados.)
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SATÃ.- Estás ébrio?
Cambaleias.
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MACÁRIO.- Onde me levas?
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SATÃ.- A uma orgia. Vais ler uma
página da vida, cheia de sangue e de vinho-que importa?
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MACÁRIO.- É aqui, não?
Ouço vociferar a saturnal lá dentro.
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SATÃ.- Paremos aqui. Espia nessa
janela.
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MACÁRIO.- Eu vejo-os. É uma sala
fumacenta. À roda da mesa estão sentados cinco homens
ébrios. Os mais revolvem-se no chão. Dormem ali
mulheres desgrenhadas, umas lívidas, outras vermelhas... Que
noite!
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SATÃ.- Que vida! não é
assim? Pois bem! escuta, Macário. Há homens para quem
essa vida é mais suave que a outra. O vinho é como o
ópio, é o Letes do esquecimento... A embriaguez
é como a morte...
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MACÁRIO.- Cala-te. Ouçamos.
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