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Noite no mar

O vapor das seis horas da tarde do dia seguinte trouxe Hugo de Mendonça e o seu guarda-livros Félix, Jorge e Otávio, que todos vinham, como tratado estava, tomar parte no agradável passatempo em que se projetava empregar a noite. Venâncio, Manuel e Brás-mimoso se tinham deixado ficar em Niterói, como homens a quem não importavam negócios, ou de negócios careciam.

As senhoras haviam de sua parte passado o dia o mais monótono que é possível: Lucrécia, obrigada a permanecer em casa com seus hóspedes, deixava de empregar junto de Honorina horas que ela considerava por demais preciosas. Honorina e Raquel, tristes e taciturnas, bordavam sem descansar ao pé de Ema, que gastou o dia inteiro em falar contra o que chamava loucuras próprias somente do gênio extravagante de Hugo. Ela não compreendia como um homem de juízo podia expor a sua filha e a si mesmo a todos os riscos de um passeio noturno e marítimo; exasperava-se, lembrando-se de que seu filho já não atendia aos conselhos que lhe dava, e temia muito que nem mesmo suas próprias orações pudessem salvar Honorina da vida de desatinos, por onde começava a levá-la seu imprudente pai.

Hugo fez quanto pôde para sossegar sua mãe, a quem ainda encontrou despeitada; enfim, jurou-lhe que seria o primeiro e último passeio marítimo que fariam; mas que então era impossível desfazer o que estava projetado, e que a todos parecia dar tanto prazer. Às oito horas da noite ergueram-se para partir; e Ema, que até à porta os acompanhou, levantou o braço e, com sua mão trêmula, mostrou uma nuvem negra que se deixava ver no horizonte.

-Não é nada, minha mãe, disse Hugo; não vê como a lua está clara e bela?...

-A lua turvar-se-á.

-Nada de maus agouros, minha mãe, até à volta... e prometemos cear bastante.

-Minha Honorina, disse tristemente a velha, Deus te acompanhe!...

A sociedade partiu: três batelões já se achavam na praia prestes para recebê-los, e imediatamente tratou-se de embarcar. Uma boa meia hora se empregou na divisão da companhia. À exceção de Jorge, que por gênio e sistema achava que tudo no mundo corria sempre bem, e não abria a boca para falar, senão quando era absolutamente necessário que fizesse uma pergunta ou desse uma resposta; à exceção ainda de Venâncio, que pensava e desejava pela alma de sua mulher, todos os outros homens empenhavam-se valorosamente por ir no batelão em que se embarcasse Honorina.

O único, que só por gestos havia demostrado esse desejo, fora Brás-mimoso; porque logo no princípio da questão, querendo expor muito parlamentarmente os seus direitos, e tendo para isso já a boca aberta, foi obrigado a fechá-la incontinenti; pois Manduca, que junto dele se achava, deu-lhe um beliscão com tão boa vontade, que o fez ir às nuvens.

Hugo divertia-se extraordinariamente com a discussão suscitada; finalmente, para se pôr um termo a ela, decidiu-se que Honorina escolhesse três companheiros.

Honorina respondeu sem hesitar:

-Escolho a meu pai, a Raquel e ao Sr. Félix, que deverá acompanhar-me, se meu pai quiser que eu cante.

-No que não haverá dúvida nenhuma, respondeu Hugo.

Rosa achou um não sei quê de pouco bonito na escolha, que de seu primo fez Honorina para ir com ela no mesmo batel.

Venâncio chegou-se respeitosamente para ao pé de sua mulher, e falou-lhe ao ouvido.

-Tomásia, em que batel julgas tu mais conveniente que eu me embarque?

-Naquele em que eu não for, respondeu imperiosamente Tomásia: não é justo nem decente que ande o senhor sempre atrás de mim.

O resto da companhia embarcou-se sem demora. Lucrécia, Rosa, Venâncio e Otávio no segundo batel, e no terceiro, enfim, Tomásia, Jorge, Brás-mimoso e Manduca, que havia tomado por timbre andar constantemente à pista do seu rival. Brás-mimoso já tinha jurado cem vezes aos seus botões que aquele rapaz era o homem mais impertinente do mundo todo.

Os batéis afastaram-se da praia.

Era belo vê-los como graciosos, iluminados e galhardos docemente se deslizavam pela superfície do mar sereno de Niterói!...

Soprava uma aragem suave e deleitosa; a noite estava clara, brilhante e fresca.

A lua gostosa se namorava, mirando-se no espelho das ondas.

E os três batéis iam indo... e dos remos que se erguiam do seio do verde lago, caía uma chuva de lágrimas brilhantes, que se diria um enxame de pirilampos.

A hora e o sítio pareciam ainda mais próprios para doces meditações do que para o ruído do prazer.

Honorina e Raquel, predispostas como se achavam para deixar ir suas almas enlevando-se e perdendo-se no encanto agridoce da melancolia, não puderam furtar-se à influência de tudo isso que se passava em derredor delas: o monótono ruído dos remos; o fraco murmúrio das ondas; a suave frescura do favônio; o sossego do sítio; o silêncio da hora, tudo, tudo as convidava a meditar... e elas meditavam.

E uma jovem, quando medita, é sempre sobre amor.

A mímica dessas duas moças demonstrava que havia um ponto de notável dessemelhança em a natureza de seus pensamentos.

Raquel tinha a cabeça inclinada para baixo e os olhos fitos no fundo do batel; cedendo a inexplicáveis movimentos de desassossego, suas mãos, que se achavam unidas uma à outra sobre o colo, apertavam-se mútua e cruelmente; seus lábios às vezes estremeciam, como dando passagem a um suspiro; e então ela olhava cuidadosa por um instante para seus três companheiros de passeio, e de novo caía na sua primeira posição.

Dir-se-ia que Raquel tinha na alma um pensamento doloroso e fatal que desejava esconder de todos, e abafá-lo dentro de si mesma.

Honorina, ao contrário, estava um pouco voltada para fora, e tinha os olhos embebidos em um único ponto do mar; brando e meigo sorriso se deslizava em seus lábios; os negros caracóis de suas belas madeixas brincavam, mercê do zéfiro, sobre suas faces... e ela também suspirava.

E, pois, Honorina como que se aprazia em abrir as portas de sua alma, em deixar sair pelos olhos o pensamento que a ocupava.

A meditação da primeira é, portanto, um segredo; o pensamento da segunda podia ser perfeitamente compreendido, ao menos pela sua amiga.

Honorina pensava sempre no moço loiro.

Vós, que haveis amado mesmo há dez ou vinte anos passados, nunca parastes junto de uma árvore, como procurando o vestígio dos passos, ou o aroma dos vestidos do objeto de vosso amor, que outrora vistes descansando à sombra dela?... vós que amais ainda hoje, não buscastes com os olhos, ao entrar no jardim, o mesmo banco de relva, em que ontem vistes sentada a bela de vossos pensamentos, e não ficastes estático... enlevado com as vistas fitas nele uma hora inteira, como se ela ainda estivesse lá sorrindo-se para as flores, ou adormecida entre elas?...

Pois bem: naquele ponto do mar, onde tem Honorina embebidos os seus olhos, esteve ele... sobre o seu gracioso batel noturno; foi dali que ele respondeu ao hino da virgem; e Honorina pede, sem sentir, ao mar, que lhe mostre um sinal do rosto de seu batel, e às auras, que lhe tragam em suas asas ainda o eco de suas vozes!

Mas é que Hugo não se dava muito bem com cenas mudas, e ainda pior com semblantes melancólicos:

-Então, que é isto? gritou ele, saímos porventura de casa para entristecer-nos? será crível que estejam aqui as senhoras com medo deste mar de leite... ou quem sabe se estão ainda pensando no bateleiro de ontem à noite?

Honorina e Raquel olharam-se ao mesmo tempo... talvez Hugo tivesse, sem querer, compreendido os pensamentos de ambas.

-Vamos! ânimo! não sentem o prazer que reina nos outros dois batelões?... eu pensava que o nosso seria o mais divertido de todos! remadores... à esquerda e com força... avante!...

As duas moças viram-se obrigadas a fazer-se alegres para satisfazer a Hugo, e, desde então, somente começaram a tomar parte no divertimento noturno.

A primeira hora foi toda empregada em correr indistintamente pelo mar: os batelões, ora aproximavam-se, ora fugiam rapidamente da praia... depois todos três emparelhados empenhavam-se em disputar a primazia na rapidez da carreira, e ouviam-se conseqüentemente os aplausos de vitória, dentro do que alcançava o triunfo, e as admoestações e pragas aos remeiros daqueles que eram vencidos.

Enfim, quando já se achavam fastigados ou começavam a sentir-se aborrecidos do passeio, os três batéis reuniram-se, e de acordo comum se foram postar diante dessas belas casas, que situadas ficam entre S. Domingos e a Praia do Gravatá: tratava-se de ouvir cantar a Honorina.

Embebidos, enlevados e perdidos na embriaguez de seu prazer, a companhia não notava que a lua se ia turvando, o mar tornando-se crespo e cavado, e que o vento, que refrescava, caía às vezes sobre eles em tufões, que faziam jogar os batéis.

Honorina deixou, pois, ouvir sua voz melodiosa e terna: aquele canto no meio do mar, levado nas asas do vento, perdido no longo espaço, ouvido no silêncio da noite, tinha um não sei quê de místico e poderoso, que cativava as almas!

A praia ficou para logo coberta de curiosos expectadores, que, quando sentiram terminar o hino da virgem, fizeram soar seus aplausos de mistura com aqueles que prorrompiam dos batéis.

E as aclamações não deixaram ouvir bem distintamente o surdo mugido de um trovão longínquo, que, enfezado, bramia; um fuzil se desabriu e fez estremecer Honorina.

-Meu pai, meu pai, veja como fuzila, como o horizonte se tem tornado escuro... oh! minha avó tinha bem razão... vamos desembarcar!

-Não!... não!... disseram os moços, ainda uma vez o hino!... uma segunda vez, minha senhora!

-Sim, Honorina, repete o teu belo hino; que apenas o terminares, desembarcaremos.

-Mas, meu pai, Raquel e eu estamos tremendo!

-Que medo então é esse? não vês que estamos a dois palmos de distância da terra?... canta... canta.

Nesse momento uma pequena canoa, guiada por duas únicas pessoas, aproximou-se dos batelões, e deu fundo.

-Oh! temos companheiros? disse Hugo.

-Quem sabe se será o nosso cantor de ontem?...

-Em todo o caso não faz mal reconhecê-lo, disse Otávio; remadores... para junto daquela canoa...

-Remadores, repetiu Manduca no batel em que estava, para junto daquela canoa...

-Mas o que eu não sei, murmurou Brás-mimoso, é o que temos nós de ir entender com quem está quieto.

-Oh! Sr. Brás! até disto tem medo?...

-Quem?... eu?... medo?... as senhoras ainda me não conhecem a fundo.

No entanto, os batéis tinham chegado até encostar-se à canoa; Otávio e Manduca puseram-se a examiná-la em pé sobre a borda de seus batelões, e todos os outros fitaram os olhos dentro dela. Estavam lá duas únicas pessoas: um velho pobremente vestido, e com a cabeça toda branca, e um negro, que era talvez seu escravo; dentro da canoa viam-se todos os objetos próprios de uma pescaria.

-É um pescador, disse Otávio.

-Sim, falou o velho com voz trêmula, um pobre pescador, que vai fugindo da tempestade que se avizinha.

-Mas, meu velho, quem foge não pára.

É que eu ouvi uma voz bem suave!...

-E, portanto, esqueceu-se da tempestade?...

-Porque desde então, senhores, todos os meus sentidos... toda a minha alma se passou para meus ouvidos

-Pois então, disse Hugo, escuta de novo, meu pescador!

O canto soou talvez mais docemente ainda; porque a voz de Honorina estava levemente trêmula do medo que sentia do temporal que se aproximava.

Mas ela não pôde acabar...

Um relâmpago deslumbrador pareceu abrir uma fenda de fogo horrível no horizonte; um trovão medonho estalante rebentou terrivelmente, e um tufão desesperado rugiu sobre o mar, que se levantou encapelado e bravo...

Um grito geral prorrompeu de dentro dos três batéis...

Ao já fraco clarão da lua sucedeu a mais completa escuridade: a dois passos ninguém podia ver um companheiro.

O batel em que ia Honorina ficou cheio de água. Ouvindo a custo os gritos de Hugo, de Félix e das duas moças, os outros dois batéis, e a canoa do pescador, acudiram prontamente: aquele em que vinha Otávio foi o primeiro que se encostou ao de Hugo, que, tomando sua filha nos braços, inclinou-se para depô-la no batel que os socorrera; mas neste momento a borrasca rugiu de novo... o fuzil... o trovão... o raio!... os batéis, cedendo à força das vagas que cavavam sumidouros debaixo deles, afastaram-se, jogando terrível e desordenadamente... Hugo caiu sobre os bancos dos remeiros, e Honorina, escapando de seus braços, desapareceu no abismo do mar...

Um novo grito horrível... desesperado... arrancado das entranhas se ouviu, apesar da tempestade, sair do triste batel...

Félix agarrou pela cintura a Hugo, que se queria lançar ao meio das ondas...

Sentiu-se o baque de um corpo que caía na água...

Tudo isso foi obra de um rápido instante.

No auge da maior dor, do mais cruel desespero, entre mil idéias sem ordem, sem nexo, tudo se perguntando e nada se fazendo, a companhia ainda há pouco tão alegre, e tão aflita agora, deixava perder momentos de valor inqualificável...

Mas um brado de vida se levantou na praia.

-Salva!... salva!... salva!...

Oh!... quando se diz a um pai, que crê sua filha já morta -salva!... salva!... tua filha está salva!...- tem-se como uma voz de anjo... como um poder de providência...

Salva!... exclamou Hugo; à praia!... à praia!...

E os batéis atiraram-se para a praia.

Tinham-se passado apenas breves minutos depois da fatal catástrofe!

Com efeito, Honorina tinha sido arrancada do seio das ondas.

O velho pescador apenas ouviu o grito de Hugo, atirou-se na água; desgraçadamente esteve a ponto de sucumbir, pois que um dos batéis foi em seu tempestuoso jogo de encontro a ele, no instante mesmo em que acabava de cair no mar.

Depois...

É, enfim, e de uma vez para sempre, necessário convir que o dedo de Deus guia continuadamente o homem na prática das boas ações.

O velho mergulhou... e a Providência Divina fez com que sua mão tocasse o corpo de uma mulher; então ele nadou para terra com o seu precioso fardo.

Honorina devia a vida a esse homem, e também à sua própria organização.

O mesmo fenômeno, que sem ter por muitas vezes observado em idênticas circunstâncias, naqueles em quem predomina o sistema nervoso, sucedeu à moça: no momento da submersão, foi presa de uma síncope, e caiu no fundo do mar.

Houve então um homem eminentemente bravo que soube, arriscando a própria vida, salvar a filha de Hugo de Mendonça.

Quando o velho pescador surgiu no meio das vagas, trazendo a moça em seus braços, os espectadores levantaram seu brado de alegria e correram a prestar à cena a luz de velas e fachos, de que já se tinham munido.

Depondo o corpo da jovem na areia, o velho curvou-se, como para observar seu semblante, e, erguendo logo depois as mãos para o céu, com indizível expressão de ventura, exclamou:

-Era ela!

Palavras cheias de nobreza, de generosidade e grandeza de alma; porque provavam que esse homem se arrojara ao mar para salvar uma vítima qualquer... uma vítima que ele não sabia quem era.

-Vive!... vive!... ela ainda vive!... bradava o pescador, sentindo que Honorina começava a reanimar-se.

-Mas o senhor feriu-se?... perguntou um dos espectadores.

-Eu?... ferido... que importa?... respondeu o velho.

E pela primeira vez lembrando-se de si, ele viu seus vestidos cobertos de sangue, que abundantemente lhe corria da cabeça.

Nesse momento os três batéis chegaram à praia.

Mas, ao senti-los arrastar o bojo pela areia, o velho afastou com força os espectadores que o cercavam, abriu passagem por entre eles, e, correndo, desapareceu.

-Salva!... exclamou Hugo caindo sobre sua filha.

-E quem a salvou?... quem a salvou?...

-Um velho...

-O velho pescador...

-Qual velho! disse um dos espectadores, ele não era velho.

-Oh! acudiu Otávio; eu o observei de bem perto: tinha os cabelos completamente brancos.

-Ei-los ali!... era uma cabeleira!...

E todos viram sobre a praia uma cabeleira branca coberta de sangue.

-E, portanto, pensou Raquel, era ainda ele!...

Honorina

Era meia-noite.

A tempestade tinha passado: o tempo se havia tornado chão, a atmosfera fresca e leve.

Honorina dormia.

O médico chamado para prestar seus cuidados à jovem senhora, conseguira facilmente fazer desaparecer a síncope, que a salvara no momento da submersão, e que ainda durava algum tempo depois; segundo ele, Honorina não corre perigo algum.

A câmara de Honorina está fracamente iluminada; três pessoas velam junto de seu leito.

Ema reza piedosamente defronte da querida neta; Raquel, à cabeceira de sua amiga, tem uma das mãos dela entre as suas; Lúcia suspira sentada aos pés da filha de seu leite; Raquel e Lúcia mostram-se mais agitadas e aflitas do que já pedia o caso.

E Honorina dorme: vestida com um ligeiro roupão branco, com seus belos e longos cabelos, ainda molhados, espargidos pela almofada, com seu rosto meigo e formoso, então ainda mais pálido, com suas pálpebras cerradas, ocultando seus grandes e brilhantes olhos, estava encantadora e poética; e o sono da virgem semelhava o dormir de um anjo; porque suavíssimo era ele, e quase imperceptível a respiração que pelos lábios da moça saía. Tão bela, tão pálida, tão imóvel, alguém poderia crê-la estátua de puro mármore, exposta como triunfo de mestre.

Por algum tempo reinou na câmara profundo silêncio, apenas de momento a momento interrompido pelo baque das contas do rosário, em que a religiosa velha marcava suas orações; e às vezes levantava-se alguma das três pessoas, que aí velavam, e ia pé por pé até junto da moça para, chegando o rosto perto dos lábios dela, receber a impressão de seu respirar de pomba.

Depois de algum tempo ainda de não quebrado silêncio, Lúcia, cujo desassossego não diminuía, apesar do lisonjeiro estado de Honorina, murmurou baixinho:

-Mas ele... ele... o salvador de nossa querida menina!...

-Hugo foi dar todas as providências, disse Ema no mesmo tom, e é de crer que o possamos abraçar e recompensar...

-Recompensar?! tornou Lúcia, o homem, que assim se expôs à morte, tem por força um coração muito elevado para que chegue até a ele a idéia de uma recompensa.

-E isso não nos dispensa do dever da gratidão.

-De uma outra gratidão, senhora.

-Tu estás de mau humor, mãe Lúcia.

-Perdão, senhora; mas aquele homem... ferir-se...

-Aquele homem é um herói da têmpera de nossos avós... nos dias de hoje não se encontram dois homens como ele.

-Outra vez perdão, senhora; mas eu sei de um que seria capaz de praticar a mesma ação que ele praticou.

-Capaz de, em uma noite tempestuosa, atirar-se ao mar borrascoso para salvar uma moça, que não é sua irmã, nem sua amiga?... perguntou Ema sacudindo a cabeça em sinal de dúvida.

-Sim, senhora, respondeu Lúcia com a firmeza da convicção; capaz talvez de mais ainda.

-E quem é esse?...

-Eu tenho medo de desgostar a senhora.

-Não! dize, dize.

-Esse, disse Lúcia enxugando duas grossas lágrimas; esse não está conosco... está bem longe daqui... é o homem que bebeu o leite de meus peitos... é seu neto...

-Mãe Lúcia, não me fales dele!

-Aquele, senhora, que foi capaz de arrojar-se às chamas para salvar uma moça que não era sua irmã, nem sua amiga, atirava-se também pelo mesmo motivo ao mar, embora o visse tempestuoso.

-Há uma diferença, mãe Lúcia; o homem, que se lançou ao mar para salvar Honorina, fê-lo, porque era um bravo; e Lauro arrojou-se às chamas porque não passa de um louco.

-Está bem... basta, senhora! disse Lúcia chorando amargamente.

Sem tomar parte no diálogo, que entretinham as duas, sem talvez muita atenção prestar-lhe, Raquel guardava triste silêncio. Sossegada a respeito do estado de Honorina, ela parecia ter em seu espírito alguma outra consideração que a fazia sofrer: na vida dessa moça, que até então tinha corrido toda em fios cor-de-rosa, aparecia, enfim, uma nuvem de abafado padecer; em sua alma, que brilhara sempre com a luz viva do prazer, desenhava-se já a sombra de um desgosto. Raquel, tendo os olhos embebidos no rosto da sua amiga da infância, às vezes deixava pendurar-se em seus longos cílios uma grossa lágrima escapada insensivelmente de seus belos olhos, como gota de orvalho caída do céu; qual será a causa dessa lágrima?... será porventura exprimida de dentro do coração?... será seu destino ir nas asas de algum terno pensamento a outrem, que ali não esteja?...

Quase ao mesmo tempo em que Ema e Lúcia punham termo às suas observações sobre o salvador de Honorina, Hugo entrou no quarto pé por pé.

-Minha mãe, como vai ela?...

-Dorme tranqüilamente.

-Graças a Deus! disse Hugo.

E, chegando-se para o leito em que descansava sua filha, ele... pobre e amante pai, que se culpava de todas as desgraças daquela fatal noite, foi, como o faziam as três senhoras, beber ao pé dos lábios de Honorina o ar de seu bafo, como um favônio de esperança e de vida; e depois, temendo muito acordá-la daquele sono reparador, outra vez com seu sagrado amor de pai, com as faces cobertas de lágrimas, beijou com ternura e fervor as belas madeixas de Honorina, que úmidas caíam pela almofada.

-E ele?... disseram ao mesmo tempo Ema e Lúcia, ao ver que Hugo se desprendia do leito da filha.

-Não... não... não façam bulha, balbuciou o extremoso pai com um receio infantil desenhado no rosto; não a despertem... venham para fora, que eu falarei então.

Ema e Lúcia logo se ergueram, saíram do quarto com Hugo, e dirigiram-se para a sala; Raquel, que não menos curiosa se mostrava pela sorte do salvador de sua amiga, encaminhou-se depois de vê-los desaparecer, como quem pretendia ir furtivamente escutá-los; porém, antes de chegar à porta, voltou de novo ao lugar que ocupava, pois um brando suspiro tinha estremecido nos lábios de Honorina.

Apenas chegados à sala, Hugo atirou-se, soluçando fortemente sobre o canapé, e com uma como delirante demonstração de prazer ele exclamou repetidas vezes:

-Está salva!... está salva!... minha filha está salva!...

Era o amor de pai! o amor de pai, que por toda a parte transpirava nele... pelos soluços que o sufocavam... pelas lágrimas que de seus olhos corriam, pelo riso que em seus lábios brincava. O amor dos pais é assim, e é ainda belo, grande, majestoso, como nenhum outro.

-Está salva, meu filho, disse Ema; e Deus te há dado esta lição para te emendares.

-Sim, sim, minha mãe, contanto que me reste Honorina, eu lhe prometo tudo, minha mãe!... deixaremos esta casa... não veremos mais esta praia... iremos de uma vez para a corte, e lá Honorina estará sempre debaixo dos olhos de minha mãe...

-E ele, senhor?... perguntou Lúcia ansiosa, e ele?...

-Ele?... é verdade: eu tinha vindo para falar dele...

-E então?...

-Nós seguimos os seus passos: à mercê de nossos fachos acompanhamos suas pisadas; oh! era impossível perdê-las de vista... estavam horrivelmente marcadas!... sobre cada uma delas havia gotas de sangue...

-Oh!... desgraçado!... exclamaram as duas.

-Fomos indo assim até que chegamos ao sítio da praia, onde se acham reunidas as faluas; aí toda a esperança de encontrá-lo se perdeu: alguns patrões viram-no embarcar-se, e mandar, a despeito do horrível temporal, abrir as velas e sair...

-Pobre homem! quem sabe se estará ainda vivo?!

-Oh! senhora, exclamou Lúcia, não diga semelhante coisa!...

-Mas por que se esconde ele... por que se furta tão misteriosamente a nossos olhos?!...

Era essa uma pergunta à qual nenhum dos três se achava em estado de responder, por isso contentaram-se com guardar triste e profundo silêncio.

Enquanto isto se passava na sala, Raquel, ouvindo o suspiro que estremecera nos lábios de sua pobre amiga, foi outra vez de manso sentar-se junto dela; de novo tomou entre as suas uma das mãos de Honorina, que, ao doce contato, fez um movimento e abriu os olhos. Raquel estremeceu como se temesse haver cometido uma grande falta; Honorina talvez a compreendeu, pois que sossegou-a com o meigo sorrir de seus lábios.

-Honorina, tu estás muito melhor, não é assim?... perguntou Raquel.

-Sim, Raquel... agora só falta a cabeça... que me anda à roda... e me pesa muito...

-Está bem... não fales mais: isso há de passar... dorme, Honorina.

Honorina, parecendo obedecer ao conselho de sua amiga, fechou os olhos; mas bem depressa os abriu de novo, e uma ligeira nuvem cor-de-rosa se espalhou em suas faces.

-Raquel, disse ela com voz comovida e trêmula, Raquel... perdoa-me, porém sossega-me...

-Que queres, pois, Honorina? fala.

-Tu viste?... perguntou ela, enrubescendo ainda mais.

-Quem, Honorina?

-O homem que me salvou?...

Aquela pergunta deveria ter feito mal a Raquel, porque ela se tornou de repente mais pálida do que há pouco estava Honorina, e foi quase gemendo que respondeu:

-Era... ele.

Honorina, como se acabasse de experimentar a influência de um choque elétrico, estremeceu toda, e com viva expressão de agradecimento levou a mão de sua amiga até os lábios.

-Dorme agora, Honorina.

Dir-se-ia que a moça cedera ao encanto da voz de Raquel; pois pareceu imediatamente adormecida. Momentos depois Ema e Lúcia entraram de novo no quarto.

-Como vai ela?... perguntou Ema.

-Esteve um momento acordada... queixou-se ainda da cabeça; mas tornou a adormecer sossegadamente.

-Pobre menina! disse a velha.

Honorina tinha os olhos fechados; porém, estava ouvindo tudo com a curiosidade própria de um enfermo.

-E ele?... perguntou Raquel; sabe-se alguma notícia?

-Tristes novas, minha senhora, respondeu Lúcia.

-Pobre homem! disse Ema, deixou suas pisadas marcadas com seu sangue! nós suspeitávamos que ele havia ficado ferido; porém, assim... oh!... é bem triste!

Ouviu-se então um longo gemido... longo... arrancado do coração; Honorina tinha compreendido tudo.

O resto da noite foi cruel e terrível. A dor de Honorina transbordou.

Durante a noite o pensamento é mais arrojado e mais livre; e de ordinário o coração acompanha o pensamento, e ambos se deixam ver em seus vôos, tais como são.

Honorina nem mesmo tratou de esconder o pesar e a aflição que lhe causava aquela fatal nova; parecia ter orgulho de ostentar ambos; parecia querer dizer a todos -eu sofro... eu choro por ele!

Inventou-se e repetiu-se mil vezes uma história para abrandar a dor da interessante moça: jurou-se-lhe que um homem, a quem nenhum de seus amigos conhecia, mas que a tinha salvado, pouco depois se embarcara para a corte; que ele estava ferido sim, porém levemente; que sua vida não corria risco; que tudo ia bem... tudo o melhor possível.

Raquel, sem desamparar um só momento a sua amiga do coração, velou toda a noite por ela e pelo segredo do seu amor; animou-a... fechou-lhe a boca mil vezes, mil vezes deu uma falsa interpretação a seus gemidos para encobrir a verdadeira causa deles; e, finalmente, rendeu graças ao céu ao vê-la adormecer em seus braços ao romper da aurora.

Às dez horas do dia, Honorina despertou melhor e mais sossegada. Então ela se lembrou da terrível noite que se tinha passado... ouviu a relação da catástrofe... e conheceu que em tudo quanto lhe diziam do homem que a tinha salvado, só eram verdadeiras duas coisas: que ele se havia ferido ao salvá-la, e que nada se sabia do seu destino. Mas agora, já razoável; agora, com todo o seu pudor de virgem despertado, esforçou-se ela por sepultar sua dor no fundo do coração, ou por derramá-la somente no seio de Raquel, de cujos lábios ouvia palavras de amizade, que lhe acendiam na alma a esperança.

E, pois, com a dor no coração e a esperança na alma, Honorina, embora abatida e melancólica, mostrava ir restabelecer-se depressa; e assim esvaíram-se prontamente todos os receios que pela sua vida puderam ter seus parentes e seus amigos.

. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

Ao declinar da tarde desse dia as duas amigas tiveram de separar-se: bem quisera Raquel demorar-se mais; porém, seu pai, a quem sempre sobravam sérios negócios, já se tinha deixado ficar em Niterói um dia inteiro, só em atenção à filha do seu amigo.

No instante da despedida, Honorina e Raquel achavam-se a sós; haviam acabado de trocar um beijo, estavam ainda apertadas em estreito abraço, quando a primeira murmurou com voz trêmula:

-Raquel, minha amiga! eu não devo, nem quero ter segredos para ti...

-O que há, pois, Honorina?

-É que já não posso duvidar do que sinto; eu amo!... conheço, enfim, que amo, e muito!...

-Sim... sim... eu já o sabia, Honorina! balbuciou a custo a outra moça.

-E eu te queria ainda pedir...

-Dize!

-Raquel! tu és boa, tu és bela e virtuosa; e, portanto, tuas orações deverão chegar até o céu, como o perfume de uma pura flor!... e, pois, pela santa amizade que nos liga, pelo amor de teu pai, reza para que Deus abençoe e proteja o meu amor!...

-Sim... sim... sim... disse a amiga de Honorina com voz abafada.

Quando Raquel deixou a câmara de Honorina e foi juntar-se a seu pai para partir, este notou no rosto contraído de sua filha a expressão de um sofrimento acerbo... terrível... e profundamente concentrado.

Raquel

Raquel tinha deixado com seu pai a jovem cidade de Niterói; sentada em um dos bancos centrais da barca que os levava, a moça mergulhara seu espírito em profunda meditação; triste e silenciosa, ela havia abaixado a cabeça, como para esconder seu rosto de todas as vistas, e, no entanto, dois olhos estavam fitos nela, examinando seus menores movimentos, adivinhando seus mais ocultos pensamentos. Eram os olhos de seu pai.

Jorge era um homem de sessenta anos, alto, proporcionadamente gordo, tinha os cabelos e supercílios todos brancos, os olhos pardos, e não grandes; seu rosto era comprido e pálido; trajava sempre vestes pretas, seu andar era vagaroso e grave, falava muito poucas vezes, e quase nunca se ria: tudo isto dava-lhe um parecer melancólico, frio e severo.

Jorge desprezava o mundo, desconfiava dos homens, e dificilmente abria seu peito a essas nobres e generosas afeições que nos prendem à vida; em compensação, porém, quando algumas delas podiam chegar a seu coração, não saíam daí mais nunca; como se todo o seu ardor estivesse concentrado nos poucos entes a quem amava, Jorge daria a vida pelo seu amigo, e a alma pela sua Raquel.

Oh!... o amor que esse homem votava à sua filha era imenso e desmedido! fruto único, que lhe havia legado uma esposa, a quem apaixonadamente idolatrara: Raquel foi por ele criada com extremosa ternura; recebeu dele uma educação especial e nova; mas desgraçadamente Raquel, moça, alegre, cheia de vida e vivacidade, cedendo a um erro fatal de seu pai, deixou ir caindo em seu coração todo esse frio, toda essa desconfiança do mundo e dos homens, que no respeitável ancião se davam.

Jorge se aplaudia dos benignos efeitos da educação que dera a sua filha: Raquel era feliz, livre, como a ave dos bosques, alegre e pura no meio da desgraça, do cativeiro, da tristeza e da miséria do mundo. Mas o orgulho do velho tinha de ser terrivelmente ferido.

Logo depois do sarau de Tomásia, Jorge reparou que sua filha passava horas de inexplicável tristeza... dias inteiros de esquecimento de si própria... noites gastas em meditações e suspiros...

Outrora Raquel, quando sentia um pesar ou um prazer, por pequenino que fosse, corria a derramá-lo também na alma de seu pai...

E naqueles dias Raquel fugia de encontrar os olhos de Jorge...

O tempo foi passando, e o amoroso pai observava que sua filha cada vez mais e mais se ia abatendo.

Voltavam, enfim, ambos da cidade de Niterói.

Jorge não perdia de vista a sua querida Raquel; notava cuidadoso aquela tristeza, que há dias a enuviava; e ele, que nunca hesitara em interrogar a consciência de sua filha, pela primeira vez, com seu instinto paternal, temia vê-la corar antes de responder-lhe.

Raquel sofria, com efeito, muito: criada com a educação singular, que lhe havia dado seu pai, essa moça, única talvez entre todas as da sua idade, olhando para o mundo de uma maneira tão particular, sem ter ainda podido despertar nela esses sentimentos ardentes e devoradores, que fazem sempre a desgraça ou a ventura de toda uma vida, e por isso não acreditando neles, acostumada a rir-se das fingidas paixões, com que se lisonjeiam as moças nas assembléias; essa moça, que tinha dito a Honorina -o amor é uma vã mentira!- também por sua vez amava!...

E como se pelo orgulho que ela tinha de sua insensibilidade para o amor, lhe devesse ser dado um castigo, que a fosse ferir aí mesmo e demonstrar toda a sua fraqueza, Raquel tinha sentido derreter-se a massa de bronze que defendia seu coração, ao simples fogo do olhar de um homem, que via pela primeira vez!

E como se pela incredulidade com que desrespeitava os grandes sentimentos que fazem ferver a vida humana, ela devesse provar uma pena tão grande como o seu delito, Raquel sentia o mais requintado tormento que pode consumir uma mulher que ama; porque, enfim, ela sabia ate à evidência que não era amada.

E como finalmente se não bastasse isso ainda, como se ela tivesse de engolir até as fezes de seu cálix de amargura, como se não se lhe devesse deixar um abrigo para esconder-se, um seio onde chorasse, um coração onde derramasse seus suspiros, uma boca que lhe consolasse, Raquel, que tinha no mundo um pai e uma amiga, era deles que mais escondia seu sofrimento; porque seu pai a fazia corar, e sua amiga era a sua feliz rival.

Raquel amava, e amava apaixonadamente o moço loiro.

Nesse fatal sarau, que ela tantas mil vezes amaldiçoava em suas tão longas horas de meditação tormentosa, ela o tinha visto triste e pensativo, e então por ele não sentiu mais do que essa engraçada curiosidade, que toda a moça experimenta quando vê perto de si um moço que pensa, e que seu amor-próprio lhe faz julgar que é dela que talvez se ocupa; mas, quando o jovem melancólico levantou a cabeça, Raquel, ao encontrar seus olhos, cujas vistas ardentes penetravam como uma seta, conheceu que havia naquele olhar alguma coisa muito poderosa e nova para ela. Ainda alegre e apenas curiosa, procurou vê-lo durante o fim do sarau; depois inexplicavelmente preocupada, como Honorina, passou o resto da noite a pensar nele com sua imagem diante dos olhos... com o timbre de sua voz nos ouvidos... e com um peso... uma aflição... uma sensação ainda indizível em toda ela. Enfim, no outro dia, no que se lhe seguiu, no outro ainda... sempre e sempre ansiosa, exasperada, não pôde negar mais a si mesma que fora ela quem havia mentido, dizendo -amor é uma vã mentira. Ela amava.

Raquel, orgulhosa e encantadora moça, sentiu finalmente que, assim como há para o homem, há para a mulher também um momento na vida decisivo, terrível, em que somente um olhar conquista... subjuga... cativa para sempre o coração daquele que o experimenta: um olhar penetrante como o raio de sol, que, chegando até à alma, absorve seus pensamentos, como o mesmo sol o aroma das flores; que com esses pensamentos se mistura para sempre, que neles lança os vestígios de sua poderosa influência, como a gota de líquido corado, que, lançada no vaso de água cristalina, a colore toda.

Oh! Raquel amava muito o moço loiro; e seu amor redobrou, vendo como ele se dedicava a Honorina; talvez... se é possível, Honorina não o amava tanto como Raquel; ou então é preciso distinguir que o amor de uma, partindo do coração, partia ainda mais do espírito, e o da outra saía todo ele do coração.

Honorina, eminentemente nervosa, entusiasta e romanesca, já estava predisposta para amar, quando viu o moço loiro; depois comparou-o com o seu desconhecido, e bem que o resultado da comparação não fosse lisonjeiro a este, todavia; ao conhecer que o jovem loiro e o desconhecido não eram senão a mesma personagem, sua imaginação já excitada se inflamou, e, se seu coração pulsava pela imagem do agradável moço, seu espírito se deixava levar daquelas aparições inesperadas, daquela voz que respondia a seu hino, daquele homem, enfim, que se apresentava imprevisto para arrancá-la da morte. Honorina, pois, amava com o coração, e ainda mais com o espírito.

Raquel, fortemente sangüínea, não era nem entusiasta, nem romanesca como sua amiga: uma carta de mão incógnita a faria rir; aquelas aparições a divertiriam; um homem, que expusesse sua vida para salvar a dela, ganharia toda a sua gratidão, e, todavia, não o seu amor. Mas o moço loiro era amado por seu olhar poderoso, por seus belos cabelos, por seu rosto varonil e interessante, por seu sorrir melancólico, por ele mesmo e só, enfim, sem mistérios e sem nada mais fora dele. E, pois, o amor de Raquel saía todo inteiro do coração.

E, contudo, esse amor tão puro e tão terno devia morrer ali mesmo, onde tinha nascido, sem que ninguém o percebesse; como a flor da colina solitária, ou o suspiro exalado na solidão! era um amor, que cavava uma sepultura em seu berço. Se Raquel fosse amada, sua abnegação não chegaria a esmagar seu terno sentimento, e sacrificá-lo à ventura de Honorina; porém ela via que sua rival era feliz; e sua rival era amiga de seus primeiros anos, a sócia de seus prazeres, a companheira dos seus brincos de infância. E, portanto, Raquel, boa, nobre, fiel à amizade, não podia levantar-se diante da felicidade de Honorina; ela se sentia com ânimo bastante, ela desejava mesmo acender a pira do himeneu, e, levando Honorina pela mão, entregá-la a esse moço loiro tão interessante, que devia ser por força um homem virtuoso.

Também mais do que isso não se pode exigir de uma mulher, que é rival: com tal já se tortura ela bastante.

Quando Jorge e Raquel desembarcaram, já era noite; eles caminharam silenciosos, e, ao passar por uma rua estreita e tortuosa, Raquel, apontando para uma pequena casa, por defronte da qual iam, disse:

-Meu pai, não é ali a casa da velha Sara?...

-Sim, minha filha.

-Oh! pois eu estimaria bem ver a minha pequena afilhada!

-Isso me convém, Raquel; pouco atrás nos ficou a casa do meu guarda-livros, e eu quero saber o que temos de novo.

E, dirigindo-se para o outro lado da rua, Jorge bateu em uma rótula, e viu logo depois sua filha abençoada pela gente que aí morava. Raquel era o gênio da beneficência daquela família.

Jorge saiu para logo voltar.

Moravam nessa casa a velha Sara, a quem Raquel tratava por avó; um moço de vinte anos, seu neto, que se chamava Miguel; e uma inocente menina de três anos, neta também de Sara, e que, tendo perdido sua mãe poucos momentos depois de nascer, outra encontrara na piedade da filha de Jorge.

Depois de haver acariciado sua inocente afilhada, que justamente era órfã, Raquel dirigiu-se à velha:

-Então, minha boa avó, está ainda bem forte, não é verdade?...

-Sim, sim, minha senhora, para meus noventa anos; porém, tudo isto vai caindo de repente... há dois meses passados eu era outra...

-Não se pode ser forte toda a vida, boa avó; mas, graças a Deus, eu a acho sempre gorda... goza mais saúde do que se podia esperar em tão avançada idade: e tudo por aqui vai bem; Miguel está forte... e mostra ser sadio... a pequena Luísa, muito limpinha e viva... bem... bem...

-Oh! mas nunca faltam incômodos...

-Então o que há?... eu reparo que aqui se passa alguma coisa; Miguel tem estado a ponto de falar umas poucas de vezes; e ele custa-lhe a fazê-lo...

-É o seu costume... abrir a boca, quando deve fechá-la.

-Então é um segredo?... pois bem: eu não quero sabê-lo.

-Sim, disse Miguel; mas eu já tenho dito dez vezes à mãe Sara que, se ele nos morrer em casa, pode-nos custar caro.

-Morrer em casa!... exclamou Raquel.

-Miguel! tu faltaste ao que prometeste, disse severamente a velha.

-Não, mãe Sara: a Sr.ª D. Raquel não entrava na conta; nós não podemos esconder nada dela.

-Então, de que se trata? perguntou Raquel.

-Fala tu, Miguel, já que começaste.

-Falo, sim, senhora, tornou Miguel: pelo sim pelo não, é bom que a senhora saiba; pois se acontecer alguma desgraça...

-Fala... anda.

-Foi o caso que ontem pela volta das onze da noite tinha eu chegado por acaso à janela, quando vi aproximar-se vagarosamente, e apoiando-se pelas paredes, um moço, coitado, todo molhado, e o que é mais, coberto de sangue.

-Meu Deus! e que é feito dele?...

-Pediu-me com voz desfalecida que o socorresse... que o ajudasse a caminhar... ora, eu não tenho coração para ver estas coisas; chamei mãe Sara, e compadecidos todos lhe oferecemos a minha cama...

-E ele, e ele?...

-Arrumou os pés à parede, e não quis aceitar senão depois que lhe prometemos nada dizer a seu respeito, a quem quer que fosse... enfim, entrou: pobre moço! tinha a cabeça quebrada; não consentiu, porém, por modo algum que se chamasse médico; fez-me amarrar-lhe a cabeça com panos; mãe Sara pôs-lhe um remédio na ferida, e ele dormiu toda a noite; mas ainda não se pode levantar.

-E agora?...

-Há duas horas que dorme.

-Minha boa avó, disse Raquel com voz muito trêmula, ele dorme... deixe que eu veja esse moço... só da porta... de longe...

-Minha filha, posso eu dizer-lhe que não?... mas Deus sabe que não fui eu quem faltou à promessa.

Raquel deixou Sara, e, acompanhada de Miguel, dirigiu-se por um corredor escuro e longo, no fim do qual este lhe apontou um quartinho, cuja porta estava apenas cerrada.

Raquel fez sinal a Miguel para que observasse se o moço dormia; e, só depois de certificada disso, ela passou mansamente metade de seu esbelto corpo para dentro do quarto e viu... era ele mesmo!

Uma fraca luz ardia junto à sua cabeceira, e, à mercê de seu triste clarão, ela viu o rosto pálido e abatido do jovem ferido... alguns anéis de seus cabelos saíam por debaixo do lenço, em que tinha envolvida a cabeça... seus olhos estavam fechados; mas, ainda dormindo, parecia tão meigo como na noite do sarau.

Raquel contemplou enlevada a figura do moço adormecido; depois, como arrependida de algum terno pensamento, que talvez lhe surgisse na alma, retirou-se rapidamente da porta do quarto, e, levando a Miguel para outro, que defronte ficava, disse:

-Miguel, és capaz de ir agora mesmo a Niterói?

-Ao fim do mundo para lhe servir, senhora.

-Pois vai: procura entre S. Domingos e a Praia Grande a casa em que mora o Sr. Hugo de Mendonça... está situada a poucas braças do mar; dize que vais da minha parte falar à sua filha: e a ela só, Miguel, ou a uma mulher já idosa, que se chama Lúcia, entrega a carta que vou escrever, que não deverá ser lida senão por ela... por ela só, entendes?...

-Perfeitamente; pode contar que tudo está feito.

-Dá-me papel e tinta.

Raquel ficou só no quarto e escrevia a Honorina; quando já tinha terminado e dobrado a carta, Miguel a veio chamar da parte de Jorge, que acabava de chegar; foram então ambos para a sala; alguns momentos depois, porém, a moça, tendo obtido de seu pai licença para mandar, como dizia, buscar notícias de Honorina, voltou, selou a sua carta, e, pondo-lhe o sobrescrito, ao mesmo tempo que com seu pai se retirava, Miguel partia para Niterói.

Raquel, mandando lisonjeiras notícias do moço loiro à sua rival e amiga, castigava sua alma pelo amoroso pensamento que há pouco tinha concebido, ao observar o jovem adormecido.

No fim de três horas Honorina lia a carta de Raquel. Miguel havia desempenhado sua comissão como melhor pôde, confiando a carta a Lúcia.

Honorina beijou mil vezes aquelas letras, que, por serem vindas da mão da sua melhor ou talvez única amiga, livravam-na além disso de metade de seus cuidados; tendo finalmente de guardar a carta, viu, ao fechá-la, surpreendida a princípio, e logo depois toda prazer e ardor, que haviam, no verso da página escrita, algumas linhas que lhe tinham escapado, que não eram da mão de Raquel, e que diziam assim:

«Honorina, eu te amo! eu amo, com esse amor de poeta, como esse amor de fogo, que, ainda quando acaba na desgraça e na morte, contanto que seja sempre o mesmo amor, é por força bem belo!...»

-Oh!... exclamou Honorina levantando as mãos para o céu, quanto devo eu à amizade da minha Raquel!...

Mas, no meio de seu prazer imenso, a moça tornou-se subitamente melancólica e pensativa, como se uma lembrança amarga tivesse vindo avivar-se-lhe no espírito.

Há no mundo um sentimento encantador e meigo como o primeiro sorrir de um filhinho, puro e benigno como o orvalho da aurora, inocente e casto como o amor nascente de uma virgem; é a amizade de duas moças.

No meio desses juramentos de eterna estima, que as jovens senhoras proferem em um sarau, ao som das contradanças, e que cinco minutos depois esquecem; no meio desses beijos, dessas carícias que se dão, e se despedem com as faces ardendo e o coração gelando, a amizade sincera de duas moças fulge como brilhante sem jaça entre a multidão de falsas pedras; e os corações daquelas pendem um para o outro, ao doce impulso da amizade, semelhante a duas mimosas flores, que se aproximam e se tocam impelidas pelo sopro de matinal favônio.

Uma amizade desse gênero ligava Honorina a Raquel; elas amavam-se como duas irmãs gêmeas, que se amam muito.

São onze horas da noite.

Melancólicas e pálidas velavam duas virgens na solidão de suas câmaras: estavam separadas uma da outra por esse braço do oceano, que passa entre as duas cidades do Rio de Janeiro e de Niterói, e além se estende, beijando namorado brancas orlas de sossegadas praias, e namorado abraçando ilhotas graciosas; mas, no entanto, acima desse mar e subindo ao céu, encontravam-se talvez os pensamentos de ambas, porque pensavam uma sobre a outra.

Honorina de repente se entristecera, lembrando-se de Raquel: no meio de sua alegria recordou-se de que uma paixão fatal e reprovada torturava a alma de sua amiga; incapaz de dizer uma mentira a Raquel, e nesta confiando muito, acreditou que ela amava um homem casado; e a lembrança do padecer da escolhida de seu coração a mergulhava em um mar de cruéis reflexões. Honorina não achava um só meio de servir a Raquel: Honorina chorava.

Passado algum tempo, a filha de Hugo de Mendonça foi ajoelhar-se ante uma imagem da Mãe de Deus: Honorina rezava.

Raquel sentia que o amor que votava ao moço loiro a cada instante se tornava mais e mais ardente; cedendo às vezes à influência de sua imaginação, sonhando um momento acordada, ia desenhar belos arabescos no painel de seu futuro; mas de súbito se lembrava de Honorina, da sua fiel e única amiga, do amor que lhe tinha aquele a quem amava, e uma barreira imensa... insuperável se erguia entre Raquel e a felicidade: então ela de novo castigava seu espírito, fazendo votos pela ventura de Honorina; mas pensando também em si... Raquel chorava.

E a filha de Jorge foi ajoelhar-se, como à mesma hora o fazia Honorina, ante uma imagem da Mãe de Deus. Raquel rezava.

E no fim de uma hora, Honorina, que tinha concluído suas orações, antes de levantar-se, ergueu as mãos para a sagrada imagem e exclamou:

-Oh! minha Mãe Santíssima!... tende piedade daqueles que padecem!... curai a dor do meu coração, fazendo a felicidade de Raquel!...

E também no fim de uma hora, Raquel, que tinha concluído suas orações, antes de levantar-se, ergueu as mãos para a sagrada imagem e exclamou:

-Oh! minha Mãe Santíssima... abençoai e protegei o amor de Honorina; mas tende comiseração de mim, que muito sofro!...

Ele

Na manhã do dia seguinte o moço ferido, que se achava na casa da pobre Sara, achou-se melhor; sentia apenas que, ainda nimiamente fraco, não podia deixar aquela casa sem um companheiro que o sustivesse.

Sara e Miguel estavam à mesa almoçando com a melhor disposição, quando viram aparecer à porta da varanda o seu doente.

-Ninguém se desarranje por minha causa, disse ele alegremente; eu me acho melhor e, falando sem-cerimônia, tenho bastante fome.

-Mas...

-Nada... nada de reflexões, continuou sorrindo-se; mãe Sara (permita que lhe chame assim), dê-me uma xícara do seu café e metade do seu pão... eu já estou bom... completamente bom... e sinto uma fome terrível... ah!... então parece que duvidam!... pois, meus bons amigos, eu não faço cerimônia... com licença.

E dizendo isto o moço serviu-se de café e pão, e começou a fazer boa companhia aos seus hóspedes; já se dispunha a repetir segunda dose de café, quando a velha o suspendeu.

-Alto lá, senhor! não se come tanto de uma vez ao entrar em convalescença...

-Também acho-lhe razão, mãe Sara, e sujeito-me agora a suas determinações; porém, ali pelo correr das duas horas há de fazer-me o favor de servir-me com uma... está bem, não vamos tão depressa; com metade de uma galinha ensopada, guisada, assada, ou como lhe parecer. É certo que agora não tenho dinheiro, porém amanhã, mãe Sara, eu lhe prometo que há de ser paga de suas despesas e trabalhos.

-Que despesas, moço! até esta hora ainda não me fez gastar um vintém... não falemos nisso; eu estou bem contente de vê-lo assim alegre...

-Obrigado, mãe Sara; agora tenho um negócio com o Sr. Miguel...

-Então quer que eu faça alguma coisa?

-Sim, meu amigo: eu quero que ao toque das oito horas da noite esteja hoje o senhor junto às grades do templo do Carmo.

-Bem; e depois?...

-Há de aí vir um menino vivo, esperto, loiro, que mostrará ter dezesseis anos... vestido de branco (pelo menos é de esperar que assim venha), e com uma fita preta atada em laço ao pescoço: mostre-lhe o senhor este anel, que lhe vou dar, e diga-lhe que o acompanhe.

-E depois?...

-E depois, Sr. Miguel, não há mais nada a fazer: o senhor entra e fica na sua casa; e o menino terá de conversar comigo.

-Ah!... entendo: quer que traga o menino cá?...

-É exatamente isso mesmo; o Sr. Miguel tem uma penetração admirável!... eis aqui o anel.

Miguel recebeu o anel, escondeu-o no bolso da calça e saiu.

-Agora, mãe Sara, disse o moço, consinta que eu vá descansar um pouco.

-Vá, vá, moço, e não seja desinsofrido.

O moço loiro levantou-se e foi direto para seu quarto, já sem encostar-se às paredes.

-Ora, pois, disse ele entrando, vê-se bem que esta cabeça vai tomando juízo: já não me anda tanto à roda...

E, deitando-se em uma pobre cama, adormeceu de novo.

Mas quem é esse mancebo?... donde veio?... o que pretende?... por que se esconde?... pouco nos é dado dizer a semelhante respeito; nada adiantaremos ao que já qualquer que ler este livro terá compreendido.

É absolutamente o mesmo moço loiro, que se apresentou no sarau de Tomásia diante de Honorina e Raquel; mas seu rosto, que não afeta mais a doce melancolia, que, sem dúvida, fingiu à vista das duas moças, está agora extremamente pálido; seus olhos se acham encovados; ainda assim, porém, ardentes e vivos; e, apesar de fraco e abatido, ele sempre alegre e fagueiro deixa brincar nos lábios descorados um sorriso engraçado, que sabe tornar melancólico, irônico, picante ou agradável, segundo as circunstâncias do momento.

Mas como se chama o moço loiro?... ficamos como dantes; é essa uma questão que ele nunca trata de decidir; uma vez, em que Sara lhe perguntou qual era o seu nome:

-Há suas dúvidas a esse respeito, mãe Sara, disse ele com voz meiga: eu mesmo ainda não sei como me devo chamar; no entanto, pode ir chamando-me, como lhe parecer, porque eu acudo por todos os nomes da folhinha.

Todavia, apesar do mistério de que se rodeia, há uma coisa que à primeira vista de olhos se aprecia devidamente em suas ações e mesmo em seu semblante: é o caráter dele. Na parte superior da sua fronte desenha-se descendo, e estreitando-se até o meio dela, com sua forma cônica, e apenas sensível, o órgão da sagacidade e vivacidade de espírito. Basta, além disso, observar esse moço durante breves momentos para conhecê-lo todo; com efeito, tudo nele é fogo e ardideza; ágil, rápido e precipitado, quase em um só tempo pensa e executa; jovem, e parecendo cheio de esperanças, ele se ri para o mundo com uma audaz confiança no futuro; forte, decidido, bravo e imprudente, não hesitaria um instante ao ver-se à borda de profundo abismo, antes atirar-se-ia no seu fundo para salvar uma vítima, qualquer que fosse, que lá se debatesse; talentoso, ardente e romanesco despreza a vida de vegetação e de monotonia, e, todo entregue aos sonhos e desvarios de sua imaginação, cria em derredor de si, e para viver a seu gosto, um mundo de ilusão, de mistérios e de belas fantasias; finalmente, compassivo e alegre, independente e brando é sempre o amigo dos desgraçados, tem sempre piedade dos outros e nunca de si; está constantemente alegre, não odeia a ninguém, estima muita gente e morre de amores por Honorina.

O gênero de amor que entretém deve, pois, sua origem e alimentação a uma de duas causas: ou a seu caráter, ou a uma razão ainda desconhecida.

É possível que, extravagante e ardente como é, tendo ouvido o primeiro diálogo de Honorina e Raquel, e então devidamente apreciado a imaginação daquela moça, que devia ser com tanta facilidade inflamável, lhe viesse ao pensamento desafiar-lhe primeiro a curiosidade, e depois ganhar-lhe o amor com suas aparições inopinadas e preparados mistérios: se ele pensou assim, tirou completo resultado de seu plano.

Mas é possível também que, amando desde muito a bela moça e temendo que seu rosto, visto à luz do dia possa recordar um crime, ou uma infâmia que faça recuar horrorizado de seu aspecto aquele anjo de pureza, se furte aos olhos de todos, e à mercê da noite, ou quando, aparecendo só a ela, ninguém haja para apontá-lo com o dedo, e dizer: eis um monstro! trate de prender em duros laços o inocente coração da menina, a fim de que, se uma hora soar em que seja conhecido, seja também já impossível escapar-lhe a presa.

Pode, porém, existir tanta malvadeza em um homem tão nobre, que se expõe à morte para salvar uma mulher?... em um homem que, ainda estando só, está sempre alegre?... a alegria na solidão não será um privilégio exclusivo da virtude?...

Além disto, uma consideração há a fazer notar em todos os passos desse mancebo: como pode ele penetrar nas noites que lhe agradam, dentro do jardim de Hugo?... quem lhe foi dizer que Honorina esperava um cabeleireiro no dia do sarau de Tomásia?... quem o foi prevenir de que Hugo voltaria com sua filha para Niterói na mesma noite?... quem o avisou de que haveria um passeio marítimo na noite da tempestade?...

Embora não se possa explicar semelhantes dúvidas, nada há mais certo do que o conhecimento prévio que o moço loiro teve de tudo aquilo; ele, pois, sabe de todos os passos de Honorina, de suas ações, de seus projetos, e, jogando com eles, ganha sempre as partidas em que compra cartas.

Em seu engraçado contender de amor, ainda não abandonou o campo uma só vez, como vencido. De duas uma: ou deixa a confusão no arraial inimigo, e de longe com isso se recreia, ou vai bater-se face a face e ganha de ordinário um troféu de vitória. Sempre imprevisto, nunca esperado, jamais o mesmo, muda de armas em cada batalha, de gênero de combate em cada campo. Há só um objeto constante nele -a sua bandeira, a divisa de seu escudo: amor!

Assim, testemunha ocular, ouvindo a conversação de duas moças horas inteiras de uma noite, ouvindo, sem ser visto, ele confunde a ambas com sua primeira carta, que nada menos significou do que a declaração da guerra do amor.

Dias depois, ridiculamente vestido e ainda pior toucado, apresenta-se diante da moça que ama, rouba-lhe um anel de madeixas e desaparece.

Mais algumas horas, e ei-lo metamorfoseado em moço loiro, sentimental e melancólico: fala, e de seus lábios escorre veneno para o coração de duas moças; olha, e de seus olhos partem setas de fogo, que fazem arder o sossego de ambas elas; tem entrado em um sarau para o qual não o convidaram, vê a gente que chega, e foge sem ser sentido, sem ser notado, deixando sua imagem e a relação de um sonho para atormentar duas belezas.

Para logo inteiramente novo, é já um rude bateleiro; que com sua voz áspera e grossa assusta Honorina, e faz-lhe fechar os olhos: aproveita-se do vento... beija-lhe uma luva, e dentro dela lança o seu hino de vitória, e ao amanhecer, na janela da moça, a flor que devia explicar o sonho!

Não muito depois responde a um canto com outro, em que demonstra que ouviu ou que sabe de um doce pensamento escapado da alma e dos lábios de Honorina. Na noite seguinte o velho pescador, como um enviado do céu, atira-se ao mar e salva aquela a quem ama. Não tem por armas mais do que cabeleiras e vestidos singulares, e à mercê deles triunfa sempre.

Quem é, pois, esse mancebo que não sabe toucar e faz-se cabeleireiro; que nada compreende de pilotagem e se improvisa patrão de batéis?...

. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

Meio-dia soou: o moço loiro acordou-se, e, ouvindo a voz de Sara na varanda, levantou-se e se foi sentar em uma banquinha junto dela.

-Então como vai, moço?...

-Cada vez melhor, mãe Sara; mas confesso-lhe que sinto outra vez uma fome dos meus pecados; a minha galinha estará pronta?...

-Ainda não, moço; o senhor disse que queria pela volta das duas horas da tarde.

-Paciência... paciência; porém, mãe Sara, quero pedir-lhe um favor: não me chame de moço; chame-me de filho.

-Pois bem: meu filho...

-Assim... mas o que é?...

-O que é, o quê?

-Ah! eu pensei que mãe Sara me perguntava alguma coisa; como ia dizendo -meu filho...

-Não, nada perguntei; e, todavia, alguma pergunta poderia ser-lhe feita.

-O quê?...

-Eu não sou curiosa, meu filho; recebi-o em minha casa sem o conhecer; mas... cheio de sangue... que queria isso dizer?...

-Que o sangue era de minha cabeça, mãe Sara.

-E como se quebrou a sua cabeça?...

-Ora... como se quebrou?... quebrando-se; não há nada mais natural; nunca se viu uma cabeça quebrada?...

-Sim; mas era possível temer...

-Está bom... está bom, mãe Sara; falemos em outra coisa; não há nada pior do que dormir com fome.

-Por quê?...

-Porque sonha-se muito.

-Sim?... então sonhou?...

-Esta noite... muito; dois longos sonhos... olhe, mãe Sara, em parte eu gosto bastante de sonhar; se soubesse como eu tenho sido feliz com sonhos!...

E o moço pôs-se a rir.

-E sonha muitas vezes?...

-Faço ainda mais, mãe Sara: quando não posso sonhar, invento sonhos.

-Mas, meu filho, isso também é mentir; e, portanto, é pecado.

-Há certos pecados que Deus perdoa facilmente; porém, como lhe dizia, esta noite tive dois sonhos... e um com mãe Sara!

-Comigo?...

-Sem dúvida; mãe Sara é bem pobre, não é assim?...

-É verdade, mas não da graça de Deus.

-Pois eu sonhei que me ia hoje embora, e, querendo dar-lhe algum dinheiro, mãe Sara o não quis receber...

-E era isso o que havia de acontecer.

-Obrigado... obrigado... nem eu me atrevia a oferecer-lhe nada; mas o sonho continua... e amanheceu o dia de amanhã... mãe Sara acordou e achou debaixo do travesseiro uma carteira cheia de dinheiro...

-E quem a tinha posto lá?... perguntou rindo-se a velha.

-Provavelmente a mão de algum gênio benfazejo.

-E depois?...

-Mãe Sara ficou com o dinheiro, e acabou-se o sonho.

O moço loiro ria-se agradavelmente, observando a impressão que seu sonho produzia na pobre velha; depois de alguns instantes de silêncio, ela perguntou:

-E o outro sonho feiticeiro?

-O outro... o outro é com Miguel; eu queria repeti-lo à vista dele, porém mãe Sara lho contará.

-Vamos lá; e nada de inventar.

-Eu sonhei que ontem à noite tinha vindo uma moça visitar a mãe Sara...

A velha olhou espantada para o moço.

-Sonhei até que essa moça se chamava... se chamava... espere que me lembro... chamava-se Raquel!

-É possível...

-Sonhei que Miguel tinha faltado à sua promessa, contando à moça tudo quanto havia a meu respeito...

-Perdão, meu filho! exclamou a velha, perdão para Miguel; porque tudo isso é verdade!...

-Ah! é verdade?... melhor: pobre Miguel! se fosse eu, tinha feito ainda mais, inventava uma história bem comprida e mentia, como é de meu costume... pobre Miguel! por isso não o estimo eu menos.

-Meu bom filho!... feiticeiro!... feiticeiro!...

-Espere, mãe Sara; o sonho continua. Sonhei que a moça veio observar-me da porta do quarto... como era bonita!...

-É verdade... tudo verdade...

-Sonhei que logo depois ela entrou em outro quarto... no seu, mãe Sara; e foi escrever a uma amiga... também muito bonita, muito, mãe Sara! essa então era mais bonita ainda!... ora bem: quando a moça estava fechando a carta, chegou o pai, que a vinha buscar, e ela correu à sala...

-Sim... sim... foi assim mesmo.

-Agora o resto é melhor ainda: sonhei que eu me ergui da cama, e, encostando-me pelas paredes, fui pé por pé ao quarto de mãe Sara, abri a carta que a moça tinha escrito... oh! o ladrão da moça escreve bem!... mãe Sara, eu beijei a carta!...

-Brejeiro!... brejeiro!...

-E depois... olhe que tudo isto é sonho; depois eu virei a folha e escrevi no verso duas ou três linhas com quanta pressa podia; feito isto, retirei-me, e fingi outra vez dormir.

-Agora é muito! se fosse verdade...

-Estou dizendo que é sonho, mãe Sara, sonho só; olhe, pergunte à moça se, quando ela me observou, eu não estava dormindo; porém, mãe Sara, não me deixa acabar nunca!...

-Acabe... acabe, meu filho.

-Sonhei que, apenas tinha eu deixado o quarto, a moça tornou a entrar, e, selando a carta, entregou-a a Miguel.

-É tudo verdade.

-Sonhei, enfim, que a moça partiu com o pai para sua casa, e Miguel para Niterói... lá, Miguel entregou a carta... mãe Sara; no meu sonho eu vi também a outra moça lendo; ainda uma vez... como era bonita!...

-Meu filho, se isso é um sonho, foi um poder sobrenatural quem o fez tê-lo, para castigo de Miguel...

-Pobre Miguel! não falemos dele... eu o perdôo de todo o meu coração!... por conseqüência, tudo o que eu sonhei foi realidade?...

-Pelo menos quase tudo...

-Ah! mãe Sara!... se se realizasse o resto...

-Pois ainda temos mais?...

-A última parte.

-Então acabe.

-Eu dizia que a moça que recebeu a carta era muito bonita... encantadora, mãe Sara!... pois bem... no meio de tudo isto... sonhei que me tinha casado com ela...

-Extravagante!...

-Despertei, soltando um grito de alegria...

-Enfim?...

-Achei-me, quando procurei minha mulher, só... com a cabeça quebrada... cheio de sangue... aborrecido de mim mesmo...

-Louco!... e por isso se faz de repente tão triste!

Nesse momento ouviu-se um sino que dava horas.

-Que horas são?... perguntou o moço com vivacidade.

-Uma.

-Mãe Sara, a minha galinha?...

-Às duas horas.

-Que fome, meu Deus!... que fome!... que fome!...

A velha desatou a rir.

Afilhado

Ouvindo o sinal das oito horas, Miguel correu para junto do templo do Carmo e, bem não eram ainda passados cinco minutos, logo viu chegar cuidadoso e apressado um menino, que era por força aquele de quem o moço loiro lhe dera os sinais.

Faça-se idéia da vivacidade personalizada: era esse menino, sem dúvida, com não mais de dezesseis anos; com cabelos excessivamente loiros e crespos; os olhos grandes, pretos, brilhantes e à flor do rosto, que, muito redondo, era ao mesmo tempo igualmente corado; o nariz pequeno, os lábios rubros; dentes belíssimos; o corpo delgado; e em todas as suas ações, em todos os seus movimentos ligeireza, rapidez, volubilidade: os olhos do menino brilhavam de noite como dois globos ardentes, em rotação contínua.

Miguel endireitou para ele, e a dois passos parou e ficou firme como um soldado, mas sem dizer palavra: o menino fitou-lhe seus dois olhos de um modo tão penetrante, tão perscrutador, tão forte que, a despeito da influência de sua maior idade, Miguel teve de voltar a cabeça por não poder encará-lo.

-Que é isso lá?... disse o menino com voz argentina e firme.

Miguel nada respondeu; tirando, porém, a mão do bolso, estendeu o braço e mostrou-lhe o anel.

O menino arrancou-lhe o anel da mão, e correu para baixo de um lampião; depois, voltando com igual presteza:

-Onde está o dono deste anel?... perguntou.

-Na minha casa.

-Pois partamos.

E, tomando o braço de Miguel, o menino obrigou-o a andar tão depressa, que quase corriam.

Depois de alguns minutos de marcha, Miguel teve vontade de travar conversação com o seu companheiro.

-O senhor, disse ele ao menino, é irmão daquele moço que está em minha casa?...

-Não.

-Mas é seu amigo?

-Sim.

-Entendo: não tem parentesco nenhum com ele?

-Não.

-Oh! ele parece ser muito bom moço.

-Sim.

-É mesmo natural desta terra?...

-Que lhe importa?...

Esta última resposta foi dada de um modo interrogativo; mas com um tom tão terminante, que Miguel convenceu-se para logo que aquele estômago de criança não cedia nem ao mais poderoso emético.

Portanto, decidiu-se a guardar silêncio. Assim chegaram a casa.

Apenas entrando no quarto do moço loiro, o menino correu para ele, e, abraçando-lhe as pernas, exclamou:

-Ah! padrinho!...

-Está bom, Carlos, está bom; disse sorrindo-se o moço; não há tempo a perder. Deve ir a casa que tu sabes, e entrega este bilhete à mesma pessoa a quem tens entregado os outros: o que trouxeres, deve ser-me dado, quando eu estiver só.

O menino recebeu um bilhete, que o moço tinha escrito na tarde desse dia, e desapareceu correndo.

Miguel, que pretendia colher muitas reflexões da entrevista dos dois, convenceu-se para logo, ao ver a maneira por que se explicava o moço, que ainda depois da volta do menino se deveria contentar com saber que ele se chamava Carlos, e que o moço era seu padrinho.

E, para maior pena, o moço foi pedir à mãe Sara que, quando voltasse o seu afilhado, o deixassem a sós com ele; de modo que Miguel abriu a porta ao pequeno Carlos, e teve de ficar ao pé de sua avó, até que, passado um quarto de hora, apareceram os dois na sala.

-Adeus, mãe Sara! disse o moço; eu me vou... e algum dia receberá novas minhas... Adeus, Miguel!... Adeus também minha pequena afilhada de bonita madrinha!... oh!... vem cá, meu anjinho; quero dar-te um beijo... não é verdade que tua madrinha te beija também? eu creio que devo vir a ser muito amigo dela...

-Meu filho, disse a velha, pois ainda tão fraco...

-Este menino tem o braço bem forte para me sustentar. Adeus, pois, meus amigos... obrigado!... muito obrigado!...

Feitas as últimas despedidas, o padrinho e o afilhado saíram, deixando a avó e o neto a pensar neles.

-Este rapaz, repetia a velha muitas vezes, tem cabeça de doido e coração de santo! sempre tão alegre e tão afável!... o brejeiro zombou de mim todo o dia, ao mesmo tempo que me abraçava, e chamava-me sua mãe!... eu não sei por que, mas a gente por força há de querer-lhe bem!

Entretanto, os dois caminhavam, como podia o ferido, escolhendo de preferência as ruas mais solitárias; de minuto a minuto o menino voltava para trás seus dois belos pirilampos, como para convencer-se de que não eram seguidos. Finalmente, chegando a uma rua escura e feia, cujo nome importa pouco saber, eles entraram em uma casa de triste aparência.

Essa casa era habitada por uma família tão necessitada, como aquela que recebera o ferido; mas este ocupava um pequeno sótão, que nela havia; e posto que devesse pagar aluguel a esta família, parecia pouco conhecido dela, pois que apenas do corredor deu as boas-noites, e começou a subir vagarosamente a escada do sótão, enquanto Carlos foi pedir a chave da porta.

Enfim, eles se acharam sentados defronte um do outro. Todo o sótão se compunha de uma saleta e dois pequenos quartos; neles não reinava nem luxo, nem miséria; era a morada de um homem solteiro arranjada um pouco menos à franciscana do que um quarto de estudante.

Quando o menino sentiu que seu padrinho já havia descansado, disse:

-Eu não sei por que meu padrinho, em lugar de me fazer ir todas as noites postar-me de sentinela junto ao Carmo, me não deixa antes vir encontrá-lo aqui!

-Porque poderiam seguir-te, ver-te entrar... e quem sabe as conseqüências?

-Ver-me entrar?... a mim?... perguntou o menino sacudindo a cabeça.

-Pois bem, meu vaidosinho, a cautela nunca fez mal... mas agora vamos ao que nos interessa: que novidades há?...

-Nenhuma.

-Quê!... pois nenhuma absolutamente?...

-Já disse até onde tinha chegado! ainda não fui mais longe.

-Que tens ouvido?...

-Nada.

-Que tens visto?

-Coisa nenhuma.

-Que tens pensado... sentido... suspeitado?...

-Absolutamente nada.

-É porque tens sido um tolo.

-Qual tolo, meu padrinho! lá, de dia trabalha-se...

-E de noite?

-Dorme-se.

O moço não pôde deixar de rir-se da resposta de seu afilhado; alguns minutos depois continuou no seu interrogatório.

-E tu onde dormes?

-No sótão... mesmo por cima do quarto dele.

-No sótão?... ah! tu já me tinhas dito; bem bom, Carlos, bem bom; mas isso é quase uma honra...

-Foi em atenção àquela senhora que falou por mim.

-Eu sei... eu sei; porém, vamos: tu dormes no sótão, mesmo por cima do quarto dele... eis aí meio caminho andado; deverias ter visto e ouvido muita coisa...

-E o forro?...

-Arranca-se uma tábua.

-E a bulha?...

-Então desce-se ao sobrado para espreitar...

-E as portas?

-Que têm as portas?

-Durmo trancado.

-Pateta!... não há chaves falsas no mundo?...

-E o tempo que se gasta em procurá-las?...

-Pois bem... e o tempo que se tem perdido?...

-Qual perdido, meu padrinho!... fiz coisa melhor do que tudo isso.

-E então para que me quebras a cabeça? fala.

-No sótão e junto da minha cama há uma tábua quebrada no assoalho; arranquei-a.

-E depois?...

-Restava o forro: arranjei uma verruma e, à mercê dela, fiz um buraco, que chega para metade de meu olho.

-Bem; e depois?...

-Aprontei um pauzinho redondo, e pintado de branco...

-E para que essa asneira?...

-Para ter o buraco tapado de dia.

-Está bom... está bom; tens razão, adiante...

-Às dez horas de todas as noites apago a minha luz; levanto com cuidado a tábua velha do assoalho; tiro o meu pauzinho do forro; e fico com o olho no buraco.

-Vamos... vamos...

-Quando ele não tem divertimento, recolhe-se às dez horas.

-E o que faz?...

-Lê livros ou periódicos.

-E depois?...

-Despe-se, e vai deitar-se.

-E depois?...

-Dorme.

-E enfim?...

-E, enfim, vou eu também dormir.

-Pois é preciso não dormir, Carlos.

-Mas, meu padrinho, é que se não pode trabalhar no dia seguinte.

-Pois faze-te doente.

-Dar-me-ão remédios.

-Toma-os.

-E se eu morrer?...

-Mandarei fazer-te um riquíssimo enterro.

-Obrigado, meu padrinho.

-Tu és um preguiçoso... um descuidado, e um tolo!... não tens feito nada... nada... nem trabalhado por fazer.

O menino pareceu vivamente incomodar-se com o desgosto de seu padrinho.

-Mas... eu não pensava!... o que é que se pode colher de um homem que dorme?!...

-Oh!... o sono, Carlos, o sono pode ser bem fatal a um homem! quem sabe se ele não sonha?... quem te assegura que ele em seus sonhos não possa dizer alguma coisa que nos seja útil?... Carlos, o sonho do homem é mil vezes o traidor de seus pensamentos!... e, portanto, é preciso que tu o observes de dia e de noite; no trabalho e no descanso; na vigília e no sono!

-Porém, eu não hei de dormir nunca?!...

-Também tens razão, disse o moço rindo-se de novo; façamos, portanto, um ajuste; a que horas dormes?...

-À meia-noite, e às vezes depois.

-E quando te levantas?...

-Às cinco e meia.

-Bem: vela depois que ele dormir mais uma hora, e dorme quatro e meia.

-Velarei hora e meia e dormirei quatro.

-Carlos, tu és muito bom.

-Oh! meu padrinho! exclamou o menino abraçando o moço.

-Precisas de dinheiro? perguntou este.

-Ainda tenho bastante.

-Excelente rapaz!

-Meu padrinho está contente de mim?...

-O mais que é possível!

O menino demonstrou o seu prazer, saltando e batendo palmas loucamente.

-Aquieta-te, travesso, disso o moço; ainda temos que falar.

O menino tomou de novo o seu lugar; e ficou mudo, sério e atento como um ministro de Estado que vai ouvir uma interpelação.

-Durante estes cinco dias, observa o nosso homem, se nada colheres, fica em casa; se houver novidade ou precisares de alguma coisa, achar-me-ás aqui; depois, será como dantes, às oito horas da noite junto ao templo do Carmo.

-Estou ciente.

-Agora ajuda-me a mudar esta roupa, que ainda tem manchas de sangue.

-Foi uma queda horrível, não é assim, meu padrinho?

-Sim... uma queda; mas quem te disse que foi horrível?...

-Eu pensava... uma queda, em que se quebra a cabeça...

-Pois eu não quero que penses desse modo, Carlos.

-Então como?...

-Foi uma queda abençoada, ouviste?

-Está dito, meu padrinho: foi uma queda abençoada.

Meia hora depois Carlos, deixando seu padrinho de vestidos mudados, com um lenço limpo na cabeça, e sossegadamente deitado, despediu-se dele e ia descer:

-Carlos, disse ainda o moço, dize à família que mora embaixo que fico estes cinco dias em casa; e, por conseqüência, que continue a mandar-me almoço, jantar e ceia; principiando pela ceia, ouviste?...

-Sim, meu padrinho!... respondeu Carlos descendo rapidamente a escada.

-Grata criança!... disse o moço, quando o viu partir.

No entanto, o menino, depois de cumprir a recomendação de seu padrinho, pôs a cabeça fora da rótula, examinou se alguém havia de espreita e, vendo a rua solitária, saiu, e marchou precipitadamente, olhando muitas vezes para trás, como era de seu costume.

A dedicação dessa criança ao moço loiro deveria ter por origem um sentimento bem nobre!

Às dez horas da noite Carlos entrava pela porta de uma elegante casa, dizendo consigo mesmo:

-Esta noite não durmo sem ouvir sermão; também nunca me recolhi tão tarde.

E ao mesmo tempo o moço loiro sentava-se à mesa de seu pequeno quarto e se dispunha a cear o que acabavam de trazer-lhe.

. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

Ao amanhecer do dia seguinte a velha Sara despertou e, lembrando-se do moço ferido... sem poder conter-se de si mesma, passou a mão por baixo de seu travesseiro, e surpreendida tirou daí uma carteira...

Imediatamente gritou por Miguel, que se levantou espantado; mas para logo seu espanto se tornou em vivo prazer; pois viu que a carteira, se não continha soma capaz de enriquecer uma família, lhes trazia meios de melhorar muito sua posição.

Raquel, a quem foi relatado o sonho do moço e o aparecimento da carteira, compreendeu facilmente qual tinha sido a mão de gênio benfazejo.

Um mês

Depois de acontecimentos que muito sucintamente acabamos de relatar, um mês se passou por tal modo infecundo e árido, que justo parece passarmos também de um rápido vôo sobre ele.

Hugo de Mendonça deixou para sempre a sua bela casinha de Niterói. Ema havia tomado tal horror da vista daquele mar tão traidor com suas mansinhas e risi-bulhentas ondas, que lhe esteve para arrancar do coração a única, talvez a única corrente que ainda a prende ao mundo; Hugo mesmo lembrava-se todos os dias com tal horror da fatal noite de tempestade, que sua mudança para a corte foi determinada e prontamente executada, apesar do muito que Honorina se aprazia da meia solidão, do meio sossego que gozava naquela pequena e graciosa casa, abrigada por trás de sombrias árvores; e pode ser, das lembranças já doces que esse mesmo mar insano, que essas noites de claro luar lhe derramavam no espírito.

E, como se a interessante moça houvesse adquirido influência tão forte e decidida sobre o ânimo de Lucrécia, e impressão tão agradável nele tivesse produzido, que já não fosse possível a esta fruir com prazer a vida longe da filha de Hugo de Mendonça, a linda viúva abandonou também para logo a jovem cidade, que talvez, para alguns, semelhou, durante alguns dias, jardim desamado, donde se há arrancado para transplantar em outro suas flores mais mimosas.

Honorina, portanto, tinha como que duas existências ligadas à sua, como que duas sombras que acompanhavam seu corpo: a viúva e o moço loiro.

Mercê de vosso privilégio de autor, temos já entrado na alma de ambas essas personagens, e ter-se-á compreendido que tão benigno deverá ser o influxo de um, como maligno o da outra.

À primeira vista parecerá um contra-senso que tenha de partir o bem daquele que se esconde nas trevas, e o mal daquela que se apresenta com a face descoberta, sendo, tal qual é, a virtude sempre límpida e transparente, e vezes mil, ou antes de ordinário, a maldade misteriosa e encapotada; mas um momento de reflexão fará lembrar que outra é a capa e máscara da maldade, que não em todos os casos a escuridão da noite; outra mais negra ainda e ainda mais impenetrável que esta, é a hipocrisia; é o sossego do rosto, mentido às convulsões do espírito; o doce sorrir dos lábios por cima do amargor e do veneno do coração; o olhar meigo e terno dos olhos adiante da vesgueira enfezada do ânimo.

É possível que o futuro proceder das duas personagens, em quem por último tocamos, venha, ainda uma vez, demonstrar a veracidade dessa já velha observação.

. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

E um mês se passou: um mês de suspiro para uma amante saudosa; de acerba melancolia para uma mártir de amor; de projetos e combinações sinistras para uma mulher falsária.

Iremos, pois, considerar três mulheres: Honorina, Raquel e Lucrécia.

Começaremos pela última.

Lucrécia, hábil e provecta, apesar de seus poucos anos, tinha compreendido, à primeira vista de olhos, que Otávio não era atendido por Honorina; ao mesmo tempo, porém, todas as ações, todos os passos, cada pensamento e cada palavra desse homem provavam até à evidência que ardente paixão concebera ele pela moça, e a que frio e ofensivo esquecimento estava a viúva condenada.

Lucrécia tinha em sua desmedida vaidade um horrível aparelho de torturas, ralada pelo qual via ela o belo quadro de seu passado apagado pela mão de Honorina; as viçosas flores de suas coroas de triunfo caídas, espalhadas por terra e aos pés dessa moça... e Lucrécia arquejava.

Embora inocente, a filha de Hugo de Mendonça era a causa dos seus tormentos... era a mulher por quem Otávio a esquecia... era a sua rival, isto é, a sua inimiga...

Ora, é possível que um homem, esquecido, desprezado pela sua amada, nem por isso se exaspere contra aquele por quem ela o deixou, a quem ela procura inutilmente conquistar e prender: pode mesmo suceder que o ofendido aplauda e estime o outro, como a sua vingança, quando está firmemente convencido que esse é amado, mas não ama.

Uma mulher, porém, não pensa por essa maneira.

A mulher é o ente que tem o privilégio de levar todos os sentimentos dessa ordem ao seu mais elevado grau. Aquela que se sente traída pelo homem que a amava, vai com seu olhar terrível e brilhante adivinhar, no meio de uma multidão de belezas, qual é a que lhe prefere; e ainda que essa não se levante diante de seus projetos, que seja inocente no afeto que inspirou, que mesmo maltrate ao homem, que sem retribuição a requesta, ela a olha como uma rival, uma inimiga, um insulto vivo a seu amor-próprio de mulher.

E o pensamento que primeiro e naturalmente se lhe apresenta é este -vençamo-la!

Sim; porque aí há duas ofensas, que não se perdoam facilmente: há, antes de tudo, uma outra mulher que pode agradar mais do que ela; que parece levantar sua cabeça e sorrir-se orgulhosamente vitoriosa diante dela; e há, depois, um escravo perdido, um homem que andou de rojo, beijando suas pisadas, e que agora a desdenha... a esquece... a despreza por causa de outra.

E, pois, a essa outra se odeia... e se quer também e a todo custo vencer.

Sim; porque há um grande e talvez único pensamento na vida da mulher, que, durante quarenta anos, a ocupa toda; que se alimenta, se rumina, e por ele se vive: é o amor, pensamento que iguala a aldeã à princesa; porque podem ambas amar da mesma forma, com o mesmo fogo, e ao mesmo homem: pensamento que poderá fazer com que a princesa desça do palácio e vá à cabana combater a aldeã; pois, se esta for a rival preferida, aquela que não deixou de ser mulher para sentar-se tão alta; que se ufana de agradar também, há de sentir arder seu amor-próprio no desejo vivo de vencê-la; e de vencê-la somente, como mulher.

Mas, para vencer, é preciso combater: e a mulher não se lembra nunca de atacar o homem que a traiu, porque seu único anelo é rebaixar aquela que lhe preferiu.

E onde ir feri-la?... e como abatê-la?... a mulher conquista o homem pela força dos encantos do espírito e do corpo; porém, para destruir os encantos do espírito de uma rival, era preciso que a ciumenta pudesse chegar com seus lábios até muito em cima e apagar com seu sopro de boca humana a chama brilhante do Criador: e isso é absolutamente impossível; ou então, o que seria muito louvável e nobre, adornar o espírito próprio, enfeitá-lo, aproveitar-se de suas disposições, ilustrar-se e brilhar por si mesma. Mas essa é uma vingança morosa... que se espera muito... que vem chegar tarde...

Restam os encantos físicos. Há contra eles dois meios poderosos: a enfermidade e o tempo; porém, aqui ainda esses meios escapam, porque as enfermidades não são como as pedras, que no chão se apanham para lançar-se ao rosto do inimigo; e as pragas do ciúme e do ódio não chegam até o alto dos céus para realizar-se. O tempo não corre hoje mais depressa do que ontem correu e amanhã correrá: o tempo não sairia de seu passo igual, compassado e imutável à voz de ninguém; e, sobretudo, não seria nunca uma mulher quem, para cavar duas rugas no rosto de uma rival, consentisse em ver outras cavadas no seu.

Todavia, há um ponto delicado, alvo, finíssimo e por demais sensível, que pode ser ferido em uma mulher; e que, quando nele se toca, basta que a adaga penetre uma só linha, para que o golpe seja mortal; para que ela caia ainda mais abaixo do que as que se sentam menos altas, e fique ombro a ombro com as que estão no fundo do abismo, esse ponto é a sua fama... a sua pureza... a sua honra: belo astro de luz, a quem a mais leve nuvem pode escurecer; fresca rosa matutina, a quem sobra o mais fraco sopro para roubar-lhe todo perfume; véu branco, transparente e fino, a quem o mais brando espinho é capaz de romper, e um simples átomo de poeira mancha para sempre.

E é contra esse ponto que a mulher, quando não tem nobreza, quando sua vaidade é tão grande como imperceptível sua virtude, vai direita tocar e pretender ferir; porque, ferido ele, sua rival, mesmo aos olhos do homem que mais loucamente a adora, fica por força abaixo dela, se está ainda incólume.

Este raciocínio importa uma verdade execrável... e, contudo, entre mil, entre mais de mil senhoras, que com sua angélica piedade, com a doçura e virtudes de seu sexo recuam horrorizadas diante de tal infâmia, uma ou outra, enfim, desgraçadamente se encontra, que se não turva ante a imagem de seus resultados, que a aceita, e se esperança nela.

Lucrécia, na concentração de seu ciúme, tinha compreendido que era essa a única maneira de se levantar sobre Honorina aos olhos de Otávio.

Lucrécia, jovem e bela, com seus olhos tão langorosos, com seu sorrir tão engraçado, concebendo pensamento tão medonho, era como abismo insondável escondido por um tapete de flores, que em sua boca se enredassem.

Para mais direta chegar a seus fins, a viúva procurou, fazendo por merecer a confiança de Honorina, entrar em seu coração e conhecer seus segredos; freqüentando com admirável assiduidade a casa de Hugo de Mendonça, Lucrécia se dizia a maior amiga da filha deste; e a alto gastar de desvelos e extremos, ela pareceu armar-se do direito de merecer essa confiança, que, todavia, Honorina só lha concedeu por metade.

Lucrécia, fingindo-se curiosa, ouviu então o que já sabia. A incauta moça falou-lhe das loucas pretensões de seus dois ridículos amantes, e da perseguição de Otávio.

A viúva mostrou-se assustada e receosa do que podia sofrer a reputação daquela, a quem chamava sua querida amiga, pelos atrevidos obséquios e cumprimentos de Otávio; quanto aos outros dois, dizia ela que não havia mesmo o menor inconveniente em Honorina animá-los para divertir-se.

Em seguida, vendo derramado o temor e o espanto pelo rosto da pobre moça, Lucrécia ofereceu-lhe um remédio, um meio para sair de tão difícil conjunctura; raciocinou de um modo claro, apoiou seus conselhos com sua experiência, e provou que Honorina devia demonstrar terminantemente o muito que lhe desagradava Otávio; que convinha mesmo mostrar preferir-lhe alguém; e, como pensava que seu coração ainda não havia feito escolha, lembrava-lhe a utilidade de fingir-se sensível à paixão de um dos dois parvos pretendentes; asseverou que talvez bastasse isso para desanimar Otávio; e concluiu dizendo que, como cumpria dar contas ao mundo, seria melhor atender antes a Brás-mimoso, que, como velho e tolo, pareceria a todos menos o objeto de uma verdadeira afeição do que o de um simples passatempo.

Lucrécia não tinha concebido ainda um plano de vingança: desarmada pela inocência, honestidade e nobreza de Honorina, ela podia apenas preparar, facilitar os meios de vingar-se, e esperar que o tempo lhe desse azo para o resto; mas, como para a execução de um projeto qualquer sempre haveria necessidade de um homem, ela foi pôr de mão o mais miserável de todos os apaixonados de Honorina: o ente escolhido foi Brás-mimoso; semelhante escolha lisonjeava seu ciúme, porque rebaixava sua rival.

A viúva não achou a menor dificuldade em trazer para perto de si e dispor para instrumento da predisposta vingança a Brás-mimoso: vaidoso e parvo, esse homem acreditou facilmente em tudo quanto lhe quis dizer Lucrécia. Ela começou por demonstrar-lhe que sua amiga de muitos anos, e conhecendo a paixão em que ele ardia por Honorina, desejava servi-lo e trabalhar para sua ventura; que nisso não só satisfazia a amizade, como ainda vingava-se de Otávio, que tão vilmente zombara dela; asseverou-lhe que Otávio não era um rival para temer, pois que a filha de Hugo de Mendonça o desprezava; e, enfim, para excitar um pouco o amor do velho gamenho, e torná-lo mais ávido da vitória, fê-lo crer que o único homem, cuja concorrência podia ser-lhe nociva, era o filho de Venâncio.

Segura de Brás-mimoso, de quem podia vir a precisar, Lucrécia continuou a acariciar e observar Honorina, esperando tudo mais do tempo.

O que narramos, muito passageiramente, foi, não a obra de um dia, mas o aturado trabalho de um mês inteiro; e seu resultado, embora muito incompleto, deveu-se ao desamparo de Honorina.

Porque Raquel a tinha vindo ver só três vezes em todo um mês...

Honorina sentia-se agradecida a Lucrécia pelo carinho com que por ela era tratada; mas ao mesmo tempo alguma coisa muito inexplicável a tornava incapaz de ser amiga da viúva. Escutando suas palavras, ouvindo falar em calúnia, Honorina tinha medo; na frente, porém, do mundo, que a assustava, ela estava vendo Lucrécia! ouvindo sempre, respondendo poucas vezes, e jamais prometendo, a filha de Hugo de Mendonça jurou manifestar a mais completa indiferença, e mesmo algum rigor a Otávio; mas teve tédio de parecer sensível a Brás-mimoso.

Amor era para ela um sentimento sagrado, e servir-se dele para uma zombaria, importava, em sua opinião, o cometimento de um sacrilégio.

Pura como tinha nascido, exaltada como o mais vivo afeto, Honorina amava com esse extremoso o amar de alguns corações de mulher, que são sentidos no mundo, escapados talvez por descuido dos anjos guardadores dos corações do céu.

Toda inteira votada ao homem, que pela primeira vez lhe fizera experimentar o anelante e doce sentimento, ela queria que seus olhos nem por fingimento ou gracejo despendessem com outro a ternura que guardava só para ele; que ninguém mais bebesse seus sorrisos, ninguém mais fosse objeto da meditação de seu espírito, e, enfim, que nenhum outro visse, nem por sonhos, a idéia de possuí-la.

Tal como o infame, que primeiramente se arreceia de entrar num jogo, que lhe hão pintado muito perigoso, porém, uma vez nele entrado, a ele todo se dá, e não o quer deixar mais; assim Honorina, que tocada das palavras e da moral fria de Raquel, concebera indizível terror da posição da mulher que ama neste mundo de perversão e de misérias, sentindo, depois, que amava o moço loiro, olvidou seus receios passados, e entregou-se a seu primeiro e doce amor com todo o enlevo, com toda a doce embriaguez de um coração virgem.

Consigo mesma ela se ufanava de amar; e cultivava seu terno e grandioso afeto com religioso desvelo: erigia-lhe um altar em sua alma, e incensava seu ídolo com pensamentos e suspiros.

Bela e inocente, o mundo dessas duas cidades, as colunas de desejosos mancebos, a multidão desses ociosos que querem sempre murmurar; dessas rivais que desejam rir-se, ferindo; desses curiosos que procuram tudo saber, e às vezes se atrevem a pretender adivinhar, tentavam, porém debalde, acertar com o objeto dos pensamentos dela.

O amor de Honorina era um segredo que só a Raquel havia sido confiado.

E o amor, que sentia a interessante moça, era também o único que lhe podia convir: toda espírito, toda imaginação e poesia, Honorina achava encantamento inexplicável em amar esse ente misterioso, quase imaginário, que se deixava ver resvalando pela sombra; que se fazia sentir pelo acento de sua voz sonora, ou pela benigna influência de seu gênio; que aparecia onde não era esperado, e que invisível velava por ela, como o anjo de sua guarda.

Honorina tinha passado um mês inteiro sem que uma nova aparição ou uma nova carta lhe viesse assegurar a constância do moço loiro; confiada, porém, na santidade do sentimento, que fazia então a ventura da sua vida, ela acreditava que aquele homem tão nobre, tão bravo, que por ela lutara braço a braço com a morte, não podia mudar nunca; que o moço loiro a amava sempre e muito; e que a chama que ardia em seus dois corações, acesa pelo sopro de Deus, devia ser, e seria brilhante e eterna como o sol.

Gastando todas as horas de seus dias em pensar no moço loiro, Honorina adormecia de noite para sonhar com ele; e, embora saudosa, ela vivia feliz, votando os suspiros de suas vigílias e os sonhos de seu leito ao escolhido de sua alma.

No meio, porém, de suas saudades e de suas esperanças, por entre os suspiros de suas vigílias e as belas imagens dos sonhos de suas noites, vinha muitas vezes misturar-se um pensamento melancólico e amargo; ao pé da lembrança do moço loiro aparecia também e sempre a lembrança de Raquel; e Honorina sentia murchar a flor de seus prazeres, recordando-se dos sofrimentos da sua amiga.

Com efeito, Raquel padecia muito.

O que lhe tinha contado Sara, o que lhe havia dito Honorina, provava que o moço loiro fingira dormir, quando ela o observara; que soubera aproveitar-se de sua momentânea ausência do quarto, onde escrevia à sua amiga, para traçar no verso de sua carta aquelas breves e eloqüentes linhas, que significavam o triunfo de Honorina; e ainda nas palavras que ele dissera à velha -eu creio que hei de vir a ser muito amigo dela- como que esse mancebo lhe quisera apagar a derradeira esperança, se alguma esperança lhe fosse dado nutrir; como que lhe estava ele chamando -Raquel, amor para ti é um impossível; eu posso apenas ser teu amigo!

E, portanto, não havia esperança para Raquel; nem lhe era dado, para mitigar sua dor, imaginar, enganar a si própria, desenhar no futuro uma simples ilusão; porque essa simples ilusão era a seus sonhos um crime, uma traição feita à amiga de seu peito.

O que podia restar à miséria?... um único abrigo: ela o achava na solidão.

Na solidão escondia ela ao menos suas lágrimas do pai carinhoso que a observava; porque Raquel não tinha o ânimo de outrora para ir derramar no seio paterno suas mágoas; porque há dores, há sofrimentos de que uma filha não se queixa à sua mãe sem corar primeiro até à raiz dos cabelos; e não pode acusá-los a seu pai sem um enorme sacrifício de seu pudor de virgem: dores e sofrimentos muito nobres, muito naturais, mas que a mesma natureza parece ensinar a engolir sem gemer em silêncio despedaçador...

Na solidão, porque lá não estava ao lado de Honorina, que, beijando-a com ternura de verdadeira amiga, lhe pedia conta de suas lágrimas; lhe obrigava a mentir mil vezes; chorava com ela e lhe falava no seu tormento... no moço loiro...

Na solidão enfim; porque a mulher, ainda mais do que o homem, quando sofre uma dor profunda... concentrada... incurável; quando ama, não é amada e não pode vencer o seu amor, deve chorar longe de todos... deve gemer com cuidado para que ninguém a ouça, para que os suspiros, que lhe podem escapar, não sejam sentidos... apanhados por ninguém... para que a causa de seu padecer não chegue a ser adivinhada... compreendida por ninguém... por ninguém desse mundo bárbaro, imoral e detestável, que zomba, que calunia, que não sabe adorar de joelhos o coração de uma mulher, que ama e que sofre por saber amar!...

Na solidão, portanto, Raquel ficou um mês inteiro, durante o qual só três vezes abraçou Honorina.

. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

Fica, pois, aqui ligeiramente debuxada a história de trinta dias de três moças:

Honorina -aura que suspirava.

Raquel -pomba que gemia.

Lucrécia -serpente que se enroscava.

Brás-mimoso

Brás-mimoso não cabia em si de contente; tais coisas lhe tinha dito a provecta viúva, que o nosso velho gamenho com sua tonta vaidade se convenceu muito seriamente de que o seu negócio estava muito bem principiado; que havia mesmo produzido em Honorina a mais agradável impressão. Fez conseqüentemente planos de casamento e, calculando sobre o dote da noiva, determinou dias de jantares, noites de saraus; e, enfim, sonhou consigo mesmo, recostado na mais cômoda poltrona a conversar com os amigos, a ralhar com a mulher, e a comer dos juros de duzentas ou trezentas apólices.

Em alguns momentos, porém, suspirava, lembrando-se de seu desalmado rival; Lucrécia lhe asseverara que o único homem a que podia perturbar o justo andamento e a esperançosa conclusão de suas pretensões era o filho de Venâncio. Ora, Manduca era justamente o homem com quem Brás-mimoso menos desejava lutar.

-Se ele fosse algum diplomata, um jovem parlamentar, como eu, ainda bem, pensava Brás-mimoso; porém, não passa de um estúpido materialão, que apela sempre para a força bruta, e é muito capaz de preferir trocar socos, a trocar notas diplomáticas.

Contudo, tão poderoso feitiço havia no belo quadro, que aos olhos do nosso velho gamenho tinha traçado Lucrécia, que ele se resolveu a trabalhar por arredar Manduca da casa de Hugo de Mendonça.

Firme nesse projeto, gastou longas noites em estudar o melhor meio de pô-lo em execução; e um dia, enfim, supondo haver achado a incógnita, levantou-se lépido e risonho, e depois de cuidadosamente ataviar-se, saiu de casa e dirigiu-se à de Venâncio, onde há muito não aparecia, receoso de perder, enfim, a paciência, dizia ele, e de praticar alguma loucura contra o miserável Manduca.

Em casa de Venâncio cogitava-se pela mesma pessoa por quem se interessava Brás-mimoso. Tomásia, sentindo a inclinação de Manduca e supondo que Honorina era um belíssimo partido, animava e acendia a paixão do interessante filho, em quem, como mãe extremosa, não via senão merecimento e perfeição, não podendo por isso acreditar que a tão requestada moça ousasse resistir à lindeza do querido Manuelzinho. Daí provinham os elogios que Tomásia, sem cessar, fazia à graça e ao espírito de Honorina.

Venâncio, ente passivo, colônia de sua metrópole, pensava, conforme o seu costume, pela alma de Tomásia; e, pois, falava sempre com entusiasmo a respeito da família de Hugo de Mendonça e do amor do seu Manduca; e em paga disso ganhava o estar passando já há duas semanas em paz com sua mulher, isto é, livre dos ataques e furores de Tomásia; porque em paz com ela sempre estava Venâncio, quer quisesse, quer não.

Rosa apoiava as mesmas idéias; e posto que fizesse sempre o seu biquinho e torcesse seus eterni-mordidos lábios, quando à vista dela se gabava Honorina, contudo, como se tratava de relacioná-la e prendê-la com um homem, com quem não lhe seria possível casar-se; e além disso, era esse um meio de segurar a constância de seu primo Félix, que temia estar assim meio embalançada, empenhava também seus esforços para animar o galante menino e lhe dava os mais entendidos e experimentados conselhos para encantar a moça.

Todavia, Manduca, apesar de... (digamos aqui bem em segredo da Sr.ª D. Tomásia) apesar de ser tolo, tinha sido por tal maneira recebido por Honorina, que não lhe restava a mais leve dúvida da indiferença da moça. Em tais circunstâncias, e com tão amarga certeza, o rapaz torturou seu espírito por uma semana inteira, parafusando na causa por que tão mal-atendido fora.

Sua mãe lhe havia assegurado tantas mil vezes que ele era um mocetão de encher o olho, que a despeito de três espelhos que tinha em seu quarto, Manduca não pôde atribuir a crueldade de Honorina à falta de encantos físicos de sua parte.

Agora, a respeito de encantos de espírito, Manduca era o primeiro a dar a si próprio parabéns pela abundância que deles possuía e gastava; outra vez, aqui para nós, neste mundo cheio de gente, ainda se não achou um tolo que se não julgasse avisado.

Portanto, não lhe faltava nem beleza, nem espírito; o que era pois?... ah!... finalmente no cabo de sete dias a inteligência de Manduca deu com a causa de sua má fortuna: com toda a modéstia de que pôde valer-se, o filho de Tomásia reconheceu que não representava um grande papel na sociedade; enfim, que não era fidalgo, nem homem proeminente.

E eis o nosso Manduca a resolver, durante outros sete dias, um problema ainda mais difícil: -como se havia de tornar grande coisa em pouco tempo?...

Manduca lembrou-se da literatura...

E raciocinou:

Em um mundo todo voltado de pernas para o ar pode-se tirar algum proveito dos pés; mas da cabeça?!... ninguém mais se lembra de tal: isso de ganhar amor pelas letras já é muito antigo; foi idéia do século das trevas; está absolutamente reprovado por toda a moça que sabe executar, mesmo fora de compasso, um simples chassé croisé huit; ninguém pode mais ser amado pelas letras diante do encantamento das tretas... olhem bem, que era o tolo do Manduca que pensava assim.

Desprezado esse primeiro caminho que se lhe apresentou, veio-lhe ainda a idéia da carreira das armas; mas também já se não encanta as belas com o brilhantismo da glória e a fama de altas façanhas; as justas e os torneios lá se foram; tudo agora é mais cômodo, e menos perigoso... e, além disso, Manduca sabia que não lhe dariam patente, pelo menos de coronel; e ele não era homem que recebesse ordens aí de qualquer cabo-de-esquadra.

Mas no último de outros sete dias a brilhante inteligência de Manduca deu à luz a resolução do novo problema: estava conhecida e aberta a estrada da felicidade... a política!...

Eis a primeira e única ocasião em que Manduca mostrou em toda a sua longa vida ter algum discernimento.

E o que há aí de tão proveitoso, como um homem fazer-se político?... a política é para a maior parte um jogo que nunca se perde: quando não se ganha hoje, tem-se um bocadinho de paciência, e amanhã lucra-se por dois dias... ora, confessemos que Manduca tinha razão.

E também o que há aí de tão fácil como ser político?... a política, que pode ser matéria muito espinhosa e intrincada em todo o mundo, reduz-se em certo país, que Manduca e nós conhecemos bem, a muito pouca coisa. O essencial é o seguinte: quando se está debaixo, brame-se diante do público, e pede-se nas ante-salas; e quando se está de cima, choraminga-se aos ouvidos do povo, e zomba-se dele no gabinete; e finalmente quer debaixo, quer de cima, maneja-se uma eleiçãozinha, escondendo-se primeiro, bem no fundo da gaveta, certos papéis escritos, a que se tem dado o nome de constituição e leis... ora, confessemos, confessemos outra vez que Manduca tinha razão.

Por conseqüência, o rapaz determinou-se a tentar ventura na lisonjeira estrada das grandezas, honras, poder e riquezas: mas por onde começar?... a que porta bater?... qual o primeiro passo a dar?...

Quem pensar que semelhante consideração seria uma terceira dificuldade, um novo problema a resolver para Manduca, engana-se redondamente: a cabeça mais desmiolada, o homem mais parvo do mundo, que entre nós se determinasse a seguir a carreira política, e procurasse o primeiro degrau para pôr sobre ele o pé, instintivamente lembrava-se da assembléia provincial.

Aí, apesar das teimosas e desprezíveis discussões das necessidades materiais da província, um homem faz por habilitar-se; tratando-se de um chafariz, enxertar-se um discurso sobre política geral... discutindo-se os melhores meios de esgotamento, vem mesmo a apelo uma longa dissertação sobre as mais intricadas questões financeiras; e, enfim, na discussão de uma ponte, pode um orador de habilidade entrar pela pasta dos negócios estrangeiros adentro, posto que anda ela quase sempre fechada com o muito cômodo e abençoado selo das questões pendentes.

Manduca, que se achava com jeito para orador, pesou todas estas reflexões e, assentando de pedra e cal que devia ser deputado provincial, como visse que as eleições batiam à porta, no dia em que Brás-mimoso se dispôs a ir à casa de Venâncio, levantou-se ele pronto para meter mãos à obra, e apenas se achou na sala, declarou o propósito em que estava a seus extremosos pais.

Pouco faltou para que Tomásia perdesse o juízo de alegria, ouvindo a determinação de seu filho.

-Sempre te conheci, exclamou ela, com inspirações de gênio! Manuelzinho, saíste à tua mãe!

E Venâncio imediatamente, levantando as faces com lágrimas de prazer, disse entre soluços:

-É o que eu tenho dito mil vezes!... aquele rapaz saiu em todo à minha Tomásia!

Tratou-se para logo de cabalar: Venâncio foi tomar a casaca para ir alcançar cartas de recomendação em prol do ilustre candidato; Manduca dispôs-se a ir ao correio comprar selos para as cartas; e Tomásia fez voto de pôr em campo todas as suas amigas.

E não era nem original, nem má a lembrança de Tomásia. Feliz daquele que puder ser candidato de senhoras: qual será o empedernido eleitor quer resista a uma cheirosa cartinha de moça, principalmente se for bonita?... em tais apuros, quem não é de ferro, não tem outro remédio senão atirar com a consciência para um lado e escrever a sua lista com o coração.

Mas no momento em que Venâncio e Manuelzinho saíam, pensando na eleição próxima e no subseqüente esperado casamento, pois não era crível que Honorina resistisse a um deputado provincial da ordem de Manduca, Brás-mimoso batia palmas na escada; e, entrando para a sala, viu-se agradavelmente recebido por Tomásia e Rosa, mesmo mais agradável do que dantes, porque enfim... as vésperas das eleições fazem a gente tão delicada... tão obsequiosa!...

Tomásia não quis falar logo sobre os projetos e esperanças do querido Manduca; por isso a conversação versou a respeito de objetos gerais. Insensivelmente, porém, foi levada passo a passo, e caiu em cheio acerca da filha de Hugo de Mendonça.

-E as senhoras têm visto essa moça?... perguntou Brás-mimoso.

-Apenas duas vezes, em que a fomos visitar, depois daquela noite desgraçada...

-Em que eu me ia lançando ao mar para salvar a pobre menina!... se não ouço o baque do outro, que caiu na água, arrojava-me eu decerto: não posso emendar-me... isto vem de natureza... em vendo alguma senhora em perigo, atiro-me, suceda o que suceder.

-Pois aí está! nós pensamos que o senhor tinha tido muito medo da tempestade, porque eu juro que o vi tremer...

-Ah!... qual medo! eu até gosto muito de tempestades: o que eu sentia era pena de ver as senhoras assustadas... mas, voltando ao que conversávamos, então já viu D. Honorina duas vezes?

-Sim... sim... coitadinha! ainda não pôde vir pagar-nos a visita... teve alguns dias de febre, e os médicos quase a mataram com a dieta...

-E como a achou?...

-Sempre agradável, carinhosa, e, todavia, melancólica...

-E já se sabe alguma particularidade a respeito do homem de cabeleira, que a salvou?...

-Qual nada; o homem desapareceu; talvez morresse.

-Aquilo não foi só humanidade!

-Eu também pensei o mesmo, acudiu Rosa.

-Ora... ora... disse Tomásia.

-Ali anda namoro encoberto, minhas senhoras...

-D. Honorina é boa moça, tornou Rosa; talvez não seja por culpa dela... mas o caso é para se julgar assim... todavia, como eu sou muito amiga dela, não consinto que se diga nada.

-Nem eu, disse Tomásia; temos sido muito obsequiadas... é uma excelente pessoa...

-Decerto, decerto, respondeu Brás-mimoso; ninguém diz menos disso; posto que às vezes me tenha parecido um bocadinho hipócrita...

-Então, minha mãe, eu não lhe disse a mesma coisa?... porém não, Sr. Brás, ela parece, e não é; olhe, eu creio, e digo que aquilo tudo é singeleza.

-É vaidosa... um pouco vaidosa...

-Sim; mas não muito... pode passar; quem não tem seus defeitos?...

-Nada! ela tem presunção de bonita, e faz mau uso de suas graças; gosta de ser conquistadora, e não escolhe a quem deve conquistar...

-Mas... nós não notamos isso!...

-As senhoras são todas muito inocentes; e, portanto, deixam passar tudo...

-Só se foi por isso: eu nunca reparo nas outras; tomara que não reparassem em mim.

-Um homem é outra coisa, continuou Brás-mimoso; um homem estuda sempre as senhoras com quem está; faz-se necessário ser assim... não é por mal...

-Está visto; então o senhor notou alguma coisa?

-Sim... mas...

-Diga... todos nós somos amigos de D. Honorina; o que dissermos não será por má vontade que lhe tenhamos; mas por pena de que ela seja assim...

-Pois bem... eu reparei nos dois dias que passamos em Niterói, que D. Honorina era ambiciosa de conquistas. As senhoras hão de crer?... continuou a tratar-me com distinção; disse-me palavras ternas ao ouvido, e fez-me tais perguntas, que eu me considerei o seu predileto...

-E não era?...

-Ora! vi logo depois que praticava o mesmo com Otávio; isto já não parece bem...

-Decerto... decerto.

-O Sr. Manuel não pode também queixar-se da sua sorte...

-Sim... sim, disse Tomásia; eu notei que ela se interessava muito por Manuelzinho... e, enfim, é preciso convir que teve razão.

-Mas é preciso convir ao mesmo tempo, que três já eram de sobra, para que ela tratasse de conquistar o Sr. Félix, de modo que pôs o moço quase doido!

-Então, minha mãe! exclamou Rosa; eu não lhe tenho dito cem vezes que aquela moça anda trabalhando por desinquietar a meu primo?...

-Qual, menina! o Sr. Brás está brincando...

-Não, senhora, não foi o Sr. Brás só; eu também vi; é verdade tudo quanto ele disse, principalmente a respeito de meu primo, Sr. Brás! ninguém conhece aquela amarela a fundo senão eu!...

-Engana-se, minha senhora; eu tenho de confiar um segredo às senhoras, de que hão de ficar pasmadas.

-Então o que é?

-D. Honorina não respeita as cãs da velhice; e atreve-se a requestar um ancião respeitável!...

-É possível?!

-Não se respeita a si própria; ousa levantar os olhos e pretender conquistar um homem casado!

-Isso é demais!... e, portanto, a quem?...

-As senhoras vão admirar-se ainda mais: a um homem probo, pacato, recolhido consigo, todo votado à sua família...

-E esse é...

-O Sr. Venâncio!... o próprio Sr. Venâncio!...

-Ora... o senhor está brincando outra vez, disse Tomásia empalidecendo.

-O pobre homem não tinha culpa; não! isso juro eu; mas a menina era o diabo! Sr.ª D. Tomásia, nunca passou por perto dele, que lhe não desse com o cotovelo!...

-Por isso eu a vi chegar-se tanto para Venâncio!

-Uma vez... porém não; eu mesmo tenho vergonha de dizer, tratemos de outra coisa.

-Nada... nada: falemos disto mesmo: uma vez...

-Enfim, eu obedeço às senhoras: recorda-se da noite em que ela cantou embaixo da mangueira? lembra-se que depois nos levantamos todos para ir de mais perto ouvir o canto do bateleiro, e que ficou ela só com D. Raquel no mesmo lugar?...

-Sim... sim...

-Pois quando voltamos, ao passar o Sr. Venâncio junto dela, apertou-lhe a mão...

-Insolente!... atrevida!...

-O Sr. Venâncio puxava a mão... não queria...

-Qual não queria, Sr. Brás! o senhor ainda não conhece a jóia que tenho por marido!... aquilo é um dragão!... um velho traidor e hipócrita!...

-Eu vejo a senhora tão exasperada, que me arrependo de ter dito...

Tomásia arquejava.

-Minha mãe, não faça caso; o negócio principal é com meu primo; ela morre por casar-se, não acha com quem, e quer ver se meu primo cai, mas isso fica por minha conta.

-Aquele velhaco!... murmurava Tomásia.

-Aquela amarela!... dizia Rosa com os dentes cerrados.

Nesse instante ouviu-se o ruído que faziam duas pessoas que subiam a escada.

-Ei-los! disse Tomásia.

-Ei-los quem? perguntou Brás-mimoso sentindo-se incomodado.

-Venâncio e meu filho.

-Minhas senhoras, eu devo retirar-me, disse Brás-mimoso tomando o chapéu: Sr.ª D. Tomásia, peço-lhe que ao menos por hoje se contenha, para não comprometer-me com o Sr. Manuel.

-Não tenha cuidado, Sr. Brás... adeus!... apareça sempre!...

Porém, Brás-mimoso, ao sair da sala, encontrou Manduca, que lhe lançou um olhar vitorioso e terrível.

Ciúmes

Venâncio entrou na sala alegre e risonho, trazendo debaixo do braço um embrulho que continha duas dúzias de cartas; em menos de três horas havia arranjado com que encher uma mala de correio. Tão às boas se apartara há pouco de Tomásia, que, indo sentar-se junto dela, não reparou na tromba enfarruscada que a querida metade já tinha amarrado no rosto.

Manduca e Rosa entraram para o gabinete; e ao mesmo tempo que a moça se atirava furiosa sobre uma cadeira, o rapaz se lançava entusiasmado em outra.

-Não há que duvidar, mana Rosinha; tenho já doze colégios fechados aqui na mão!... está decidido; sou deputado!... é preciso dar-me ao estudo de palavras antigas e rabiosas... e isso quanto antes; porque no primeiro dia de sessão, peço a palavra!... oh!... ela há de ler o meu discurso; empenhar-me-ei para que saia no Jornal do Commercio, todo cheio de apartes; apoiados, apoiadíssimos, muito bem... e, terminando com bravos, apoiados e aplausos! só penso na sensação que lhe há de produzir o meu début!...

-Produzir sensação em quem, mano?...

-Em quem?... nela!... pois é pouco vir a ser mulher de um deputado?... e quem te diz que eu não subirei em breve tempo a mais alta posição?...

-Manuel, abandona os teus projetos... esquece aquela mulher.

-Então, que novidades há?... que quer dizer com isso?...

-Todos nós estávamos iludidos... ela não te ama.

-Ora, isso sei eu há muito tempo; até dou-lhe alguma razão... eu nem deputado era!

-Qual deputado, nem meio deputado! Torno a dizer-te, que estávamos iludidos: aquela mulher nem te ama, nem é digna de ti.

-Hem?...

-É uma refinada namoradeira!...

-Mana Rosa... olhe que você me insulta!... faça de conta que D. Honorina é já minha mulher... que somos ambos solitários...

-É uma insolente!...

-Mana Rosa, contenha-se, senão digo-lhe também das últimas...

-Teve a audácia de perseguir em um só dia cinco homens ao mesmo tempo!...

-Isso é uma calúnia!... não era capaz de tal!... todas vocês têm raiva dela por ser mais bonita, mais engraçada, mais...

-Manduca, você é um grandíssimo tolo, ouviu!...

-E você tem uma lingüinha de cobra!...

-Sim, por dizer verdades de uma mulher, que se abaixou ao ponto de mostrar-se apaixonada de um original como o Brás-mimoso.

-É falso!... é uma mentira daquele ventas de mono!...

-Que se fingiu namorada de Otávio...

-Ora... ora... ora... isto não se pode sofrer quando ela parecia até não gostar de semelhante impostor!

-Que se mostrava sensível às tontices que você lhe dizia...

-Isto só pelo diabo! mana Rosa, não tenho vergonha de dizer que levei tábua redonda em todas as vezes que a ela me dirigi.

-Que namorou a meu primo Félix...

-Mana Rosa, olhe que se vai por aí, eu rasgo-lhe o capote em cinco minutos!

-Que nem mesmo perdoou a meu pai com ser velho; que deu-lhe cotoveladas, que apertou-lhe a mão... que...

-Ai!... já sei donde vem esta embrulhada!... você, senhora mana Rosa, era capaz de levantar três dúzias de aleives a D. Honorina pela inveja que dela tem; mas no que acaba de dizer conhece-se o dedo do gigante!... por isso o tal brejeiro escamou-se daqui apenas me viu chegar; porém, deixe-o estar, que há de pagá-lo com língua de palmo: quer saber de uma coisa?...

-O que é? diga.

-A primeira vez que encontrar o Sr. Brás-mimoso, corto-lhe as orelhas.

-Não foi ele...

-Foi!...

-Juro que não foi ele.

-Quer fosse, quer não; tenho sede naquele atrevidaço... ainda mais agora, que me asseguram tentar também o tal sujeito a deputação provincial!

-Manduca, eu hei de dizer a minha mãe.

-Pode fazê-lo... ou é melhor que vá eu mesmo assegurar-lhe as minhas últimas determinações.

Isto dizendo, Manduca atirou-se para a sala, sendo imediatamente seguido por sua mana Rosa.

Como fizemos notar, Venâncio não tinha reparado no carão assustador de Tomásia, e, por isso, sentando-se junto dela, começava por dar conta de todos os meios empregados a fim de ganhar votação para o jovem candidato; depois a sua má sina o foi empurrando para a fogueira em que tinha de arder, de modo que Venâncio concluiu, dizendo:

-Agora só me falta ir falar ao Sr. Hugo de Mendonça; tem relações com muita gente dos colégios da serra... e pode alcançar-nos boa votação: oh! há de dar-nos uma carga cerrada...

-Sim... sim... disse Tomásia com terrível sorriso; uma carga cerrada... é o que se precisa!

-Tu, minha Tomásia, podes bem dispor a nossa boa D. Honorina em prol do querido Manuelzinho... ela te estima tanto!...

-E a ti não menos; não é assim?... D. Honorina é tão agradável!...

-É verdade!... tão agradável!...

-Interessante!... disse Tomásia levantando a voz.

-Interessante!... repetiu Venâncio procurando imitar o fogo com que falava sua mulher.

-Bonita!... linda!...

-Bonita!... linda!... exclamou Venâncio.

-Chega mesmo a ser encantadora!...

-Mesmo a ser encantadora!... disse o velho com entusiasmo.

-É um anjo!...

-Um anjo do céu, Tomásia!...

-Eu a amo mesmo como se fosse minha filha!...

-E eu, Tomásia!... e eu!...

-E então tu a amas também muito?...

-Oh!... pouco mais ou menos como tu mesma.

-E por que te não diriges antes a ela, do que a seu pai, para falares sobre a eleição?...

-Eu... porque... não me tinha lembrado...

-D. Honorina pode empenhar-se com o pai...

-É verdade!... que juízo que tu tens, Tomásia!

-Por conseqüência...

-Achas que devo ir falar a D. Honorina?...

-Sem dúvida...

-E quando, Tomásia?...

-O mais cedo possível.

-Agora, por exemplo?...

-Sim; podes jantar com ela: não gostas da sua companhia?...

-Muito, Tomásia!...

-A gente não se lembra de mais nada no mundo; não é assim, Venâncio!

-Ora... pois se ela é tão feiticeira!...

-Então, Venâncio, vai... vai já...

-Pois sim... até logo, Tomásia.

Venâncio levantou-se, e, tomando o chapéu, ia cheio de prazer pelas boas maneiras com que o tratava sua formidável esposa; quando ao chegar à porta, sentiu-se agarrado pelas abas da casaca e sofreu tão terrível arrancada, que foi parar no meio da sala, fazendo a pirueta mais brilhante do mundo.

-Passa para ali, grandíssimo insolente!... bradou Tomásia.

Venâncio abriu a boca para soltar um grito de admiração; mas, como arregalasse os olhos e visse uma das abas de sua casaca nas mãos de Tomásia, exclamou dolorosamente:

-A melhor aba da minha casaca nova!...

E, enquanto Tomásia pálida, trêmula e fora de si, queria, procurava e não achava palavras assaz fortes para exprimir o furor de que se sentia acendida, Venâncio em piedosa contemplação diante da aba de sua casaca, tinha pronunciado como automaticamente, três vezes:

-A melhor aba da minha casaca nova!...

-Ó miserável!... ó tolo!... ó vil!... disse tremendo de raiva Tomásia.

-Serei tudo quanto a senhora quiser, respondeu Venâncio afastando-se prudentemente; mas juro que não a entendo, e ainda que a entendesse, não sei que culpa teve a minha casaca nova...

Tomásia não o deixou concluir: fazendo um rolo da aba da casaca, atirou-o contra o marido; e acertou-lhe em cheio sobre o nariz.

Já dissemos uma vez que Venâncio amava o seu nariz sobre todas as coisas.

-A senhora não se pode nunca enraivecer, que não implique com o meu nariz!... exclamou ele.

-Miserável! miserável! miserável!...

-Que o sou, sei-o eu há mais de vinte anos, senhora!

-Depois de velho, de torpe... depois de ser capaz de causar nojo a todo mundo, dar em namorador!...

-Eu?! bradou Venâncio, fazendo uma terrível careta.

-Tentaria, sem dúvida envenenar-me a ver se casava com ela.

-Casar-me?... oh, Sr.ª Tomásia, falando sério, se eu tivesse a felicidade de ficar viúvo, não me casava nem com uma santa!...

-Pois hei de viver!... hei de viver!... e hei de viver!...

-Obrigado... obrigado... irei assim ganhando mais direitos ao reino do céu.

-Hei de persegui-lo!... maltratá-lo!... martirizá-lo!...

-Isso não me faz mossa... já estou habituado.

-Sou capaz de fugir-lhe de casa!...

-Minha senhora, a porta da rua é a serventia da casa; mas não creio que chegue a fazer tal.

-Por quê?... penso que preciso de sua pessoa?...

-Ao contrário: porque seria uma pessoa como a minha muita felicidade junta.

-O senhor come pelo meu dote!...

-Sim, senhora... sim, senhora... os seus dotes são extraordinários!...

-Sabe?... o senhor está hoje muito atrevido!...

-E a senhora não se lembra que ainda há pouco atirou com a aba da minha casaca sobre o meu nariz?...

-Um homem casado ofender assim sua mulher!...

-Ora, isto só pode ouvir um homem prudente como eu!... Sr.ª D. Tomásia, a senhora tem venetas, tem acessos de loucura?... que diabo lhe fiz eu?... diga, senão desta vez estouro!...

-Hipócrita!...

-Atacar-me na pessoa da minha casaca!... ofender-me no indivíduo do meu nariz!... e sem nenhum motivo plausível, sem nenhuma razão sensível, dar um golpe de estado em circunstâncias ordinárias!...

-Miserável!... e ainda quer encobrir?!...

-Encobrir o quê, senhora da minha alma?... ora, dá-se um inferno, como este em que vivo?...

-Pois aonde ia o senhor ainda agora?...

-Trabalhar para a eleição de Manuelzinho; não era isso da sua vontade?

-Todos eles têm sempre um pé por onde se desculpam! por que não confessa antes, senhor hipócrita, que ia ver a sua namorada?...

-Pois eu tenho namorada, mulher dos meus pecados?!

-Então tem ainda o atrevimento de negar que anda apaixonado pela filha de Hugo de Mendonça?...

-Misericórdia! que calúnia! que falsidade!...

-E há pouco por que o senhor a chamava agradável, interessante, linda, encantadora, e até anjo?!...

-E não foi a senhora quem deu-lhe primeiro todos esses nomes?... se eu dissesse o contrário disso, tínhamos trovoada por três dias!... caí na asneira de repetir o que ouvia, e eis o resultado! nesta casa sou preso por ter cão, e preso por não ter cão; mas vou apelar para outro meio: fale, minha senhora; que de hoje em diante ficarei mudo, como o Pão de Açúcar.

-E hei de falar, gritar e bramir!...

-Hum.

-Anjo!... anjo!... anjo aquela lambisgóia!...

-Hum.

-Uma amarela sem graça!

-Hum.

-Entendeu?... não quero que se trate mais de eleições.

-Hum.

-Não quero mais amizade com aquela gentinha.

-Hum.

-Não quero que o senhor me ponha mais os pés da porta para fora.

-Hum.

-Pois que é um velho estúpido e namorador...

-Hum.

-Miserável!... torpe!... covarde!...

-Hum.

-Tão covarde, que ouve os insultos que lhe estou dirigindo, e não me diz palavra!...

-Hum.

-Digo-lhe que não me sai mais de casa! que hei de tê-lo preso num quarto escuro! que hei de pô-lo em penitência de pão e água!...

-Hum.

-Homem sem sangue!... fale!... senão desespero!...

-Hum.

-Oh, velho desgraçado!... desculpe-se, ou grite; mas fale!... ou ver-me-á fazer alguma asneira!

-Hum.

-Oh, narigudo de uma figa!...

Tomásia furiosa com o propósito em que estava Venâncio de não dizer palavra, triunfou inesperadamente: o pobre velho não pôde ouvir em silêncio um insulto dirigido ao seu nariz.

-Oh, Sr.ª Tomásia, por quem é, não me deite a perder!... diga tudo quanto quiser; mas não toque no meu nariz!...

-Narigudo!... narigudo!...

-A senhora devia ser casada com um homem sem nariz!

-Narigudo!... narigudo!...

-E a senhora!... é uma mulher que se diz com vinte e nove anos, sendo capaz de ser minha mãe!...

-O que é que diz?... gritou Tomásia avançando.

-Pois se não quer ver-me perder o meu sangue-frio, não fale do meu nariz!... disse Venâncio afastando-se temeroso.

-Narigudo! bradou Tomásia.

-E a senhora é um... estu... víbo... dia... dragão!...

-Espera, que eu te ensino, narigudo duma figa!

Tomásia lançou mão de uma cadeira e atirou-se contra Venâncio, que deitou a correr em roda da sala, tomando outra cadeira para defender-se; ao passar junto da porta do gabinete, viu que Manduca aparecia e exclamou:

-Manduca! salva teu pai das garras daquela mulher!

E, como para isto dizer fizesse uma pequena parada, Tomásia atirou-lhe com a cadeira; mas já então Manduca se havia posto entre ambos, e foi ele quem recebeu nas costas tão grande pancada, que caiu derreado.

-Manduca!... exclamaram os dois velhos, esquecendo-se por um momento de seus furores, e correndo a acudir o filho.

-Manduca!... assobiou Rosa com voz de falsete.

No entanto, Manduca fazia no rosto contrações horríveis, e, por duas ou três vezes que tentou levantar-se, caiu de novo.

Os dois irmãos ocupados em sua disputa fraternal, não haviam dado atenção aos gritos que seus pais soltavam na sala, aos quais, aliás, por muito afeitos, já ouviam sem grande cuidado; enfim, no momento de entrar na sala, o filho apanhou em lugar de seu pai o golpe de que acabamos de falar.

-Quem tem culpa és tu, velho narigudo! disse Tomásia.

-Quem tem culpa é a senhora, mulher despropositada! disse Venâncio.

-Quem tem culpa, minha mãe, é a amarela da moda, acudiu Rosa.

-Quem tem culpa é o Sr. Brás-mimoso, balbuciou Manduca falando como a espremer-se.

-Meu filho, tornou Tomásia; eu te vingarei no nariz de teu pai.

-Meu filho, acudiu Venâncio, eu te vingarei não dando mais resposta a tua mãe.

-Meu irmão, bradou Rosa; eu te vingarei, pondo a boca no mundo contra aquela bruxinha desenxabida!

-Obrigado! disse Manduca; mas a vingança quero eu tirá-la das orelhas do Sr. Brás-mimoso.

-Minha mãe, exclamou Rosa, Manduca quer cortar as orelhas do Sr. Brás!...

-Manduca! eu te defendo, sob pena de minha maldição, de tocares em um só cabelo do Sr. Brás!...

-Está bem, minha mãe, disse Manduca; eu lhe juro que não tocarei em um só cabelo do Sr. Brás-mimoso.

E depois continuou, dizendo consigo mesmo:

-Ainda bem que o tal bichinho é careca.

Otávio

Pouco mais ou menos pelo mesmo tempo em que tiveram lugar as cenas desagradáveis que no anterior capítulo descrevemos, uma outra mais grave e muito mais terrível ocorreu na câmara do guarda-livros de Hugo de Mendonça.

Félix alojava-se em um simples e modesto gabinete do sobrado da casa comercial de seu amo.

Eram nove horas da noite.

O guarda-livros entrou vivamente agitado para seu quarto; e, fechando-se por dentro, atirou-se sobre uma cadeira de braços, e ficou quase uma hora imóvel e abatido, mergulhado em amargas reflexões.

Um candeeiro de bronze estava aceso defronte dele, e refletia sobre o pálido semblante do mancebo os raios de uma luz débil e enfraquecida...

Em todo esse tempo apenas se ouviam profundos suspiros soltados por Félix, e o monótono tique-taque da pêndula de um relógio, que sobre um próximo aparador existia.

Finalmente, os olhos do guarda-livros ergueram-se e fitaram-se no relógio.

Faltavam cinco minutos para dez horas.

O guarda-livros estremeceu todo e, arrancando convulsamente uma carta do bolso de sua sobrecasaca, leu para si, sorrindo-se com desesperada ironia, as seguintes breves linhas: «Félix. Tentei todos os meios... esgotei-os todos, e tudo foi baldado; o derradeiro recurso que me resta é esse... um crime!!... embora... nós o lavaremos. Reduzido a dar um passo desesperado, eu abuso da minha posição; eu sei que abuso, Félix! porém, não posso voltar atrás; e, portanto, eu insisto... eu imponho!... às dez horas da noite entregar-te-ei a caixinha de veludo preto; e tu me darás as letras. Otávio.»

Acabando de ler, Félix foi guardar a carta em uma das gavetas de sua secretária e, voltando de novo a seu primeiro posto, murmurou com voz abafada:

-E, portanto, ele deve também corar diante de mim!

O relógio marcou e deu dez horas.

Um servente de escritório bateu à porta do quarto de Félix e anunciou o Sr. Otávio.

Um momento depois, a porta do quarto de novo por dentro se fechou, e Otávio e Félix sentaram-se defronte um do outro: ambos estavam pálidos, ambos trêmulos, ambos cabisbaixos.

Passou-se muito tempo em silêncio; os dois mancebos pareciam temer olhar um para o outro; devia haver alguma coisa entre eles, que os envergonhasse a ambos.

Finalmente, Otávio pareceu tomar uma resolução; tornou-se extremamente corado e, erguendo os olhos, disse:

-E então, Félix?!

-Otávio, respondeu o guarda-livros levantando por sua vez o rosto; Otávio, tudo isto é muito horrível!...

-E, todavia, é inevitável!

-Inevitável?... oh!.. somente inevitável pode ser a nossa vergonha!... porque eu fui infame; e tu, Otávio... queres sê-lo!

-E qual de nós é mais desgraçado, Félix?...

-Eu.

-Não!... não!...

-Sou eu, Otávio; porque a desgraça está somente no crime!... e o crime é uma mão de bronze, que nos fecha para sempre a porta do próprio sossego!... e eu tenho ofendido a meus benfeitores... aqueles a quem devo tudo!... eu mordi-lhes em seu coração; e agora tu queres que lhes morda de novo?!... não! não! isso não! já padeço bastante...

-Mas esta ferida terá de fechar-se depressa; e depois eu poderei curar a outra...

-Nunca! há feridas que jamais se fecham; porque a consciência dilacera o coração do mau a todo o instante...

O guarda-livros ergueu-se como desesperado e, apertando a cabeça com as mãos, exclamou:

-Meu Deus! meu Deus! meu Deus!

E depois, encarando Otávio, disse com voz comovida:

-E como te atreves, tu até agora puro e honrado, a vires propor-me uma infâmia... um crime, em que ambos teríamos parte igual?!

-Félix, é que não compreendes o que se passa em mim! não sabes o que é sofrer, como eu sofro!...

-E eu?... e eu?...

-Escuta: deixa-me começar bem de longe, bem do tempo da felicidade. Tu me conheces; fui sempre, como há pouco disseste, puro e honrado; desde a infância ligou-nos a mais estreita amizade; aos dezoito anos era eu guarda-livros da casa de meu pai, e tu primeiro caixeiro da do Sr. Raul de Mendonça; nós nos encontrávamos sempre; nas horas de descanso éramos inseparáveis; e meu pai, que me proibia todos os prazeres que a mocidade procura com tanto ardor, era o primeiro a animar nossa mútua afeição; e muitas vezes, falando-me de ti, dizia: -eis ali um menino, que há de ser alguma coisa e que deverá tudo à força de seu trabalho e ao valor de sua probidade!

-Basta, Otávio; não prossigas...

-Porém, é absolutamente preciso que eu avive todas essas idéias! e, pois, Félix, recordemos a noite terrível, que de meu igual te podia fazer meu escravo. Lembras-te?... eram dez horas, como agora; eu vim ver-te, e achei que a porta de teu quarto se achava fechada por dentro, também como agora; então, sem pensar no que fazia, instintivamente talvez, ou para zombar contigo, eu olhei pela fechadura... Félix!... havia dentro de teu quarto a prova de um crime, como também está havendo agora!

-Oh!...

-Não compreendendo ainda o que via, cuidando que seria um presente da fortuna, bati na porta; e senti que tu ocultavas o objeto que eu acabava de descobrir em tuas mãos; abriste-me a porta, Félix, e eu te encontrei pálido e desfigurado, como o estás agora!

-Não mais, Otávio!...

-Pedi que me explicasses a tua perturbação; disse-te o que eu tinha visto; e tu caíste a meus pés, implorando compaixão e segredo e gritando misericórdia!...

-Sim... mas tu tiveste piedade...

-Eu quis obrigar-te a desfazer o teu crime; porém, chorando arrependido, disseste que já era tarde, que outro havia sido considerado o perpetrador dele e como tal castigado, e que ficarias perdido se se descobrisse o fatal segredo. Cheio de remorsos, de joelhos a meus pés, abraçado com minhas pernas, tu me pediste que eu escondesse em minha casa a prova de teu delito, até que um dia te pudesses lavar dessa vergonhosa manha... eu hesitei... mas amava-te muito!... levei-a, ocultei-a e tenho-a comigo.

Félix escondera o rosto entre as mãos, tomado de vergonha e de remorsos. Otávio prosseguiu.

-Depois eu tive de sair por muitas vezes do Rio de Janeiro... graves e importantes empresas comerciais me tinham quase sempre longe desta cidade... não te encubro, Félix; se eu morresse, achar-se-ia entre os meus papéis a salvaguarda de minha honra; porque a minha honra era só o que eu não podia sacrificar à amizade. Enfim, faleceu meu pai, e hoje, herdeiro da sua riqueza e do seu nome, sou julgado feliz e digno de inveja; e até há bem poucos dias eu não achava na minha vida de que me envergonhar, senão de ser o depositário de um crime!

-Oh e para que agora queres ter de que abaixar o rosto?...

-Porque o coração de um moço, Félix, pode mais do que a sua cabeça!...

Otávio enxugou sofregamente o suor, que em bagas lhe corria da fronte; e continuou falando com ardor e precipitação.

-Tu sabes, Félix, o que é amar loucamente uma mulher?... compreendes o que é passar dias inteiros pensando nela, todas as noites velando por ela, todas as horas por ela suspirando?... eu mesmo não concebo o que é isso, que tem em si essa mulher para fazer-me delirar e esquecer meus negócios, meus prazeres, meu dever, e até minha honra!... mas eu sei que a amo como um louco, como um homem perdido!... eu sinto que este amor traz em si alguma coisa de tão abominável e infernal, que, por essa mulher, se eu fosse rei, me faria abandonar o trono, se eu fosse pai, amaldiçoar meu filho, se eu fosse sacerdote, renegar do meu Deus! Oh! Félix, Félix!... um amor como este é horrível e capaz de tudo! uma mulher como essa pode fazer de um homem virtuoso um ladrão ou um sicário! sim: se Honorina me dissesse -mata! eu creio que iria matar; se ela me gritasse -rouba! eu penso que iria roubar, ainda que estivesse certo de que um dia depois seria condenado à morte; mas contanto que de cima do patíbulo ganhasse um sorriso de gratidão de seus lábios!... oh!... pois essa mulher há de ser minha!... eu a quereria a preço de meu sangue! eu a quero mesmo a preço de meu nome e de minha honra!... eu a quero! eu a quero!...

Otávio, que falava como possuído de violento delírio, pronunciou as últimas palavras quase sufocado.

-Mas é horrível, Otávio, disse Félix, pretenderes sacrificar-me à tua paixão!

-Eu sei, eu sei, mas já te disse que seria também capaz de matar e roubar. Tenho tentado tudo inutilmente: cerquei-a de atenções e de obséquios... e nem gratidão obtive; procurei mostrar-lhe o como era extremoso e puro o amor que por ela sinto, e nem ao menos pude ser ouvido; expliquei-me mais claramente... falei-lhe em casamento... e Honorina repeliu-me!

-E seu pai?... por que te não diriges a seu pai?

-Félix, confesso-te com vergonha: há três dias que fui ajoelhar-me diante dele; pedi-lhe o sossego, a paz e a ventura de minha vida, pedi-lhe, enfim, a mão de sua filha. O Sr. Hugo de Mendonça pareceu inclinar-se a meu favor, sua mãe mostrou alegrar-se, ouvindo minhas proposições; Honorina foi chamada... consultou-se sua vontade... e ela disse que não! não!... diante de meu rosto!... e, portanto, não há mais esperança por esse lado... a esperança que me resta é uma só: em ti a tenho posto.

-Em mim não, Otávio; eu não poderei fazer nada.

-Podes, podes muito: eu exijo, e já disse uma vez, eu imponho! Tu ficaste, há perto de um ano, administrando, com plenos poderes, a casa de Hugo de Mendonça; eu sei que o velho e falecido Raul de Mendonça havia entrado em empresas arriscadas... tinha parte muito notável no contrabando de africanos; não podias tu, depois da morte deste, e na ausência de Hugo, entreter ainda as mesmas negociações?... para entretê-las não te era preciso contrair empréstimos?... e não seria, enfim, muito possível ser infeliz e perder tudo?... Félix, eu sei ainda que a casa de Hugo teve prejuízos e estremeceu... tenho a certeza de que estremece ainda... pois bem! passa-me letras...

Otávio, como para ver-se livre de um peso enorme, continuou, dizendo depressa:

-Passa-me letras de grande valor... na importância de quarenta a cinqüenta contos de réis... escreve-as com datas atrasadas, que seu vencimento tenha lugar agora... e Hugo de Mendonça estará perdido para sempre, ou dar-me-á sua filha em casamento.

-E hei de assim, Otávio, pagar a meu benfeitor a dívida imensa em que lhe estou?...

-Oh! não... não haverá nada: assustá-lo-ei apenas; se me der sua filha, no dia das núpcias declararei o nosso crime e obterei o seu perdão.

-Ele sacrificará primeiro todos os seus bens para pagar-te...

-O Sr. Hugo de Mendonça é muito honrado para querer pagar-me com a herança de seu sobrinho, de sua mãe e de sua filha.

-Mas tem a sua.

-Insuficiente.

-Lançar-me-á a pontapés para longe de sua casa...

-E eu te receberei na minha.

-Desonrado!...

-Tu te saberás defender: o contrabando, em que se achava empenhada a casa de Hugo, enriquece e empobrece com a rapidez do raio.

-O Sr. Hugo de Mendonça, quando deixou-me administrando sua casa, ordenou-me que pusesse termo a todas as negociações da Costa d'África, Otávio.

-Sim; mas poderiam haver antigos comprometimentos... e em tal caso...

-E como?... como explicar essa perda enorme?

-Félix, tudo nos auxilia; o velho Raul de Mendonça e meu pai eram sócios em semelhantes empresas; mortos ambos quase ao mesmo tempo, não é inverossímil que ficassem ajustes, obrigações que prendessem ambas as casas; sabes que a fortuna me tem sido terrivelmente contrária nestes dois últimos meses; pois, bem... explica as tuas perdas pelas minhas... éramos sócios... ninguém virá dizer que não, porque eu tenho negociado só por minha conta; e, portanto, éramos sócios... e tu não fizeste mais do que cumprir antigas e inevitáveis obrigações... que, enfim, nós podemos documentar agora em dez minutos.

-Não! não!

-Félix, eu te escrevi uma carta, que poderás atirar-me ao rosto, se eu faltar ao que prometo!

-É uma infâmia...

-Que se lavará depressa.

-Sim, porque tu te desculparás com a paixão que te cega.

-E tu com o direito que eu tinha de te impor condições...

-Será dizer ao mundo que eu tenho sido infame toda a minha vida...

-Não; eu alcançarei o teu perdão e sepultarei o teu segredo.

-Mas não me livrarás de corar sempre diante de uma família inteira!

-É um sacrifício, Félix, eu o sei; porém, tu mo deves...

-Este não... é enorme!...

-É que tu ainda não pensaste que me não podes negar nada!...

-Otávio!...

-Que um homem, que tendo sido como eu, honrado em toda a sua vida, que não teve nela ainda uma só mancha, e chega a ponto de vir envergonhar-se a teus olhos, não hesitará um só instante em lançar mão dos últimos meios!

-Otávio!...

-Que um homem que ama, como eu amo, não conhece barreiras, não respeita nada... não se pode lembrar nem dos outros, nem de si!...

-Otávio!

-É que tu ainda não pensaste que eu estou dando o derradeiro passo! e que me agarro à última tábua! que acredito que tu podes ser o instrumento de minha ventura; e que se a isso te negares, eu posso, e hei de vingar-me!

-Mas é que tu não pensaste também, Otávio, que a minha queda trará após si a tua; porque tu me escreveste uma carta que te desonra!

-Embora! embora! eu pensei em tudo isso, e em mais ainda; porém, já te disse mil vezes, Félix: quem ama não respeita o mundo, não se lembra da virtude, está louco e perdido, e só pode salvar-se com a posse daquela que adora!

-Insensato!

-Eu pensei até na possibilidade de um outro crime, Félix! eu pensei que tu podias tentar arrancar de minhas mãos a prova de tua desgraça; e sabes o que fiz?... vim armado... para defender-me!... para salvar a minha esperança!...

-E para talvez matar-me, não é assim?

-Não! matar-te não; porque eu preciso da tua vida Félix, tu és a carta que eu jogo; a carta, mercê da qual devo ganhar a partida.

-Otávio, eu me espanto da tua audácia!...

-Admira antes o amor desesperado que eu tenho!...

-O que tu intentas, Otávio, chama-se roubo!

O rosto do mancebo tornou-se rubro de cólera e vergonha. Não podendo suster-se no primeiro momento, agarrou e sacudiu com força o braço de Félix e exclamou:

-Desgraçado! e és tu que falas em roubo?!

Félix, como fulminado por um raio, caiu sobre a cadeira de braços, da qual há um instante se tinha erguido.

Onze horas soaram então.

-Há uma hora que falamos em vão, disse Otávio sossegando; é necessário acabar com isto: decide-te.

-Estou decidido, respondeu Félix, não!

-Bem, amanhã haverá de mais dois desgraçados no mundo: de manhã tu serás vergonhosamente expulso da casa de Hugo de Mendonça como um vil ladrão; de tarde mostrarás a minha carta ao povo que me cuspirá no rosto.

E dizendo isto Otávio deu dois passos para a porta.

-Pára, Otávio! exclamou Félix.

-Queres dar-me as letras?...

-E onde está a prova de minha miséria?...

-Trouxe-a comigo.

-Juras-me que, se te casares com Honorina, conseguirás o meu perdão e sepultarás o meu segredo?...

-Juro... pela alma de meu pai.

-Que se não obtiveres a mão dessa infeliz moça, não sacrificarás a fortuna de seu pai?...

Otávio pensou um momento.

-E então?

-Não juro, Félix; porque eu precisarei vingar-me! porque eu quererei abaixá-la muito para depois levantá-la.

-Desse modo... repito que não!

-Pois até amanhã, Félix...

Otávio encaminhou-se de novo para a porta.

-Piedade! piedade!... compaixão, Otávio!...

-Queres dar-me as letras?... perguntou o moço voltando o rosto.

-Oh!... tu és muito traidor para ser amigo!...

-Queres dar-me as letras?...

-Otávio!... Otávio!... isto é horrível!...

-Em conclusão?...

-Em conclusão, tu és o demônio!...

Félix saiu do quarto e, dirigindo-se ao escritório, de lá voltou logo com algumas letras em branco; fechou-se de novo por dentro com Otávio, e depois de temerosamente correr os olhos em derredor de si, encheu as letras, as quais foram assinadas por ele como aceitante, na qualidade de administrador da casa e procurador bastante de Hugo de Mendonça. Todas elas deveriam vencer-se pouco tempo depois; quando as letras estiveram prontas, Félix as entregou a Otávio, que, somando-as, disse:

-Bem, são quarenta e seis contos de réis.

-E agora, disse Félix abaixando os olhos, o que me pertence?

Otávio, tendo guardado as letras com todo cuidado, tirou do bolso um pequeno embrulho, que deu ao guarda-livros.

Félix arrancou o papel que envolvia aquele objeto, e achou uma pequena boceta forrada de veludo preto.

Abriu a boceta e achou uma cruz cravada de brilhantes.

-É isto mesmo, disse tremendo.

Pai e negociante

Hugo de Mendonça, deixando a bela casinha de Niterói, tinha vindo a instâncias de Lucrécia, morar vizinho dela, nesse bairro alegre e aristocrático chamado da Glória, onde a diplomacia e a riqueza têm, no Rio de Janeiro, assentado o trono de seus prazeres.

A elegante casa ocupada pelo pai de Honorina ergue-se do meio de um jardim, que, desdobrando-se, primeiro faz frente para essa soberba rua sempre trêmula pelo rodar das carruagens, sempre ruidosa pela multidão que por ela vai a caminho; e depois se continua por outra, que, em compensação, sossegada, solitária e melancólica, se termina breve defronte do mar.

Ante a rua orgulhosa e nobre se ostenta magnífico portão de grades de ferro, que se abre em par preso a duas elevadas colunas de pedra, ao mesmo tempo que pela outra, solitária e melancólica, se franqueia o jardim por um pequeno pórtico engraçado e modesto, a cujos lados se levantam dois terraços, cada um dos quais tem no fundo duas portas, que dão entrada a uma saleta de recreio.

Como acima fica dito, no meio desse jardim levanta-se a vistosa casa em que mora o pai de Honorina.

Era um domingo às nove horas da manhã.

Apesar de ser feriado, como era esse dia, o que tinha seguido à horrível noite, em que sobre a vergonha passada de um homem levantava outro homem também sua vergonha, Félix foi cedo procurar a seu amo para dar-lhe a fatal notícia da triste posição de sua casa, da ruína que o esperava: ruína iminente... talvez inevitável.

Ema e Honorina praticavam na sala, enquanto em um gabinete contíguo a esta, Hugo se ocupava em examinar vários papéis e livros comerciais, quando anunciaram Félix.

O negociante escutou, estremecendo o anúncio daquela inesperada visita; e, com o pressentimento de um infortúnio, ordenou que fizessem entrar o mancebo para o gabinete.

Hugo conhecia que seus negócios não se achavam no melhor pé possível: ele tinha herdado de seus pais uma casa forte pelo crédito que merecia, manca, porém, em si mesma pelas grandes dívidas que sobre ela pesavam, e que não podiam ser de pronto satisfeitas; pois que não era lícito ao honrado negociante dispor, para pagá-las, dos bens que cabiam por herança à sua mãe e a Honorina.

O irmão de Hugo, falecido quase ao mesmo tempo que seu pai, havia deixado bens consideráveis; morrendo, porém, sem testamento e tendo um filho único, embora ausente, esses bens não deviam ser empregados em favor dos interesses particulares de Hugo, que, sempre consciencioso e nobre, zelava a herança de Lauro com um respeito religioso.

E, pois, Hugo de Mendonça, que, para ficar senhor independente da casa de seu pai, se obrigara a todas as dívidas, que a faziam gemer, começara logo a lutar com imensas dificuldades; todavia, tendo um nome cheio de brilhante reputação e uma vida ainda sem mancha, pôde sustentar-se no mesmo pé em que dantes vivera seu pai; obrigado a sair da corte para tomar conta dos bens, que longe haviam deixado seus parentes, ele pôs os seus negócios sob a direção de um moço que, há dez anos, era o primeiro caixeiro de casa, e que jamais dera azo à menor desconfiança da sua probidade.

Voltando depois de alguns meses de ausência, Hugo achou tudo no mesmo estado... a casa se debatia ainda apertada pelos mesmos empenhos... mancava sempre; mas era inegável que Félix, que a ficara administrando com amplos poderes, fizera admiráveis esforços para sustentá-la.

Quem julgasse a Hugo de Mendonça pelas aparências, o acreditaria tão feliz como rico; além de ser o gênio naturalmente alegre, o negociante, à semelhança da jovem loureira que, abatida e amargurada no fundo da alma, ainda assim levanta orgulhosa a cabeça diante de suas rivais, fazia por esconder seus concentrados tormentos sob um aspecto de felicidade; mas, para contrastar a alegria de seus dias, ele passava noites cruéis de cálculos baldados; noites que ele gastava em lembrar e somar suas dívidas; em sentir apertar-se-lhe o coração, prevendo que lhe seria preciso voltar-se para sua mãe e sua filha, e pedir-lhes seus bens para perder tudo, menos a honra.

Foi por isso, sem dúvida, que ele estremeceu, ouvindo anunciar a visita de Félix a horas em que o não devia esperar.

O guarda-livros entrou e, obedecendo à voz de Hugo, sentou-se defronte dele.

O mancebo trazia no semblante a expressão de pungente dor; em seus olhos se estava lendo a vigília de uma noite inteira.

-Pois bem, meu Félix, disse Hugo forçando um sorriso; eu estou agourando-nos mal da tua visita.

Félix fez um sinal afirmativo.

-É que temos novas dificuldades a vencer para sustentar-nos... empenhos novos... e quem sabe?... talvez uma grande desgraça.

O guarda-livros fez novo e igual movimento de cabeça; Hugo de Mendonça tornou-se, então, pálido, como ele.

-Almocemos primeiro, tornou depois de alguns minutos de silêncio; procuremos adquirir forças para assoberbar a tempestade.

Félix quis falar; porém, Hugo de Mendonça, já com muito sangue-frio, repetiu o mesmo conselho.

-Almocemos primeiro, meu amigo; há sempre tempo de sobra para o infortúnio.

Até à hora do almoço Hugo entreteve agradavelmente a Félix e as senhoras, com as quais se tinham ido ajuntar, em objetos indiferentes.

Finalmente, os dois se viram de novo a sós e defronte um do outro no mesmo gabinete.

-Agora, meu Félix, disse Hugo de Mendonça, vamos ao que é mais sério e mais triste: que há de novo?... fala...

-Senhor... há uma desgraça... horrível!...

-Mas, enfim, sempre acharemos para salvar-nos algum meio, embora difícil...

-Senhor, disse o moço, o mal é muito grande... é enorme...

-Sem remédio?...

-Talvez... desgraçadamente, talvez sem remédio!

-Mas o que será isso, que por hora não compreendo!... eu me supunha ao fato de todos os meus negócios!...

Félix ficou frio como um cadáver; e sentiu que as palavras de Hugo de Mendonça retiniam cruelmente no fundo de seu coração.

-Félix, continuou o negociante, é preciso falar... vamos...

-Senhor, respondeu o guarda-livros; eu sempre mereci a mais completa confiança do senhor seu pai; e nunca dei motivo para perder a sua. Recebido e educado nesta casa, pobre órfão que eu era, eu vos olhava como meus pais, como vós me olháveis como vosso filho.

-Adiante... adiante...

-Não; tudo é preciso dizer; porque eu cometi um erro, a que se poderá chamar um abuso de confiança, pois que suas conseqüências foram desgraçadas, e que se diria uma grande prova de amizade e dedicação, se o seu resultado correspondesse aos meus desejos e esperanças!

-Basta de preâmbulos, Félix; eu estou ansioso por conhecer esse infortúnio, que tanto te abate.

-Eu o vou dizer; mas assegure-me primeiro, senhor, que eu tenho administrado a sua casa mais como um membro da família, mais como um filho, do que como um assalariado...

-Sim... todos te fazemos justiça: porém, vamos... vamos...

-Eu me explico: é, todavia, necessário partir de longe. Senhor, quando morreu seu pai, eu sabia dos negócios da casa mil vezes mais do que V. S.ª, perdoe-me... o Sr. Raul de Mendonça parecia estimá-lo pouco; e por isso o arredava sempre dos seus conselhos...

-Adiante... adiante...

-O senhor seu pai, poucos anos antes de morrer, se havia empenhado em negociações proibidas e perigosas; e, como tantos outros, sofreu reveses; o resultado foi deixar a casa nas difíceis circunstâncias em que passou a seu poder...

-Sabemos disso...

-Logo que depois da morte dele, a casa ficou debaixo da direção de V. S.ª; eu, recebendo amplos poderes para, em sua ausência, continuar com os negócios, recebi também ordens terminantes para pôr termo a essas empresas fatais e ilícitas...

-Concluamos enfim...

-Alguns dias, porém, depois da sua partida para o campo, a firma de seu pai me foi apresentada... havia uma promessa, uma obrigação dele, contando-se com a qual despesas que se tinham feito, e navios preparados: era um enorme empenho... mas o que podia eu fazer?...

-É que eu ainda não compreendi bastante, Félix!...

-Senhor, eu quero dizer que fui obrigado a contrair novas e grandes dívidas para entrar na negociação com a parte a que se obrigara a casa, que eu estava administrando.

-Mas eu tinha o direito de saber tudo, e tu o dever de nada me ocultar!...

-Eis o erro que choro, senhor! porém, eu esperava que desta vez a sorte nos seria menos adversa; e contava que poderia apresentar-me vitorioso, depois de ter salvado de todos os seus empenhos a casa que administrei.

-E então?...

-Calculando os lucros sobre uma perda de metade de nossas embarcações, ainda assim teríamos vencido muito...

-E então?... e então?... e então?

-Oh! há três meses que se têm ido quebrando contra meu coração uma por uma todas as probabilidades que a nosso favor eu tinha!... cada notícia importava sempre uma desgraça!... a primeira, a segunda, a terceira, todas as embarcações perdidas... tomadas!... só nos restava a última... a última, que era também a derradeira tábua de salvação para nós; pois bem! ontem a notícia chegou... perdida! tomada, como as outras!...

-E portanto?... perguntou o negociante apertando violentamente as mãos.

-E, portanto, tudo está acabado... não há mais esperança possível!...

Hugo de Mendonça desabafou um gemido surdo e doloroso.

-E de hoje a três dias, senhor, temos de pagar uma letra na importância de treze contos de réis.

-Oh!...

-E de hoje a três meses uma segunda de quinze contos de réis.

-Félix!...

-E, enfim, de hoje a seis meses ainda uma terceira importando em dezoito contos de réis.

-Que todas três perfazem a quantia de quarenta e seis contos de réis!... disse tremendo Hugo de Mendonça, que estupidamente somara pelos dedos a dívida inesperada.

-É verdade, senhor.

-Sim... ainda quarenta e seis contos de réis que devem ser pagos no mesmo tempo em que se virá pedir-me outro tanto!...

-Era por isso que eu julgava esta desgraça inevitável!...

-Mas há, Sr. Félix, disse Hugo afetando um tom improvisadamente polido; há em tudo isto um lado obscuro... ininteligível!... nenhum administrador ocultou assim por tanto tempo negócios de tal importância ao dono da casa.

-Sr. Hugo de Mendonça, respondeu Félix empalidecendo involuntariamente, eu tenho e trago comigo documentos que esclarecem bastante o meu proceder; por eles se pode ver em que tempo fui contrair essa dívida na mesma casa que, com a que eu administrava, se ia de sociedade empenhar na fatal empresa; neles estão marcados, com a mesma data das letras que assinei, todos e ainda os mais minuciosos esclarecimentos a respeito das embarcações enviadas à costa da África. E de mais, senhor, conto a meu favor honroso procedimento de longos anos de serviço!... ninguém poderá fazer-me a injustiça de crer que enriqueço, fazendo a desgraça da sua casa!...

-Não se lhe disse isso, senhor, tornou Hugo; mas eu creio que no estado em que me vejo, deve-se-me tolerar uma queixa!

-Oh! perdão! perdão, Sr. Hugo de Mendonça!

-Está bem; está bem, Félix... deixa-me os papéis que me sentenciam a miséria.

-Ei-los aqui, senhor.

-Félix entregou a Hugo de Mendonça um pequeno maço de papéis, e alguns momentos depois retirou-se abatido e triste, como viera.

O negociante acompanhou com vistas perscrutadoras o seu guarda-livros até vê-lo desaparecer.

No pensamento de Hugo desenhava-se, ao pé da lembrança de seu infortúnio, uma dúvida que o fazia vacilar muito.

A história, que lhe contara Félix, tinha um não sei quê de fabuloso... seria Hugo vítima de uma trama infernal?... deveria o seu guarda-livros levantar-se rico e feliz sobre a sua miséria?...

Mas, ao mesmo tempo que tais idéias surgiam-lhe na alma, Hugo lembrava-se de que Félix havia sido um caixeiro exemplar por sua honra e fidelidade; e a vida inteira do mancebo sem nenhuma mancha, sem a mais leve nódoa, fazia estremecer o negociante arruinado diante da imagem da calúnia.

Enfim, ele começou a examinar os papéis; tudo estava em ordem... tudo cuidadosa e miudamente documentado... e ainda um novo golpe vinha cair sobre Hugo de Mendonça; ele era devedor de grande quantia ao mesmo homem, que, poucos dias antes, lhe viera pedir a mão de sua filha, e fora por ela não aceito!...

Horas terríveis se passaram então...

Só, sem nenhum objeto que o distraísse, Hugo de Mendonça examinou os seus livros, as suas contas, os seus papéis; pensou em tudo... lembrou-se de sua mãe e de sua filha; e, quando ao voltar a página de um livro, ou ao combinar um novo pensamento, sentia entrever uma esperança; arquejava imediatamente depois; porque nessa mesma página do livro, e na reflexão desse mesmo pensamento, ele esbarrava sempre com a idéia fria, horrível, geladora -impossível!...

Impossível! -palavra fatal, que na vida moral do homem significa o perdimento de toda a esperança... isto é, a morte do coração!... noite perpétua e escuríssima ainda no meio dos mais belos dias!...

Oh! o negociante hábil e honrado, que sente desmoronar-se sua casa, apesar de seus desesperados esforços... que não tem mais uma única probabilidade a seu favor, uma simples e fraca tábua de salvação a que se agarre, sofre muito... muito... terrivelmente... parece que não é possível sofrer mais; e, todavia, Hugo era despedaçado ainda por dobradas angústias; porque Hugo era pai...

Quando ele se lembrava de sua filha, o que sucedia a todos os instantes; quando sentia o ruído de suas pisadas... quando ouvia o som de sua voz doce e meiga, e pensava que ela tão linda, tão mimosa, tão acostumada aos regalos que se gozam no seio da abundância, ia cair nos emagrecidos braços da pobreza, experimentar privações, e...

Não, não se compreende assim tão facilmente essa dor indizível, que vem do fundo da alma... do âmago do coração, queimando-o devagar e cruelmente, como uma língua de ferro em brasa!... é preciso, para bem compreendê-la, ser pai, e ter visto nascer e ir crescendo uma criancinha, que se adora como a pupila dos próprios olhos... uma menina bela... filha da mulher que mais se amou no mundo, que com essa mulher se parece, e que vai crescendo debaixo das vistas desveladas dele mesmo, como um lindo arbustinho sob os cuidados de vigilante jardineiro... que, enfim, já é moça encantadora e virtuosa, que se sonha, que se conta fazer venturosa, e que se vê de repente tombar na miséria!...

. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

Chegaram as horas do jantar.

Hugo de Mendonça, querendo ainda esconder à sua mãe e filha a desgraça que sobre eles todos caíra, foi sentar-se à mesa, fingindo-se alegre e sossegado.

Passados alguns momentos, porém, quando levava aos lábios um cálix de vinho, fitou os olhos em Honorina... embebeu-os no rosto docemente pálido daquele anjo de beleza, que em breve seria mártir... e, como para abençoá-la, deixou cair o cálix da mão... e, não podendo mais suster-se, atirou-se chorando sobre a filha, a quem abraçou com violenta efusão de ternura.

Era impossível ocultar por mais tempo o triste segredo: tudo foi revelado.

Meia hora depois, Honorina estava ainda nos braços de seu pai, molhando suas faces com as lágrimas que dos olhos dele corriam, animando-o, e chorando também.

-Era de prever! disse Ema finalmente; uma grande desgraça tinha de vir sobre nós, pois que havia desaparecido a cruz da família!... sete anos se passaram... mas ei-la!... eis a desgraça... irremediável!!!

-Minha mãe!...

-É preciso vender tudo, Hugo; é necessário pagar essas dívidas com os teus, com os meus, com os bens de tua filha...

-Oh!... é a miséria para vós!...

-E a riqueza para ele!... embora... não se há de tocar por modo algum na herança do infame!...

-Minha avó, por que falar assim?!...

-Pois não é ele quem tem culpa de tudo isto?... ele!... esse Lauro!...

E o rosto da velha tomou uma expressão terrível de ódio e de vingança; ela ergueu sua mão trêmula, e com voz forte exclamou:

-Maldito!... maldito!... maldito seja o miserável!...

Nesse momento um escravo entrou na sala e entregou a Hugo uma carta, que acabava de chegar. O negociante a abriu imediatamente e leu a assinatura.

-Lauro!... disse ele.

-Lauro?!... exclamaram as duas senhoras.

Hugo de Mendonça leu alto o que continha a carta.

«Meu tio. Recebi a carta, em que V. M. rejeita a doação que fiz à minha prima de herança que me coube pela morte de meu pai; e de novo me convida para ir receber o que me pertence. Pois bem, meu tio, somos ambos teimosos; mas agora preciso é que também cedamos ambos, e transijamos em alguma coisa. Eu conto demonstrar, em breve, que me caluniaram, os que me denunciaram como perpetrador do furto da cruz da família; e, pois, poderei cedo entrar com o rosto descoberto na casa de meus pais; em conseqüência eu proponho a V. M. o meu casamento com minha prima Honorina, de quem tenho recebido as mais lisonjeiras notícias; se isso lhe for agradável, exijo, como condição, que V. M. empregue todo o produto da minha herança no desempenho da casa, que, segundo me informam, meu avô deixou em difíceis conjunturas: o crédito do nome, que eu já tive, e que ainda terei, deve ser sustentado por todos nós.

Cidade da Bahia, setembro... de 1844.

Lauro.»

Depois da leitura desta carta reinou profundo silêncio durante alguns minutos.

Ema havia primeiro pensado que, empregando-se a herança de Lauro, vencer-se-iam as maiores dificuldades com que lutava a casa. mas para logo abafou esse pensamento, porque; teimosa em tudo, e sempre inabalável em todos os seus juízos, ninguém a fazia crer que podia não ter sido Lauro o roubador da cruz da família; e ela jamais consentiria em sacrificar Honorina a um homem sem honra.

Hugo de Mendonça achava a proposição muito conveniente; por sua vez, porém, recuava ante a idéia de negociar com o coração de sua filha.

Honorina tremia, pensando em seu pai e no moço loiro.

Depois de muito tempo de penoso silêncio, Ema falou com voz grave e firme:

-Não; de modo nenhum.

E Hugo de Mendonça, com acento ainda mais firme, com o tom do homem absolutamente decidido, disse:

-Minha mãe, a esta carta só uma pessoa deve com toda liberdade responder: o sim ou o não, só dela partirá. Honorina, tens a tarde, e a noite de hoje, e o dia de amanhã para pensar; e nós teremos a noite do dia que se vai seguir para receber tua resposta terminante e livre.

Honorina meditando

A solidão é o espaço encantado, onde o espírito se derrama livremente...

Passa-se nela longas horas em uma doce embriaguez de reflexões, engolfado em místico e jamais interrompido silêncio... nulificam-se aí os sentidos com a mais completa indiferença a tudo que os rodeia... não se vê o que existe a dois palmos dos olhos... não se ouve a avezinha que modula na árvore mais próxima... não se sente a aurora que principia a romper, nem as trevas que começam a difundir-se; está levantada uma barreira entre o mundo e a alma; e, mais que nunca dona de si própria, ela rumina o passado... reflete sobre o presente... e sonha de ordinário com o futuro...

Oh!... então é um milagre, quando os lábios se sorriem, a não ser com amarga ironia!... porque também, para dizer a verdade, o homem tem na sua vida tão poucas coisas de que sorrir-se alegremente!...

Então se está quase sempre ou sempre sob o domínio da melancolia.

Mas esse estado não se parece nada com o desgosto de si mesmo, que, como o castigo de Deus, enche de fel o coração do mau.

Esse estado é o que convém à imaginação brilhante, que se sente enjoada e se vinga do mundo de gelo e de cifras, indo, livre dos grilhões da sociedade, derreter-se em arabescos de fogo...

É o fecundo sonhar do poeta...

É não dormir, e não velar; é um viver entre a vigília e o sono, que se assemelha à hora do crepúsculo, que não é dia nem noite.

A natureza parece haver criado aqui e ali sítios moldados a esse inefável gozo de ilusões, como altares erguidos ao espírito no templo da solidão.

E os homens nisso, como em tudo mais, têm pretendido com a arte arremedar as obras inimitáveis do Senhor.

No jardim da casa ocupada por Hugo de Mendonça se encontrava um desses lugares silenciosos e melancólicos, que convidam a meditar.

As pequenas salas que davam para os terraços levantados aos lados do pórtico singelo da rua solitária, se escondiam cercadas por grupos de frondosas árvores, abrindo para o interior do jardim duas janelas, defronte de cada uma das quais outras tantas palmeiras derramavam seus ramos arqueados.

Pois que essa rua é ainda agora mesmo muito pouco freqüentada; em certas horas do dia reinava aí silêncio profundo... solidão completa... e então as pequenas salas desabitadas e sombrias, onde chegava apenas o gemer das ondas e o ciciar das palmeiras, tinham inexplicável encanto.

Honorina, já naturalmente melancólica e contemplativa, e escrava ainda mais do terno segredo de seu amor, desde que viera com sua família habitar a elegante casa da Rua da Glória, se aprazia em ir passar as últimas horas do dia naquela das salas que ficava do lado do mar.

Hugo, respeitando os inocentes desejos de sua filha, não só deixou sempre que ela fosse na companhia de Lúcia passar as tardes na sala predileta, como fê-la mobiliar com simplicidade e gosto; de modo que, ao aproximar-se a hora do crepúsculo, Honorina e Lúcia dirigiam-se para os terraços; e, enquanto esta descansava à sombra das palmeiras, aquela ia, em completa liberdade, pensar no seu amor.

Era, portanto, aí que Honorina dividia os seus pensamentos e suspiros pelo moço loiro e pela amiga de seu peito; e era nesse lugar, enfim, que um dia, repassada de angústia, deveria vir chorar a desgraça de seu pai... e a posição melindrosa em que tinha de ver-se colocada.

. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

Não havia chegado ainda a seu termo o dia em que Hugo de Mendonça recebera a notícia de seu inesperado infortúnio, e logo depois a carta de Lauro.

O sol começava a moderar o calor de seus raios; uma aragem branda e suave vinha soprando docemente.

Honorina e Lúcia encaminharam-se para os terraços da rua solitária; e, como sempre, Lúcia ficou sentada à sombra de uma palmeira, e Honorina subiu para a sala do lado do mar.

E ela meditava...

Não lhe restava a menor dúvida... a lei do destino, a força das circunstâncias a tinha colocado entre dois terríveis extremos!... dois pensamentos deviam ser medidos... um de dois tormentos escolhido:

Ou a miséria de seu pai.

Ou o sacrifício de seu amor.

De um lado estava um ancião respeitável, que a carregara pequenina; que depois de lhe ter dado a existência, lhe dera ainda tudo mais que pode dar um extremoso amor de pai; que, nas tristes circunstâncias em que se achava, não ousava oferecer um conselho; não queria o menor sacrifício; não desenhava aos olhos dela o painel da miséria, que podia ser para longe lançada com uma única palavra... enfim, de um lado estava seu pai: seu pai, que ela amava como a mais extremosa das filhas, abatido... magro... desfigurado... enfermo... pedindo compaixão e piedade à sua filha!...

E a filha poderia negar compaixão e piedade a seu pai?...

Mas do outro lado levantava-se um mancebo, nobre, ardente e destemido; um mancebo que lhe salvara a vida... que a amava com paixão desmedida, e que era amado com mais paixão ainda... enfim, do outro lado levantava-se o moço loiro, aflito... silencioso... que ia passando sem deixar uma só queixa... e que ia indo com o desespero no coração... ia indo...

E para onde se vai quando se tem no coração o desespero?!...

E essas duas imagens, a de seu pai, e a do moço loiro, se sucediam em seu espírito uma à outra, três, vinte, cem, mil vezes sempre as mesmas, sempre do mesmo modo; como as ondas do mar repetidas sempre!...

Falava primeiro o amor de seu berço, o amor da infância, o amor que votava àquele, que, pegando-lhe pelas mãozinhas, lhe tinha ensinado a andar... que se sorrira ao seu primeiro sorrir, e chorara de prazer à sua primeira palavra... falava primeiro o amor do pai...

Falava depois o primeiro amor de seu virginal coração... oh! o primeiro amor!... o eterno sentimento, que ainda quando se não realizam seus anelos, deixa, papa jamais extinguir-se, seu doce e fragrante aroma impregnado na alma!... o primeiro amor! almo desperto do sono da inocência! chama abrasadora da juventude... pura, como a juventude; tão sem vil ambição como a juventude; bela e cheia de esperança, como ainda a juventude!... o primeiro amor! e falava então o amor do moço loiro...

E depois ela media suas próprias forças...

Ardente e devotada achava-se capaz de ser mártir... não hesitaria em sacrificar pela felicidade de seu pai a sua própria vida... tudo... tudo... oh! mas aquilo que ela dizia ser a única luz que pode tornar brilhante o caminho da vida para a mulher?...

E apenas com dezesseis anos, tão moça ainda! ela olhava para a vasta extensão que lhe cumpria atravessar no mundo, e tudo se lhe antolhava feio, perigoso, escuro, horrível... e não longe, pronto a correr para seu lado, estava um moço loiro, que, com lâmpada mágica na mão, mudando a face de toda essa cena amedrontadora, prometia levá-la por um caminho de flores, risonha e feliz até o fim da viagem.

Afora a imagem do moço loiro, não via mais nada no campo da vida... tudo era negro... e feio... apenas na outra extremidade do vasto campo podia descobrir a pálida figura do descanso assentada na beira de uma cova...

Oh!... se ao menos lhe dessem a certeza de não padecer muito... de morrer cedo!...

E de novo lembrava-se de seu pai... não; nunca de seus lábios sairia a sentença da desgraça dele... mas o sacrifício de seu amor?!... era muito... muito!...

E Deus não podia amaldiçoá-la por vê-la hesitando; e o mundo não tinha o direito de chamá-la ingrata; porque Deus está vendo a sorte que os homens prescrevem à mulher; e o mundo deve, antes de tudo, corar de si próprio!!!...

A verdade é esta: a mulher só tem na vida o amor; sacrificar seu único bem é perder tudo... é deixar-se morrer de um modo cruel.

Porque, ou seja vício de educação, ou de qual causa estimarem dar, a sorte da mulher é apoucada e mesquinha.

Na divisão dos direitos e deveres coube-lhe um papel, sem dúvida respeitável e nobre debaixo de um ponto de vista; porém, em tudo mais secundário e quimérico, a mulher chega a ser mãe de família... e mais nada.

Primeiro, felizmente adormecida no doce cativeiro de seus pais, acorda com um gemido para passar ao de seu tutor; ou se sorri, recebendo as cadeias que lhe lança seu marido, sujeita desde que nasce... sujeita até que morre, tem sempre ao pé de si um homem para pensar e desejar por ela; para, pelo prazer dele, medir o seu... é uma criança, que sempre se vigia... um cego, que se leva pela mão; ou, ao muito, quando consegue ser amada, uma escrava, que se prende em um altar, uma divindade que se tem em ferros, e a quem se dá o nome de senhora!...

E a mulher há de por força sujeitar-se à lei, que os homens lhe têm imposto: se alguma tentasse reaver... exercer direitos muito nobres e legítimos, que Deus lhe concedeu, e o mundo lhe arranca; se alguma ousasse dizer -eu sou livre-, teria horríveis tempestades a assoberbar, e, por fim, sucumbiria; porque o mundo entende que só há dois caminhos para a mulher: o da escravidão e o da vergonha.

E ainda quando ela, sentindo-se insultada, gritasse -calúnia! calúnia!... o mundo rir-se-ia... e responderia sempre -vergonha!... vergonha!... porque somente o homem tem o direito de fazer face à opinião dos outros... e a mulher não pode ser senão aquilo que o mundo quiser que ela seja...

E, apertada no estreito círculo dos deveres domésticos, a mulher não terá nunca outras honras, outra glória a desejar, senão aquelas que se devem à fidelidade da esposa, à extremosa maternidade, às virtudes domésticas enfim; e, quando uma desgraça cair sobre ela e sobre a sua família, ela, a quem se não permite outro cuidado, outro culto, que não seja o de sua família, e o de si, isto é, ela que está apertada no estreito círculo dos deveres domésticos, é mais que o homem lamentável.

Porque o homem tem o comércio... as armas... a política... muito mais ainda... e, finalmente, a mulher.

E a mulher tem unicamente o homem.

Ora, se ele, que pode ser distraído por tantos interesses diversos, no tão vasto campo que se lhe abre para dar pasto a seu espírito, ainda assim é digno de lástima quando desposa uma mulher que não ama, ela, se abafa uma paixão em que se esperançava e liga sua vida inteira a um estranho, a quem jura obediência e amor eterno, consuma o maior de todos os sacrifícios, apaga assim a só luz, que lhe pode tornar brilhante o caminho da vida.

Por conseqüência, ninguém deve exigir de uma mulher o sacrifício de seu amor.

Porque a única esperança que ela pode ter na vida é amar e ser amada.

Porque o único direito que se lhe concede no mundo é (às vezes) o de aceitar ou não um noivo.

Porque é justo que ela escolha entre todas as cadeias, que lhe oferecem, aquelas que menos pesadas julgue, e mais bem douradas pareçam a seus olhos.

Porque, enfim, é necessário que a mulher ame a seu marido, para que possa ser esposa feliz e mãe extremosa.

E, sem o querer, sem o pensar, Hugo de Mendonça pede à sua filha o sacrifício de seu amor tão terno e tão doce; pois, ainda que ele tenho dito -responde livremente- não pode dar-se verdadeira liberdade em Honorina, que a todo o momento vê diante de seus olhos a imagem da pobreza nua... desgrenhada... dolorosa... estendendo emagrecidos braços para prender entre eles a seu pai.

E, portanto, terá Honorina de ser uma nova mártir, que vá aumentar o número já tão crescido dessas outras nobres mártires, que aí vão passando pela vida... pálidas... silenciosas... e que muita gente as julga felizes; porque elas, sempre generosas, sabem abafar seus suspiros... engolir seus gemidos... e esconder seus tormentos de um mundo egoísta e sem piedade, no qual a mulher é quase sempre uma vítima!...

Mas a meditação da moça foi interrompida por Lúcia, que entrou na sala.

-Sr.ª D. Honorina! disse ela.

-O que é, mãe Lúcia?... respondeu a jovem levantando a cabeça, que tinha pousado sobre uma mão.

-Um pajem, que não conheci, chamou-me da porta do jardim, e, dizendo-se escravo do Sr. Jorge, entregou-me esta carta, que da parte da Sr.ª D. Raquel lhe é dirigida.

-Oh!... a minha Raquel!... dá-ma... mas esse pajem, mãe Lúcia?...

-Retirou-se imediatamente.

-Embora... é uma carta da minha Raquel... que virá talvez animar-me um pouco.

Honorina ficou outra vez só e abriu a carta; havia, além de um curto bilhete, algumas páginas escritas em separado...

A moça leu primeiramente o bilhete com violenta comoção.

«Honorina. Eu sei tudo! a casa do Sr. Hugo de Mendonça vai desmoronar-se... e um homem se oferece para sustê-la: a esperança de teu pai está toda concentrada em ti... pende de teus lábios; e tu salvarás o autor de teus dias, e a família do nome que tens, aceitando a proposição de teu primo. Oh!... e que filha resistiria ao aspecto da desgraça de um pai?!... se eu fosse rico!... se eu fosse rico, iria de joelhos despejar meus tesouros a teus pés; mas tão pobre!... que importa que meu amor seja ardente e desmedido? de que vale, de que serve o amor de um pobre?... é, portanto, preciso esquecer... apagar para sempre a memória do passado; mas, Honorina, se esta minha paixão tão desgraçada... se esta, que eu morro, morte do coração pode merecer alguma piedade, aceita, recebe, recebe essas páginas do livro de minha alma!!!... a derradeira esperança que me resta, é que elas serão lidas por teus olhos, e finalmente, queimando-as junto de ti, vê-las-ás tornadas em cinza feia e negra... negra, como o futuro do pobre... como o meu futuro! aceita-as, pois, e adeus!... sê feliz... esquece-me...»

Terminando a leitura do bilhete, a moça misturou duas lágrimas brilhantes com um sorriso acerbo, cheio do fel da ironia, e murmurou tristemente:

-Como todos estes homens, a quem eu amo, desconhecem o meu coração!... como é que meu pai pôde dizer-me -falarás livremente!- como é que este homem animou-se a escrever-me -de que vale, de que serve o amor de um pobre!...- então este... este me compreende ainda menos do que meu pai!...

E depois começou a ler as páginas do livro da alma do moço loiro.