Selecciona una palabra y presiona la tecla d para obtener su definición.

A volta pareceu-lhe mais longa do que a ida ao Rosário; quase que não falou por toda a viagem, estalava de impaciência por estar só, inteiramente só, para pensar à vontade, conversar consigo mesmo e convencer-se de que era um espírito superior àquelas pequenas misérias sociais.

Logo que chegou a casa, foi direto ao seu quarto, fechou-se por dentro, com um ruído áspero de fechadura que funciona poucas vezes. Fazia-se noite. Ele parou junto à mesa, no escuro, acendeu um fósforo, apagou-se; segundo, terceiro, o quarto ardeu bem, porém Raimundo ficou a olhar abstrato para a flama azul, torcendo entre os dedos, automaticamente, o pedacinho de madeira, que se queimou até chamuscar-lhe as unhas; e ficou às escuras, por longo tempo, cismando, perdido na sua preocupação. É que, de raciocínio em raciocínio, chegara ao âmago do fato. «Devia ceder ou lutar?...» Mas o seu espírito nada resolvia; acuava como um cavalo defronte de um abismo. Ele metia as esporas; era tudo inútil!

-Diabo! exclamou, voltando a si.

E acendeu a vela. Assentou-se à escrivaninha, sem tirar sequer o chapéu, e pôs-se a pensar, sacudindo nervosamente a perna. Tomou distraído a pena, embebeu-a repetidas vezes no tinteiro, e rabiscou as margens dos jornais que lhe estavam mais próximos. Desenhou, com uma pachorra inconsciente, um sino-salomão, e, como se estivesse prestando sumo cuidado ao seu desenho, emendou-o, corrigiu-se, fez um novo igual ao primeiro, outro, mais outro, encheu com eles toda uma margem de jornal.

-Diabo! exclamou novamente, no desespero de quem não encontra a solução de um problema.

E pôs-se a fitar, com a máxima atenção a chama da vela. Depois, tomou um invólucro de cigarros, abandonado sobre a mesa, e começou a quebrar com ele as estalactites da estearina, até que o papel, por muito embebido no combustível, inflamou-se e foi lançado ao chão.

-Diabo!

E repetia insensivelmente as palavras de Manuel: «Recusei-lhe a mão de minha filha, porque o senhor é filho de uma escrava! -O senhor é um homem de cor! -O senhor foi forro à pia, e aqui ninguém o ignora! -O senhor não imagina o que é por cá a prevenção contra os mulatos!...»

-Mulato! E eu que nunca pensara em semelhante coisa!... Podia lembrar-me de tudo, menos disto!...

E acusava-se de frouxo; de não ter dado boas respostas na ocasião; não ter reagido com espírito forte, e provado que Manuel estava em erro e que ele, Raimundo, não ligava a mínima importância a semelhante -futilidade! Assistiam-lhe agora respostas magníficas, verdadeiros raios de lógica, com que fulminaria o adversário. E, argumentando com as réplicas que lhe faltaram então, reformava mentalmente todo o caso, dando a si próprio um novo papel, tão brilhante e enérgico quão fraco e passivo fora o primeiro.

Afastou a cadeira da secretária, debruçou-se sobre esta e escondeu o rosto nos braços dobrados. Assim levou quase uma hora; quando levantou de novo a cabeça, reparou, pela primeira vez, numa litografia de São José, que sempre estivera ali na parede do seu quarto. Raimundo examinou minuciosamente o santo com o seu colorido vivo, o menino Jesus no braço esquerdo e uma palma na mão direita. Surpreendeu-se de vê-la naquele lugar: em dias de despreocupação nunca dera por ela. E daí, recordou-se de ter visto na Alemanha trabalhar um prelo litográfico dos mais aperfeiçoados; depois pensou nos processos do desenho, nos diversos estilos de artistas seus conhecidos e, afinal, em São José e na religião cristã. E mais: acudiam-lhe agora coisas inteiramente indiferentes: lembrava-se de um homem, vermelho e suado, que ele vira uma semana antes, a conversar sobre Napoleão Bonaparte com um lojista da Rua de Nazaré. Diziam muita asnice; e a imagem do lojista saltava-lhe perfeita à memória -magricela, com uns bigodes compridos, afetando delicadezas de alfaiate de Lisboa. Ouvira-lhe o nome, mas estava na dúvida. «Moreira? Não, não era Moreira!» E procurava mentalmente o nome, com insistência. «Pereira? Não! Nogueira... Era Nogueira!» Este nome trouxe-lhe logo à lembrança uma ocasião em que conversava com Nogueira Penteeiro, e passar na rua uma mulher doida, que levantava as saias para mostrar o corpo. De repente, Raimundo estremeceu, era a idéia que voltava, a idéia primitiva, a idéia capital. Reaparecia; tinha feito uma retirada falsa; ficara à porta do cérebro, espiando para dentro. E ele soltou um suspiro com a presença importuna e vexatória dessa idéia que esperava, pelo seu pensamento, como um polícia espera um criminoso, para o levar preso. E o pensamento de Raimundo remancheava; não queria ir mas a idéia implacável reclamava-o. E o prisioneiro entregou afinal os pulsos.

Ergueu-se da cadeira; bateu vigorosamente uma punhada na mesa, protestando como se alguém lhe falasse:

-Ora sebo! Que diabo tenho eu com isto? O que vim fazer a esta província estúpida, foi tratar dos meus negócios pecuniários! Liquidados -nada mais tenho que fazer aqui! Musco-me! Ponho-me ao fresco! Passem muito bem!

E começou a passear pelo quarto, agitado, a fingir-se muito egoísta com as mãos nas algibeiras das calças monologando:

-Sim! sim! longe daqui não sou forro à pia! o filho da escrava; sou o Doutor Raimundo Jose da Silva, estimado, querido e respeitado! Vou! Por que não?! O que mo impediria?

E parou, tornou a andar, afinal assentou-se na cama, disposto a recolher-se. Despiu o paletó, arremessou o chapéu e o colete.

-Sim! O que mo impediria?...

Ia descalçar a primeira botina, quando espantou-se com a lembrança de Ana Rosa. Uma voz exigente bradava-lhe do coração: «E eu? e eu? e eu?... Esqueceste de mim, ingrato? Pois bem, não quero que vás, ouviste? Não irás! sou eu quem to impedirá!»

E Raimundo, pasmo por não ter, durante tanto tempo, pensado em Ana Rosa, despiu-se com pressa e, como querendo fugir a esta nova idéia, atirou-se de bruços à cama, soluçando.

Às seis horas da manhã ainda havia luz no quarto dele.

No dia seguinte, às duas da tarde, desceu, muito abatido, ao escritório de Manuel e pediu-lhe secamente que apressasse os seus negócios e o despachasse quanto antes, porque não podia demorar-se mais tempo no Maranhão. Precisava partir o mais cedo possível.

-Mas venha cá, doutor, o senhor não me deve guardar ódio por ter eu...

-Ah, certamente, certamente! Nem pensemos nisso! interrompeu Raimundo, procurando desviar a conversa. O senhor tem toda a razão... Vamos ao que importa! Diga-me quando poderei estar desembaraçado?

-Mas não ficou maçado comigo!... Não é verdade? Creia que...

-Ó senhor! Como quer que lhe diga que não? Maçado! Ora essa! por quê? Já nem pensava em tal! Vinha até pedir-lhe um serviço...

-Se estiver em minhas mãos...

-É simples.

E, depois de uma pausa, Raimundo continuou, com a voz um pouco alterada, a despeito do esforço que fazia por afetar tranqüilidade: -Como lhe disse ontem... estava autorizado pela senhora sua filha a pedi-la em casamento; em vista, porém, do que me expôs o senhor a meu respeito, cumpre-me dar à Sr.ª Ana Rosa qualquer explicação. Compreende que não posso retirar-me desta província, assim, sem mais nem menos, estando já empenhado em um compromisso tão melindroso...

-Ah, sim... mas não lhe dê isso cuidado... Arranjarei qualquer desculpa...

-Uma desculpa, justamente! É preciso dar-lhe uma desculpa; e o melhor seria declarar-lhe a verdade. Explique-lhe tudo. Conte-lhe o que se passou entre nós. Ninguém, para isso, está mais no caso que o senhor!...

Manuel coçava a nuca com uma das mãos, enquanto com a outra batia o cabo da caneta entre os dentes, na atitude contrariada de quem toma, à pura força de circunstâncias, interesse numa causa estranha; porém, como Raimundo falasse em mudar de casa, ele atalhou logo.

-Como o senhor quiser... mas a nossa choupana está sempre às suas ordens...

-Bem, concluiu o rapaz, agradecendo o oferecimento com um gesto; posso então contar que o meu amigo se encarrega de explicar tudo à senhora sua filha?

-Pode ficar descansado.

-E quando terei os meus negócios concluídos?

-Antes da chegada do vapor já o senhor estará inteiramente desembaraçado.

-Muito agradecido.

E Raimundo subiu para o seu quarto.

Fazia um grande calor. O céu, todo limpo, com as suas nuvens arredondadas, parecia um vasto tapete azul, onde dormiam enormes cães felpudos e preguiçosos. Raimundo lembrou-se de sair; faltou-lhe o ânimo: afigurava-se-lhe que na rua todos os apontariam, dizendo: «Lá vai o filho da escrava!» Ia abrir a janela e hesitou; sentia um grande tédio, um mal-estar crescente, desde a revelação de Manuel; uma surda indisposição contra tudo e contra todos; naquele momento, irritava-o, por exemplo, a voz aflautada de um quitandeiro, que argumentava, lá embaixo na rua, com um súcio. Abriu o álbum com a intenção de desenhar, mas repeliu-o logo; tomou um livro e leu distraidamente algumas linhas; levantou-se, acendeu um cigarro e passeou a largos passos pelo quarto, com as mãos nas algibeiras.

Em um destes passeios, parou defronte do espelho e mirou-se com muita atenção, procurando descobrir no seu rosto descorado alguma coisa, algum sinal, que denunciasse a raça negra. Observou-se bem, afastando o cabelo das fontes; esticando a pele das faces, examinando as ventas e revistando os dentes; acabou por atirar com o espelho sobre a cômoda, possuído de um tédio imenso e sem fundo.

Sentia uma grande impaciência, porém vaga, sorrateira, sem objeto, um frouxo desejar que o tempo corresse bem depressa e que chegasse um dia, que ele não sabia que dia era; sentia uma vontade indefinida de ir de novo a vila do Rosário, procurar a pobre mãe, a pobre negra, a dedicada escrava de seu pai, e trazê-la em sua companhia, para dizer a todos: «Esta preta idiota, que aqui vêem ao meu braço é minha mãe, e ai daquele que lhe faltar ao respeito!» Depois fugir com ela da pátria, como quem foge de um covil de homens maus e meter-se em qualquer terra, onde ninguém conhecesse a sua história. Mas, de improviso, chegava-lhe Ana Rosa à lembrança, e o infeliz desabava num grande desânimo, vencido e humilhado.

E deixava cair a cabeça na palma das mãos, a soluçar.

Por este tempo, Manuel acabava de expor à filha a necessidade absoluta de não pensar em Raimundo.

-Enfim, dizia de, tu já não és uma criança, e bem podes julgar o que te fica bem e o que te fica mal!... Há por aí muito rapaz decente, de boa família... e nos casos de fazer-te feliz. Vamos! Não quero ver esse rostinho triste!... Deixa estar que mais tarde me agradecerás o bem que agora te faço!...

Ana Rosa, de cabeça baixa, ouvia, aparentemente resignada, as palavras do pai. Confiava em extremo no seu amor e nos juramentos de Raimundo, para recear qualquer obstáculo. Só agora soubera ao certo da procedência de seu primo bastardo, e no entanto, ou fosse porque lhe germinavam ainda no coração os supremos conselhos maternos, ou fosse que o seu amor era dos que a tudo resistem, o caso é que essa história que a tantos arrancara exclamações de desprezo; isso que forneceu assunto a gordas palestras nas portas dos boticários; isso que foi comentado em toda a província, entre risos de escárnio e cuspalhadas de nojo, desde a sala mais pretensiosa, até à quitanda mais pífia; isso que fechou muitas portas a Raimundo e cercou-o de inimigos; isso, essa grande história escandalosa e repugnante para os maranhenses, não alterou, absolutamente nada, o sentimento que Ana Rosa lhe votava. As palavras de Manuel não lhe produziam o menor abalo; ela continuava a estremecer e desejar o mulato com a mesma fé e com o mesmo ardor; tinha lá para si que ele possuía bastante merecimento próprio, bastante atrativo, para ocupar de todo a atenção de quem o observasse, sem ser preciso remontar aos seus antepassados. Estabelecia comparações entre as regalias do amor de Raimundo e as vergonhas que dele pudessem resultar, e concluía que aquelas bem mereciam o sacrifício destas. Amava-o -eis tudo.

Manuel, depois dos seus conselhos, passou a fazer considerações desfavoráveis a respeito das qualidades morais do mulato, e com isso apenas conseguiu estimular o desejo da filha, juntando aos atrativos do belo rapaz mais um, não menos poderoso o da proibição. Enquanto ele, entestando com a inadmissível hipótese de um casamento tão desastrado, desenrolava um quadro assustador, profetizando, com as negras cores da sua experiência e com febre do seu amor de pai, um futuro de humilhações e arrependimentos chegando até a ameáça-la de retirar-lhe a bênção; Ana Rosa, distraída, olhando para um só ponto respondia maquinalmente: «Sim... Não... Decerto!... Está visto!..» sem prestar a mínima atenção ao que ele discreteava, porque o próprio objeto discutido lhe arredava dali o pensamento, trazendo-lhe por associação de idéias, os seus devaneios favoritos nos quais se sonhava ao lado de Raimundo, em plena felicidade conjugal.

-Enfim, disse Manuel, procurando encerrar o discurso e satisfeito pelo ar atento e resignado da filha; nada temos que recear... Ele muda-se por estes dias e parte definitivamente no primeiro vapor para o Sul!

Esta notícia, dada assim à queima-roupa e em tom firme, despertou-a com violência.

-Hein? como? parte? muda-se? por quê?...

E fitou o pai, sobressaltada.

-É, ele muda-se... Não quer esperar aqui o dia da viagem...

-Mas por quê, senhores?...

O negociante viu-se num grande embaraço; não lhe convinha dizer abertamente a verdade; dizer que Raimundo se retirava, para fugir ao tormento de ver todos os dias Ana Rosa, sem esperança de possuí-la. E, não atinando com uma resposta, com uma saída, o pobre homem balbuciava:

-É! o rapaz maçou-se com o que eu lhe disse, e, como é senhor do seu nariz, muda-se! Ora essa! Pensas talvez que ele se sinta muito com isso?... Estás enganadinha, filha! Foi-me muito lampeiro ao escritório e pediu-me que o desculpasse contigo. «Que desses o dito por não não dito! Que ele precisava mudar de ares!... Que se aborrecia muito cá pela província! pela aldeola -como ele a chama!»

-Mas por que não veio ele mesmo entender-se comigo?...

-Ora, filha! bem se vê que não conheces o Raimundo... Pois ele é lá homem para essas coisas?... Um tipo que não liga a menor importância às coisas mais respeitáveis! Um ateu que não acredita em nada! Até ficou mais satisfeito depois da minha recusa! Só parece que estava morrendo por um pretexto para desfazer o seu compromisso contigo!

-Percebo! exclamou Ana Rosa, transformando-se e cobrindo o rosto com as mãos. É que não me ama! Nunca me amou, o miserável!

E abriu a chorar.

-Hein?! Olá! Então que quer isto dizer... Ora, ora os meus pecados! Ai, que isto de mulheres não há quem as entenda!

Ana Rosa fugiu para o seu quarto, nervosa, soluçando, e atirou-se de bruços na rede.

O pai seguiu-a assustado:

-Então, minha filha, que é isto?...

-Diabo da peste!

E a infeliz soluçava.

-Então, que tolice a tua, Anica! Olha, minha filha! escuta!

-Não quero escutar nada! Diga-lhe que pode ir quando entender! Pode ir, que até é favor!

-Grande coisa perdes, na verdade! Ora vamos! Nada de asneiras!

Ana Rosa continuava a soluçar, cada vez mais aflita, com o rosto escondido nos braços; as mangas do seu vestido e os travesseiros da rede estavam já ensopados das lágrimas. Assim levou algum tempo, sem responder ao que lhe dizia o pai, de repente suspendeu de chorar, ergueu a cabeça e soltou um gemido rápido e agudo. Era o histérico.

-Diabo! resmungou Manuel, coçando a nuca atrapalhado. E chamou logo pelos de casa: D. Maria Bárbara! Brígida! Mônica!

O aposento encheu-se imediatamente.

O cônego Diogo, que ficara na saleta, à espera daquela conferência de Manuel com a filha, entrou também, atraído pelos gritos da afilhada.

-Hoc opus hic labor est!

Nessa ocasião, Raimundo, no seu quarto, passava pelo sono, estendido sobre um divã. Sonhava que fugia com Ana Rosa e que, em caminho, eram, os dois, perseguidos por três quilombolas furiosos armados de facão. Um pesadelo. Raimundo queria correr e não podia: os pés enterravam-se-lhe no solo, como no tijuco, e Ana Rosa pesava como se fosse de chumbo. Os pretos aproximavam-se, dardejando os ferros, iam alcançá-los. O rapaz suava de medo; estava imóvel, sem ação, com a língua presa.

Os gritos reais da histérica coincidiam com os gritos que Ana Rosa, no sonho, soltava, ferida pelos mocambeiros. Com o esforço, Raimundo pulou do divã e olhou estremunhado em torno de si; depois, deitou a correr para a varanda.

O cônego, ouvindo-lhe os passos, veio sair-lhe ao encontro.

-Attendite!

-Ora, até que enfim nos encontramos! disse-lhe Raimundo.

-Psiu! fez o cônego. Ela está sossegando agora! Não vá lá, que lhe pode voltar o ataque!... O senhor é o causador de tudo isto!...

-Preciso dar-lhe duas palavras incontinenti, senhor cônego!

-Homem, deixe isso para outra ocasião... Não vê o alvoroço em que está a casa?...

-Se lhe digo que preciso falar-lhe incontinenti!... Ande! Vamos ao meu quarto!

-Que diabo tem o senhor que me dizer?!

-Quero tomar alguns esclarecimentos sobre São Brás, percebe?

-Horresco referens!...

E Raimundo, com um empurrão, meteu-se, mais o cônego, no quarto, e fechou-se por dentro.

-Vá dizer-me quem matou meu pai! exclamou, ferrando-lhe o olhar.

-Sei cá!

E o cônego empalideceu. Mas estava a prumo, defronte do outro.

Cruzou os braços.

-Que quer isto dizer?...

-Quer dizer que descobri afinal o assassino de meu pai e posso vingar-me no mesmo instante!

-Mas isto é uma violência! tartamudeou o padre, com a voz sufocada pela comoção.

E, fazendo um esforço sobre si, acrescentou mais seguro:

-Muito bem senhor doutor Raimundo! muito bem! Está procedendo admiravelmente! É então por esta forma que me pede notícias de seu pai? é este o modo pelo qual me agradece a amizade fiel, que dediquei noutro tempo ao pobre homem? Fui o seu único amigo, o seu amparo, a sua derradeira consolação! e é um filho dele que vem agora, depois de vinte anos, ameaçar um pobre velho, que foi sempre respeitado por todos! Parece que só esperavam que me embranquecessem de todo os cabelos, para insultarem esta batina, que foi sempre recebida de chapéu na mão! Ah, muito bem! muito bem! Era preciso viver setenta anos para ver isto! muito bem! Quer vingar-se? Pois vingue-se! Que lho impede?! Sou eu o criminoso? Pois venha o carrasco! Não me defenderei, mesmo porque já me faltam as forças para isso!... Então! que faz que não se mexe?!

Raimundo, com efeito, estava imóvel. «Ter-se-ia enganado?...» À vista do aspecto sereno do cônego chegara a duvidar das conclusões dos seus raciocínios. «Seria crível que aquele velho, tão brando, que só respirava religião e coisas santas, fosse o autor de um crime abominável?...» E, sem saber o que decidir, atirou-se a uma cadeira, fechando a cabeça nas mãos.

O padre compreendeu que ganhara terreno e prosseguiu, na sua voz untuosa e resignada:

-É, o senhor deve ter razão!... Fui eu naturalmente o assassino de seu pai!... É um rasgo generoso e justo de sua parte desmascarar-me e cobrir-me de ultrajes, aqui nesta casa, onde sempre me beijaram a mão. O senhor está no seu direito! Olhe! agarre aquela bengala e bata-me com ela! Está moço, pode fazê-lo! está no vigor dos seus vinte e cinco anos! Vamos! Fustigue este pobre velho indefeso! castigue este corpo decrépito, que já não presta para nada! Então! bata sem receio que ninguém o saberá! Pode ficar descansado que não gritarei -tenho defronte dos olhos a imagem resignada de Cristo, que sofreu muito mais!

E o cônego Diogo, com os braços e olhos erguidos para cima, caiu de joelhos e disse entre dentes, soluçando:

-Ó Deus misericordioso! Tu, que tanto padeceste por nós, lança um olhar de bondade sobre esta pobre criatura desvairada! compadece-te da pobre alma pecadora, levada só pela paixão mundana e cega! Não deixes que Satanás se apodere da mísera. Salva-a, Senhor! perdoa-lhe tudo, como perdoaste aos teus algozes! Graça para ela! eu te suplico, graça, meu divino Senhor e Pai!

E o cônego ficou em êxtase.

-Levante-se, observou-lhe Raimundo, aborrecido. Deixe-se disso! Se lhe fiz uma injustiça, desculpe. Pode ir descansado, que não o perseguirei. Vá!

Diogo ergueu-se, e pousou a mão no ombro do moço.

-Perdôo-te tudo, disse; compreendo perfeitamente o teu estado de excitação. Sei o que se passou! Mas consola-te, meu filho, que Deus é grande, e só no seu amor consiste a verdadeira paz e felicidade!

E saiu de cabeça baixa, o ar humilde e contrito; mas, ao descer a escada para a rua, resmungava:

-Deixa estar, que mas pagarás, meu cabrinha apistolado!...

Sete dias depois, morava Raimundo em uma das suas casinhas da Rua de São Pantaleão.

Vivia aborrecido; vivia exclusivamente a esperar o dia da viagem para a Corte. Nunca a província lhe parecera tão enfadonha, nem o seu isolamento tão pesado e tão triste. Não saía quase nunca à rua; não procurava pessoa alguma, nem tampouco ninguém o visitava. Dizia-se por aí que ele estava de cama por uma bonita sova, que lhe mandara dar o pai da namorada. «Era bem feito! Para se não fazer apresentado com uma menina branca!»

Os maldizentes, empenhados na vida dele, como se Raimundo fosse um político de quem dependesse a salvação ou a desgraça da província, afiançavam que alguma peça estava o tratante urdindo em silêncio.

-Acreditem, exclamava um dos tais, a um grupo, que todos estes sujeitos, que se fazem muito santarrões e de quem a boca do mundo nada tem que dizer, são os mais perigosos! Eu, cá por mim, não me fio de ninguém! quando vejo um tipo, julgo logo mal dele; se o traste prega-me alguma, não me espanta, porque já a esperava!

-E se não prega?

-Fico na certeza de que muita coisa se faz às caladas neste Maranhão! Mas 1á acreditar em virtudes de aventureiros, isso é que nem à sétima facada!

Entretanto, Raimundo levava uma vida de degradado, sem amigos e sem carinhos de espécie alguma. No seu desterro tinha por companhia única uma preta velha, que se encarregara de servi-lo; magra, feia, supersticiosa, arrastando-se, a coxear, pela varanda e pelos quartos desertos, fumando um cachimbo insuportável, e sempre a falar sozinha, a mastigar monólogos intermináveis.

E essa solidão enchia-o de tédio e de saudades pelas boas horas alegres, que passava dantes ao lado de Ana Rosa, aquecido ao calor benéfico da família. Ultimamente muito pouco se dava ao estudo; estava desleixado, preguiçoso, vivia para as suas preocupações recentes. Ficava horas esquecido à mesa, depois do almoço ou do jantar, olhando vagamente para o seu quintal sem plantas, com os pés cruzados, a cabeça molemente caída sobre o peito, a fumar cigarros um atrás do outro, num aborrecimento invencível.

Tomara embirrância por tudo e emagrecia.

À noite, acendia-se o candeeiro de querosene, e Raimundo assentava-se junto à secretária, lendo distraído algum romance ou revendo as gravuras de algum jornal ilustrado. A um canto da varanda resmungava a criada, cosicando trapos. O rapaz sentia um fastio de morte, tinha espreguiçamentos de febre, moleza geral no corpo; não podia entrar com a cozinha da preta -era uma coisa muito mal amanhada- tinha nojo de beber pelos copos mal lavados; banhava com repugnância o rosto na bacia barrada de gordura. «Ó senhores! Que vida!» E ficava cada vez mais nervoso e frenético; esperava o dia da viagem contando os minutos; porém, a despeito de tudo, sentia uma surda e funda vontade de não ir, uma íntima esperança de ser ainda legitimamente amado por Ana Rosa.

-Impossível!... concluía sempre, fazendo-se forte. Deixemo-nos de asneiras!

E pensava no que não estaria ela julgando dele; no juízo que formaria do seu caráter. Nunca mais tiveram ocasião de trocar uma palavra ou um olhar; apenas recebia notícias de Ana Rosa por aquela idiota, que não as sabia dar. «Ora! também de que servia afligir-se daquele modo? o melhor era deixar que as coisas levassem o seu destino natural! Não podia, nem devia, por forma alguma, casar com semelhante mulher, para que, pois, pensar ainda nisso?...»

Em casa de Manuel as coisas igualmente não corriam lá muito bem. Ana Rosa curtia densas tristezas, mal dissimuladas aos olhos do pai, da avó e do cônego. A pobre moça esforçava-se por esquecer o desleal amante que a abandonara covardemente. E, na sua decepção, imaginava vinganças irrefletidas; tinha desejos absurdos: queria casar-se por aqueles dias, arranjar um marido qualquer, antes que Raimundo se retirasse da província; desejava provar-lhe que ela não ligava a menor importância ao caso e que se entregaria com prazer a outro homem. Pensou no Dias e esteve quase a falar-lhe.

Manuel, soprado pelo compadre, indispunha mais e mais o ânimo da filha contra o mulato; contando-lhe a respeito deste, fatos revoltantes, inventados pelo cônego; fazia-se agora muito meigo ao lado dela, submetia-se aos seus caprichos, às suas vontadezinhas de menina doente, com a compungida solicitude de um bom enfermeiro.

Ana Rosa abanava a cabeça, resignada. O fato provado de que Raimundo consentia, sem resistência e talvez por gosto, em abandoná-la, ao mesmo tempo que aumentava nela o desejo de reconquistá-lo e possuí-lo, dava a seu orgulho bastante energia para esconder de todos o seu amor Supunha-se vítima de uma decepção; julgava o seu amante mais apaixonado e mais violento, e, à vista da passividade com que ele se submeteu logo às circunstâncias; à vista daquela condescendência burguesa e medrosa, pois Raimundo não se animara a dar-lhe, nem a escrever-lhe, uma palavra depois da recusa de Manuel, ela se julgava desenganada e desiludida. «Nunca, nunca me amou! dizia de si para si, desesperada. Se me amasse, como eu imaginava, teria reagido! É um impostor! um tolo! Um vaidoso, que desejou apenas ter mais uma conquista amorosa!»

E vinha-lhe um grande desejo de chorar e proferir muito mal contra Raimundo. Agora, achava que ele era o pior dos homens, a mais desprezível das criaturas. Às vezes, porém, arranhava-lhe a consciência uma pontinha de remorso: lembrava-se de que a iniciativa daquele namoro partira toda de sua parte, e então, com uma dorzinha de vergonha assistiam-lhe considerações mais favoráveis ao primo; chegava até a doer-se de haver feito um juízo tão mau do pobre rapaz. «Sim... pensava. Verdade, verdade, se não fosse eu... coitado! ele talvez nunca me falasse em amor!... fui eu que o provoquei, que lhe lancei a primeira faísca no coração!...» E por este caminho Ana Rosa fazia mil raciocínios, que abrandavam um tanto a sua má vontade contra o perjuro.

Mas a avó saltava-lhe logo em cima:

-Parece que ficaste meio sentida com o que se passou!... Pois olha: se tivesse de assistir ao teu casamento com um cabra, juro-te, por esta luz que está nos alumiando, que te preferia uma boa morte, minha neta! porque serias a primeira que na família sujava o sangue! Deus me perdoe, pelas santíssimas chagas de Nosso Senhor Jesus Cristo! gritava ela, pondo as mãos para o céu e revirando os olhos, mas tinha ânimo de torcer o pescoço a uma filha, que se lembrasse de tal, credo! que nem falar nisto é bom! E só peço a Deus que me leve, quanto antes, se tenho algum dia de ver, com estes que a terra há de comer, descendente meu coçando a orelha com o pé!

E, voltando-se para o genro, num assanhamento crescente:

-Mas creia, seu Manuel, que se tamanha desgraça viesse a suceder, só a você a deveríamos, porque, no fim das contas, a quem lembra meter em casa um cabra tão cheio de fumaças como o tal doutor das dúzias?... Eles hoje em dia são todos assim!... Dá-se-lhes o pé e tomam a mão!... Já não conhecem o seu lugar, tratantes! Ah, meu tempo! meu tempo! que não era preciso estar cá com discussões e políticas! Fez-se besta? -Rua! A porta da rua é a serventia da casa! E é o que você deve fazer, seu Manuel! Não seja pamonha! despeça-o por uma vez para o Sul, com todos os diabos do inferno! e trate de casar sua filha com um branco como ela. Arre.

-Amém! disse beaticamente o cônego.

E sorveu uma pitada.

Falou-se em toda a capital do rompimento de Raimundo com a família do Manuel Pescada. Cada qual comentou o fato como melhor o entendeu, alterando-o, já se sabe, cada um por sua parte. O Freitas aproveitou logo a ocasião para dizer dogmaticamente aos seus companheiros de secretaria:

-Acontece, meus senhores, com um boato, que corre a província, o mesmo que com uma pedra levada pela enxurrada da chuva; à proporção que rola, de rua em rua, de beco em beco, de fosso em fosso, vão-se-lhe apegando toda sorte de trapos e imundícias que encontra na sua vertiginosa carreira; de sorte que, ao chegar à boca-de-lobo, já se lhe não reconhece a primitiva forma. Do mesmo feitio, quando uma notícia chega a cair no esquecimento, já tão desfigurada vai de si, que da própria não conserva mais do que a origem!

E o Freitas, satisfeito com esta tirada, assoou-se estrondosamente, sem despregar do auditório o seu penetrante sorriso de grande homem, que prodigaliza, sem olhar a quem dá, as preciosas jóias da sua pródiga eloqüência.

Durante aqueles dias não se falava senão em Raimundo.

-Desacreditou, para sempre, a pobre moça!... dizia um barbeiro no meio da conversa da sua loja.

-Desacreditar quis ele! responderam-lhe, mas é que ela nunca lhe deu a menor confiança! Isto sei eu de fonte limpa!

Na casa da praça, afirmava um comendador, que a saída de Raimundo da casa do tio era devida simplesmente a uma ladroeira de dinheiro, perpetrada na burra de Manuel, e que este, constava, já tinha ido queixar-se à polícia e que o doutor chefe procedia ao inquérito.

-É bem feito! É bem feito!... vociferava um mulato pálido, de carapinha rente, bem vestido e com um grande brilhante no dedo. É muito bem feito, para não consentirem que estes negros se metam conosco!

Seguiu-se um comércio rápido de olhadelas expressivas, trocadas entre os circunstantes, e a conversa torceu de rumo, indo a cair sobre as celebridades de raça escura, vieram os fatos conhecidos a respeito do preconceito da cor; citaram-se pessoas gradas da melhor sociedade maranhense, que tinham um moreno bem suspeito; foram chamados à conversa todos os mulatos distintos do Brasil; narrou-se enfaticamente a célebre passagem do Imperador com o engenheiro Rebouças. Um sujeito, levantou pasmo na roda, nomeando Alexandre Dumas, e dando a sua palavra de honra em como Byron tinha casta.

-Ora! isso que admira?... disse um estúpido. Aqui já tivemos um presidente tão negro como qualquer daqueles cangueiros, que ali vão com a pipa de aguardente!

-Não... rosnou convencido um velhote, que entre os comerciantes passava por homem de boa opinião. Que eles têm habilidade, principalmente para a música, isso é inegável!...

-Habilidade?... segredou outro, com o mistério de quem revela uma coisa proibida. Talento! digo-lhe eu! Esta raça cruzada é a mais esperta de todo o Brasil! Coitadinhos dos brancos se ela pilha uma pouca de instrução e resolve fazer uma chinfrinada. Então é que vai tudo pelos ares! Felizmente não lhe dão muita ganja!

-Aquilo, comentava Amância, boquejando esse dia, sobre o mesmo assunto, em casa de Eufrásia; aquilo não podia ter outro resultado! Cá está quem não poria lá mais os pezinhos, se o basbaque do Pescada metesse o cabra na família!

-Ora, não é também tanto assim!... objetava a quente viúva. Conheço certa gente, que se faz muito de manto de seda e que, no entanto, vai filar constantemente o jantar dos cabras que passam bem. A questão é de boa mesa!

-O quê? berrou a velha, pondo as mãos nas cadeiras. Isso é uma indireta?! Isso é comigo?!...

E subiu-lhe uma roxidão às faces.

-Diga! exclamou. Pois diga! Quero que diga qual foi o negro a quem Amância Diamantina dos Prazeres Sousella, neta legítima do Brigadeiro Cipião Sousella, conhecido pelo «Corisco» na Guerra dos Guararapes, desse algum dia a confiança de ocupar! Eu?!... Até brada ao céu! Qual foi o cabra com quem a senhora já me viu de mesa?!...

-Eu não falo com a senhora! E esta?

-Ah!... Pois então conheça!

-Falo no geral!

E Eufrasinha dava as provas, citava nomes, contava fatos, e terminou declarando que, apesar de tudo que se dizia nesse Maranhão velho, Raimundo era um cavalheiro distinto, com um futuro bonito, alguns cobres, e... enfim... Ora, adeus, deixasse lá falar quem falava! -era um marido de encher as medidas!

E a viúva arregalou os olhos e mordeu os beiços, chupando o ar com um suspiro.

-Que lhe faça muito bom proveito! arrematou a neta do «Corisco» traçando o xale já na porta, para sair. Há gente para tudo nesta vida! Credo!

E foi logo, direitinha como um fuso, para a casa do Freitas.

-Pois não sabem de uma muito boa?... disse ao chegar lá, sem tomar fôlego. A sirigaita de Eufrásia diz que não se lhe dava de casar com o Mundico do Pescada!

-Ele é que eu duvido que a aceitasse!... bocejou o Freitas, estendendo com preguiça as suas magras e longas pernas na cadeira, e cruzando os pés, com ar feliz e descansado. Que ela morre por um marido -isso é velho! E tem razão, coitada!

Riu-se.

-Credo! cruz! trejeitou Amância. Assim também não!... No meu tempo...

-Era a mesmíssima coisa, D. Amância; as raparigas pobres pediam aos céus um marido, como... como... insistia ele, à procura de uma comparação, como não sei o quê!... A senhora, já sei que fica para jantar...

-Se tiver peixe, fico! disse, autorizada pelo cheiro de azeite frito, que vinha da cozinha.

-Então, titia Amância, saiba que temos e muito bom! observou Lindoca, bamboleando-se pela varanda.

-Ó menina! gritou-lhe a velha, onde queres ir tu com toda essa gordura? Já basta! Apre!

-Não irá muito longe, disse o Freitas, sempre risonho, cansaria depressa...

-Olhe, veja, reclamou a moça, fazendo parar a escrava, que passava com a terrina do peixe. Está convidando! Quentinho que é um fogo!

-Ai, filha! é a minha paixão! Um peixinho bem preparado, quentinho, com farinha-d'água! Mas, olha, bradou para a criada, e levantou-se logo, não o deites aí, rapariga que o gato é muito capaz de pregar-nos alguma peça... Bota antes neste armário!

E, como se estivesse na própria casa, tomou a terrina e acondicionou-a em uma das prateleiras. «Não havia que fiar em gatos!... Eles eram necessários por mor dos ratos, mas que canseira seu Bom Jesus! Ind'estrodia o seu Peralta fora-lhe ao guarda-petiscos e... nem dizia nada! unhara-lhe a carne-de-sol, que havia para o almoço, porque ela estava de purga. Forte ladrão! Mas também, dera-lhe uma mela, que o pusera assim!...»

E Amância, procurando mostrar como ficara o gato, arreganhou uns restos de dentadura acavalada e espichou as peles do pescoço.

Passava já das três da tarde. Os empregados públicos saíam da repartição, procurando a sombra, com o seu passo metódico e inalterável, o chapéu-de-sol dependurado no braço esquerdo, como de um cabide, o ar descansado e indiferente dos homens pagos por mês, que nunca se apressam, que nunca precisam de se apressar.

Começava a soprar a viração da tarde, e o tempo refrescava.

Lindoca, com grande estremecimento do assoalho, arrastou-se até à janela, para ver passar o Dudu Costa. Dudu era um praticante da Alfândega, que lhe arrastava a asa, rapaz sério, sequinho de carnes, bem arranjado e com muito jeito para o casamento. O Freitas olhava com bons olhos este namoro, e só esperava que o moço tivesse nesse mesmo ano um acesso na repartição: havia lá um empregado superior muito doente, que, sem dúvida, bateria o cachimbo por todos aqueles três meses, e, como Dudu tinha um amigo, cujo pai dispunha de bons empenhos para o presidente, dava como certa a sua nomeação; tão certa que pensava já no enxoval do casamento, punha de parte alguma coisa do ordenado e convidava os amigos mais íntimos para o grande dia da amarração. De tudo isto o Freitas andava a par. «Diabo era só aquela maldita gordura da menina, que aumentava todos os dias e estava fazendo dela um odre!»

-Ora queira Deus não seja alguma praga!... observava Amância. Há muita gente invejosa neste mundo, minha rica!

-Minha senhora, «o casamento e a mortalha no céu se talham!» citou o grande homem, sacrificando a rima à boa concordância gramatical.

Por essas mesmas horas, topavam-se numa esquina o Sebastião Campos e o Casusa.

-Olá! por cá, seu Susa?

-Como vai isso?

-Ora! você não faz idéia! desquerido de dor de dentes. Este diabo não me deixa pôr pé em ramo verde!

E Sebastião escancarou a boca, para mostrar um queixal ao amigo.

-Andaço! resmungou este. Dê cá um cigarro.

Sebastião passou-lhe prontamente a enorme bolsa de borracha amarela e o caderninho de mortalhas de papel.

-Então que há de novo por aí? perguntou.

-Tudo velho... Você vai se chegando pra casa...

-Hum-hum, afirmou o Campos com a garganta. Chegou o vapor do Pará?

-Chegou; sai amanhã para o Sul às nove. É verdade! o Mundico vai nele, sabe?

-É! Ouvi dizer que tinha brigado com o Pescada.

-Brigou, hein?...

-Diz que por causa de dinheiro; que Raimundo pedira-lhe certa quantia emprestada, e, como o outro negara, disparatou!

-Homem! não sei se pediu dinheiro, mas a filha sei, por fonte limpa, que pediu!

-E o galego?

-Negou-a! diz que porque o outro é mulato!

-Sim, em parte... aprovou Sebastião.

-Ora, deixe disso, seu Campos! Não sei se é porque não tenho irmãs, mas o que lhe asseguro é que preferia o doutor Raimundo da Silva a qualquer desses chouriços da Praia Grande.

-Não! lá isso é que não admito!... Preto é preto! branco é branco! Nada de confusões!

-Digo-lhe então mais! asneira seria a dele se se amarrasse, porque o cabra é atilado às direitas!

-Sim, lá isso faria... confirmou o Campos, entretido a quebrar a caliça da parede com a biqueira do chapéu-de-sol. Aquilo está se perdendo por cá... é homem para uma cidade grande!.. Olhe, ele talvez faça futuro no Rio... Você lembra-se do...?

-E segredou um nome ao ouvido do Casusa.

-Ora! como não? Muita vez dei-lhe aos cinco e aos dez tostões, para comer, coitado! E hoje, hein?

-É! Foi feliz... mas, quer que lhe diga? não acredito lá essas coisas no futuro deste, por causa daquelas idéias de repúblicas... porque, convençam-se por uma vez de uma coisa! a república é muito bonita, é muito boa, sim senhor! porém não é ainda para os nossos beiços! A república aqui vinha dar em anarquia!...

-Você exagera, seu Sebastião!...

-Não é ainda para os nossos beiços, repito! nós não estamos preparados para a república! O povo não tem instrução! É ignorante! é burro! não conhece os seus direitos!

-Mas venha cá! replicou o Casusa, fechando no ar a sua mão pálida e encardida de cigarro. Diz você que o povo não tem instrução; muito bem! Mas, como quer você que o povo seja instruído num país, cuja riqueza se baseia na escravidão e com um sistema de governo que tira a sua vida justamente da ignorância das massas?... Por tal forma, nunca sairemos deste círculo vicioso! Não haverá república enquanto o povo for ignorante, ora, enquanto o governo for monáquico, conservará, por conveniência própria, a ignorância do povo; logo -nunca haverá república!

-E será o melhor!...

-Eu então já não penso assim! Acho que ela devia vir, e quanto antes! tomara eu que rebentasse por aí uma revolução; só para ver o que saía! Creio que, somente quando tudo isto ferver, a porcaria irá na espuma! E será espuma de sangue, seu Sebastião!... Acredite, meu rico, que não há Maranhão como este! Isto nunca deixará de ser uma colônia portuguesa!... O alto governo não faz caso das províncias do Norte! A tal centralização é um logro para nós! ao passo que, se isto fosse dividido em departamentos, cada província cuidaria de si e havia de ir pra diante, porque não tinha de trabalhar para a Corte! a insaciável cortesã!

E o Casusa gesticulava indignado.

-Mas o que quer você?! O governo tem parentes, tem afilhados, tem comitivas, tem salvas, tem maçapães, tem o diabo! e para isso é preciso cobre! cobre! O povo está aí, que pague! Tome imposto pra baixo e deixa correr o pau para Caxias!

E, chegando a boca a uma orelha do outro: -Olhe, meu Sebastião, aqui no Brasil vale mais a pena ser estrangeiro que filho da terra!... Você não está vendo todos os dias os nacionais perseguidos e desrespeitados, ao passo que os portugueses vão se enchendo, vão se enchendo, e as duas por três são comendadores, são barões, são tudo! Uma revolução! exclamou repelindo o Campos com ambas as mãos. Uma revolução é do que precisamos!

-Qual revolução, o quê! Você é uma criançola, seu Casusa e ainda não pensa seriamente na vida! Deixe estar que em tempo julgará as coisas a meu modo, porque em nossa terra... Que idade tem você?

-Entrei nos vinte e seis.

-Eu tenho quarenta e quatro... em nossa terra estão se vendo constantemente entradas de leão e saídas de sendeiro!... Você acha que a república convinha ao Brasil? pois bem... Ai!

-O que é?

-O dente! diabo!

E, depois de uma pausa:

-Adeus. Até logo, disse cobrindo o rosto com o lenço e afastando-se.

-Olhe! Espere, seu Sebastião! gritava o Casusa, querendo detê-lo, empenhado na palestra.

-Nada! Vou ali ao Maneca Barbeiro curar este maldito!

E separaram-se.

Entretanto, na noite desse mesmo dia, quando o relógio de Raimundo marcava onze horas, acabava este de aprontar as suas malas.

-Bom! -E sacudiu as mangas da camisa, que o suor prendia aos braços. -Amanhã a estas horas já estou longe daqui!...

Em seguida, assentou-se à secretária e tirou da pasta uma folha de papel, escrita de princípio a fim com uma letra miúda e às vezes tremida. Releu tudo atentamente, dobrou a folha, meteu-a num envelope e subscritou-o a «Ex.ª Sr.ª D. Ana Rosa de Sousa e Silva». Depois, quedou-se a fitar este nome, como se contemplasse uma fotografia.

-Deixemo-nos de fraquezas!...

E levantou-se.

Fazia um grande silêncio nas ruas; ao longe ladrava tristemente um cão, e, de vez em quando, ouviam-se ecos de uma música distante. E Raimundo, ali, no desconforto do seu quarto, sentia-se mais só do que nunca; sentia-se estrangeiro na sua própria terra, desprezado e perseguido ao mesmo tempo. «E tudo, por quê?... pensava ele, porque sucedera sua mãe não ser branca!... Mas do que servira então ter-se instruído e educado com tanto esmero? do que servira a sua conduta reta e a inteireza do seu caráter?... Para que se conservou imaculado?... para que diabo tivera ele a pretensão de fazer de si um homem útil e sincero?...» E Raimundo revoltava-se. «Pois, melhores que fossem as suas intenções todos ali o evitavam, porque a sua pobre mãe era preta e fora escrava? Mas que culpa tinha ele em não ser branco e não ter nascido livre?.. Não lhe permitiam casar com uma branca? De acordo! Vá que tivessem razão! mas por que insultá-lo e persegui-lo? Ah! amaldiçoada fosse aquela maldita raça de contrabandistas que introduziu o africano no Brasil! Maldita! mil vezes maldita! Com ele quantos desgraçados não sofriam o mesmo desespero e a mesma humilhação sem remédio? E quantos outros não gemiam no tronco, debaixo do relho? E lembrar-se que ainda havia surras e assassínios irresponsáveis tanto nas fazendas como nas capitais!... Lembrar-se de que ainda nasciam cativos, porque muitos fazendeiros, apalavrados com o vigário da freguesia, batizavam ingênuos como nascidos antes da lei do ventre livre!... Lembrar-se que a conseqüência de tanta perversidade seria uma geração de infelizes, que teriam de passar por aquele inferno em que ele agora se debatia vencido! E ainda o governo tinha escrúpulo de acabar por uma vez com a escravatura; ainda dizia descaradamente que o negro era uma propriedade, como se o roubo, por ser comprado e revendido, em primeira mão ou em segunda, ou em milésima, deixasse por isso de ser um roubo para ser uma propriedade!»

E continuando a pensar neste terreno, muito excitado, Raimundo dispunha-se a dormir, impaciente pelo dia seguinte, impaciente por ver-se bem longe do Maranhão, dessa miserável província que lhe custara tantas decepções e desgostos; dessa terrinha da intriga miúda e das invejas pequeninas! Desejava arrancar-se para sempre daquela ilha venenosa e traiçoeira, mas pungia-lhe uma grande mágoa de perder Ana Rosa eternamente. Amava-a cada vez mais!

-Ora sebo! interrompeu-se. E eu a pensar nisto!... Tenho tudo liquidado e pronto!... Amanhã está aí o vapor e... adeus! adeus queridos atenienses!

E, afetando tranqüilidade, acendeu um cigarro.

Nisto, caiu na sala uma carta que meteram pelas rótulas da janela. Raimundo apoderou-se dela e leu no subscrito: «Ao Dr. Raimundo.» Teve um estremecimento de prazer, imaginando fosse de Ana Rosa, mas era simplesmente uma carta anônima.

«Ilustre canalha:

Então V.S.ª muda-se amanhã?... Se é verdade agradeço-lhe o obséquio em nome da província. Creia, meu caro senhor, que será talvez o primeiro ato judicioso que V.S.ª pratica em sua vida tão aventurosa, porque nós já temos por cá muita pomada e não precisamos mais dessa fazenda. Honre-nos com a sua ausência e faça-nos o especial obséquio de ficar-se por lá o maior tempo que puder! Quem disse a V.S.ª que isto aqui é uma terra de beócios, onde os pedantes arranjam bons casamentos, debicou-o, respeitável senhor, debicou-o redondamente. Já se não amarram cães com lingüiça. No entanto, se vir a prima dê-lhe lembranças.»

Assinava: «O Mulato disfarçado».

Raimundo sorriu, amarrotou a folha de papel e lançou-a ao chão.

-Coitados! disse, e foi pôr-se à janela.

Aí ficou longo tempo, debruçado no peitoril, a olhar a escuridão da noite, onde os bicos de gás se acusavam tristemente, muito distantes uns dos outros. A Rua de São Pantaleão tinha um silêncio de cemitério.

Bateu uma badalada, ao longe.

-Devem ser duas e meia.

Raimundo fechou a janela e recolheu-se à cama. Levantou-se de novo, tornou a apanhar a carta e releu-a. Só a assinatura o irritou.

-Cães! disse.

E soprou a vela.

Começavam então as chuvas, que no Maranhão chamam «de caju»; o vento soprou com mais força, esfuziando nas ripas do telhado. Em breve, o céu peneirava um chuvisco fino e passageiro. Na rua, não obstante, um trovador de esquina, cantava ao violão

«Quis debalde varrer-te da memória,

e teu nome arrancar do coração.

Amo-te sempre, que martírio infindo!

Tem a força da morte esta paixão!»



Na manhã seguinte, Manuel levantou-se antes dos caixeiros, vestiu-se ainda com a meia claridade da aurora e endireitou para a casa de Diogo.

-Olé! você madrugou, compadre! disse-lhe o cônego da janela, onde fazia a barba em mangas de camisa.

-Tem tempo. Vá subindo, compadre, que lhe vou dar um cafezinho fazenda!

E, voltando-se para o interior da casa:

-Anda com isso, ó Inácia! que temos de sair mais cedo! gritava ele, enquanto estendia com pachorra, em um paninho de barba, a espuma do sabão que tirava do queixo.

-Compadre, vá estando à vontade e diga o que há de novo.

A caseira entrou com uma bandeja, onde vinha o café, um pires de papa, uma garrafa de licor e cálices.

-Vai uma papinha, compadre?

-Não, obrigado. Quero o café.

-Pois eu cá não passo sem ela, mais o meu café e o meu chartreuse... Vá um calicezinho, seu Manuel! Que tal? Deste é que não vem para negócio hein?...

-Decerto! não vale a pena! Mas, com efeito, é papa-fina.

-Então outro, vá outro, compadre, isto nunca sobe logo à primeira dose...

-Também não vai a matar..

-Assim! agora um gole de café... Hein? E o que me diz do café?...

-Soberbo! Do Rio, não é verdade?

-Qual Rio! muito bom Ceará! Acredite, seu compadre, o melhor café do Brasil é o do Ceará!... E esta crioula, que o trouxe, é mestra em passá-lo!... Nunca vi! para um café e para uma papa de araruta com ovos, não há outra!

E o cônego passou a vestir-se, esticando muito as suas meias de seda escarlate; calçando, com a calçadeira de tartaruga, os seus sapatos de polimento azeitado, cujas fivelas levantavam cintilações. Enfiou depois a batina de merinó lustroso, ameigando a barriga redonda e carnuda, saracoteando-se todo, a sacudir a perninha gorda, indo ao espelho do toucador alcochetar no pescoço a sua volta de rendas alvas. Estava limpo, cheiroso e penteado; tinha, no rosto escanhoado e nos anéis dos seus cabelos brancos, uns tons frescos de fidalgo velho e namorador; o cristal dos óculos redobrava-lhe o brilho dos olhos, e o seu chapéu novo, de três bicos, elegantemente derreado um pouco para a esquerda, dava à sua cabeça distinta e ao seu rosto todo barbeado o ar pitoresco e nobre dos cortesãos do século XVII.

-Quando quiser, compadre, estou às suas ordens... lembrou ele a Manuel, que fumava um cigarro à janela, pensativo.

-Então vamos indo. O homem talvez já esteja à nossa espera.

E saíram.

A manhã levantava-se bonita. As calçadas de cantaria secavam a umidade da noite aos primeiros raios do Sol. Ouviam-se tinir nas pedras os saltos dos sapatos do padre. Passavam os trabalhadores para as suas obrigações; o padeiro com o saco às costas; a lavadeira, em caminho da fonte, com a trouxa de roupa suja equilibrada na cabeça; pretas-minas apregoavam «Mingau de milho!»; os escravos desciam para o açougue com a cesta das compras enfiada no braço; das quintas chegavam os vendedores de hortaliças, com os seus tabuleiros acumulados de folhas e legumes. E todos cumprimentavam respeitosamente o cônego, e ele a todos respondia: «Viva!» Algumas crianças em caminho da escola, iam, de boné na mão, beijar-lhe o anel.

-Você diz que ele já está à nossa espera?...

-É natural! respondeu Manuel.

-Não tenha medo! É muito cedo ainda -e consultou o relógio. -Podemos ir mais devagar... Ele só chegará daqui a uma hora. Ainda não são sete.

-Estou impaciente por vê-lo pelas costas...

-Não tardará muito. E a pequena, como ficou?

-Assim; menos maçada do que eu esperava... É que aquilo passou-lhe.

-E o outro?

-O Dias?

-Sim.

-Por ora... nada.

-Há de chegar! há de chegar!... afirmou o cônego em ar de experiência. Labor improbus omnia vincit!...

-Como?

-Aquilo é um marido que convém à Anica!...

Assim conversando, ao lado um do outro, acharam-se na rampa de Palácio.

Ainda pouca gente lá havia.

-Um bote, patrãozinho! exclamou um rampeiro, aprumando-se defronte de Manuel e descobrindo a cabeça com arremesso.

-Espere, deixe ver se está o Zé Isca, que é freguês.

O catraieiro afastou-se lentamente, jogando o corpo, no seu andar de pernas abertas. Os dois desceram ao cais. Apareceu o Isca, e contratou-se a viagem.

-Patrão, podemos ir?

-Deixe vir o doutor. É preciso esperá-lo.

O padre observou que tinham ido cedo demais; enquanto Manuel fazia SS no chão com a biqueira do guarda-sol.

-Homem! este vapor assim mesmo fez desta vez uma viagenzinha bem boa!... disse o primeiro, provocando palestra.

-Quinze dias.

-E então?... quando saiu ele do Rio?...

-No dia dois.

-Daqui a outros quinze está por lá!... calculou o cônego.

-Não, leva menos! para lá é muito mais favorável a viagem... onze, doze, treze dias é o máximo.

No fim de algum tempo aborreciam-se de esperar: Manuel havia fumado já quatro cigarros. Raimundo demorava-se.

-Isto já são oito horas! quantas tem você, compadre?

-Oito e um quarto. O rapaz com certeza descuidou-se!... Ó seu Manuel, ele sabe que o vapor sai às dez?

-Como não? se ainda ontem à tarde lho mandei dizer!...

-Então há de ser alguma despedida mais demorada... explicou o cônego com um risinho velhaco. Fugit irreparabile tempus!...

-Isto vai, mas é esquentando demais, seu compadre.

E Manuel limpava e tornava a limpar o carão vermellho, estendendo pela rampa um olhar suplicante, que parecia chamar o sobrinho.

-Vamos cá para a guardamoria, aconselhou o outro, resguardando-se do sol.

Um empregado obsequioso ofereceu-lhes logo duas cadeiras.

-V.S.as por que não se sentam?... Tenham a bondade de estar a gosto...

-Obrigado, obrigado, meu amigo!

E assentaram-se impacientes.

-V.S.ª vêm ao bota-fora do doutor Raimundo?...

-É! Ele já desceu?

-Não o vi ainda, não senhor; porém não poderá tardar. Vão se fazendo horas!...

Um assovio muito agudo deu o primeiro sinal de bordo, chamando os últimos passageiros. Manuel levantou-se logo, foi até à porta, lambeu com um olhar o trapiche, consultou sequioso a ladeira de Palácio: «Nada!» Olhou para o relógio, o ponteiro orçava pelas nove. «Ora sebo! Entendam-se lá com semelhante gente!...»

A rampa já se tinha enchido e já se ia esvaziando. Grupos demorados acenavam de terra com o lenço para os escaleres que fugiam; uns choravam com o rosto escondido nas mãos; outros abraçavam-se por cortesia. Ao lado de protestos e oferecimentos oficiais, ouviam-se frases quentes de sinceridade, arrancadas pela dor; diziam-se ternuras; davam-se conselhos; faziam-se carícias; expunham-se, ali, ao ar livre, em meio do público, o amor e o desespero, como se estivessem entre família, no segredo da casa. Os botes largavam com grande algazarra dos catraieiros. Ninguém mais se entendia. Os ganhadores passavam correndo, com as costas carregadas de malas, de baús e gaiolas de papagaio. Havia grandes encontrões. Uma mulatinha escrava gritava que nem doida, lá no fim da rampa, com os pés na água, agitando os braços, soluçando, porque lhe levavam a irmã mais velha, vendida para o Rio. Os tripulantes praguejavam; os barcos enchiam-se numa confusão, e a lanchinha do Portal guinchava de instante a instante silvos que ensurdeciam.

E Raimundo -nada de chegar!

Pouco a pouco foram rareando os grupos. Enxugavam-se os olhos; guardavam-se os lenços, e os amigos e parentes dos que partiam retiravam-se em magotes, com o passo frouxo, a cara congestionada na ressaca das comoções. O empregado da polícia externa do porto voltou da sua visita ao navio. Só os exportadores de escravos permaneciam encostados ao portão do cais, para ver a última baforada do monstro a que confiavam um bom carregamento de negros.

A rampa recaiu afinal no seu habitual sossego, e Raimundo nada de aparecer.

Manuel suava.

-E esta?! perguntou furioso ao cônego. O que me diz desta, seu compadre?!

O cônego não respondeu. Cismava.

Nisto, chegou uma carruagem, a rodar vertiginosamente. Os que esperavam Raimundo acudiram, de pescoço estirado.

-Deve ser ele!... aventou o cônego.

-Diabo! rosnou Manuel, ao ver saltar um homem e entrar lépido na guardamoria.

Não era Raimundo.

O vapor chamava, insistia com os seus guinchos impacientes e sibilantes. O recém-chegado arrastou uma pequena mala para a rua e entregou-a ao primeiro catraieiro, que pulou de uma nuvem deles.

-Avia, rapaz! Pega daí -E mostrava os outros volumes.- Ligeiro! Ligeiro!

O homem do bote atirou com a bagagem num escaler, gritando para um moleque que o ajudava:

-Anda! mexe-te! senão arriscamos a não alcançar o vapor!

Estas últimas palavras acabaram de pôr Manuel fora de si. A pobre criatura suava como o fundo de um prato de sopa.

-E esta, seu compadre?! E esta?! O que me diz desta?!

O cônego não dava palavra, fazia considerações íntimas, sorrindo amargamente à superfície dos lábios.

-Ora! ora! ora! -E o negociante passeava a grandes pernadas na guardamoria.- Ora! ora, senhores! Esta só a mim!

O cônego bateu com o chapéu-de sol no chão.

-Astutos astu non capitur!

Os empregados da guardamoria, vestidos de farda, e os curiosos desocupados, que ali estavam por distração, faziam perguntas a Manuel a respeito de Raimundo, satisfeitos com aquele episódio prometedor de escândalo.

Arriscavam-se já os comentários e as opiniões.

-Homem, dizia um. Ele, cá pra nós, nunca me pareceu grande coisa!...

-Eu também, acrescentava outro, a falar verdade, nunca pude tragar aquele cara de máscara!...

-Pois eu cá sabia que ele não havia de ir!

-Nem irá mais! Pilhou-se aqui, adeus!

-Mas que grande patife! Sim senhor!

-Ora! ora, que filho da mãe! resmungava Manuel, a dar voltas no ar com o seu imenso chapéu-de-sol.

Mas todos correram para a porta, porque uma nova carruagem, puxada com sofreguidão, encheu de tropel a Rua do Trapiche.

É o tipo com certeza! bradou um sujeito. A boas horas!

Fez-se no grupo um silêncio ansioso. A sege estacou em frente à guardamoria. Mas ainda desta vez não era Raimundo.

O paquete havia entrado, na véspera, às duas horas da tarde, fundeando com um tiro, a que todo o litoral da cidade respondeu com um grito alegre de «chegou vapor!» e, desde esse momento, Ana Rosa possuíra-se de um sobressalto constante que a punha enferma; sabia que nele se iria Raimundo, para sempre. «Raimundo, que ela tanto amara e tanto desejara!... Todavia, era preciso deixá-lo partir, sem uma queixa, sem uma recriminação, porque todos, até o próprio ingrato, assim o entendiam!... E que loucura de sua parte estar ainda a pensar nessas coisas!... Pois já não estava porventura tudo acabado?... para que então mortificar-se ainda com semelhante doidice?...»

Não obstante, preferia perdoar-lhe tudo, antes que ele se partisse para nunca mais voltar. Passou uma noite horrível à procura de um motivo, um pretexto qualquer para absolver o amante, sentia uma irresistível vontade de fazer de si uma vítima resignada, capaz de comover o coração menos humano. Já não o queria; não contava com ele para mais nada, por Deus que não contava! mas desejava vê-lo arrependido de tamanha ingratidão, humilhado, triste, padecendo por fazê-la sofrer daquele modo e confessando as suas culpas e a sua crueldade.

-Oh! se ele me tivesse dado coragem!... monologava a mísera, o que eu não faria?... porque o amava muito! muito! Sim! é preciso confessar que o amava loucamente!... Mas aquele silêncio... Silêncio? Que digo eu?... Desprezo! aquele desprezo insultuoso por mim, que era toda sua, colocou-o abaixo dos outros homens! Pois então ele, tão nobre, tão leal com todos, devia proceder assim comigo?... Abandonar-me em semelhante ocasião, quando sabia perfeitamente que eu precisava, mais do que nunca, da sua energia e da sua firmeza?... Desconfiaria de que não o amava? Não! falei-lhe com tanta franqueza... Ah! e ele sabe perfeitamente que não se pode fingir o que lhe disse, o que chorei! Sim, sim, tinha plena certeza, o miserável! o que lhe faltava era amor! Nunca me estimou sequer. Ou pensaria ele que eu seria capaz, como as outras, de sacrificar meu coração aos preconceitos sociais?... Mas, então, por que não me falou com franqueza?... não me escreveu ao menos?.. não me disse que também sofria e não me deu ânimo?... Porque, juro, tivesse-o eu, possuísse-o só meu, como marido, como escravo, como senhor, a tudo mais desprezaria! Juro que desprezaria! Que me importava lá o resto?! e o que eu não seria capaz de fazer por aquele ingrato, aquele homem mau e orgulhoso?!

E Ana Rosa soluçava, sem conseguir conciliar o sono.

Às seis da manhã estava de pé e vestida no seu quarto. Manuel tinha saído a ir buscar o cônego para o embarque de Raimundo. Maria Bárbara, ainda de rede, preparava os seus cachos de seda, mirando-se num espelho, que a Brígida segurava com ambas as mãos, ajoelhada defronte dela.

Havia em toda a casa o triste constrangimento dos dias de enterro. Ana Rosa, ao aparecer na varanda, trazia os olhos muito pisados e a cor desbotada, um ar geral de fadiga espalhado por todo o corpo e duas rosetas de febre nas faces.

Serviram-lhe uma canequinha de café.

-Onde está vovó? perguntou ela com a voz fraca.

-Está lá pra dentro, respondeu o moleque cruzando os braços.

-Olha, Benedito! dize-lhe que... Está bom não lhe digas coisa alguma...

E, arrastando vagarosamente a cauda do seu vestido de cambraia e, dando as suas tranças castanhas, pesadas e fartas ondulações de cobra preguiçosa, ia voltar, toda irresoluta, para o quarto, quando se deteve com medo de ficar lá dentro sozinha com a impetuosidade do seu amor e a feminilidade da sua razão. Agora causava-lhe terror o isolamento; receava que lhe faltasse coragem para acabar decentemente com aquilo; desfalecera-lhe de todo a energia, que ela afetara até aí; ao contrário da véspera, precisava naquele momento ouvir dizer muito mal de Raimundo, para poder consentir em perdê-lo, sem ficar com o coração inteiramente despedaçado. Compreendia que precisava de alguém que a convencesse das más qualidades de semelhante impostor; alguém que a persuadisse, por uma vez, de que o miserável nunca a merecera, de que ele fora sempre um indigno; alguém que a obrigasse a detestá-lo com desprezo, como a um ente nojento e venenoso; precisava afinal de uma alma caridosa, que lhe arrancasse de dentro, à pura força, aquele amor, como o médico arranca uma criança a ferro.

E no entanto, por mais alto que reclamassem as circunstâncias e por mais forte que gritasse o raciocínio, seu coração só queria perdoar, e atrair o seu amado e dizer-lhe francamente que, apesar de tudo, o estremecia ainda, como sempre, mais que nunca! A realidade estava ali, a exigir, em honra do seu orgulho, que tudo aquilo se acabasse sem um protesto por parte dela; a exigir que Raimundo partisse, que se fosse por uma vez e que Ana Rosa ficasse tranqüila, ao abrigo de seu pai, mas uma voz chorava-lhe dentro, uma voz fraca de órfão desamparado, de criancinha sem mãe, a suplicar-lhe em segredo, com medo, que não estrangulassem aquele primeiro amor, que era a melhor coisa de toda a sua vida. E esses vagidos, tão fracos na aparência, suplantavam a voz grossa e terrível da razão. «Oh! era preciso ouvir muitas e muitas verdades contra aquele ingrato, para suportar tamanha provação sem sucumbir! Era preciso que uma lógica de ferro em brasa a convencesse de que aquele homem mau nunca a amara e nunca a merecera!»

Mandou o escravo chamar a avó. Benedito foi ter com Maria Bárbara; e a moça ficou só na varanda, encostada à ombreira de uma porta, a conter e reprimir nos soluços os ímpetos dos seus desejos violentados, como se sofreasse um bando de leões feridos.

Um tropel de passos rápidos, que vinham da escada, sobressaltou-a, ia fugir, mas Raimundo, aparecendo de improviso, suplicou-lhe com a voz tomada pela comoção, que o escutasse.

Ana Rosa ficou estática.

-Não nos veremos mais, nunca mais, balbuciou o moço, empalidecendo. O vapor sai daqui a poucas horas. Lê essa carta, depois que eu tiver partido. Adeus.

Entregou-lhe uma carta e, sentindo que lhe fugia de todo o ânimo, ia a descer, muito confuso, quando se lembrou de Maria Bárbara. Perguntou por ela, que acudiu logo, e ele despediu-se, sem saber o que dizia, gaguejando. Ana Rosa, defronte de ambos, conservava-se imóvel, parecia estonteada, não dava uma palavra, não respondia, não apresentava uma objeção.

-Adeus, repetiu Raimundo.

E tomou, trêmulo, a mão que Ana Rosa tinha desamparada e mole; apertou-a nas suas com sofreguidão e, sem se importar com a presença de Maria Bárbara, levou-a repetidas vezes à boca, cobrindo-a de beijos rápidos e sequiosos. Depois desgalgou de uma só carreira a escada, dando encontrões pela parede e tropeçando nos degraus.

-Raimundo! gritou a moça com um gemido.

E abraçou-se à avó vibrando toda numa convulsão de soluços.

O rapaz saiu e achou-se no meio da rua, distraído, apatetado, sem saber bem para que lado tinha de tomar. «Ah! precisava ainda fazer algumas compras...» Pôs-se a aviá-las; nem havia tempo a perder: correu às lojas. Mas, independente da sua vontade e do seu discernimento, dentro dele alimentava-se por conta própria, uma dúbia esperança de que aquela viagem não se realizaria; contava topar com qualquer obstáculo que a transtornasse; confiava num desses abençoados contratempos que nos acodem muito a propósito, quando a despeito do coração, cumprimos o que nos manda o dever. Desejava um pretexto que lhe satisfizesse a consciência.

Entrou em várias casas, comprou charutos, um par de chinelas, um boné, mas fazia tudo isto como por mera formalidade, como que para justificar-se aos seus próprios olhos, cada vez mais abstrato, sem prestar atenção a coisa alguma. Foi ao armazém, em que mandara, logo ao romper do dia, depositar as suas malas; contava, ao entrar aí, receber a notícia de que elas já lá não estavam, que alguém as havia reclamado, que alguém as roubara, e esta circunstância lhe impediria de sair por aquele vapor; mas qual! todos os seus objetos se achavam intactos e respeitosamente vigiados. Mandou carregar tudo para a rampa e seguiu atrás, esperando ainda que na Agência lhe dariam a notícia de que a viagem fora transferida para o dia seguinte.

Pois sim!...

Não havia remédio senão ir. Estava tudo pronto, tudo concluído, só lhe faltava embarcar. Despedira-se de todos a quem devia essa fineza; nada mais tinha que fazer em terra; as suas malas estavam já a caminho do cais -era partir!

Sentia um terrível desgosto em aproximar-se do mar, e contudo era para lá que ele se dirigia, vacilante, oprimido. Consultou o relógio, o ponteiro marcava pouco mais de oito horas e parecia-lhe, como nunca, disposto a adiantar-se. O desgraçado, depois disso, perdeu de todo a coragem de puxá-lo da algibeira; aquela inflexível diminuição do tempo o torturava profundamente. «Tinha de seguir! Diabo! Só lhe faltava meter-se no escaler!... Tinha de seguir! E, daí a pouco estaria a bordo, e o paquete em breve navegando, a afastar-se, a afastar-se, sem tornar atrás!... Tinha de seguir! isto é: tinha de renunciar, para sempre, a sua única felicidade completa -a posse de Ana Rosa! Ia desaparecer, deixá-la, para nunca mais a ver! para nunca mais a ouvir, abraçá-la, possuí-la! Inferno!»

E, à proporção que Raimundo se aproximava da rampa, sentia escorregar-lhe das mãos um tesouro precioso. Tinha medo de prosseguir, parava, respirando alto, demorando-se, como se quisesse conservar por mais alguns instantes a posse de um objeto querido, que depois nunca mais seria seu; mas a razão o escoltava com um bando de raciocínios. «Caminha! caminha pra diante!» gritava-lhe a maldita. E ele obedecia, de cabeça baixa, como um criminoso. Entretanto, Ana Rosa nunca se lhe afigurou tão bela, tão adorável, tão completa e tão imprescindível, como naquele momento! chegou a ter ciúmes dela e a censurá-la do íntimo da sua dor, porque a orgulhosa não correra ao encontro dele, para impedir aquela separação. E ia deixá-la desamparada, exposta ao amor do primeiro ambicioso que se apresentasse, e a quem ela se daria inteira, fiel, palpitante e casta, porque todo o seu ideal era ser mãe! «Inferno! Inferno! Inferno!»

Raimundo surpreendeu-se parado na rua, a fazer estas considerações, como um tonto, observado pelos transeuntes; olhou em torno de si, e pôs-se a caminhar apressado, quase a correr, para a rampa de embarque. À medida que se aproximava do mar, ia avultando ao seu lado o número de carregadores de bagagens; pretos e pretas passavam com baús, malas de couro e de folha-de-flandres, cestas de vime de todos os feitios, cofos de pindoba, caixas de chapéu de pêlo e gaiolas de pássaros. Ele continuava a correr. Todo aquele aparato de viagem que lhe fazia mal aos nervos. De repente, estacou defronte de um raciocínio, que o puxou aos olhos um clarão de esperanças: «E se o Manuel não tivesse ido ao cais?... Sim, era bem possível que ele, sempre tão cheio de serviço, coitado! tão ocupado, não pudesse lá ir!... E seria uma dos diabos -partir assim, sem lhe dizer adeus!...» E, como em resposta à oposição de um estranho, seu pensamento acrescentou: «Oh! como não? Seria uma dos diabos! O homem podia tomar por acinte!... supor-me ridículo!... Seria, além disso, uma imperdoável grosseria, uma ingratidão até! Ele foi receber-me a bordo, hospedou-me no seio da sua família, cercou-me sempre de mil obséquios!... Não, no fim de contas devo-lhe muitas obrigações!... Não é justo que agora parta sem despedir-me dele!...»

Passava um carro vazio. Raimundo consultou rapidamente o relógio.

-Rua da Estrela, número 80, gritou ao cocheiro, atirando-se para cima da almofada. Toda força! Toda força! Não podemos perder um minuto!

E dentro do carro, impaciente, sentiu uma alegria nervosa, que lhe punha em vibração todo o corpo; enquanto a unha do remorso continuava a esgaravunchar-lhe a consciência. «Oh! mas seria uma grande falta de minha parte!... respondia ele à importuna. Pois eu devia sair daqui, para sempre, sem me despedir do irmão de meu pai, do único amigo que encontrei na província?... juro que chego lá, despeço-me e volto incontinenti...»

E a carruagem voava, soprada pela esperança de uma boa gorjeta.

Ana Rosa, quando tornou a si do espasmo em que a prostara a visita de Raimundo, chorou copiosamente e depois encerrou-se na alcova com a carta, que ele lhe dera. Abriu-a logo, mas sem nenhuma esperança de consolo.

Entretanto, a carta dizia:

«Minha amiga,

'Por mais estranho que te pareça, juro que te amo ainda, loucamente, mais do que nunca, mais do que eu próprio imaginava se pudesse amar; falo-te assim agora, com tamanha franqueza, porque esta declaração já em nada poderá prejudicar-te, visto que estarei bem longe de ti quando a leres. Para que não te arrependas de me haver escolhido por esposo e não me crimines a mim por me ter portado silencioso e covarde defronte da recusa de teu pai, sabe minha querida amiga, que o pior momento da minha pobre vida foi aquele em que vi inevitável fugir-te para sempre. Mas que fazer? -eu nasci escravo e sou filho de uma negra. Empenhei a teu pai minha palavra em como nunca procuraria casar contigo; bem pouco porém me importava o compromisso! que não teria eu sacrificado pelo teu amor? Ah! mas é que essa mesma dedicação seria a tua desgraça e transformaria o meu ídolo em minha vítima; a sociedade apontar-te-ia como a mulher de um mulato e nossos descendentes teriam casta e seriam tão desgraçados quanto eu! Entendi, pois, que fugindo, te daria a maior prova do meu amor. E vou, e parto, sem te levar comigo, minha esposa adorada, estremecida companheira dos meus sonhos de ventura! Se pudesse avaliar quanto sofro neste momento e quanto me custa a ser forte e respeitar o meu dever; se soubesses quanto me pesa a idéia de deixar-te, sem esperança de tornar a teu lado -tu me abençoarias, meu amor!

'E adeus. Que o destino me arraste para onde quiser, serás sempre o imaculado arcanjo a quem votarei meus dias; serás a minha inspiração, a luz da minha estrada; eu serei bom, porque existes.

Adeus, Ana Rosa.

Teu escravo

RAIMUNDO.»

Ao terminar a leitura, Ana Rosa levantou-se transformada. Uma enorme revolução se havia operado nela; como que vingava e crescia-lhe por dentro uma nova alma, transbordante. «Ah! Ele amava-me tanto e fugia com o segredo, ingrato! Mas por que não lhe dissera logo tudo aquilo com franqueza?...» E saltava pelo quarto, como uma criança, a rir, com os olhos arrasados de água. Foi ao espelho, sorriu para a sua figura abatida, endireitou estouvadamente o penteado, bateu palmas e soltou uma risada. Mas, de improviso, lembrou-se de que o vapor podia ter já partido, estremeceu com um sobressalto, o coração palpitou-lhe forte, com um aneurisma prestes a rebentar.

Correu à varanda.

-Benedito! Benedito!

Ó senhores! Onde estaria aquele moleque?...

-Que vossemecê queria? perguntou Brígida, com a voz muito tranqüila e compassada.

-A que horas sai o vapor? perguntou a moça sem tomar fôlego.

-Senhora?

-Quando sai o vapor?!

-Que vapor, sinhá?...

-Diabo! O vapor do Sul!

-Hê! Já saiu, sinhá!

-Hein?! o quê? Não é possível, meu Deus!

E, tremendo por uma certeza horrível, correu ao quarto da avó.

-Sabe se já saiu o vapor, vovó?

-Pergunta a teu pai.

Ana Rosa sentiu uma impaciência medonha, infernal; desceu os primeiros degraus da escada do corredor, disposta a ir ao armazém, mas voltou logo, foi à cozinha e encarregou a Brígida de saber de Manuel se o vapor havia largado já.

A criada tornou, dizendo, muito descansada, que «sinhô tinha saído de manhãzinha cedo, para o bota-fora de nhô Mundico».

-Vai para o diabo! gritou Ana Rosa colérica.

E correu à janela do seu quarto, escancarou-a precipitadamente. O sossego da Rua da Estrela entorpeceu-a, como o efeito de um jato de água fria sobre um doente de febre.

Depois, veio-lhe a reação; teve um apetite nervoso de gritar, morder, agatanhar. Pensou que ia ter um histérico; saiu da janela, para ficar à vontade; deu fortes pancadas frenéticas na cabeça. E sentia uma raiva mortal por tudo e por todos, pelos parentes, pela casa paterna, pela sociedade, pelas amigas, pelo padrinho; e assistiu-lhe, abrupto, uma força varonil, um ânimo estranho, um querer déspota; pensou com prazer numa responsabilidade; desejou a vida com todos os seus trabalhos, com todos os seus espinhos e com todos os seus encantos carnais; sentiu uma necessidade imperiosa, absoluta, de entender-se com Raimundo, de perdoar-lhe tudo, com beijos ardentes, com carícias doidas, selvagens, agarrar-se a ele, rangindo os dentes, e dizer-lhe cara a cara: «Casa-te comigo! Seja lá como for! Não te importes com o resto! Aqui me tens! Anda! Faze de mim o que quiseres! Sou toda tua! Dispõe do que é teu!»

Nisto, rodou uma carruagem na Rua da Estrela.

Ana Rosa correu à janela, assustada, palpitante. O carro parou à porta de Manuel; a moça estremeceu de medo e de esperança, e, toda excitada, convulsa, doida, viu saltar Raimundo.

-Suba! suba pra cá! disse-lhe ela, já no corredor. Suba por amor de Deus!

Raimundo sentiu as mãos frias da moça prenderem as suas. Gaguejou.

-Seu pai? Não quis partir, sem...

-Entre, entre para cá. Venha! Preciso falar-lhe.

E Ana Rosa puxou-o violentamente. O rapaz deixou-se arrastar; supunha encontrar-se com Manuel.

-Mas... balbuciava ele confuso, reparando, todo trêmulo, que entrava no gabinete de sua prima. Perdão, minha senhora, porém seu pai onde está?... Vinha pedir-lhe as suas ordens...

Ana Rosa correu à porta, fechou-a bruscamente, e atirou-se ao pescoço de Raimundo.

-Não partirás, ouviste? Não hás de partir!

-Mas...

-Não quero! Disseste que me amas e eu serei tua esposa, haja o que houver!

-Ah! se fosse possível!...

-E por que não? Que tenho eu com o preconceito dos outros? Que culpa tenho eu de te amar? Só posso ser tua mulher, de ninguém mais! Quem mandou a papai não atender ao teu pedido? Tenho culpa de que não te compreendam? Tenho culpa de que minha felicidade dependa só de ti? Ou, quem sabe, Raimundo, se és um impostor e nunca sentiste nada por mim?...

-Antes assim fosse, juro-te que o desejava! Mas supões que eu seria capaz porventura de sacrificar-te ao meu amor? que eu seria capaz de condenar-te ao ódio de teu pai, ao desprezo dos teus amigos e aos comentários ridículos desta província estúpida?... Não! deixa-me ir, Ana Rosa! É muito melhor que eu vá!... E tu, minha estrela querida, fica, fica tranqüila ao lado de tua família; segue o teu caminho honesto; és virtuosa, serás a casta mulher de um branco que te mereça... Não penses mais em mim. Adeus.

E Raimundo procurava arrancar-se das mãos de Ana Rosa. Ela prendeu-se-lhe ao pescoço, e, com a cabeça derreada para trás, os cabelos soltos e dependurados, perguntou-lhe, cravando-lhe de perto o olhar:

-O que há de sincero na tua carta?

-Tudo, meu amor, mas por que a leste antes de eu ter partido?

-Então, sou tua! Olha, saiamos daqui! já! fujamos! Leva-me para onde quiseres! Fazes de mim o que entenderes!

E deixou cair o rosto sobre o peito dele, e abraçou-o estreitamente.

Raimundo estava imóvel, medroso de sucumbir, entalado numa profunda comoção.

-Decide! exigiu ela, soltando-o.

Ele não respondeu. Ofegava.

-Pois olha, se não quiseres fugir, farei acreditar a meu pai que és um infame! Tens medo, não é verdade?... pois bem, eu lhe direi tudo que me vier à cabeça!... chamarei sobre ti todo o ódio e toda a responsabilidade do meu amor! porque tu és um homem mau, Raimundo, e meu pai acreditará facilmente que abusaste da hospitalidade que ele te deu. És um miserável. Sai daqui.

Raimundo preciptou-se contra a porta. Ana Rosa atirou-se-lhe de novo ao pescoço, soluçando.

-Perdoa, meu amor! eu não sei o que estou dizendo! Desculpa-me tudo isto, meu querido, meu senhor! Reconheço que és o melhor dos homens, mas não partas, eu te suplico pelo que mais amas! Sei que é o teu orgulho que faz mau; tens toda razão, mas não me abandoes! Eu morreria, Raimundo, porque te amo muito, muito! e nós mulheres, não temos como tu tens, outras ambições além do amor da pessoa que idolatramos! Bem vês! Eu sacrifico tudo por ti; mas não partas, tem piedade! Sacrifica também alguma coisa por mim! não sejas egoísta! não fujas! É o orgulho! mas que nos importam os outros, quando nós nos possuímos?... Só a ti vejo, só a ti respeito, só a ti procuro agradar! Anda! Leva-me contigo! Eu desprezarei tudo; mas preciso ser tua, Raimundo, preciso pertencer-te exclusivamente!

E Ana Rosa caiu de joelhos, sem se desgarrar do corpo dele.

-É uma escrava que chora a teus pés! é uma desgraçada que precisa da tua compaixão! Sou tua! aqui me tens, meu senhor, ama-me! Não me abandones!

E soluçou, empalmando o rosto com as mãos. Raimundo, procurando erguê-la, vergava-se todo sobre ela. E o contato sensual daquela carne branca dos braços e do colo da rapariga, e o sarrafaçar daqueles lábios em brasa, e a proibição de tocar em todo aquele tesouro proibido, fustigavam-lhe o sangue e punham-lhe a cabeça a rodar, numa vertigem.

-Meu Deus! Ó Ana Rosa, não chores! Levanta-te por amor de Deus!

Ana Rosa continuava a chorar, e um tremor nervoso percorria o corpo inteiro de Raimundo. Foi nessa ocasião que a lanchinha do Portal soltou o seu primeiro sibilo, chamando os passageiros retardados; e aquele grito, penetrante e impertinente, chegou aos ouvidos do rapaz, ali, na doce reclusão daquele quarto, como uma nota destacada do coro de imprecações com o público maranhense, formigando lá fora nas ruas, aplaudia a sua retirada da província. Ele num relance mediu a situação, calculou a conseqüências ridículas da sua fraqueza, lembrou-se das palavras de Manuel, e afinal o seu orgulho rebentou com a impetuosidade de um temporal.

-Não, gritou, repelindo bruscamente a moça.

Precipitou-se para a saída.

Ana Rosa caiu a meio, amparando-se numa das mãos, mas ergueu-se logo, tomando-lhe a passagem. E, com um gesto altivo, atravessou-se contra a porta, de braços abertos, sobranceira, nobre, os punhos cerrados. Estava lívida e desgrenhada; a boca contraía-se-lhe numa dolorosa expressão de sacrifício e desespero. Arfavam-lhe as narinas e o seu olhar fulgurava terrível e cheio de ameaça.

Raimundo conservou-se um instante imóvel e perplexo defronte daquela inesperada energia.

-Não sairás, porque eu não quero! disse ela com a voz estalada e surda. Não sairás daqui, do meu quarto, enquanto não estivermos de todo comprometidos!

-Oh!

Houve então um silêncio angustioso para ambos. Raimundo abaixou os olhos e pôs-se a meditar, muito aflito. Parecia arrependido e humilhado pela sua fraqueza. «Por que voltara?...» Ana Rosa foi ter com ele e passou-lhe meigamente o braço pelas costas. Era outra vez a mesquinha rola medrosa e comovida.

-Tudo que de bom eu podia fazer para casar contigo, bem sabes que já o fiz... murmurou ela, agora sem ânimo de encará-lo. Papai não consentiu, na esperança de dar-me a outro... E eu não me sujeito a isso!... Hei de esgotar até o último recurso para continuar a ser só tua, meu amigo! É com essa resolução que te prendo a meu lado!... Pode ser que isso te pareça mau e desonesto, mas juro-te que nunca defendi tanto o meu pudor e a minha virtude como neste momento! Para salvar-me tenho por força de fazer-me tua esposa, e só há um meio de conseguir que o permitam, é tornando-me desvirtuada aos olhos de todos e só aos teus me conservando casta e pura...

E abaixou as pálpebras, toda ela afogada em pejo. Raimundo não fez o menor movimento, nem deu uma palavra.

Ana Rosa abriu a soluçar.

-Agora... podes ir quando quiseres... acrescentou, desligando-se dele. Agora podes abandonar-me para sempre... fico com a minha consciência tranqüila, porque lancei mãos de todos os recursos para casar contigo... Vai-te! Nunca pensei é que, nesta última provação, ainda o covarde fosses tu! Vai-te embora por uma vez! Deixa-me! -E soluçou forte. -Se mais tarde hei de arrepender-me, é melhor mesmo que se acabe desde já com isto! Eu sou uma infeliz! uma desgraçada!

E chorava.

Raimundo puxou-a carinhosamente para junto dele; afagou-a, chamando-lhe a cabeça para seu peito.

-Não chores, disse-lhe. Não te mortifiques desse modo...

-Mas não é assim?... queixava-se a mísera, com o rosto escondido no colo do moço. Por uma outra, que não te merecesse mais, farias tudo!... Tola fui eu em confessar que te amo tanto, ingrato!... Tu não merecias a metade do que fiz por ti! És um fingido!

E soluçava, mais e mais, como uma criança magoada. O rapaz abraçou-se com ela e beijou-a repetidas vezes em silêncio.

-Não chores, minha flor... segredou-lhe afinal. Tens toda a razão... perdoa-me se fui grosseiro contigo! Mas que queres? todos nós temos orgulho, e a minha posição ao teu lado era tão falsa!... Acredita que ninguém te amará mais do que te amo e te desejo! Se soubesses, porém, quanto custa ouvir cara a cara: «Não lhe dou minha filha, porque o senhor é indigno dela, o senhor é filho de uma escrava!» Se me dissessem: «É porque é pobre!» que diabo! -eu trabalharia! se me dissessem: «É porque não tem uma posição social!» juro-te que a conquistaria, fosse como fosse! «É porque é um infame! um ladrão! um miserável!» eu me comprometeria a fazer de mim o melhor modelo dos homens de bem! Mas um ex-escravo, um filho de negra, um -mulato!- E, como hei de transformar todo meu sangue, gota por gota? como hei de apagar a minha história da lembrança de toda esta gente que me detesta?... Bem vês, meu amor, tenho posição definida, não me faltam recursos para viver em qualquer parte, jamais pratiquei a mínima desairosa, que me envergonhe; e, no entanto, nunca serei feliz, porque só tu és a minha felicidade e eu nada devo esperar de ti! Ah, se soubesses, Ana Rosa, quanto doem estas verdades... perdoarias todo o meu orgulho, porque o orgulho de cada homem de bem está sempre na razão do desprezo que lhe votam!

Ana Rosa bebeu-lhe, boca a boca, estas últimas palavras.

-Entretanto... prosseguiu ele, vencido de todo, já não tenho coragem para deixar-te!... -E abraçavam-se. -Como poderei, de hoje em diante viver, viver sem ti, minha amiga, minha esposa, minha vida?... Dize! fala! aconselha-me por piedade, porque eu já não sei pensar!...

Um novo assobio de bordo veio interrompê-lo.

-Não ouves, Ana Rosa?... O vapor está chamando...

-Deixa-o ir, meu bem! tu ficas...

E os dois estreitaram-se, fechados nos braços um do outro, unidos os lábios em mudo e nupcial delírio de um primeiro amor.

Não obstante Manuel e o cônego ainda se deixavam ficar na guardamoria, depois da decepção da última carruagem.

-Cachorro! exclamava o negociante fora de si, a passear de um para outro lado, ameaçando o teto com o seu enorme guarda-chuva. Grandíssimo tratante! -E parando defronte de Diogo: -Caçoou conosco, seu compadre! caçoou conosco, o desavergonhado! Também, que faça cruz, em casa não me põe mais os pés! sou eu quem o diz! Nunca mais!

Ouviram-se três silvos repetidos.

-É o último sinal... disse o empregado da guardamoria. O vapor vai largar. Suspendeu a escada.

Manuel, com as mãos cruzadas atrás, o chapéu descaído para a nuca, o corpo a bambolear sobre as suas perninhas curtas, interrogou, muito vermelho, o cônego:

-E o que me diz desta, compadre?.. Então que me diz desta?!... Ora já se viu?...

-Deixe-se disso!... repreendeu o outro. E encaminhou-se para a porta, abriu o seu guarda-sol de dezoito varetas, e acrescentou, disposto a retirar-se:

-Vamos indo. Meus senhores, vivam! obrigado.

Puseram-se os dois a subir vagarosamente a rampa.

-Ora, meta-se um homem com semelhante gente!... resmungava o negociante, batendo com a biqueira do chapéu-de-chuva nas pedras da calçada. Traste! Peralta! Mas também, pode chegar-se para quem quiser!... comigo não conte para mais nada! Canalha!

E continuou a praguejar, numa verbosidade de cólera. O cônego interrompeu-o no fim de algum tempo:

-Suaviter in modo, fortiter in re!...

O outro calou-se logo e prestou-lhe toda a atenção; conversaram uma boa hora, em voz baixa, parados a uma esquina do Largo do Palácio, combinando sobre o que melhor convinha fazer.

-Adeus, disse afinal o cônego. Não se esqueça, hein? E observe bem tudo o que ela responda.

-Você aparece por lá?

-Logo depois do almoço.

E, ambos cabisbaixos, cada qual tomou o seu rumo.

Comentava-se já o fato na Praça do Comércio e na Rua de Nazaré.

Manuel chegou a casa e foi atravessando o armazém.

-O doutor Raimundo esteve aí em cima? perguntou ele ao Cordeiro.

-Esteve, sim senhor, porém já saiu. Metia-se no carro, justamente, quando eu chegava da cobrança.

-Há muito tempo?

-Há coisa de meia hora, pouco mais ou menos.

-Vocês já almoçaram?

-Já sim senhor.

-Bem! Diga ao seu Dias, quando vier, que não se esqueça de tirar aquelas contas correntes do interior; e você vá à alfândega e veja se no manifesto do Braganza estão aqueles fardos de estopa, número 105 a 110. Olhe, tome o conhecimento.

E passou-lhe um quarto de papel azulado, impresso. Depois ia subir, mas voltou ainda.

-Ah! é verdade! seu Vila Rica!

-Senhor!

-O pequeno está aí?

-Não senhor, foi ao tesouro.

-Aviaram-se já aquelas encomendas de Caxias?

-Já estão duas caixas de chitas arrumadas. O vapor só sai depois de amanhã.

-Bom...

E Manuel pensou um pouco.

-Ah! Sabe se seu Cordeiro despachou os fósforos?

-Ainda não senhor, porque o conferente, que está nos despachos sobre água, não os pôde fazer ontem.

-Bem, diga ao Cordeiro que veja se acaba com isso hoje.

E o negociante subiu afinal.

A varanda estava deserta. Maria Bárbara rezava no seu quarto, agradecendo a Deus e aos santos a suposta partida de Raimundo. Manuel tomou seu cálice de conhaque ao aparador, e dirigiu-se depois para a cozinha.

-Que é de Anica?

-Está no quarto, deitada.

-Doente?

-Sim senhor, com febre.

-Que tem ela?

-Não sei, não senhor...

Manuel bateu à porta da alcova de Ana Rosa. Veio ela mesma abrir, muito pálida, e voltou logo, para se meter de novo na rede.

-Que tens tu, Anica?

-Não estava boa!... Nervoso!...

Mas não encarava com o pai, e suspiros estalavam-lhe na garganta.

Manuel assentou-se pesadamente numa cadeira, junto dela, limpando com o lenço o rosto, o pescoço e a cabeça.

-Recomendações do Mundico! disse no fim de um silêncio, disfarçadamente.

-Como?! exclamou Ana Rosa, soerguendo-se em sobressalto e ferrando no pai o mais estranho e doloroso olhar.

-Foi-se! explicou Manuel. O vapor deve estar saindo neste momento. Lá ficou ele a bordo! Coitado! talvez seja feliz na Corte!...

-Miserável bradou a moça, com um grito desesperado.

E deixou-se cair para trás, na rede, a estrebuchar.

-Bonito! Ana Rosa! Então que é isto, minha filha?... gritava Manuel, procurando conter-lhe os movimentos crônicos. D. Maria Bárbara! Brígida! Mônica!

O quarto encheu-se. Escancararam-se a porta e as janelas; vieram os sais e o algodão queimado. Mas, só depois de grandes lutas, a histérica quebrou de forças e pôs-se a soluçar, extenuada e arquejante. Manuel, todo aflito, não sossegava, de um para outro lado, na ponta dos pés, falando em voz discreta, indo de vez em quando ao corredor se o cônego já tinha chegado, e voltando sempre a coçar a nuca, o que nele indicava extrema perplexidade.

-Vossemecê já quer almoçar? perguntou-lhe a Brígida.

-Vai para o diabo!

O cônego chegou afinal, ao meio-dia, com um ar muito tranqüilo, de boa digestão; o palito ao canto da boca.

-Então?... informou-se ele de Manuel, levando-o misteriosamente para um canto da varanda.

-Foi o diabo... seu compadre! A pequena, logo que ouviu a peta, caiu-me com um ataque; e agora o verás! gritou e estrebuchou por um ror de tempo, até que lhe vieram os soluços! Um inferno!

-E agora? Como está ela?

-Mais sossegadinha, porém suponho que vai ter febre... Eu não quis chamar o médico, sem falar primeiro com você...

-Fez bem.

E o cônego recolheu-se a meditar.

-Com os demos!... resmungou por fim. A coisa estava muito mais adiantada do que eu fazia...

-E agora?

-Agora, é dizer-lhe a verdade!... O que eu queria era saber em que pé estava a questão... Ela se supõe traída e, para supor tal, é preciso que tenha concertado algum plano com o melro... Eis justamente o que convém destruir quanto antes!...

E, depois de uma pausa:

-Aquela indiferença pela retirada de Raimundo era devida à certeza do contrário...

Calou-se e perguntou, daí a um instante:

-Ela acreditou logo no que você disse?

-Logo, logo! gritou: «Miserável!» e zás! caiu com o ataque!

-É singular...

-O quê?

-Ter acreditado tão facilmente... mas, enfim... conte-se-lhe a verdade!...

-Então, espere um instantinho, que...

-Não senhor, venha cá, compadre, vou eu; a mim talvez que a pequena diga tudo com mais franqueza.

E, inspirado por uma idéia, voltou-se para Manuel:

-Olhe! você, o melhor é fingir que não sabe de coisa alguma... compreende?

-Como assim?

-Não se dê por achado... finja que estás deveras persuadido da partida de Raimundo.

-Para quê?

-É cá uma coisa...

E o cônego, revestindo um ar consolador e respeitoso, entrou, com passos macios, no aposento de Ana Rosa.

A crise tinha cessado de todo; a doente soluçava baixinho, com o rosto escondido entre dois travesseiros. A boa Mónica, ajoelhada aos pés dela, vigiava-a com a docilidade de um cão. D. Maria Bárbara assentada perto da rede exprobrava a neta, a meia voz, aquele mal cabido pesar por um fato que nada tinha de lamentável.

-Então, minha afilhada que é isso?... perguntou o padre, passando carinhosamente a mão pela cabeça da rapariga.

Ela não se voltou; continuava a chorar, inconsolável, assoando de espaço a espaço o narizinho, agora vermelho do esforço do pranto. Não podia falar, os soluços secos e muito suspirados, repetiam-se quase sem intervalo. Com um sinal o cônego afastou Maria Bárbara e Mônica, e, chegando os seus lábios finos ao ouvido da afilhada, derramou nele estas palavras, doces e untuosas, como se fossem ungidas de santo óleo:

-Tranqüilize-se... Ele não partiu... está aí... Sossegue...

-Como?

E Ana Rosa voltou-se logo.

-Não faça espalhafato... Convém que seu pai não saiba de coisa alguma... Descanse! sossegue! Raimundo não partiu, ficou!

-Vossemecê está me enganando dindinho!...

-Com que interesse, minha desconfiada?

-Não sei mas...

E soluçou ainda.

-Está bom! não chore e ouça o que lhe vou dizer: Saindo daqui, procuro o rapaz e faço-o ausentar-se por algum tempo, até que as coisas voltem de novo aos seus eixos; mais tarde ele se mostrará, e então nós trataremos de tudo pelo melhor... Nec semper lilia florent!...

-E papai?

-Deixe-o por minha conta! fie-se inteiramente em mim! Mas precisamos ter uma conferência completa, sozinhos, num lugar seguro, onde possamos falar à vontade. Para ajudá-los preciso pôr-me bem a par do que há! entregue-se pois às minhas mãos e verá que tudo se arranja com a divina proteção de Deus!... Nada de desesperos! nada de precipitações!... Calma, minha filha! sem calma nada se faz que se preste!...

E, depois de uma meiguice: -Olhe, venha um dia à Sé, confessar-se comigo... Sua avó encomendou-me uma missa cantada. Não pode haver melhor ocasião... Confesso-a depois da missa. Está dito?

-Mas, para quê, dindinho?...

-Para quê?... é boa! para poder ajudá-la, minha afilhada!...

-Ora...

-Não? pois então lá se avenham vocês dois, mas duvido muito que consigam alguma coisa!... Se tem confiança em seu padrinho, vá à missa, confesse-se, e prometo que ficará tudo arranjado!

Ana Rosa tinha já a fisionomia expansiva; sentia vontade até de abraçar o cônego; aquele bom anjo que lhe trouxera tão agradável notícia.

-Mas não me engane, dindinho!... Diga sério! ele não foi mesmo?

-Já lhe disse que não, oh! Tranqüilize-se por esse lado e venha a ter comigo à igreja! Tudo se acomodará a seu gosto!

-Jure!

-Ora, que exigência!... que criancice!...

-Então não vou...

-Está bom, juro.

E o cônego beijou os indicadores, traçados em forma de cruz sobre seus lábios.

-E agora? está satisfeita?

-Agora sim.

-E vai à confissão?

-Vou.

-Ainda bem!

A casa particular de Manuel Pescada tinha, pelo menos em aparência, recaído no seu primitivo estado de paz e esquecimento. Tanto aí, como pela cidade, já bem pouco se falava de Raimundo.

Ele, ao sair do quarto da amante, havia reformado seu programa de vida. No mesmo dia partiu para Rosário; foi visitar a mãe, na esperança de trazê-la em sua companhia para a capital e viver ao lado dela, mas Domingas não se deixou apanhar e o infeliz teve de voltar só.

Instalou-se no Caminho Grande, numa casinha velha, escondido como um criminoso de morte. Daí, com muita dificuldade, escreveu uma carta a Ana Rosa, confiando-lhe os seus projetos; a carta terminava assim: «O melhor é deixarmos que tudo serene completamente e que de todo se esqueçam de nós, e então eu te aparecerei na noite que combinarmos e poremos em prática o plano exposto no começo desta. Quanto a teu pai, só me entenderei com ele, no dia em que esse teimoso estiver resolvido a perdoar o genro e a filha. Adeus. Não desanimes e tem plena confiança no teu noivo extremoso. -Raimundo.»

Com essa missiva Ana Rosa tranqüilizou-se tanto, que procurou dissuadir o cônego da idéia da tal confissão. «No fim de contas, se era pecadora, fora-o premeditadamente e não se arrependia. A consciência dizia-lhe que o casamento resgatava a sua falta. Dindinho, por conseguinte, que tivesse paciência, ela não sentia necessidade de perdão!...» Raciocinando deste modo, falou com franqueza ao padre e retirou a promessa que lhe fizera; mas o reverendo repontou, ameaçando-a com uma denúncia a Manuel. A rapariga chegou a suspeitar que o padrinho sabia de tudo, e amedrontou-se.

-Mas, dindinho, vossemecê embirrou com este negócio da confissão!...

O cônego assentou os olhos no teto, à míngua de céu, e, recorrendo aos efeitos artísticos da sua profissão, desenrolou uma prática, que terminava no seguinte:

-Malos tueri haud tutum... Não sabes porventura, pecadora, vítima inocente de tentações diabólicas! que eu devo à minha consciência e a Deus duplas contas do que faço cá na terra?... Não sabes, minha afilhada, que todo sacerdote caminha neste vale de lágrimas entre dois olhos perspicazes e penetrantes, dos juízes austeros e inflexíveis, um chamado -Deus, e outro- Consciência?... Um que olha de fora para dentro, e outro de dentro para fora?... E que o segundo é o reflexo do primeiro, e que, satisfeito o primeiro, o segundo está também satisfeito?... Não sabes que terei um dia de prestar contas dos meus atos mundanos, e que, percebendo agora que uma ovelha se desgarra do rebanho e arrisca perder-se do caminho da luz e da pureza, é de minha obrigação, como pastor, correr em socorro da desgraçada e guiá-la de novo ao aprisco, ainda que se faça preciso a violência?... Por conseguinte, filha de Eva, vem à igreja! vem! confessa-te ao sacerdote de Nosso Senhor Jesus Cristo! abre tua alma de par em par defronte dele, que teu coração se fechará logo aos imundos apetites da carne! Abraça-te, como Madalena, aos pés do representante de Deus, até que este último se compadeça de ti pecadora! Deum colenti stat sua merces!

E o cônego ficou ainda um instante a olhar para o teto com os braços erguidos e os olhos em branco.

-Pois bem Dindinho, pois bem! disse Ana Rosa, impressionada. E desarmou sem cerimônia a posição extática do padre. -Irei a tal confissão, mas deixe-se dessas coisas e não esteja a falar desse modo, que isso me faz mal aos nervos! Bem sabe que sou nervosa.

Ficou resolvido que a missa encomendada por Maria Bárbara seria no primeiro domingo do seguinte mês, e que Ana Rosa iria à confissão.

Mônica, sempre desvelada e extremosa por sua filha de leite, iniciara-se nos segredos desta e, como era lavadeira, todas as vezes que ia à fonte, dava um pulo à casa de Raimundo para trazer notícias dele a laiá.

Uma noite, o cônego Diogo, envolvido na sua batina de andar em casa debruçado sobre uma velha mesa de pau-santo, com os pés cruzados sobre um surrado couro de onça, ainda do tempo do Rosário, a cabeça engolida num trabalhado gorro de seda, primorosamente bordado pela afilhada, lia, defronte do seu candeeiro, um grosso volume de encadernação antiga, em cujo frontispício estava escrito: «História Eclesiástica. Tomo undécimo. Continuação dos séculos cristãos ou história do Cristianismo, nos seus estabelecimentos e progresso: Que compreende desde o ano de 1700 até o atual Pontificado de N.S.P. Pio VI. Traduzida do espanhol. Lisboa. Na Tipografia Rolandina, 1807. Com a licença da mesa do desembargo do Paço.» O bom velho perdia-se numas descrições enfadonhas sobre a seita dos Pietistas, fundada nos fins do século XVIII por Spener, cura de Francfort, quando bateram à porta do seu gabinete três pancadinhas discretas e compassadas. Marcou logo o livro, com o palito com que escarafunchava os dentes, e foi abrir.

Era o Dias. Estava cada vez mais magro e mais bilioso, porém com a figura mascarada sempre por aquele inveterado sorriso de astuciosa passividade.

-Venho incomodá-lo, senhor cônego...

-Essa é boa!... Vá entrando.

E, como a visita não se animasse a falar, acrescentou depois de uma pausa:

-Mandou a carta que lhe dei?...

-Já ele a tem no papo. Atirei-a eu mesmo pelas rótulas da sua janela, na véspera do tal embarque!

-Já descobriu onde ele mora presentemente?

-Ainda não consegui, não senhor, mas quer me parecer que o patife se aninha lá pras bandas do Caminho Grande.

-Olho vivo. O traste pode surgir de repente e pregar-nos alguma partida! Olho vivo! Você tem feito o que lhe recomendei?

-A que respeito?

-A respeito da espionagem.

-Tenho, sim senhor.

-Então! o que já descobriu?

-Por hora nada que valha... E creia o senhor cônego que não me descuido. Além daquela busca que dei no dia de São João, não há instantinho, que possa roubar ao serviço, que não seja para dar fé do que se passa lá por casa. Mas, do que tenho apanhado, só o que me disse respeito ao negócio foi uma conversa entre a D. Anica e a velha...

-A Bárbara?

-Sim senhor.

-E então?

-É que a pequena, depois de pedir muito à avó que se compadecesse dela e obtivesse do pai liberdade para se casar com o cabra, abriu a chorar e a lamentar-se como uma varrida! E «que era muito desgraçada; que ninguém em casa a estimava; que todos só queriam contrariá-la... E porque faria isto, e porque faria aquilo!...»

-Mas o que dizia ela que faria?... Ora que diabo de maneira tem você de contar as coisas!...

-Tolices, senhor cônego, tolices de moça... Que se matava! ou que fugia! ou que se metia à freira!... E porque o casamento pra cá! e porque o casamento pra lá! Enfim, queria dizer na sua, que uma mulher nunca devia casar obrigada! Afinal, atirou-se aos pés da avó, soluçando e dizendo que, se não a deixassem casar com o Raimundo, que ela não responderia por si!...

-Então, a velha já sabe que o Raimundo ficou?...

-Parece. A rapariga, pelo menos, disse que a avó, junto com o pai, haviam de amargar muito desgosto por mor de não consentirem no casamento!...

-E o que fez ela?

-Quem, a pequena?

-Não, a velha.

-A velha enfezou-se e pô-la do quarto pra fora, jurando que antes queria vê-la estirada debaixo da terra do que casada com um cabra, e que, se o patrão...

-Que patrão senhor?

-Seu Manuel, o pai!

-Ah! o compadre.

-Sim senhor. Mas se o patrão, por qualquer aquela, cedesse, ela é que não consentiria no casamento da neta, e romperia com o genro!

-Bom, bom! Vamos bem! E a rapariga?

-Ora, a rapariga lá se foi choramingando para o quarto e, se me não engano, meteu-se a rezar.

-Reza, hein?! perguntou o cônego com interesse.

-É! ela reza mais agora...

-Muito bem! muito bem! Vamos maravilhosamente!

-E está toda cheia de abusões... Ainda outro dia, dei fé que ela pendurava alguma coisa no poço; logo que pude, corri para ver se descobria o que vinha a ser. Ora o que pensa vossemecê que era?...

-Um Santo Antônio.

-Justo. Era um Santantoninho assinzinho!... confirmou o Dias, marcando uma polegada no index.

-Bem! disse o cônego. Continue a espreitar, mas... todo cuidado e pouco! Que ninguém perceba!... principalmente minha afilhada, compreende?... Se descobrem que você anda farejando, está tudo perdido!... Finja-se tolo!... Tenha fé em Deus! E ânimo! Quando apanhar qualquer novidade, apareça-me logo! Não deixe de espiar! lembre-se de que a arma com que havemos de esmagar o bode, ainda está nas mãos dele!...

-Ora, senhor cônego, mas eu já vou perdendo a fé!... Confesso-lhe que...

-Não seja idiota, que você não tem razão nenhuma para desanimar! trate, mas é de ver se descobre alguma coisa, porém coisa grossa, que dê para agarrar, porque depois o mais fácil é o seu casamento! Olhe! Preste atenção para quem entra e para quem sai! Se eles ainda não se correspondem, o que duvido, virão a corresponder-se mais tarde! em todo o caso, é prudente não recorrer por ora às cartas -deixe-os escrever, que lhe direi quando é que você terá de apoderar-se de alguma delas. A fruta, para ser aproveitável, deve ser colhida de vez!...

-Bem, senhor cônego, posso retirar-me?...

-Viva!

-Então, vou-me chegando.

-Sis felix!

-Como? perguntou o Dias, voltando-se.

-Não se descuide. Vá!

O caixeiro fez uma mesura e saiu Diogo fechou a porta e tornou à sua História Eclesiástica, até que a caseira Inácia foi chamá-lo para a ceia. Então, depois de abaixar a luz do candeeiro, passou-se à varanda e assentou-se pachorrentamente, defronte de uma tigela de canja. Veio logo um gato maltês, gordo, grande, encarapitar-se-lhe nas coxas, miando ternamente e voltando para ele a sua fosforescente pupila, que lhe suplicava carícias.

Dir-se-ia que naquele canto, modesto e asseado, reinava a paz abençoada dos justos.

No domingo seguinte a Sé chamava para a missa, com um alegre repinicar de sinos. Era a promessa de D. Maria Bárbara.

Havia grande afluência do povo. As beatas subiam piedosamente os arruinados degraus do átrio e iam, de cabeça vergada, ajoelhar-se no corpo principal da igreja. Sentia-se o frufru de vetustas e farfalhudas saias de chamalote, restauradas com chá-preto, o estalar de fortes chinelas novas na sonora cantaria do templo, e o tilintar das contas de coco babaçu, cujos rosários deslizavam entre os trêmulos dedos das velhas, no fervoroso sussurro das orações. Viam-se-lhes as camisas de cabeção bordado e cheias de rendas e labirintos; destacavam-se também grandes toalhas de linho branco, penduradas dos ombros carnudos das cafuzas e mulatas; reluziam os seus enormes pentes de tartaruga, enfeitados de ouro, e as contas preciosas, que lhes circulavam, com muitas voltas, as tocinhudas espáduas e as roscas taurinas do cachaço. Em cima, perto do altar-mor, em lugares privilegiados, sobressaíam chapéus enfeitados de fitas e plumas, leques irrequietos, que se agitavam desordenadamente, com um ruído casquilho de varetas batendo de encontro aos broches e alfinetes de peito, numa confusão de cores espantadas; eram devotas de fino trato, velhas e moças ostentavam jóias vistosas e perfumes ativos segurando, com luva Horas Marianas encadernadas de marfim, veludo, prata e madrepérola.

Recendia por toda a catedral um aroma agreste de pitangueira e trevo cheiroso. Pela porta da sacristia lobrigavam-se de relance padrecos apressados, que iam na carreira, vestindo as suas sobrepelizes dos dias de cerimônia. Havia na multidão um rumor impaciente de platéia de teatro. O sacristão, cuidando dos pertences da missa, andava de um para outro lado, ativo como um contra-regra, quando o pano de boca vai subir.

Afinal, à deixa fanhosa de um padre muito magro que, aos pés do altar desafinava uns salmos da ocasião, a orquestra tocou a sinfonia e começou o espetáculo. Correu logo o surdo rumor dos corpos que se ajoelhavam; todas as vistas convergiam para a porta da sacristia; fez-se um sussurro de curiosidade, em que se destacavam ligeiras tosses e espirros; e o cônego Diogo apareceu, como se entrasse em cena, radiante, altivo, senhor do seu papel e acompanhado de um acólito que dava voltas frenéticas a um turíbulo de metal branco.

E o velho artista, entre uma nuvem de incenso, que nem um deus de mágica, e coberto de galões e lantejoulas, como um rei de feira, lançou, do alto da sua solenidade, um olhar curioso e rápido sobre o público, irradiando-lhe na cara esse vitorioso sorriso dos grandes atores nunca traídos pelo sucesso.

Com efeito, os espectadores adoravam-no, posto que ele agora raras vezes trabalhasse; mas nessas poucas, em que se dignava mostrar-se por condescendência a uma velha amiga, como naquela ocasião, o seu triunfo era esplêndido e certo. Vinha gente de longe para vê-lo; para admirar a imponência, a distinção, a gentileza daquele porte de homem. Incomodaram-se muitas pessoas para não perder aquela missa; sexagenárias do seu tempo mandaram espanar o palanquim, havia longos anos esquecido debaixo da escada, e espantaram a vizinhança com uma saída à rua; e ali, esses duros corpos encarquilhados, que envelheceram com Diogo, pareciam reviver por instantes, como cadáveres sujeitos a uma ação galvânica, e, trêmulos, mordiam o beiço roxo e franzido, palpitante de recordações.

Em caminho para o altar, o exímio artista olhou para os lados, falou em voz baixa aos seus ajudantes, e encarou a platéia com um sorriso de discreta soberania; mas de súbito o seu sorriso dilatou-se numa feição mais acentuada de orgulho: é que distinguira Ana Rosa, entre as devotas, ajoelhada num degrau da nave, de cabeça baixa, o ar contrito, a rezar freneticamente, ao lado da avó.

Os turíbulos fumegaram com mais força; espirais de incenso espreguiçavam-se, dissolvendo-se no espaço; o ambiente saturou-se de perfumes sacros, e enervantes, e as mulheres, todas, se contraíram preparadas para místicos enlevos. O celebrante chegara enfim ao altar, depois de ajoelhar-se de leve, como fazendo uma mesura apressada, defronte dos santos grandes, aprumados nos seus tronos de brocados falsos. Os janotas, separados do altar-mor por uma grade de madeira preta, tiraram da algibeira, com a ponta dos dedos, o lenço almiscarado e ajoelhavam-se sobre ele, numa atitude elegante. As moças escondiam a boca no livrinho das rezas e passeavam furtivamente o olhar para o lado dos fraques pretos. Os que até aí estiveram ajoelhados, rezando à espera da missa, mudavam de posição; os opulentos quadris das pretas-minas rangiam; os ossos dos velhos estalavam; criancinhas soltavam aclamações de aplauso pela festa, algumas choravam. Mas, finalmente, tudo tomou um sossego artificial; fez-se silêncio, e a missa principiou solene, ao som do órgão.

Ao repicarem de novo os sinos, toda a gente se levantou com algazarra; os rapazes endireitavam as joelheiras das calças; as moças arranjavam os pufes e os laçarotes; as beatas sacudiam as suas eternas saias, agora entufadas pela pressão dos joelhos. A orquestra tocou uma música profana, alegre como uma farsa depois de um drama; o cônego Diogo, na sacristia, tirava o seu pitoresco vestuário de seda bordada, que o sacristão recolhia religiosamente nas suas mãos de tísico, para guardar nos extensos gavetões de pau-negro.

O povo, confortado de religião, mas estalando pelo almoço, espremia-se sôfrego pelas largas portas da matriz. Mendigos, alinhados à saída, pediam, com chorosa insistência, uma esmola pelo amor de Deus ou pelas divinas chagas de Nosso Senhor Jesus Cristo; as devotas desapareciam pelo largo, ligeiras como baratas perseguidas; algumas senhoras, no vestíbulo, arejavam-se ao sol, esperando quem lhes dizia respeito e conversando garrulamente sobre o bom desempenho da missa, sobre a excelência das vozes, a riqueza da roupa do padre e da toalha do altar e sobre a boa observância das cerimônias. Tudo agradara.

A igreja estava quase vazia. D. Maria Bárbara e a neta esperavam pelo herói da função.

-Cá está sua afilhada, senhor cônego! Comungue-a; veja se lhe arranca o diabo de dentro do corpo! disse a velha ao vê-lo.

E, falando-lhe mais baixo, pediu-lhe com interesse que a aconselhasse bem; que lhe sacasse da cabecinha a idéia do tal cabra. E afinal afastou-se, traçando no espaço uma cruz na direção da neta.

-Vai! Deus te ponha virtude, que mau coração não tens tu, minha estonteada!

E saiu, para esperá-la na sala do corredor com o Benedito, que nessa ocasião aparecia, trazendo um carro da cocheira do Porto.

O cônego Diogo calculara bem. A encenação da missa, os amolecedores perfumes da igreja, o estômago em jejum, o venerando mistério dos latins, o cerimonial religioso, o esplendor dos altares, as luzes sinistramente amarelas dos círios, os sons plangentes do órgão, impressionariam a delicada sensibilidade nervosa da afilhada e quebrantariam o seu ânimo altaneiro, predispondo-a para a confissão. A pobre moça considerou-se culpada; pela primeira vez, entendeu que era um crime o que havia praticado com Raimundo, sentiu minguar-lhe aquela energia de aço, que lhe inspirara o seu amor, e ao terminar a missa, quando a avó a depusera nas mãos do velho lobo da religião, a sua vontade era chorar.

Ajoelhou-se, muito comovida, na cadeira, junto ao confessionário e gaguejou, quase sem fôlego, o confiteor. Mas à proporção que rezava, os seus sentidos embaciavam-se por um acanhamento espesso.

-Vamos... disse-lhe o padrinho quando ela terminou a oração. Não tenha receios, minha filha... Confie em mim, que sou seu amigo... Plus videas tuis oculis quan alinis! Por que chora?... Diga...

Ana Rosa tremia.

-Vamos! Não chore e abra-me o coração... Vai responder-me, como se estivesse falando com o próprio Deus, que tudo escuta e perdoa... Faça o sinal da cruz!...

Ela obedeceu.

-Diga-me, minha afilhada, não se tem ultimamente descuidado da religião?...

-Não senhor, balbuciou Ana Rosa por detrás do lenço.

-Tem rezado todas as vezes que se deita e todas as vezes que se levanta?...

-Tenho, sim senhor...

-E nessas rezas não promete obedecer a seus pais?...

-Prometo, sim senhor...

-E tem cumprido?

-Tenho, sim senhor.

-E sente a sua consciência tranqüila? acha que tem cumprido, à risca, tudo o que prometeu a Deus, e tudo o que lhe manda a Santa Madre Igreja?...

Ana Rosa não respondeu.

-Então!... Vamos... disse o padre com brandura. Não tenha medo!... Isto é apenas uma conversa que a senhora tem com a sua própria consciência, ou com Deus, que vem a dar na mesma... Conte-me tudo!... Abra-me seu coração!... Fale, minha afilhada!.. Aqui, eu represento mais do que seu pai; se fosse casada -mais do que seu marido! sou o juiz, compreende, represento Cristo!- represento o tribunal do céu! Vamos, pois, conte-me tudo com franqueza; conte-me tudo, e eu lhe conseguirei a absolvição!... eu pedirei ao Senhor Misericordioso o perdão dos seus pecados!...

-Mas o que lhe hei de eu contar?...

E soluçava.

-Diga-me: o que é que ultimamente a tem posto triste?... Sente-se possuída de alguma paixão, que a atormenta?... Diga.

-Sim, meu padrinho, respondeu ela, sem levantar os olhos.

-Por quem?

-Vossemecê já sabe por quem é...

-Pelo Raimundo...

A moça respondeu com um gesto afirmativo de cabeça.

-E quais são as suas intenções a esse respeito?

-Casar com ele...

-E não se lembre que com isso, ofende a Deus por vários modos?... Ofende, porque desobedece a seus pais; ofende, porque agasalha no seio uma paixão reprovada por toda a sociedade e principalmente por sua família; e ofende, porque, com semelhante união, condenará seus futuros filhos a um destino ignóbil e acabrunhado de misérias! Ana Rosa, esse Raimundo tem a alma tão negra como o sangue! além de mulato, é um homem mau, sem religião, sem temor de Deus! é um -pedreiro livre!- é um ateu! Desgraçada daquela que se unir a semelhante monstro!... O inferno aí está, que o prova! o inferno aí está carregado dessas infelizes, que não tiveram, coitadas! um bom amigo que as aconselhasse, como te estou eu aconselhando neste momento!... Vê bem! repara, minha afilhada, tens o abismo a teus pés! mede, ao menos, o precipício que te ameaça!... A mim, como pastor e como padrinho, compete defender-te! Não cairás, porque eu não deixo!

E, como a rapariga mostrasse um certo ar de dúvida, cônego abaixou a cabeça, e disse misteriosamente:

-Sei de coisas horrorosas, praticadas por aquele esconjurado!... Não é somente o fato de cor o que levanta a oposição do teu pai... (Ana Rosa fez um gesto de surpresa). Saberás, porventura, o que precedeu ao nascimento daquele homem; saberás como veio ao mundo?!.. (E, alterando a voz, para um tom sinistro): Horrible dictu!... É filho de um enxame de crimes e vergonhas!... Aquilo é o próprio crime feito gente!... É um diabo! É o inferno em carne e osso! Não te diria isto, minha filha, se assim não fosse preciso; sabe, porém, que ele, se quer casar contigo, é porque tem a teu pai um ódio de morte e pretende vingar-se do pobre homem na pessoa da filha!...

-Mas do que quer ele vingar-se de papai?...

-Do quê?... De muitas e muitas coisas, que lhe não perdoa!... São segredos de família, que ainda és muito criança para conhecer e julgar!... Mas um dos motivos é, digo-te aqui no sagrado sigilo do confessionário, o fato de haver teu pai herdado consideravelmente do irmão!...

-Não é possível! exclamou Ana Rosa, tentando erguer-se.

-Menina! repreendeu o cônego, obrigando-a a ficar ajoelhada. Reze já! incontinenti, para que Deus se compadeça de tamanho desatino! De joelhos, pecadora! que és muito mais culpada do que eu supunha!

A moça caiu de joelhos, tonta sob o bombardear daquelas imprecações, e gaguejou: o confiteor, batendo muito no peito na ocasião de dizer o «Por mea culpa! mea maxima culpa!» E depois calaram-se ambos, por um instante.

-Então?... disse afinal o padre, tornando à primitiva brandura. Ainda está na mesma ou já entrou a razão nessa cabecinha?... Fale, minha afilhada!

-Não posso mudar de resolução, meu padrinho...

-Ainda pensa em casar com...?

-Não posso deixar de pensar... creia!

O padre velho levantou-se tragicamente, fechou as sobrancelhas e ergueu o braço como um profeta.

-Pois então, declamou, sabe, infeliz, que sobre ti pesará a maldição eterna! sabe que tenho plenos poderes de teu pai para retirar-te a sua bênção! sabe que...

Foi interrompido por um «Ai» de Ana Rosa que perdia os sentidos, caindo a seus pés.

-Ora bolas! resmungou ele, entre dentes.

E saiu do confessionário, para assentar a afilhada num dos longos bancos de madeira preta, que havia ali junto.

Felizmente não era nada. A rapariga deu um profundo suspiro e encostou a cabeça ao colo do padrinho, chorando em silêncio, de olhos fechados.

Ele ficou algum tempo a contemplá-la naquela posição, que a fazia mais bonita, e, perdido em saudosas reminiscências da sua mocidade, admirava a curva macia dos seios, palpitantes, sob a compressão da seda, a brancura mimosa das faces, a engraçada harmonia das feições. «Ó têmpora! Ó mores!...» disse consigo a depô-la, carinhosamente, contra o alto espaldar do banco.

-Vamos... continuou, quase em segredo, como um amante sequioso pelas pazes, depois de um arrufo. Vamos... não seja teimosa... Não se faça má... Ponha-se bem com Deus e comigo...

-Se para isso, balbuciou Ana Rosa, sem abrir os olhos, é preciso desistir do casamento, não posso...

-Mas por que não podes, minha tolinha?... insistiu o confessor, tomando-lhe as mãos com meiguice. -Hum?... por que não podes?...

-Porque estou grávida! respondeu ela, fazendo-se escarlate e cobrindo o rosto com as mãos.

-Horresco referens!

E o cônego deu um salto para trás, ficando de boca aberta por muito tempo, a sacudir a cabeça.

-Sim senhora!... fê-la bonita!...

Ana Rosa chorava, escondendo a cara.

-Sim senhora!...

E o velho apalpava com o olhar o corpo inteiro da afilhada, como procurando descobrir nele a confirmação material do que ela dizia.

-Sim senhora!...

E tomou uma pitada.

-Bem vê... arriscou afinal a rapariga, entre lágrimas, que não tenho outro remédio senão...

-Está muito enganada! interrompeu o cônego energicamente. Está muito enganada! O que tem a fazer é casar com o Dias! E logo! antes que a sua culpa se manifeste!

Ela não deu palavra.

-Quanto a isso... acrescentou o lobo velho, apontando desdenhoso, com o beiço, o ventre da afilhada, eu me encarregarei de lhe dar remédio para...

Ana Rosa ergueu-se com um só movimento e ferrou o olhar no cônego...

-Matar meu filho?!... exclamou lívida.

E, como se temesse que o padre lho arrancasse ali mesmo das entranhas, precipitou-se correndo para fora da igreja.

Saiu pelo lado que fronteia com o jardim público. Maria Bárbara só a pôde alcançar já dentro do carro.

-Com efeito! disse-lhe agastada. Parece antes que vens do inferno do que da casa de Deus!

-É mesmo!

-Que diabos de modos são esses, Anica? repreendeu a velha. Ora vejam se no meu tempo se dava disto! Por que estás com essa cara tão fechada, criatura?!

Ana Rosa, em vez de responder, virou o rosto. E não trocaram mais palavra até a casa, apesar do muito que serrazinou a avó por todo o caminho.

E, no entanto, a pobre moça sentia-se horrivelmente oprimida e precisava desabafar com alguém. Um desejo doido a devorava: era correr em busca de Raimundo, contar-lhe tudo e pedir-lhe conselhos e amparo, porque nele, e só nele, confiaria inteiramente. Queimava-lhe o corpo uma necessidade carnal de vê-lo, abraçá-lo, prendê-lo a ela com todo o ardor dos seus beijos, e depois -arrastá-lo para longe para um lugar oculto, bem oculto, um canto ignorado de todos, onde os dois se entregariam exclusivamente ao egoísmo feliz daquele amor.

Desde que se apercebera grávida, não podia suportar o seu acanhado quarto de menina; a sua rede de solteira causava-lhe íntimas revoltas. E agora, depois de disparatar com o padrinho, sentia-se com forças para tudo; vibrava-lhe no sangue uma energia estranha e absoluta; pensava no filho com transporte e orgulho, como se ele fora uma concepção gloriosa da sua inteligência. E, na obsessão dessa idéia, alheava-se de tudo mais, sem pensar sequer na falsidade da situação em que se avinha.

Aguardava ansiosa os prazeres da maternidade, como se os conquistasse por meios lícitos, e tremia toda em sobressalto só com a lembrança de que poderia vir a faltar à criancinha o menor cuidado ou o mais dispensável conforto; vivia exclusivamente para ela; vivia para esse entezinho desconhecido que lhe habitava o corpo; o filho era o seu querido pensamento de todo o instante; passava os dias a conjeturar como seria ele, menino ou menina, grande ou pequeno, forte ou franzino; se puxaria ao pai. Tinha pressentimentos e tornava-se mais supersticiosa. Apesar, porém, de todos os perigos e dificuldades, sentia-se muito feliz com ser mãe e não trocaria a sua posição pela mais digna e segura, se para isso fosse preciso sacrificar o filho. O filho! só este valia por tudo; só este lhe merecia verdadeira importância, o mais era mesquinho, incompleto, falso ou ridículo, ao lado daquela verdade que se realizava misteriosamente dentro dela, como por milagre; aquela felicidade, que Ana Rosa sentia crescer de hora a hora, de instante a instante, no seu ventre, como um tesouro vivo que avulta; aquela outra existência, que esgalhava da sua existência e que era uma parcela palpitante do seu amado, do seu Raimundo, que ela trazia nas entranhas!

Ao chegar a casa, correu logo para seu quarto, fechou-se por dentro, tomou pena e papel e escreveu, sem tomar fôlego, uma enorme carta ao rapaz. «Vem, dizia-lhe, vem quanto antes, meu amigo, que preciso de ti, para não acreditar que somos dois monstros! Se soubesses como me fazes falta! como me dóis ausente, terias pena de mim! Vem, vem buscar-me! se não vieres até o fim do mês, irei ter contigo, irei ao teu encontro, farei uma loucura!»

Mas Raimundo respondeu que ainda era cedo e pediu-lhe que esperasse com resignação o momento de pôr em prática o que eles já tinham antes combinado.

O rapaz vivia agora muito aborrecido e muito nervoso; estava macambúzio; não queria ver ninguém. Às vezes, assustava-se todo quando a criada lhe entrava inesperadamente no quarto. Deixou crescer a barba; já mal cuidava de si; lia pouco e ainda menos escrevia. As suas relações, granjeadas por intermédio do tio, fecharam-se logo como golpes em manteiga. Não se despregava nunca de casa, porque, sendo Ana Rosa o único motivo de sua demora no Maranhão, só ela o interessava e o atraía à rua.

Ana Rosa, porém, era guardada à vista, desde a malograda partida do primo. E, não obstante, as visitas de Manuel abstinham-se de falar em Raimundo; estabeleceu-se uma hipócrita indiferença em torno do fato; ninguém dava palavra a esse respeito, mas todos sentiam perfeitamente que o escândalo ali estava ainda, abafado, mas palpitante, espreitando a primeira ocasião para rebentar de novo. E a panelinha da casa do negociante esperava, esperava, reunida à noite até as horas regimentais do chá com o pão torrado, conversando em mil assuntos, menos naquele que mais interessava a todos eles, posto que nenhum tivesse coragem de iniciá-lo.

Mas a primeira semana correu sem novidade, e a segunda, a terceira, a quarta; foram-se dois meses, e a panelinha afrouxou desanimada. Eufrásia, a pouco e pouco, ausentara-se de todo; Lindoca, chumbada à sua obesidade, prendera o Freitas ao seu lado; o Campos moscara-se afinal para a roça; o José Roberto afastara-se também, e vivia por aí, na pândega; só quem não desertou, e aparecia com a mesma regularidade, era D. Amância Sousellas pronta sempre para tudo, sempre a dizer mal da vida alheia, nunca deixando de clamar que os tempos estavam outros e que hoje em dia os cabras queriam meter o nariz em tudo.

-Também se lhe dão confiança!... disse ela, uma noite envesgando uma olhadela indireta sobre Ana Rosa.

A filha de Manuel cruzou instintivamente os braços sobre o ventre.

E passaram-se três meses. Ana Rosa, ao contrário do que era de esperar, parecia mais tranqüila; a vigilância contra ela diminuíra consideravelmente: o cônego, fosse por cálculo ou fosse por cumprimento de dever, guardara o segredo da confissão. A casa de Manuel havia, enfim, recaído na sua morna e profunda tranqüilidade burguesa.

De tudo isto Raimundo recebera parte fielmente; e deliberou jogar a última cartada. Escreveu à amante, marcando o dia da fuga. Ana Rosa adoeceu de contente. A coisa seria no próximo domingo; ele faria um carro esperá-la ao canto da rua, e, uma vez que estivessem juntos, fugiriam para lugar seguro. O raptor não seria facilmente reconhecido, porque as barbas lhe transformavam de todo a fisionomia. «No entanto, dizia ele na carta, domingo, às oito da noite, hora em que teu pai costuma conversar na botica do Vidal; quando os vizinhos e caixeiros ainda estão no passeio, e tua avó aos cuidados da Mônica, que é nossa, nessa ocasião, um sujeito barbado, vestido de preto, assoviará junto à tua porta uma música tua conhecida. Esse sujeito sou eu. Ao meu sinal descerás cautelosamente e sem risco algum. O resto fica por minha conta, a casa que nos há de receber e o padre que nos casará, estarão nesse momento à nossa disposição. Ânimo! e até domingo às oito horas da noite.»

«P. S. -Toda a cautela é pouca!...»

Ana Rosa durante os poucos dias que faltavam para a fuga, não fazia mais do que sonhar-se na futura felicidade; estava sobressaltada e ao mesmo tempo radiante de satisfação; mal se alimentava, mal dormia, cheia de uma impaciência frenética, que lhe dava vertigens de febre. No egoísmo da sua alegria materna suportava de mau humor as poucas amigas que a procuravam ou os velhos companheiros de Manuel, que às vezes apareciam para jantar. Mas ninguém parecia, nem por sombras, desconfiar dos seus planos; ao contrário, em casa falava-se, à boca cheia, na obediência daquela boa filha tão resignada à vontade do pai, e cochichava-se devotamente sobre o salutar efeito da confissão. Maria Bárbara resplandecia de triunfo e, como os outros da família, redobrava de solicitudes para com a neta; Ana Rosa era tratada como uma criança convalescente de moléstia mortal, cercavam-na de pequenas delicadezas e mimos amorosos, evitavam-lhe contrariedades, perdoavam-lhe os caprichos e as rabugices. O cônego, malgrado o que sabia, nunca se lhe mostrara tão paternal e tão meigo. E o Dias, o inalterável Dias, ia surdamente ganhando certo predomínio sobre os seus colegas, que principiavam já a respeitá-lo como patrão, porque viam iminente o seu casamento com Ana Rosa.

-Está de dentro! Está ali, está entrando pra sociedade!... rosnavam os caixeiros do Pescada, depois de comentar os novos ares com que a menina tratava Luís.

Ela com efeito, agora o acolhia com menos repugnância; uma vez chegou mesmo a sorrir para ele. Este sorriso, porém, tão mal-entendido por todos, nada mais era do que o contentamento de quem observa o precipício por onde passou e do qual se considera livre.

O fato, porém, é que Manuel andava satisfeito de sua vida. Ouviam-no cantarolar ao serviço; viam-no à porta dos vizinhos, sem chapéu, às vezes em mangas de camisa, a chacotear ruidosamente, afogado em riso; e à noite, em casa, quando chegava o cônego, agora ferrava-lhe sempre um abraço.

-Você é um homem dos diabos, seu compadre! Você é quem as sabe todas!...

-Davus sum non Aedipus!...

A panelinha discutia em particular o grande acontecimento. «Quem seriam os padrinhos?... Quais seriam os convidados?... Como seria o enxoval?... Como seria o banquete?...» E, em breve, por toda província falou-se no próximo casamento da filha do Pescada. Comentaram-no, profetizando boas e más conseqüências; riram-se muito de Raimundo; elogiaram, em geral, o procedimento de Ana Rosa: «Sim senhor! pensou como moça de juízo!...» Todos os amigos da casa começaram a preparar-se para a festa, antes mesmo do convite. O Rosinha Santos andava pouco depois preocupado com o improviso de uma poesia, com que contava reabilitar-se do seu fiasco no dia de São João; o Freitas desfazia-se em discursos, aprovando o fato, mas lastimando Raimundo, cujos artigos e cujos versos ele apreciava convictamente; o Casusa verberava contra os portugueses, furioso porque uma brasileira tão bonita e tão mimosa fosse cair nas mãos de um puça fedorento; Amância e Etelvina perdiam horas a boquejar sobre o caso, insistindo a viúva em que, só vendo, acreditaria em semelhante casamento. Afiaçavam por toda a parte que a festa seria de arromba; diziam, com assombro respeitoso, que haveria sorvetes, e constava até que o Pescada, só para aquele dia, ia fazer funcionar de novo a máquina de gelo de Santo Antônio.

Mas o domingo fatal, que Raimundo destinara a fuga, chegou finalmente. Por sinal que foi um dia bem aborrecido para a gente do Manuel, porque o cônego não apareceu, como de costume, para a palestra, e ninguém sabia por onde andava o Dias. O jantar correu frio, sem pessoas de fora, mas em boa disposição de humor; à mesa, o negociante fez várias considerações sobre o futuro da filha; mostrou-se bom e alegre com o seu copo de Lisboa; acudiram-lhe anedotas já conhecidas da família; vieram-lhe pilhérias a respeito de casamento; disse, a brincar com a filha, que havia de arranjar-lhe para noivo o Tinoco ou o major Cotia. Ela ria-se exageradamente; estava corada, muito inquieta e nervosa; tinha vontade de acariciar o pai, abraçá-lo, beijá-lo ao despedir-se dele. À sobremesa, sentiu um desejo absurdo de contar-lhe com franqueza todos os seus planos, pedir-lhe, pela última vez, a sua aprovação a favor de Raimundo.

Às seis horas entrou D. Amância; ainda os encontrou no café. Ana Rosa teve uma pontada no coração. «Que contratempo!...» A velha declarou que estava cansada, vinha ofegante; pediu que a deixassem repousar um pouco.

-Que estafa a sua, credo! Subir oito ladeiras no mesmo dia!...

-Oito, hein?...

E Ana Rosa mordia os beiços, sorrindo contrariada.

-Coitadinhas! É de estrompar uma criatura!

E conversaram largamente sobre as ladeiras do Maranhão.

-Então aquela do Vira Mundo!... Benza-te Deus!

-Não é pior do que a do Largo do Palácio...

-Deixe estar que a desta sua rua, seu Manuel, também tem o que se lhe diga!...

-E a da Rua do Giz?...

-Um inferno! resumiu a velha, ainda arquejante. Ter a gente de estar sempre a subir e a descer como uma coisa danada! Cruzes!

A conversa continuou, tomando para Ana Rosa um caráter assustador. Amância parecia disposta a dar à língua; não se despregaria dali tão cedo. Os caixeiros recolhiam-se já, e a rapariga tremia de impaciência. «Diabo daquela velha não se poria ao fresco?...» Qual!

O tempo corria.

Manuel declarou, daí a pouco, que não saía de casa. Foi buscar os seus jornais portugueses e pôs-se a ler, à mesa de jantar, na varanda.

A pequena quase que disparava. Correu para o seu quarto, fula de raiva, chorando. «Também, diabo! tudo parecia conspirar contra ela!...»

O relógio bateu uma badalada. Eram sete e meia. Ana Rosa soltou um murro na cabeça. «Diabo!»

Manuel bocejava. Amância parecia resolvida a não sair.

Ana Rosa voltou à varanda; tinha as mãos frias; o coração queria saltar-lhe de dentro. Sentia uma impaciência saturada de medo; seu desejo era gritar, descompor aquele estafermo da velha, pô-la na rua, aos empurrões, «que fosse amolar a avó!» Semelhantes obstáculos à sua fuga pareciam-lhe uma injustiça, uma falta de consideração; vinha-lhe vontade até de queixar-se ao pai; de protestar contra aquelas contrariedades que a faziam sofrer.

Decorreu um quarto de hora. Manuel levantou-se, espreguiçando-se com os jamais na mão.

-Bom! D. Amância dá licença!...

E recolheu-se ao quarto, para dormir.

-Ah!

Ana Rosa criou alma nova; teve vontade de abraçar o pai, agradecendo-lhe tamanha fineza.

-Eu também já me vou chegando... disse Amância. E ergueu-se.

-Já?... balbuciou a moça por delicadeza.

A visita tornou a assentar-se; a outra sentiu ímpetos de estrangulá-la.

Maria Bárbara veio do quarto, e entabulou conversa com a amiga.

Ana Rosa arfava.

-Diabo!

Faltavam cinco para as oito. Amância levantou-se afinal, e despediu-se.

-Ora graças a Deus!...

Maria Bárbara foi até o corredor.

-Olhe, gritou a Sousellas. Não se esqueça, hein?... Três pingos de limão e uma colherzinha de água de flor de laranja... Santo remédio! Ainda é receita da nossa defunta Maria do Carmo!...

E desceu.

Mas, já debaixo, voltou, chamando por Maria Bárbara.

-Olhe, Babu!

Ana Rosa quase perde os sentidos.

Deixou-se cair em uma cadeira.

-É verdade, você não sabe de uma?... -Pois não lhe ia esquecendo?... -A Eufrasinha estava de namoro com um estudante do Liceu?...

-Que estouvada!...

-Um menino de quinze anos, criatura!

E contou toda a história, puxando pelos comentários, e esticando-os.

Ana Rosa, assentada na varanda, em uma cadeira de balanço, rufava com as unhas nos dentes.

-Bem, bem, adeus, minha vida!

E Amância beijocou a cara de Maria Bárbara.

-Até que enfim!

Ana Rosa correu logo ao quarto. Raimundo recomendara-lhe que não levasse nada, absolutamente nada, de casa, que ele estava preparado e prevenido para recebê-la.

O relógio pingou, inalteravelmente, oito badaladas roucas. Maria Bárbara afastara-se para o interior da casa; Manuel continuava a dormir no seu quarto. E daí, a instantes, no silêncio da varanda, ouvia-se o assobio forte de Raimundo, entoando um trecho italiano.

Ana Rosa, cujo coração fazia do seu peito um círculo de ginástica, apanhou trêmula as saias e, com uma ligeireza de pássaro que foge da gaiola, desceu a escada na ponta dos pés, atirando-se lá embaixo nos braços de Raimundo, que a esperava nos primeiros degraus.

Mas, ao transporem a porta da rua, ela soltou um grito, e o rapaz estacou, empalidecendo. Do lado de fora, o cônego Diogo e o Dias, acompanhados por quatro soldados de polícia, saíram ao seu encontro, cortando-lhes a passagem.

Dias, só por si, era um pobre pedaço de asno, incapaz da mínima sutileza de inteligência e pouco destro na pontaria dos seus raciocínios; posto, porém, ao serviço do cônego Diogo, tornara-se uma arma perigosa, de grande alcance e maior certeza. Guiado pelo mestre, o imbecil nunca tinha deixado de espreitar, sempre desconfiado e atento, sondando tudo aquilo que lhe parecia suspeito, acordando, muita vez, por alta noite, para ir, tenteando as trevas, espiar e escutar, na esperança de descobrir alguma coisa. As furtivas conversas de Ana Rosa com a preta Mônica, quando esta voltava da fonte, não lhe passaram despercebidas e por aí chegou ao conhecimento da correspondência de Raimundo, desde logo as primeiras cartas.

-Devo apoderar-me delas... não é verdade? perguntou ao padre.

-Nada! Por ora não! É cedo ainda!... respondeu Diogo.

E este continuava a freqüentar assiduamente a casa do compadre, sempre muito solícito pela saúde da sua afilhada, informando-se, com paternal interesse, das mais pequeninas coisas que lhe diziam respeito, querendo saber quais os dias em que ela comia melhor, quais em que se sentia alegre ou triste, quando chorava, quando se enfeitava, quando acordava tarde e quando rezava. Como bom velho amigo da família, exigia que lhe dessem contas de tudo, e Manuel as dava de bom grado, satisfeito por ver que as coisas iam voltando aos seus eixos e que a sua casa recaía na primitiva tranqüilidade. O cônego, nem por sombra, lhe revelara o segredo da confisão de Ana Rosa, temendo, como solidário do Dias, que o negociante, em conjuntura tão feia, esquecesse tudo e preferisse casar a filha com o homem que a desvirtuara. Quanto ao seu protegido, também não lhe quadrou dizer-lhe a verdade, porque receava que o caixeiro, por escrúpulo ou por medo do rival, desistisse do casamento... Ora, desistindo o Dias, Diogo estaria em maus lençóis, porque Ana Rosa casava-se logo com Raimundo e ele ficaria sujeito a vingança deste, a quem temia, e com razão, depois daquela pequena conferência à volta de São Brás. «Sei perfeitamente, raciocinava o finório, que o traste não tem nenhuma prova contra mim, mas convém-me, a todo custo, fazê-lo sair do Maranhão!... Seguro morreu de velho!... O que o prende aqui é a esperança de obter ainda Ana Rosa; esta, uma vez casada com o basbaque do Dias, irá, mais o marido, dar um passeio à Europa, e o outro musca-se naturalmente. Mas se, por acaso, quiser antes de ir, desmoralizar-me perante o público, todos lançarão suas palavras à conta do despeito e, além de ridículo, ficará tido como um caluniador!...» E, esfregando as mãos, satisfeito com os seus desígnios, concluía: «Quem o mandou meter-se de gorra cá com o degas!...»

Assim, nas ocasiões em que Dias ia preveni-lo da chegada de uma nova carta de Raimundo, o cônego tratava de estudar, com olho de mestre, a impressão que ela deixava no ânimo de afilhada e, vendo o alvoroço em que a rapariga ficara com a última, apressou-se em dizer ao caixeiro:

-Chegou a vez, meu amigo, é agora! Atire-se! Precisamos desta carta!

-E por que nunca precisamos das outras?... perguntou Luís estupidamente.

-Por quê?... Ora eu lhe digo... (Você pilhou-me em boa maré!). As outras cartas eram simples palavrórios de namoro; não valia a pena arriscar-se a gente por elas; demais, minha afilhada podia vir a desconfiar da coisa, redobraria de cuidado, e agora a aquisição desta, que nos é imprescindível, não seria tão fácil, como há de ser, compreende?

Mas a verdadeira causa não a revelou o disfarçado. O cônego não queria que o caixeiro lesse as primeiras cartas de Raimundo, por dois motivos: um, porque temia que este fizesse em alguma delas qualquer revelação a respeito do crime de São Brás; e segundo, porque receava que incidentalmente se referissem elas ao interessante estado de Ana Rosa. O certo, porém, é que semelhante medida facilitou, sem dúvida, a posse da carta, em que Raimundo marcava o dia da fuga. O caixeiro, engodando o Benedito com uma cédula de dez mil réis, obteve-a no mesmo instante; copiou-a logo, restituiu-a, e correu à casa de Diogo.

Então, os dois aliados, senhores já dos planos do inimigo, trataram de cortar-lhe o vôo, recorrendo à polícia, que lhes forneceu quatro praças.

O escândalo, como era de prever, reuniu povo na Rua da Estrela, e Manuel acordou sobressaltado aos gritos da sogra, da Brígida e da Mônica, que, sem darem por falta de Ana Rosa, assustavam-se com a presença dos soldados e com o alvoroço da gentalha acumulada na porta do sobrado. Maria Bárbara, toda sarapantada, correu aos gritos para seu quarto e, abraçando-se a um santo, encafuou-se na rede, porque não estava em suas mãos ver fardas e baionetas «sentia logo um formigueiro pelas pernas e o estômago num embrulho! Credo!»

Raimundo, entretanto, não descoroçoou com a situação e subia a escada, sem hesitar, levando consigo Ana Rosa, meio desfalecida. Em cima, deu cara a cara com Manuel, e estacou fitando-se os dois com a mesma firmeza, porque cada um tinha plena consciência dos seus atos. O padre e o caixeiro subiram em seguida, acompanhados pelos soldados.

Juntos todos, a situação tornou-se difícil; o silêncio coalhava em torno deles, imobilizando-os. Afinal o cônego puxou pelo seu farto lenço de seda da Índia, assoou-se com estrondo e declarou, depois uma máxima latina, que, na qualidade de amigo e compadre do pai de Ana Rosa, entendeu de sua obrigação evitar o criminoso rapto que o Sr. Dr. Raimundo, ali presente, tentara perpetrar contra um dos membros daquela família.

A rapariga voltara a si com as palavras do padrinho e escutava-o de cabeça baixa, ainda amparada ao ombro de Raimundo.

-Eu ia por minha vontade... murmurou ela, sem levantar os olhos. Fugia com meu primo, porque esse era o único meio de casar com ele...

-E o senhor, como se explica?... perguntou o cônego a Raimundo, com autoridade.

-Não me defendo, nem aceito o juiz; apenas declaro que esta senhora nenhuma responsabilidade tem no que se acaba de passar. O culpado sou eu: bem ou mal, entendi, e entendo, que hei de casar com ela e para isso empregarei todos os meios.

Ana Rosa ia dizer alguma coisa, o cônego atalhou:

-Vamos todos cá pra dentro!

E, depois de despedir os soldados, seguiram para a sala, de cuja entrada Maria Bárbara os espiava, ainda corrida e espantadiça do susto.

-Agora que estamos em família, acrescentou ele, fechando as portas, resolvamos, como homens de boa e sã justiça, o que nos cumpre fazer em tão melindrosa situação!... Hodie mihi, cras tibi!... Seu Manuel, primeiro você! Tem a palavra!

Manuel passeava ao comprido da casa. Parou, fazendo face ao sofá, onde estavam todos, e dirigiu-se ao grupo. O pobre homem tinha uma grande tristeza na fisionomia; transparecia-lhe no olhar a sua perplexidade, impondo o respeito e a compaixão, que nos inspiram as dores resignadas. Percebia-se que lhe faltavam as palavras, e que o infeliz lutava para expor as suas idéias de um modo fiel e claro. Afinal, voltou-se para o cônego e declarou que estimava bastante vê-lo, naquele momento, ao seu lado. «O compadre fora sempre o seu guia, o seu companheiro, o seu melhor amigo, como, ainda uma vez, acabava de prová-lo. Ficasse pois e ouvisse, que era da família!» Depois, pediu à sogra que se aproximasse. «A presença dela e a sua opinião eram igualmente imprescindíveis.»

E passou ao caixeiro: «Ali o seu Dias também devia ficar porque não representava um simples empregado, que Manuel tinha no armazém; representava um colega zeloso, um futuro sócio, que em breve devia fazer parte dos seus por direito, que de fato já o era, havia muito tempo. Achavam-se por conseguinte na maior intimidade, e ele, para descargo da sua consciência, podia falar com franqueza ao Dr. Raimundo e dizia-lhe tudo, pão-pão, queijo- queijo, o que pensava a respeito do ocorrido!»

E, depois de uma pausa, declarou que, desde o momento em que pensara no casamento de sua filha, fora sempre com sentido no futuro e na felicidade dela. «Não fossem supor que ele queria casá-la com algum príncipe encantado ou com algum sábio da Grécia!... senhor! o que queria era dá-la a um homem de bem e trabalhador como ele; mas, com os diabos! que fosse branco e que pudesse assegurar um futuro tranqüilo e decente para os seus netos! Vai ele então -pensou no Dias: lá lhe dizia não sei o que por dentro que ali estava um bom marido para Anica.

Um belo dia, descobriu da parte do rapaz certa inclinação por ela e ficara satisfeito, prometendo logo, com os seus botões, dar-lhe sociedade na casa, se porventura se realizasse o casamento... Ora, bem viam os circunstantes que, em tudo aquilo, Manuel só tinha em vista o bem da rapariga... nem acreditassem que houvesse por aí pais, tão desnaturados que chegassem a desejar mal para os seus próprios filhos! Qual o quê, coitados! o que às vezes queriam era prevenir o mal, que só depois havia de aparecer! Como agora poderia ele, que só tinha aquela, que só possuía a sua Anica, que a educara o melhor que pudera, que embranquecera a cabeça a pensar na felicidade daquela filha; ele, que lhe fazia todas as vontades, todos os caprichos! ele, que seria capaz dos maiores sacrifícios por amor daquela menina!.. como poderia pois contrariá-la, causar-lhe mal, só por gosto?... Então os senhores achavam que isso tinha cabimento?... Ele desejava vê-la casada, por Deus que desejava! não a criara pra feira!... mas, com um milhão de raios, desejava vê-la casada em sua companhia! Queria vê-la feliz, satisfeita, cercada de parentes e amigos; mas, boas! na sua terra, ao lado de seu pai! Ora essa! pois então um homem, por estar velho, já não tinha direito ao carinho de seus filhos?... Ou, quem sabe, se a filha, por estar mulher, já não devia saber do pai? -Morre p'r'aí, calhamaço, que me importa a mim! -Não! que isso também Deus não mandava!... Queria ir-se embora? queria deixar o pobre velho, ali, sozinho sem ter quem lhe quisesse bem, sem ter quem tratasse dos seus achaques?... podia ir! Que fosse! mas esperasse um instante, que ele fechasse os olhos primeiro, sua ingrata!»

E Manuel, enxugando os olhos na manga do paletó conclui com a voz trêmula:

-Aí têm os senhores o que eu pensava fazer; porém vai o diabo, chega do Rio um meu sobrinho bastardo, um filho do defunto mano José com a preta Domingas, que foi sua escrava! Como era de esperar, visto que sempre me encarreguei dos negócios de meu irmão e ultimamente dos de meu sobrinho, hospedei-o cá em casa; Raimundo afeiçoou-se à minha filha; ela a modos que lhe correspondeu; ele vem, pede-ma em casamento; vou eu -nego-lha! Ele quer saber o porquê, e eu dou-lhe a razão com franqueza! Pois bem! Vejam! este homem deixa de fazer uma viagem, que, para me iludir, fingiu que ia fazer, e, depois de andar por aí a esconder-se de todos, falta à sua palavra de honra, e...

-Senhor, gritou Raimundo.

-Senhor, não! vossemecê deu-me a sua palavra em como nunca procuraria casar com Anica! Por conseguinte, digo e sustento: depois de ter faltado à sua palavra de honra, vem astuciosamente raptar minha filha! Será isto legal?! Não haverá nos códigos desta terra uma pena para semelhante abuso?!...

-Há, disse o rapaz, reconquistando o sangue frio, há, quando o delinqüente se nega a reparar o delito com o casamento.. Eu, porém, não desejo outra coisa!...

-Iche! disparatou Maria Bárbara, saltando em frente. Casar minha neta com o filho de uma negra?! Você mesmo não se enxerga!

Manuel sentiu-se embaraçado.

-Apelo, suplicou, para a consciência de cada um! Coloquem-se no meu lugar e digam o que fariam!... Mas parece-me que nós o que devemos é acabar com isto e evitar um escândalo maior!... Compreendo perfeitamente que o Dr. Raimundo não tem culpa da sua procedência e, como é um homem de juízo e de bastante saber, espero que a pedido de nós todos, deixará o Maranhão quanto antes!...

-Amém!... aprovou o cônego

-E eu, desde já, propôs Luís, obedecendo a um sinal do guia peço a mão da senhora D. Anica...

-Não quero! exclamou Ana Rosa, ainda mesmo que Raimundo me abandone!

-É uma injustiça que me faz, observou este último à moça. Sei perfeitamente cumprir com os meus deveres!

-Como com os seus deveres?!... interrogou Maria Bárbara, refilando os dentes.

-Sim, minha senhora com os meus deveres!

-Então, o senhor não parte, definitivamente?! interveio Manuel.

-Juro que não me retirarei do Maranhão, sem ter casado com sua filha! respondeu o rapaz, calmo e resoluto.

-E eu declaro, berrou a velha, que você não há de casar com minha neta enquanto eu viva for!

-E eu retiro a minha benção de minha afilhada, se ela não obedecer a sua família... reforçou o cônego.

Raimundo cravou-lhe um olhar, que perturbou o padre.

E Ana Rosa ergueu-se, levantando a cabeça. Brilhava-lhe no rosto, embaciado pelas lágrimas, o reflexo de uma grande e dolorosa resolução. Todas as vistas se voltaram para ela; estava pálida e comovida, seus lábios tremiam; mas afinal, vencendo a onda vermelha do pudor que a sufocava, balbuciou:

-Tenho por força de casar com ele... Estou grávida!

Foi um choque geral. Até o próprio cônego, para quem o estado da moça não era segredo, pasmou de ouvi-la. Manuel caiu sobre uma cadeira, fulminado com os olhos abertos, arquejante. O Dias fez-se da cor de um cadáver. E Raimundo cruzou os braços: enquanto Maria Bárbara, espumando de raiva, saltava para junto da neta, escondendo-a com o corpo, como se quisesse defendê-la do amante.

-Nunca! Nunca! bramiu a fera. Grávida?... Embora! Antes morta ou prostituída!...

-Pchit... fez o cônego. E disse em tom misterioso e suplicante:

-Mais baixo!... mais baixo!... Olhe que a podem ouvir da rua, D. Babita!...

-Tu estás de barriga?... exclamou por fim Manuel, erguendo-se, vermelho de cólera.

E arrancou para a filha, com os punhos cerrados.

Raimundo repeliu-o, sem lhe dar palavra.

-O senhor é um malvado, invectivou o pobre pai, afastando-se para um canto a soluçar.

O rapaz foi ter com ele e pediu-lhe humildemente que o perdoasse e lhe desse Ana Rosa por esposa.

O negociante não respondeu e pôs-se a praguejar entre lágrimas.

-Calma! calma! aconselhou o cônego, passando-lhe o braço no ombro. Vamos ver o que se pode arranjar!... só para a morte não há remédio... Mente'm hominis spectate, non frontem!...

-Arranjem lá seja o que for, menos o casamento de minha neta com um negro!

-Sim senhora, D. Maria Bárbara... Minima de malis!...

E o cônego, depois de tomar uma pitada, voltou-se cortesmente para o Dias:

-O senhor, ainda há pouco, pediu a meu compadre a mão de minha afilhada, não é verdade?

-Sim senhor.

-Pois o seu pedido está de pé, e eu lhe darei a resposta amanhã à tarde. Pode retirar-se.

-Porém...

Diogo não lhe deu tempo para mais. Conduziu-o até à porta e segredou-lhe rapidamente:

-Espere por mim no canto da Prensa. Vá!

O Dias fez um cumprimento e saiu.

O cônego tornou a meio da sala, para dirigir-se a Raimundo.

-Quanto aqui ao Sr. Doutor, diz que está disposto a reparar o seu crime.

-É exato.

-Sim senhor, é muito natural... é muito bonito até!... Mas... continuou, estalando os lábios, diz por outro lado o meu compadre, diz a senhora D. Maria Bárbara e diz este seu humilde servo, que V.S.ª não está no caso de reabilitar ninguém!... Suspecta malorum beneficia!... O que V.S.ª chama reparação, longe de salvar, prejudicaria e aviltaria ainda mais a vítima!...

-Canalha! gritou Raimundo, perdendo de todo a paciência e agarrando o padre pelo pescoço -Esmago-te aqui mesmo, bandido!

E repulsou-o das mãos, com medo de matá-lo.

Manuel e a sogra acudiram, cheios de indignação contra Raimundo; enquanto o cônego puxava para o lugar a sua volta de rendas e endireitava a batina, resmungando:

-Espere lá, meu amigo! isto não vai à força!... Hoo avetart Deus!... Sabemos perfeitamente que V.S.ª é muito boa pessoa... Apre! Mas... há de concordar que não tem o direito de pretender a mão de minha afilhada! Nem a murros me obrigará a negar que o senhor é...

-Um cabra! concluiu a velha com um berro. É um filho da negra Domingas! alforriado à pia! É um bode! É um mulato!

-Mas afinal, com todos os diabos! a que pretendem chegar? gritou Raimundo, batendo com o pé. Desembuchem!

-É que, respondeu o cônego, inalteravelmente; nós, para evitarmos que o escândalo prossiga, vamos oferecer-lhe de novo o único alvitre a seguir, e olhe que poderíamos, sem mais delongas, processá-lo em regra, se assim o entendêssemos!... Mas... para que negar?... não acreditamos que o senhor abusasse da inocência desta menina!... aquela declaração de há pouco nada mais foi do que um simples estratagema, urdido por V.S.ª, com o fim de realizar os seus intentos. Enganou-se! Sabemos que ela está tão pura como dantes! O que se tem a fazer, por conseguinte, é isto: O doutor vai retirar-se quanto antes desta terra, retire-se imediatamente, sob pena de ser justiçado como o entendermos melhor!

Raimundo foi buscar o chapéu. O cônego atalhou-lhe à saída.

-Então! Que decide?

-Fomente-se! respondeu-lhe aquele, e encaminhou-se para Ana Rosa, que chorava, encostada à parede.

-Ainda nos resta um meio… A senhora é maior. Amanhã terás notícias minhas. Juro que serei seu esposo!

-E eu juro que sou tua! exclamou ela, lançando-se para acompanhá-lo até à porta.

-Cale-se! ordenou Manuel, obrigando-a a retroceder com um empurrão.

-Bem!... resmungou o padre, logo que Raimundo saiu. Seja!...

Ana Rosa correu a fechar-se no quarto.

Manuel deixou-se cair numa cadeira, abafando nas mãos os seus soluços; Maria Bárbara continuou a praguejar, voltando agora contra o genro todo o seu desespero; e o cônego, indo ter, ora com um, ora com outro, procurava acalmá-los, prometendo arranjar tudo. «Que se deixassem daquela arrelia... a situação não era também lá essas coisas!... Não valia a pena afligirem-se de semelhante modo!... Fiassem-se nele, que tudo se arranjaria decentemente!... O negócio da gravidez era uma patranha, engendrada à última hora!... Pois, então, se houvesse nisso alguma verdade, a pequena não lha teria confessado?…»

E daí a pouco descia a escada, rangendo nos degraus os seus sapatos de polimento.

-Aqui estou, senhor cônego, Podemos ir? Perguntou-lhe o Dias, no canto da Prensa logo que se reuniram.

-Espere! espere lá meu amigo! Para que lado seguiu o homem?

-Desceu o Beco da Prensa.

-Então temos ainda o que fazer por cá...

E dirigiu-se ao cocheiro de um carro que estacionava na esquina, falou-lhe em voz baixa, e o carro afastou-se.

-Bem, disse, tornando ao caixeiro, agora escondamo-nos aqui, por detrás deste lote de pipas.

-Para quê?

-Para não sermos vistos pelo cabra, quando passar.

E ficaram conspirando em voz baixa, até que Raimundo apareceu de volta na entrada do beco. Fora despedir um escaler, que estava lá embaixo às suas ordens, na praia. A luz do lampião da esquina bateu-lhe em cheio no rosto, porque ele trazia o chapéu de feltro derreado para a nuca. Parou um instante, hesitando, procurou o seu carro, e afinal resolveu, com um gesto de impaciência, descer para o lado da Praça do Comércio.

-Bom! murmurou misteriosamente o padre ao companheiro. Siga-o, mas em distância que não seja percebido... E, se ele demorar-se muito na rua, faça o que lhe disse! Tome!

E passou-lhe, sem levantar o braço, um objeto, que o Dias teve escrúpulos em receber.

-Então?! insistiu Diogo.

-Mas...

-Mas o que?... Ora não seja besta! Tome lá!

O outro quis ainda recalcitrar, o cônego acrescentou:

-Não seja tolo! Aproveite a única ocasião boa, que Deus lhe oferece! Faça o que lhe disse -será rico e feliz! Audaces fortuna juvat!... Agradeça à Providência o meio fácil que lhe depara, e que estou vendo agora que você não merecia!... A maior parte dos homens poderosos tiveram. coitados! muito maiores provações para chegar aos seus fins! Ande daí! não seja ingrato com a fortuna que o protege!... Também era só o que faltava, que, por um instante de medo infantil, você perdesse o trabalho de tantos anos!... afianço-lhe, porém, que ele não teria para com você a mesma hesitação, como há de acontecer naturalmente…

-Vossa Reverendíssima acha então que?…

-Acho não, tenho plena certeza! «Quem o seu inimigo poupa, nas mãos lhe morre!» Mas, quando mesmo ele não o mate, será isto razão para que você não o extermine?… Ora, diga-me cá, mas fale com franqueza! você está ou não resolvido a casar com a minha afilhada?...

-Estou sim senhor.

-Bem! Pois lembro-lhe somente que um homem de cor, um mulato nascido escravo, desvirtuou a mulher que vai ser sua esposa, e isto, fique sabendo, representa para você, muito maior afronta que um adultério! Assiste-lhe, por conseguinte, todo o direito de vingar a sua honra ultrajada; direito este que se converte em obrigação perante a consciência e perante a sociedade!

-Mas...

-Imagine-se casado com Ana Rosa e o outro no gozo perfeito da vida; a criança, já se sabe, parecida com o pai... Pois bem! lá chega um belo dia em que o meu amigo, acompanhando sua família, topa na rua, ou dentro de qualquer casa, com o cabra!... Que papel fará você, seu Dias?... com que cara fica?... O que não dirão todos?... e, vamos lá, com razão, com toda a razão! E a criança? a criança, se continuar a viver, o que não julgará do basbaque que a educou?... Sim, porque, convença-se de uma coisa! com a existência de Raimundo, o filho deste virá fatalmente a saber de quem descendeu! Não faltará quem lho declare!

-Isso é!

-Mas, apesar de tudo, se os partidos fossem iguais, ainda vá! Assim, porém, não acontece; você conquistou a sua posição naquela casa com uma longa dedicação, com um esforço de todos os dias e de todos os instantes; você enterrou ali a sua mocidade e empenhou o seu futuro; você deu tudo, tudo do que dispunha, para receber agora o capital e os juros acumulados! E o outro? o outro é simplesmente um intruso que lhe surge pela frente, é um especulador de ocasião, é um aventureiro que quer apoderar-se daquilo que você ganhou! O que pois lhe compete fazer? -Repeli-lo! Fizeram-se-lhe todas as admoestações; ele insiste -mate-o! Qual é o direito dele? Nenhum! Um negro forro à pia não pode aspirar à mão de uma senhora branca e rica! É um crime! é um crime, que o facínora quer, a todo transe, perpetrar contra a nossa sociedade e especialmente contra a família do homem a quem você se dedicou, uma família que, por bem dizer, já é sua, porque Manuel Pedro tem sido para você um verdadeiro pai, um amigo sincero, um protetor que devia merecer-lhe, ao menos, o sacrifício que você agora duvida fazer por ele! É uma ingratidão! nada mais, nada menos! Mas a justiça divina, seu Dias, nunca dorme! Deus tentou fazer de você um instrumento dos seus sagrados desígnios, e você se recusa... Muito bem! Eu com isso nada mais tenho! é lá com a sua consciência!... Lavo as mãos! Como sacerdote, e como amigo do seu benfeitor, já fiz e já disse o que me cumpria; o resto não me pertence! Faça o que entender!

-Sim... mas...

-Apenas lhe observo o seguinte: ainda mesmo que Raimundo não consiga realizar o casamento com Ana Rosa, o que, aliás, é impossível, porque ela é maior e o outro tem por si a justiça, fique certo de que, enquanto viver aquele homem, a mãe do filho dele nunca fará o menor caso de você!... Isso é o que lhe afianço!

-Mas o pai pode obrigá-la a casar comigo...

-Não seja pedaço de asno, que uma rapariga naquelas condições não se casa senão por gosto próprio! mas, quando assim não fosse, aceitando a hipótese absurda de que o pai a obrigasse, isso então seria muito pior para você! Era só o Raimundo dizer, em qualquer tempo, a Ana Rosa: «Vem cá!» e ela, a sua esposa, meu caro amigo, seguia-o logo, como um cachorrinho! Você sabe lá o que é a mulher para o primeiro homem que a possui, principalmente quando ele a emprenha?... É um animal com dono! Acompanha-o para onde ele for e fará somente o que ele bem quiser! E um autômato! Não se pertence! Não tem vontade sua! Casada com outro? Que importa! há de correr atrás do amante, segui-lo por todas as degradações! há de rir-se à custa do pobre marido! cobri-lo de vergonhas! há de ser a primeira a chamar-lhe nomes! Você, seu palerma, servirá unicamente para apimentar o prazer dos dois, dar-lhe um travo picante de fruto proibido, de pecado! E calcule, por um instante, as terríveis conseqüências da sua covardia; não pára aqui a negra cadeia das vergonhas que o esperam! Raimundo há de, mais cedo ou mais tarde, aborrecer-se da amante, como a gente se aborrece de tudo que é ilegal; passada a quadra das ilusões, desaparecerá o ardor que o prende a Ana Rosa e todo o seu sonho será conquistar uma posição brilhante na sociedade; pois bem, desde que ele não possa associar a amiga às suas aspirações, às suas glórias políticas e literárias, ela se converterá num obstáculo à sua carreira, num estorvo para o seu futuro, num trambolho, a que ele, na primeira ocasião dará um pontapé, substituindo-a por uma esposa legítima, de quem tire partido para subir melhor! Então, Ana Rosa passará à segunda mão, depois à terceira, à quarta, à quinta; até que, por muito batida, resvale no lodo dos trapiches, na taverna dos marujos, em todo lugar, enfim, onde possa vender-se para matar a fome! E lembre-se bem que ela, por tudo isto, nunca deixará de ser sua mulher, sua senhora, recebida aos pés do altar, em face de Deus e dos homens! Ora diga-me pois, seu Dias, não lhe parece que evitar tamanhas calamidades é servir bem ao nosso criador e aos nossos semelhantes?... Ainda duvidará que pratica uma boa ação, removendo a causa única de tanta desgraça?... Vamos, meu amigo, não seja mau, salve aquela ovelha inocente das voragens da prostituição! Salve-a em nome da igreja! em nome do bem! em nome da moral!

E o grande artista levantou os braços para o céu, exclamando em voz chorosa:

-Quis talia fando tempera a lacrymis?...

Dias escutava-o concentrado. O cônego prosseguiu, mudando de tom:

-Viremos a medalha! vejamos agora o que sucederá se você seguir o meu conselho: A rapariga chora por algum tempo, pouco, muito pouco, porque eu a consolarei com as minhas palavras; depois como precisa de um pai para o filho, casa-se com você, e aí está o meu amigo, de um dia para outro, feliz, rico, independente! sem contar o seu gozo íntimo de haver resgatado de infalível perdição a filha do seu benfeitor, a qual deixará de ser uma mulher perdida para ser o modelo das esposas!

-É exato!

-Pois mãos à obra! Todo aquele que encontra em casa o ladrão, que lhe vai roubar o simples dinheiro, tem direito a meter-lhe uma carga de chumbo nos miolos, e, como há de ficar de braços cruzados o que se vê ameaçado na sua honra, na sua fortuna, na sua mulher e na sua tranqüilidade?... Sim, fica! quando é um miserável! um basbaque!

-Reverendo, juro-lhe que...

-Então avie-se! Está a fugir a única ocasião que Deus lhe faculta!... Amanhã será tarde!... já ele a terá por justiça e, ainda que não se casem, o escândalo será patente! Resolva-se ou deixe por uma vez o campo livre ao mais forte e mais esperto!

-Adeus, senhor cônego!

-Vá com a Virgem Santíssima!

E o Dias, de cabeça baixa, passos largos e abafados, subiu a Rua da Estrela. De repente, voltou, chamou o padre e perguntou-lhe alguma coisa ao ouvido.

-É melhor, é...

O caixeiro tomou então a Rua de Santana.

Daí a uma hora, o compadre de Manuel, depois de saborear a sua canja e depois de amaciar o lombo luzidio do seu maltês, fazia a oração do costume e espichava-se tranqüilamente numa rede de algodão, lavada e cheirosa, disposto a passar uma boa noite.

Entrementes, Ana Rosa chorava no seu quarto; Manuel continuava a passear na sala, com as mãos cruzadas atrás e a cabeça descaída sobre o peito, como se uma preocupação de chumbo a puxasse para baixo; e Maria Bárbara ceava na varanda, resmungando, embebendo fatias de pão torrado na sua xícara de chá verde. E a noite envelhecia, e as horas rendiam-se, que nem sentinelas mudas, e nenhum dos três procurava dormir; afinal, Maria Bárbara obrigou o genro a recolher-se, depois foi ter com a neta e dispôs-se a fazer-lhe companhia até amanhecer. Em breve, porém, a velha ressonava, e tanto o pai, como a filha, viram, através das suas lágrimas, nascer o dia.

Raimundo, esse vagara pelas ruas da cidade, com o coração encharcado de um grande desânimo. Apoquentava-o menos a estreiteza da situação do que a brutal pertinácia daquela família, que preferia deixar a filha desonrada a ter de dá-la por esposa a um mulato. «Com efeito!... Era preciso levar muito longe o escrúpulo de sangue!...» E, malgrado o vigor e a firmeza com que ele até aí afrontara as contrariedades, sentia-se agora abatido e miserável. Na transtornada corrente das suas idéias, a do suicídio misturava-se, como uma moeda falsa que mareasse as outras. Raimundo repelia-a com repugnância, mas a teimosa reaparecia sempre. Para ele o suicídio era uma ação ridícula e vergonhosa, era uma espécie de deserção da oficina; então, para animar-se, para meter-se em brios, evocava a memória dos fortes, lembrava-se dos que lutaram muito mais contra os preconceitos de todos os tempos; e, de pensamento em pensamento, sonhava-se em plena felicidade doméstica, ao lado de uma família amorosa, cercado de filhos, e feliz, cheio de coragem, trabalhando muito, sem outra ambição além de ser um homem útil e honrado. Mas todas estas esperanças já lhe não acordavam no espírito o mesmo eco de entusiasmo; agora, o que mais o preocupava era a sua humilhação e o seu amor ultrajado; desejava esposar Ana Rosa, desejava-o, como nunca, mas por uma espécie de vingança contra aquela maldita gente que o envilecia e rebaixava; queria amarrá-la ao seu destino, como se a amarrasse a um posto infamante; queria espalhar bem o seu sangue, porque onde ele caísse, deixaria uma nódoa incandescente; precisava, para sofrer menos, ver sofrer alguém; era necessário que os outros chorassem muito, para que, por sua vez, risse um pouco. «Oh! havia de rir!... Ana Rosa pertencer-lhe-ia de direito!... Por que não?... Ele tinha a lei por si! Quem poderia impedir-lhe de tirá-la por justiça?... Além de que, com um filho nas entranhas, ela lhe obedeceria como escrava!...»

E ruminando estes projetos, fingindo-se muito senhor de si, mas com grande desespero a ladrar-lhe por dentro, Raimundo vagabundeava pelas ruas, à espera que amanhecesse, com as mãos nas algibeiras, vacilante como um ébrio. Impacientava-se pelo dia seguinte, parecia atraí-lo com a sua ansiedade crescente; aquela noite, comprida e silenciosa, pesava-lhe nas costas, que nem a mochila do soldado no meio da batalha. «Sim! urgia que amanhecesse!... queria tratar dos seus interesses, liquidar aquela maçada, aquela grande maçada!... Mais doze horas, doze horas! e estaria tudo concluído! No dia seguinte estaria tudo pronto! ele no primeiro vapor seguiria para a Corte, acompanhado da esposa, feliz, independente! sem lembrar-se, nunca mais, do Maranhão, dessa província madrasta para os filhos!»

Ao chegar ao Largo do Carmo, assentou-se num banco. Um vento fresco agitava as árvores; ameaçava chuva; ouvia-se o surdo e longínquo marulhar da costa, e, por ali perto, em algum sarau, uma garganta de mulher cantava ao piano a «Traviata».

Raimundo passou a mão pela testa e reparou que estava suando frio. Deram duas horas. Um polícia aproximou-se vagarosamente e pediu-lhe um cigarro e o fogo, e seguiu depois, com ar preguiçoso de quem cumpre uma formalidade inútil e aborrecida. E Raimundo ficou a escutar os passos sonoros do rondante, cadenciados com a regularidade monótona de uma pêndula.

Deram três horas. Chuviscava.

Raimundo levantou-se e seguiu pela Rua Grande. «Agora talvez dormisse um pouco... Estava tão fatigado!...» Quando atravessou o campo de Ourique, pensou sentir alguém acompanhando-o, olhou para os lados e não descobriu viva alma. «Enganara-se com certeza... Era talvez o eco dos seus próprios passos...» Continuou a andar, até chegar a casa.

Mas, do vão escuro, em que se formava o limite da parede, rebentou um tiro, no momento em que ele dava volta à chave.

Este tiro partira de um revólver fornecido ao Dias pelo cônego Diogo. Todavia, no instante supremo, faltara ao pobre-diabo coragem para matar um homem, mas as palavras do padre ferviam-lhe na cabeça, em torno da sua idéia fixa. «Como poderia agora perder num momento o trabalho de toda uma existência, destruir o seu castelo dourado, a sua preocupação, a coisa boa da sua vida?... Perder o jogo no melhor lance!... inutilizar-se, reduzir-se a lama, quando, só com um ligeiro movimento de dedo, estaria tudo salvo!...»

Isto pensava o caixeiro de Manuel escondido na treva, por detrás de um montão de pedras e barrotes, ao lado dos espeques de um casebre em ruínas. Mas o tempo corria, e Raimundo ia entrar pra casa, sumir-se numa fronteira inexpugnável, e só reapareceria no dia seguinte, à luz do sol. «Era preciso aviar!... Um instante depois seria tarde, e Ana Rosa passaria às mãos do mulato e a cidade inteira ficaria senhora do escândalo, a saboreá-lo, a rir-se do vencido! E, então, estaria tudo acabado, para sempre! sem remédio! E ele, o Dias, coberto de ridículo e... pobre!»

Nisto, rangeu a fechadura. Aquela porta ia abrir-se como um túmulo, onde o miserável sentia resvalar o seu futuro e a sua felicidade; no entanto, tamanha calamidade dependia de tão pouco! O grande obstáculo da sua vida estava ali, a dois passos, em magnífica posição para um tiro.

Dias fechou os olhos e concentrou toda a energia no dedo que devia puxar o gatilho. A bala partiu, e Raimundo, com um gemido, prostrou-se contra a parede.

Amanhecera um dia enfadonho, cheio de chuviscos e umidade. Pouca gente pela rua; nenhum sol, e um aborrecimento geral a abrir a boca por toda parte. Grossas nuvens, grávidas e sombrias, arrastavam-se pelo espaço, no peso da sua hidropisia; o ar mal podia contê-las. Ouvia-se um trovejar ao longe, que lembrava o rolar de balas de peça por um assoalho.

A casa de Manuel tinha a silenciosa quietação do luto; as janelas fechadas; os moradores tristes; a varanda e a sala de visitas totalmente desertas. Embaixo, no armazém, os caixeiros fingiam não saber de nada. Os pretos cochichavam na cozinha, com medo de falar alto, e iam dar trela à vizinhança, onde se comentava já o escândalo da véspera.

Manuel só apareceu fora do quarto à hora do almoço, que nesse dia foi tarde, porque os escravos, privados da vigilância de Maria Bárbara e empenhados no mexerico, descuidaram-se das obrigações. O pobre homem trazia no rosto, fotografada, a sua dor e a sua insônia; tinha os olhos pisados e intumescidos. Mal tocou nos pratos, cruzou logo o talher e limpou com o guardanapo uma lágrima, que o lugar vazio de Ana Rosa lhe desprendera. Aquela cadeira sem dono parecia dizer-lhe com a tristeza: «Descansa, desgraçado, que filha nunca mais terás tu!...» Não quis descer ao armazém e fechou-se em cima, no seu escritório, recomendando que mandassem lá o Dias quando chegasse.

O sabiá trinava desesperadamente na varanda. Tinham-se esquecido de encher-lhe o comedouro.

Ana Rosa não saíra da rede; estava excitada, doente, toda nervosa, com uma irritação de estômago. A avó, cheia de mau humor, levara-lhe um bule de chá de contra-erva, para a febre, e, depois de recomendar à neta que não saísse do quarto e fizesse por dormir, fechou-se com os seus santos, a rezar.

A rapariga ignorava o que ia lá por fora. Amância foi a única visita que apareceu, falando muito da palidez que lhe notara.

-Até lhe achei mau hálito, disse à Mônica, logo que saiu do aposento da enferma.

-É do estômago, explicou a cafuza. Ela, coitada, ainda hoje não comeu nada, e ainda não pregou olho desde ontem de manhã!

A velha passou à cozinha, à procura da Brígida, para indagar que diabo havia sucedido naquela casa, que andavam todos a modos de assombrados!

Ana Rosa achava-se, com efeito, muito abatida, num estado perigoso de irritação e fraqueza. Mônica obrigou-a a tomar um mingau de farinha, e ela vomitou-o logo.

-Hê, Iaiá! Isto assim não está bom!... censurava maternalmente a preta. Não te fica nada no bucho!

-Mãe-pretinha, pediu depois a moça, eu posso ir até à sala? Não corre vento; as vidraças estão fechadas!

-Vai, Iaiá, porém mete algodão no ouvido. Espera! agasalha a cabeça!

E envolveu-lhe a testa com um lenço encarnado de seda.

-Iaiá quer que eu te ajude?

-Não, mãe-pretinha, fique; você deve estar cansada.

A preta assentou-se junto à rede, encolheu as pernas, que abrangeu com os braços, e pôs-se a cochilar, escondendo a cara contra os joelhos. Ana Rosa levantou-se muito fraca e, lentamente, apoiando-se nos móveis, atravessou por entre o desarranjo do seu quarto e foi até à sala.

Fazia má impressão vê-la com aquele andar vagaroso e triste, acompanhado de suspiros e descaimentos de pálpebras. Parecia convalescente de uma longa moléstia grave; estava cor de cera, com grandes olheiras roxas; muito puxada, os cabelos, despenteados e secos, caíam-lhe por debaixo do lenço vermelho, que lhe dava à cabeça certa expressão pitoresca e graciosa. Dela toda respirava um tom melancólico e dolorido: o longo roupão, desabotoado sobre o estômago, arrastando-se negligentemente pelo chão, os braços moles, as mãos frouxas, o pescoço bambo, os lábios entreabertos, estalando de febre, o olhar morto, infeliz, mas embebido de ternura; tudo nela transpirava um tácito queixume de fundas mágoas escondidas. Seus pezinhos traziam de rastros umas chinelas de criança e, por entre a abertura do vestido, via-se-lhe a camisa de rendas amarrotada e um cordão de ouro escorrendo pela brancura do seio, com um pequeno crucifixo que se lhe balançava entre os peitos.

E, com a resignação dos doentes que não podem sair do quarto, passeava pela sala o seu isolamento, procurando entreter-se a examinar os objetos de cima dos consolos, minuciosamente, como se nunca os tivera visto. Tomou entre os dedos um galgozinho de jaspe e ficou a observá-lo um tempo infinito. É que seu pensamento não estava ali; andava lá fora, em busca de Raimundo, em busca do seu cúmplice estremecido, o autor daquele delito que ela sentia dentro de si, enchendo-a de alegria e de medo. Amava-o muito mais agora, tal como se o seu amor crescesse também como o feto que se lhe agitava nas entranhas. Apesar da estreiteza da situação, achava-se cada vez mais feliz; sonhara a ventura de ser mãe e sentia-a realizar-se no seu corpo, no seu ventre, de instante a instante, com um impulso misterioso, fatal incompreensível. «Era mãe!... Ainda lhe parecia um sonho!...»

Impacientava-se por preparar o enxoval do seu filhinho. Um enxoval bom, completo, a que nada, nada, faltasse. Ah! ela sabia perfeitamente como tudo isso era feito; qual a melhor flanela para os cueiros; quais as melhores toucas e os melhores sapatinhos de lã. Via em sonhos um berço junto a sua rede, com um entezinho dentro, todo rendas e fitas cor-de-rosa, a vagir uns princípios de voz humana. E fazia-se muito pressurosa, a queimar alfazema, para defumar os panos da criança; a preparar água com açúcar, para curar-lhe as cólicas; a evitar em si mesma o abuso do café e de todo o alimento que pudesse alterar-lhe o leite, porque ela queria ser a própria a criar o seu filho, e por coisa nenhuma desta vida, o confiaria à melhor ama. E, a pensar nestas coisas, que, aliás, nunca ninguém procurara ensinar-lhe, esquecia-se inteiramente dos vexames e das dificuldades que a sua falsa posição teria de levantar; nem, sequer, lhe passava pela idéia a hipótese de não casar com Raimundo. «Oh, isso havia de ser, desse por onde desse e sofresse quem sofresse!»

Assim lhe correu o dia. Só despertou dos seus devaneios às duas e meia da tarde, quando o sino da Sé badalou o dobre dos finados. «Por quem estaria dobrando?...» perguntou de si para si, tomada de compassiva estranheza. Parecia-lhe absurdo que alguém cuidasse em morrer, quando ela só pensava em dar à vida aquele outro alguém que tanto a preocupava.

Todavia, o dobre continuou ao longe, rolando no espaço, como um soluço que se desdobra. E aquele som lúgubre, ali, na sala toda fechada, parecia fazer o dia mais triste e o céu mais sombrio e chuvoso. Ana Rosa sentiu um ligeiro tremor de medo indefinido arrepiar-lhe as carnes; lembrou-se de rezar, chegou mesmo a dar alguns passos na direção da alcova, mas deteve-a um rumor de vozes que vinha da rua.

Foi até à janela. O zunzum do povo crescia «Alguma briga!...» pensou ela, encostando a cara na vidraça, para espiar o que se passava lá fora.

O motim recrescia à proporção que um grupo imenso de homens e mulheres se aproximava cheio de curiosidade. Ana Rosa pôde então compreender a causa do ajuntamento: dois pretos traziam um corpo dentro de uma rede, cuja taboca carregavam no ombro.

-Credo! Que agouro!... disse impressionada.

E quis afastar-se da janela, mas deixou-se ficar, por curiosidade. «Algum pobre homem que ia doente para o hospital... ou talvez fosse algum defunto, coitado!...» E procurou pensar no filho, para desfazer a impressão desagradável que acabava de receber.

O corpo estava inteiramente coberto por um lençol de linho e parecia ser de um homem de boa estatura. Algumas manchas vermelhas destacavam-se aqui e ali na brancura do pano.

Ana Rosa sentia já certo interesse aterrorizado; quis de novo deixar a janela; agora, porém, o que se passava lá na rua atraía-lhe irresistivelmente o olhar. A fúnebre procissão aproximava-se entretanto, chegando-se para a parede do lado em que ela estava. Ia deixar de ver, mas não lhe convinha abrir a janela, por causa do vento; além disso ameaçava chuva; era até muito natural que estivesse chuviscando. Continuou a olhar atentamente, com o rosto achatado de encontro aos vidros.

A rede adiantava-se a pouco e pouco, jogando com a irregularidade da rua e do caminhar desencontrado dos carregadores; o que obrigava o lençol a fazer e desfazer fartas rugas instantâneas. Ana Rosa sentiu-se inquieta e sobressaltada, como se aquilo lhe dissera respeito; a rede ia desaparecer de todo a seus olhos, porque, cada vez mais se aproximava da parede, já mal podia alcançá-la com a vista.

Céus! Dir-se-ia que se encaminhava para a porta de Manuel!

Uma rajada de nordeste esfuziou nos vidros. Os chapéus dos transeuntes saltaram como folhas secas; as janelas de diversas casas bateram contra os caixilhos num repelão de cólera; o vento zuniu com mais força e, numa segunda refrega, arrancou de uma só vez o lençol que cobria a rede.

Ana Rosa estremeceu toda, deu um grito, ficou lívida, levou as mãos aos olhos. Parecia-lhe ter reconhecido Raimundo naquele corpo ensangüentado. Duvidou e, sem ânimo de formular um pensamento, abriu de súbito as vidraças.

Era, com efeito, ele.

O povo olhou todo para cima e viu uma coisa horrível. Ana Rosa, convulsa, doida, firmando no patamar das janelas as mãos, como duas garras, entranhava as unhas na madeira do balcão, com os olhos a rolarem sinistramente e com um riso medonho a escancarar-lhe a boca, as ventas dilatadas, os membros hirtos.

De repente, soltou um novo rugido e caiu de costas.

A mãe-preta acudira logo e arrastou-a para o quarto.

A moça deixou atrás de si, pelo chão, um grosso rastro de sangue, que lhe escorria debaixo das saias, tingindo-lhe os pés. E, no lugar da queda, ficou no assoalho uma enorme poça vermelha.

- XIX -

No dia seguinte, por todas as ruas da cidade de São Luís do Maranhão, e nas repartições públicas, na praça do comércio, nos açougues, nas quitandas, nas salas e nas alcovas, boquejava-se largamente sobre a misteriosa morte do Dr. Raimundo. Era a ordem do dia.

Contava-se o fato de mil modos; inventavam-se lendas; improvisavam-se romances. O cadáver fora recolhido pela Santa Casa de Misericórdia; procedeu-se a um corpo de delito; verificou-se que o paciente morrera a tiro de bala, mas a polícia não descobriu o assassino.

Nessa mesma tarde os caixeiros de Manuel, vestidos de luto, entregavam de porta em porta a seguinte circular

«Ilmo. Sr.

Manuel Pedro da Silva e o cônego Diogo de Melo Freitas Santiago participam a V.S.ª que acabam de receber o profundo golpe do falecimento de seu prezado e nunca assaz chorado sobrinho e amigo Raimundo José da Silva; e, como o seu cadáver tenha de baixar ao túmulo, hoje às 4 e 1/2 horas da tarde, no cemitério da Santa Casa de Misericórdia, esperam receber de V.S.ª o piedoso obséquio de acompanhar o féretro da casa de seu inconsolável tio à Rua da Estrela n.° 80, pelo que desde já se confessam eternamente agradecidos.

Maranhão, etc, etc»

A Misericórdia cedeu uma sepultura mediante a quantia de 60$000. O enterro foi a pé e bastante concorrido. Muitos negociantes acompanharam-no por consideração ao colega; grande número de pessoas por mera curiosidade.

O cônego ungiu o cadáver com água benta e encomendou-o a Deus.

Maria Bárbara para completo descargo de sua consciência e porque soubessem que ela não tinha mau coração, prometeu uma missa por alma do mulato.

Dias só apareceu em casa à tarde, à hora do saimento. Notaram que o bom rapaz muito se sentira daquela morte e que, no ato de baixar o caixão à sepultura, afastara-se de todos, naturalmente para chorar mais à vontade. Não constou a ninguém, além dele e o cônego, tivesse chorado.

De volta do cemitério, Freitas, em conversa com os caixeiros de Manuel, mais o Sebastião Campos e o Casusa, lamentou com palavras finas o lastimável falecimento do infeliz moço, e disse que sentia bastante não ter a polícia descoberto o autor do crime; mas que, segundo a sua modesta opinião, aquilo fora, nada mais, nada menos, do que um suicídio, e que Raimundo viera até à porta da rua nas agonias da morte.

-Uma fatalidade! rematou ele, filosoficamente, a espanar com o lenço os seus sapatos envernizados. -Não me posso conformar com o diabo deste pó vermelho de São Pantaleão!... mas creiam que me comoveu bastante a morte do pobre Mundico! Era um moço hábil... Tinha muita habilidade para fazer versos...

-E muita presunção, vamos lá!

-Não, coitado! tinha seus estudos, tinha! não se lhe pode negar!...

-Mas também não era lá essas coisas que queria ser!...

-Ah, sim, não digo o contrário... Concordou delicadamente o pai de Lindoca porque não tinha por costume contrariar ninguém.

-Uma fatalidade!... repetiu, meneando a cabeça

-E talvez não fique nesta!... observou Sebastião. A pequena está bem perigosa!...

-É! Ouvi dizer que sim.

-O Jauffret mandou que a carregassem para fora.

-Segue, num dia destes para a Ponta-d'Areia.

-Não. Para o Caminho Grande.

-Ah! Ela era perdida pelo Raimundo!...

-Tolice...

E deram de mão o assunto para ouvir Casusa, que contava alegremente o caso de um bêbedo que uma vez fora parar no cemitério e lá ficara fechado; e que, depois, acordando pelas altas horas da noite, levantara-se para ir até ao portão pedir fogo ao ronda, que fumava muito distraído, encostado de costas nas grades, e que o soldado, sentindo passar-lhe no pescoço a mão fria do borracho, deitara a correr e a pedir socorro em altos berros.

Todos acharam graça e o Freitas contou logo um fato equivalente, que lhe sucedera no tempo de rapaz. Esta anedota puxou por outras, e cada qual exibiu as que sabia: de sorte que, ao entrarem na Rua Grande ainda empoeirados da terra vermelha de São Pantaleão, riam-se a bom rir, apesar da profunda tristeza do crepúsculo, que nesse dia não vestira as galas do costume.

O Pescada, mal o tempo levantou, mudou-se, junto com a filha e a sogra, para um sítio ao Caminho Grande, onde Ana Rosa esteve à morte. Chegaram a fazer junta de médicos.

Desde então o pobre Manuel vivia muito apoquentado. Falou-se que os seus cabelos tinham embranquecido totalmente, e que ele agora se dedicava ao trabalho como nunca, com uma espécie de furor, um desespero de quem bebe para esquecer a sua desventura.

A nova firma comercial, Silva e Dias nasceu, entretanto, no meio da mais completa prosperidade.

Seis anos depois, em meado de fevereiro, havia uma partida no Clube Familiar. Era uma galanteria que os liberais dedicavam a um seu correligionário político, chegado da Corte por aqueles dias, com destino à presidência do Maranhão.

Estava-se no rigor do inverno e chovera durante toda a tarde. As calçadas refletiam em ziguezague a luz vermelha dos lampiões. Alguns telhados ainda gotejavam melancolicamente, e o céu, todo negro, pesava sobre a cidade que nem uma tampa de chumbo. Não obstante, chegava bastante gente para a festa; velhas carruagens enfileiravam-se na Rua Formosa, despejando golfadas de seda e cambraia. As damas, finamente envolvidas nas ondas dos seus pufes, subiam, arrepanhando a cauda, aos salões do baile, pelo braço de homens sérios de casaca. Havia luxo. Os lances da escadaria mostravam-se juncados de flores desfolhadas e folhas de mangueira, e os degraus, de quatro a quatro, estavam guarnecidos por grandes vasos de pó de pedra, vazios de planta. Espelhos de bom tamanho refletiam de alto a baixo, no corredor, os pares que subiam. Em todas as portas havia alvas cortinas de labirinto.

O presidente acabava de chegar, e a banda do 5.° de Infantaria tocava embaixo o Hino Nacional. Todos se agitavam para vê-lo; comentavam-lhe já, em voz soturna, a figura, os movimentos, o andar, a cor, e os botões da camisa.

Na sala de honra, as senhoras, parafusadas nas suas cadeiras, numa resignação cerimoniosa, espichavam discretamente o pescoço, para ver o «Presidente novo». Os rapazes, com o cabelo dividido em duas pastas sobre a testa, fumavam nos corredores ou bebiam nos bufetes. Na varanda jogavam em silêncio os inalteráveis pares do voltarete. A casa toda recendia a perfumaria francesa.

Reinava um constrangimento pesado e estúpido; poucos se animavam a conversar, e ninguém ria. Mas de improviso, a orquestra deu o sinal da primeira quadrilha e uma onda de homens invadiu brutalmente as salas, por todas as portas. Era uma aluvião mesclada; havia o croisé de luva branca, a casaca sem luva, o fraque de três botões com o lenço de seda azul debruçado na algibeira; sobressaíam as enormes gravatas de cambraia engomada, com as pontas em bico sistematicamente espichadas sobre a negrura da lapela. Alguns tinham um tique pretensioso; outros um ar encalistrado e cheio de rubores. Principiava-se a suar.

Destacavam-se os filhos dos negociantes ricos, que haviam ido à Europa «estudar comércio» e os acadêmicos de Pernambuco, Bahia e Rio, que estavam de férias na província. A dança abalava-os a todos, as senhoras iam-se já levantando; arrastavam-se cadeiras; a luz do gás mordia os ombros nus e fazia faiscar os diamantes; as rabecas começavam a gemer.

As quadrilhas e as valsas sucederam-se quase sem intervalo. O entusiasmo apoderou-se dos ânimos.

Tremia no ambiente o vozear frouxo dos cochichos, das coisas amorosas, dos pequeninos risos delicados, do tilintar dos braceletes, do farfalhar das saias, do rumorejar dos leques e do surdo arrastar dos pés no tapete.

As mulheres rodavam, presas pela cintura, num abandono voluptuoso, com a cabeça esquecida sobre a espádua do cavalheiro. De envolta com os extratos de Lubin, saturava a atmosfera um cheiro tépido e penetrante de carnes e cabelos. Pares fatigados prostravam-se nos canapés, amolecidos por um entorpecimento sensual; dilatavam-se as narinas, ofegavam os colos e as pálpebras bambeavam num quebranto de febre.

Em breve, porém, um frenesi galvânico eletrizou todos os pares «Galop!» gritaram. E um turbilhão doido, desenfreado, precipitou-se pelas salas, percorrendo-as aos saltos, numa confusão de casacas e caudas de seda; anovelando-se, abalroando-se, e rebentando afinal numa vozeria medonha, atroadora, num bramido de onda que espoca em plena tempestade.

Rasgaram-se vestidos, espicaçaram-se folhos de renda, desfloraram-se penteados e soltaram-se exclamações de prazer.

Um rapaz, ao terminar a quadrilha, refugiava-se, coxeando, na varanda. Tinham-lhe pisado o melhor calo.

-Maus raios te partam, diabo!

E foi assentar-se a um canto, segurando carinhosamente o pé.

-Ó seu Rosinha, fale com os amigos velhos!... disse o Freitas, aproximando-se dele e estendendo-lhe a mão. Não sabia que o tínhamos aqui em nossa terra, doutor!

Estava o mesmo homem, sempre engomado e teso, com o seu eterno colarinho à Pinaud e a sua unha de estimação. «Então!... que lhe contava o caro Sr. Rosinha, depois que se viram a última vez?... Já lá se iam três anos!...»

Rosinha achava-se em férias; era terceiranista de Direito em Pernambuco.

O Freitas notou que ele estava rapagão; estava muito melhor; mais desenvolvido!

O Faísca sorriu. Com efeito engrossara de ombros e deitara melhor corpo. Agora tinha um par de suíças e parecia menos tolo, porém muito mais míope. Falaram superiormente contra aquele modo bárbaro de dançar. O estudante descreveu as dores que sentiu quando lhe pisaram o calo e jurou nunca mais dançar com semelhantes estouvados. Depois, conversaram a respeito do novo presidente; Freitas queixou-se do partido liberal. «Uma súcia de criançolas!... dizia ele, indignado. Era fechar os olhos e apanhar o primeiro!... O tal Gabinete de 5 de janeiro podia limpar as mãos à parede!... Incúrias! só incúrias!» Em seguida ocuparam-se do passado; lembraram-se do defunto Manuel Pescada e da falecida Maria Bárbara.

-A velha Babu!... murmurou o Freitas, cheio de recordações.

Outro pediu notícias de Lindoca.

Sempre gorda! Agora estava lá pela Paraíba, com o marido, o Dudu Costa, que fora removido para a alfândega dessa província. Sabe? A Eufrasinha fugiu com um cômico!...

-Ah, sei! sei!

Estonteada! O pobre Casusa, coitado, é que estava perdido! -Extravagâncias!... Rosinha, se o visse, não o conheceria. -Muito desfigurado, cheio de cãs! Faísca declarou que ainda não o tinha encontrado em parte alguma.

-Qual encontrado o quê! Estava de cama!. entrevado! Uma perna, que era isto!

E o Freitas mostrou a cintura.

-E o Sebastião? perguntou o rapaz.

-Metido na fazenda. Já não havia quem o visse. E acrescentou, sem transição:

-Homem, quer saber quem está a decidir?... O nosso cônego Diogo!

-Sim. Já ouvi dizer.

-Coitado! retenção de urina. Ele sempre sofreu de estreitamento!

-Um santo!

-Se o é!...

E ambos sacudiram a cabeça, no recolhimento da mesma convicção.

Faísca calculava escrever o necrológio do cônego, caso este morresse antes da sua volta para Pernambuco. Falaram também do Cordeiro, que se tinha estabelecido com Manuelzinho. O Freitas afirmava que iam muito bem, porque o Bento Cordeiro deixara o diabo do vício. É interrompeu-se, para segredar ao outro:

-Você conhece este rapaz, que vai passando de braço dado a uma moça?

-Não.

-É o Gustavo!

-Que Gustavo?

-De Vila Rica! Aquele que foi caixeiro do Pescada!...

Ah, sim! já sei! Mas, como ficou mudado! ele que era um rapaz tão bonito!...

De fato, Gustavo perdera inteiramente as suas belas cores européias e tinha agora a cara sarapintada de funchos venéreos.

Estava para casar com a moça, que levava pelo braço. Uma filha do velho Furtado da Serra.

-Hum! Bravo! Está bom!

Dava meia-noite e algumas famílias embrulhavam-se nas suas capas para sair O Freitas despediu-se logo do Rosinha, apressado.

-Depois da meia-noite -nada! nada absolutamente!... observava ele, sempre metódico.

Mas, no patamar da escada, teve de esperar um instante que descesse um casal que se despedia. Adivinhava-se que era gente de consideração pelo riso afetuoso com que todos o cumprimentavam; muitos se arredavam pressurosos, para lhe dar passagem. O próprio presidente acompanhara-o até ali e agradecia-lhe o obséquio do comparecimento ao baile, com um enérgico aperto de mão, à inglesa.

O par festejado eram o Dias e Ana Rosa, casados havia quatro anos. Ele deixara crescer o bigode e aprumara-se todo; tinha até certo emproamento ricaço e um ar satisfeito e alinhado de quem espera por qualquer vapor o hábito da Rosa; a mulher engordara um pouco em demasia, mas ainda estava boa, bem torneada, com a pele limpa e a came esperta.

Ia toda se saracoteando, muito preocupada em apanhar a cauda do seu vestido, e pensando, naturalmente, nos seus três filhinhos, que ficaram em casa a dormir.

-Grand'chaine, double, serré! berravam nas salas

O Dias tomara o seu chapéu no corredor e, ao embarcar no carro, que esperava pelos dois lá embaixo, Ana Rosa levantara-lhe carinhosamente a gola da casaca.

Agasalha bem o pescoço, Lulu! Ainda ontem tossiste tanto à noite, queridinho!...