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«Peço Energia, Sigo Já»

Dona Adelaide, a irmã de Quaresma, tinha uns quatro anos mais que ele. Era uma bela velha, com um corpo médio, uma tez que começava a adquirir aquela pátina da grande velhice, uma espessa cabeleira já inteiramente amarelada e um olhar tranqüilo, calmo e doce. Fria, sem imaginação, de inteligência lúcida e positiva, em tudo formava um grande contraste com o irmão; contudo, nunca houve entre eles uma separação profunda nem tampouco uma penetração perfeita. Ela não entendia nem procurava entender a substância do irmão, e sobre ele em nada reagia aquele ser metódico, ordenado e organizado, de idéias simples, médias e claras.

Ela já atingira aos cinqüenta e ele para lá marchava; mas ambos tinham ar saudável, poucos achaques, e prometiam ainda muita vida. A existência calma, doce e regrada que tinham levado até ali concorrera muito para a boa saúde de ambos. Quaresma incubou as suas manias até depois dos quarenta e ela nunca tivera qualquer.

Para Dona Adelaide, a vida era cousa simples, era viver, isto é, ter uma casa, jantar e almoço, vestuário, tudo modesto, médio. Não tinha ambições, paixões, desejos. Moça, não sonhara príncipes, belezas, triunfos, nem mesmo um marido. Se não casou foi porque não sentiu necessidade disso; o sexo não lhe pesava e de alma e corpo ela sempre se sentiu completa.

O seu aspecto tranqüilo e o sossego dos seus olhos verdes, de um brilho lunar de esmeralda, emolduravam e realçavam naquele interior familiar a agitação e a inquietude, o alanceado do irmão.

Não se vá supor que Quaresma andasse transtornado como um doido. Felizmente não. Na aparência até poder-se-ia imaginar que nada conturbava sua alma; porém, se mais vagarosamente se examinassem os seus hábitos, gestos e atitudes logo se havia de ver que o sossego e a placidez não moravam no seu pensamento.

Ocasiões havia em que ficava a olhar, durante minutos seguidos, ao longe o horizonte, perdido em cisma; outras, isso quando no trabalho da roça, em que suspendia todos os movimentos, fincava o olhar no chão, demorava-se assim um instante, coçando uma mão com a outra, dava depois um muxoxo, continuava o trabalho; e mesmo momentos surgiam em que não reprimia uma exclamação ou uma frase.

Anastácio, em tais instantes, olhava por baixo dos olhos o patrão. O antigo escravo não os sabia mais fixar, e nada dizia; Felizardo continuava a contar a fuga da filha do Custódio com o Manduca da venda; e o trabalho marchava.

Inútil é dizer que a irmã não fazia reparo nisso, mesmo porque, a não ser no jantar e nas primeiras horas do dia, eles viviam separados. Quaresma na roça, nas plantações, e ela superintendendo o serviço doméstico.

As outras pessoas de suas relações não podiam também notar as preocupações absorventes do major, pelo simples motivo de que estavam longe.

Ricardo havia seis meses que não lhe visitara e da afilhada e do compadre as últimas cartas que recebera datavam de uma semana, não vendo aquela há tanto tempo, quanto ao trovador, e aquele desde quase um ano, isto é, o tempo em que estava no «Sossego».

Durante esse tempo, Quaresma não cessou de se interessar pelo aproveitamento de suas terras. Os seus hábitos não foram mudados e a sua atividade continuava sempre a mesma. É verdade que deixara de parte os instrumentos de meteorologia.

O higrômetro, o barômetro e os outros companheiros não eram mais consultados e as observações registradas num caderno. Dera-se mal com eles. Fosse inexperiência e ignorância das bases teóricas deles, fosse porque fosse, o certo é que toda a previsão que Quaresma fazia, baseada em combinações dos seus dados, saía errada. Se esperava tempo seguro, lá vinha chuva; se esperava chuva, lá vinha seca.

Assim perdeu muita semente e Felizardo mesmo sorria dos seus aparelhos, com aquele grosso e cavernoso sorriso de troglodita:

-«Quá» patrão! Isso de chuva vem quando Deus «qué».

O barômetro aneróide continuava a um canto a dançar o seu ponteiro sem ser percebido; o termômetro de máxima e mínima, legítimo Casella, jazia pendurado na varanda sem receber um olhar amigo; a caçamba do pluviômetro estava no galinheiro e servia de bebedouro às aves; só o anemômetro continuava teimosamente a rodar, a rodar, já sem fio, no alto do mastro, como se protestasse contra aquele desprezo pela ciência que Quaresma representava.

Quaresma vivia assim, sentindo que a campanha que lhe tinham movido, embora tendo deixado de ser pública, lavrava ocultamente. Havia no seu espírito e no seu caráter uma vontade de acabá-la de vez, mas como? Se não o acusavam, se não articulavam nada contra ele diretamente? Era um combate com sombras, com aparências, que seria ridículo aceitar.

De resto, a situação geral que o cercava, aquela miséria da população campestre que nunca suspeitara, aquele abandono de terras à improdutividade encaminhavam sua alma de patriota meditativo a preocupações angustiosas.

Via o major com tristeza não existir naquela gente humilde sentimento de solidariedade, de apoio mútuo. Não se associavam para cousa alguma e viviam separados, isolados, em famílias geralmente irregulares, sem sentir a necessidade de união para o trabalho da terra. Entretanto, tinham bem perto o exemplo dos portugueses que, unidos aos seis e mais, conseguiam em sociedade cultivar a arado roças de certa importância, lucrar e viver. Mesmo o velho costume do «moitirão» já se havia apagado.

Como remediar isso?

Quaresma desesperava...

A tal afirmação de falta de braços pareceu-lhe uma afirmação de má fé ou estúpida, e estúpido ou de má fé era o Governo que os andava importando aos milhares, sem se preocupar com os que já existiam. Era como se no campo em que pastavam mal meia dúzia de cabeças de gado, fossem introduzidas mais três, para aumentar o estrume!...

Pelo seu caso, ele via bem as dificuldades, os óbices de toda a sorte que havia para fazer a terra produtiva e remunerada. Um fato veio mostrar-lhe com eloqüência um dos aspectos da questão. Vencendo a erva-de-passarinho, os maus-tratos e o abandono de tantos anos, os abacateiros de suas terras conseguiram frutificar, fracamente é verdade, mas de forma superior às necessidades de sua casa.

A sua alegria foi grande. Pela primeira vez, ia passar-lhe pelas mãos dinheiro que lhe dava a terra, sempre mãe e sempre virgem. Tratou de vender, mas como? a quem? No lugar havia um ou outro que os queria comprar por preços ínfimos. Com decisão foi ao Rio procurar comprador. Andou de porta em porta. Não queriam, eram muitos. Ensinaram-lhe que procurasse um tal Senhor Azevedo no Mercado, o rei das frutas. Lá foi.

-Abacates! Ora! Tenho muitos... Estão muito baratos!

-Entretanto, disse Quaresma, ainda hoje indaguei em uma confeitaria e pediram-me pela dúzia cinco mil-réis.

-Em porção, o senhor sabe que... É isso... Enfim, se quer mande-os...

Depois, tilintou a pesada corrente de ouro, pôs uma das mãos na cava do colete e quase de costas para o major:

-É preciso vê-los... O tamanho influi...

Quaresma os mandou e, quando lhe veio o dinheiro, teve a satisfação orgulhosa de quem acaba de ganhar uma grande batalha imortal. Acariciou uma por uma aquelas notas encardidas, leu-lhes bem o número e a estampa, arrumou-as todas uma ao lado da outra sobre uma mesa e muito tempo levou sem ânimo de trocá-las.

Para avaliar o lucro, descontou o frete, de estrada de ferro e carroça, o custo dos caixões, o salário dos auxiliares e, após esse cálculo que não era laborioso, teve a evidência de que ganhara mil e quinhentos réis, nem mais nem menos. O Senhor Azevedo tinha-lhe pago pelo tanto a quantia com que se compra uma dúzia.

Assim mesmo o seu orgulho não diminuiu e ele viu naquele ridículo lucro objeto para maior contentamento do que se recebesse um avultado ordenado.

Foi, portanto, com redobrada atividade que se pôs ao trabalho. Para o ano, o lucro seria maior. Tratava-se agora de limpar as fruteiras. Anastácio e Felizardo continuavam ocupados nas grandes plantações; contratou um outro empregado para ajudá-lo no tratamento das velhas flores frutíferas.

Foi, pois, com o Mané Candeeiro que ele se pôs a serrar os galhos das árvores, os galhos mortos e aqueles em que a erva daninha segurava as suas raízes. Era árduo e difícil o trabalho. Tinham às vezes que subir às grimpas para a extirpação do galho atingido; os espinhos rasgavam as roupas e feriam as carnes; e em muitas ocasiões estiveram em risco de vir ao chão serrote e Quaresma ou o camarada.

Mané Candeeiro falava pouco, a não ser que se tratasse de cousas de caça; mas cantava que nem passarinho. Estava a serrar, estava a cantar trovas roceiras, ingênuas, onde com surpresa o major não via entrar a fauna, a flora locais, os costumes das profissões roceiras. Eram vaporosamente sensuais e muito ternas, melosas até; por acaso lá vinha uma em que um pássaro local entrava; então o major escutava:

Eu vou dar a despedida

como deu o bacurau,

uma perna no caminho

outra no galho de pau.



Este bacurau que entrava aí satisfazia particularmente às aspirações de Quaresma. A observação popular já começava a interessar-se pelo espetáculo ambiente, já se emocionava com ele e a nossa raça deitava, portanto, raízes na grande terra que habitava. Ele a copiou e mandou ao velho poeta de São Cristóvão. Felizardo dizia que Mané Candeeiro era um mentiroso, pois todas aquelas caçadas de caititus, jacus, onças eram patranhas; mas, respeitava o seu talento poético, principalmente no desafio: o moleque é bom!

Ele era claro e tinha umas feições regulares, cesarianas, duras e fortes, um tanto amolecidas pelo sangue africano.

Quaresma procurou descobrir nele aquela odiosa catadura que Darwin achou nos mestiços; mas, sinceramente, não a encontrou.

Com auxílio de Mané Candeeiro foi que Quaresma conseguiu acabar de limpar as fruteiras daquele velho sítio abandonado há quase dez anos. Quando o serviço ficou pronto, ele viu com tristeza aquelas velhas árvores amputadas, mutiladas, com folhas aqui e sem folhas ali... Parecia sofrer e ele se lembrou das mãos que as tinham plantado há vinte ou trinta anos, escravos, talvez, banzeiros e desesperançados!...

Mas não tardou que os botões rebentassem e tudo reverdecesse, e o renascimento das árvores como que trouxe o contentamento das aves e do passaredo solto. De manhã, esvoaçavam os tiés-vermelhos, com o seu pio pobre, espécie de ave tão inútil e tão bela de plumas que parece ter nascido para os chapéus das damas; as rolas pardas e caboclas em bando, mariscando, no chão capinado; pelo correr do dia, eram os sanhaçus a cantar nos galhos altos, os papa-capins, as nuvens de coleiros; e de tarde como que todos eles se reuniam, piando, cantando, chilreando, pelas altas mangueiras, pelos cajueiros, pelos abacateiros, entoando louvores ao trabalho tenaz e fecundo do velho Major Quaresma.

Não durou muito essa alegria. Um inimigo apareceu inopinadamente, com a rapidez ousadíssima de um general consumado. Até ali ele se mostrara tímido, parecia que somente mandava esclarecedores.

Desde aquele ataque às provisões de Quaresma, logo afugentadas, não mais as formigas reapareceram; mas, naquela manhã, quando contemplou o seu milharal, foi como se lhe tirassem a alma, e ficou sem ação e as lágrimas lhe vieram aos olhos.

O milho que já tinha repontado, muito verde, pequenino, com uma timidez de criança, crescera cerca de meio palmo acima da terra; o major até mandara buscar o sulfato de cobre para a solução em que ia lavar a batata-inglesa a plantar nos intervalos dos pés.

Toda a manhã, ele ia lá e já via o milharal crescido com o seu pendão branco e as suas espigas de coma cor de vinho, oscilando ao vento; naquela, ele não viu nada mais. Até os tenros colmos tinham sido cortados e levados para longe! «A modo que é obra de gente» disse Felizardo; entretanto, tinham sido as saúvas, os terríveis himenópteros, piratas ínfimos que lhe caíam em cima do trabalho com uma rapacidade turca... Era preciso combatê-los. Quaresma pôs-se logo em campo, descobriu as aberturas principais do formigueiro e em cada uma queimou o formicida mortal. Passaram-se dias; os inimigos pareciam derrotados, mas, certa noite, indo ao pomar para melhor apreciar a noite estrelada, Quaresma ouviu uma bulha esquisita, como se alguém esmagasse as folhas mortas das árvores... Um estalido... E era perto... Acendeu um fósforo e o que viu, meu Deus! Quase todas as laranjeiras estavam negras de imensas saúvas. Havia delas às centenas, pelos troncos e pelos galhos acima e agitavam-se, moviam-se, andavam como em ruas transitadas e vigiadas a população de uma grande cidade: umas subiam, outras desciam; nada de atropelos, de confusão, de desordem. O trabalho como que era regulado a toques de corneta. Lá em cima umas cortavam as folhas pelo pecíolo; cá embaixo, outras serravam-nas em pedaços e afinal eram carregadas por terceiras, levantando-as acima da descomunal cabeça, em longas fileiras pelo trilho limpo, aberto entre a erva rasteira.

Houve um instante de desânimo na alma do major. Não tinha contato com aquele obstáculo nem o supusera tão forte. Agora via bem que era a uma sociedade inteligente, organizada, ousada e tenaz com quem se tinha de haver. Veio-lhe então à lembrança aquela frase de Saint-Hilaire: se nós não expulsássemos as formigas, elas nos expulsariam.

O major não estava lembrado ao certo se eram essas as palavras, mas o sentido era, e ficou admirado que só agora ela lhe ocorresse.

No dia seguinte, tinha recobrado o ânimo. Comprou ingredientes e ei-lo mais o Mané Candeeiro a abrir picadas, a fazer esforços de sagacidade, para descobrir os redutos centrais, as «panelas» dos insetos terríveis. Então era como se os bombardeassem: o sulfeto queimava, estourava em tiros seguidos, mortíferos, letais!

E daí em diante, foi uma batalha sem tréguas. Se aparecia uma abertura, um «olho», logo se lhe aplicava o formicida, pois, do contrário, nenhuma plantação era possível, tanto mais que extintos os das suas terras, não tardariam os formigueiros das vizinhanças ou dos logradouros públicos a deitar canículos para o seu terreno.

Era um suplício, um castigo, uma espécie de vigilância a dique holandês e Quaresma viu bem que só uma autoridade central, um governo qualquer, ou um acordo entre os cultivadores, podia levar a efeito a extinção daquele flagelo pior que a saraiva, que a geada, que a seca, sempre presente, inverno ou verão, outono ou primavera.

Não obstante essa luta diária, o major não desanimou e pôde colher alguns produtos das plantações que tinha feito. Se por ocasião das frutas, a sua alegria foi grande, mais expressiva e mais profunda ela foi quando viu partir para a estação, em sucessivas carretas, as abóboras, os aipins, as batatas-doces, em cestos cobertos com sacos cosidos. Os frutos, em parte, eram de outras mãos; as árvores não tinham sido plantadas por ele; mas aquilo não, vinha do seu suor, da sua iniciativa, do seu trabalho!

Ele ainda foi ver aqueles cestos na estação, com a ternura de um pai que vê partir seu filho para a glória e para a vitória. Recebeu o dinheiro dias depois, contou-o e esteve deduzindo os lucros.

Não foi à roça nesse dia; o trabalho de guarda-livros roubou o de cultivador. A sua atenção, já um tanto gasta, não lhe favorecia a tarefa das cifras, e só pelo meio-dia, pôde dizer à irmã:

-Sabes qual foi o lucro, Adelaide?

-Não. Menor do que o dos abacates?

-Um pouco mais.

-Então... Quanto?

-Dous mil quinhentos e setenta réis, respondeu Quaresma, destacando sílaba por sílaba.

-O quê?

-Foi isso. Só de frete paguei cento e quarenta e dous mil e quinhentos.

Dona Adelaide esteve algum tempo com os olhos baixos, seguindo a costura que fazia, depois, levantando o olhar:

-Homem, Policarpo, o melhor é deixares isso... Tens gasto muito dinheiro... Só com as formigas!

-Ora, Adelaide! Pensas que quero fazer fortuna? Faço isso para dar exemplo, levantar a agricultura, aproveitar as nossas terras feracíssimas...

-É isto... Queres sempre ser a abelha-mestra... Já viste os grandes fazerem esses sacrifícios?... Vê lá se fazem! Histórias... Metem-se no café que tem todas as proteções...

-Mas, faço eu.

A irmã prestou mais atenção à costura, Policarpo levantou-se, foi até a janela que dava para o galinheiro. Fazia um dia fosco e irritante. Ele concertou o pince-nez, esteve olhando e de lá falou:

-Oh! Adelaide! Aquilo não é uma galinha morta?...

A velha senhora ergueu-se com a costura, foi até à janela e verificou com a vista:

-É... É já a segunda que morre hoje.

Após esta leve conversa, Quaresma voltou à sua sala de estudos. Meditava grandes reformas agrícolas. Mandara buscar catálogos e ia examiná-los. Tinha já em mente uma charrua dupla, um capinador mecânico, um semeador, um destocador, grades, tudo americano, de aço, dando o rendimento efetivo de vinte homens. Até então, não quisera essas inovações; as terras mais ricas do mundo não precisavam desses processos, que lhe pareciam artificiais, para produzir; estava, porém, agora disposto a empregá-los como experiência. Aos adubos, entretanto, o seu espírito resistia. Terra virada, dizia Felizardo, terra estrumada; parecia a Quaresma uma profanação estar a empregar nitratos, fosfatos ou mesmo estrume comum, numa terra brasileira... Uma injúria!

Quando se convencesse de que eram necessários, parecia-lhe que todo o seu sistema de idéias ia por terra e os móveis de sua vida desapareceriam. Estavam assim a escolher arados e outros «Planets», «Bajacs» e «Brabants» de vários feitios, quando o seu pequeno copeiro lhe anunciou a visita do Doutor Campos.

O edil entrou com a sua jovialidade, a sua mansidão e o seu grande corpo. Era alto e gordo, pançudo um pouco, tinha os olhos castanhos, quase à flor do rosto, uma testa média e reta; o nariz, malfeito. Um tanto trigueiro, cabelos corridos e já grisalhos, era o que se chama por aí um caboclo, embora o seu bigode fosse crespo. Não nascera em Curuzu, era da Bahia ou de Sergipe, habitava, porém, o lugar há mais de vinte anos, onde casara e prosperara, graças ao dote da mulher e à sua atividade clínica. Com esta, não gastava grande energia mental: tendo de cor uma meia dúzia de receitas, ele, desde muito, conseguira enquadrar as moléstias locais no seu reduzido formulário.

Presidente da Câmara, era das pessoas mais consideráveis de Curuzu, e Quaresma o estimava particularmente pela sua familiaridade, pela sua afabilidade e simplicidade.

-Ora viva, major! Como vai isto por aí? Muita formiga? Lá em casa já não há mais.

Quaresma respondeu com menos entusiasmo e jovialidade, mas contente com a alegria comunicativa do doutor. Ele continuava a falar com desembaraço e naturalidade:

-Sabe o que me traz aqui, major? Não sabe, não é? Preciso de um pequeno obséquio seu.

O major não se espantou; simpatizava com o homem e abriu-se em oferecimentos.

-Como o major sabe...

Agora a sua voz era doce, flexível, sutil; as palavras caíam-lhe da boca adocicadas, dobravam-se, coleavam-se:

-Como o major sabe, as eleições se devem realizar por estes dias. A vitória é «nossa». Todas as mesas estão conosco, exceto uma... Aí mesmo, se o major quiser...

-Mas, como? se eu não sou eleitor, não me meto, nem quero meter-me em política? perguntou Quaresma ingenuamente.

-Exatamente por isso, disse o doutor com voz forte; e em seguida brandamente: a seção funciona na sua vizinhança, é ali, na escola, se...

-E daí?

-Tenho aqui uma carta do Neves, dirigida ao senhor. Se o major quer responder (é melhor já) que não houve eleição... Quer?

Quaresma olhou o doutor com firmeza, coçou um instante o cavanhaque e respondeu claramente, firmemente:

-Absolutamente não.

O doutor não se zangou. Pôs mais unção e macieza na voz, aduziu argumentos: que era para o partido, o único que pugnava pelo levantamento da lavoura. Quaresma foi inflexível; disse que não, que lhe eram absolutamente antipáticas tais disputas, que não tinha partido e mesmo que tivesse não iria afirmar uma cousa que ele não sabia ainda se era mentira ou verdade.

Campos não deu mostras de aborrecimento, conversou um pouco sobre cousas banais e despediu-se com o ar amável, com a jovialidade mais sua que era possível.

Isto se passou na terça-feira, naquele dia de luz fosca e irritante. À tarde houve trovoada, choveu muito. O tempo só levantou na quinta-feira, dia em que o major foi surpreendido com a visita de um sujeito com um uniforme velho e lamentável, portador de um papel oficial para ele, proprietário do «Sossego», conforme mesmo disse o tal homem fardado.

Em virtude das posturas e leis municipais, rezava o papel, o Senhor Policarpo Quaresma, proprietário do sítio «Sossego», era intimado, sob as penas das mesmas posturas e leis, a roçar e capinar as testadas do referido sítio que confrontavam com as vias públicas.

O major ficou um tempo pensando. Julgava impossível uma tal intimação. Seria mesmo? Brincadeira... Leu de novo o papel, viu a assinatura do Doutor Campos. Era certo... Mas que absurda intimação esta de capinar e limpar estradas na extensão de mil e duzentos metros, pois seu sítio dava de frente para um caminho e de um dos lados acompanhava outro na extensão de oitocentos metros -era possível!?

A antiga corvéia!... Um absurdo! Antes confiscassem-lhe o sítio. Consultando a irmã, ela lhe aconselhou que falasse ao Doutor Campos. Contou-lhe então Quaresma a conversa que tivera com ele dias antes.

-Mas és tolo, Policarpo. Foi ele mesmo...

A luz se lhe fez no pensamento... Aquela rede de leis, de posturas, de códigos e de preceitos, nas mãos desses regulotes, de tais caciques, se transformava em potro, em polé, em instrumento de suplícios para torturar os inimigos, oprimir as populações, crestar-lhe a iniciativa e a independência, abatendo-as e desmoralizando-as.

Pelos seus olhos passaram num instante aquelas faces amareladas e chupadas que se encostavam nos portais das vendas preguiçosamente; viu também aquelas crianças maltrapilhas e sujas, d'olhos baixos, a esmolar disfarçadamente pelas estradas; viu aquelas terras abandonadas, improdutivas, entregues às ervas e insetos daninhos; viu ainda o desespero de Felizardo, homem bom, ativo e trabalhador, sem ânimo de plantar um grão de milho em casa e bebendo todo o dinheiro que lhe passava pelas mãos -este quadro passou-lhe pelos olhos com a rapidez e o brilho sinistro do relâmpago; e só se apagou de todo, quando teve que ler a carta que a sua afilhada lhe mandara.

Vinha viva e alegre. Contava pequenas histórias de sua vida, a viagem próxima do papai à Europa, o desespero do marido no dia em que saiu sem anel, pedia notícias do padrinho, de Dona Adelaide e, sem desrespeito, recomendava à irmã de Quaresma que tivesse muito cuidado com o manto de arminho da «Duquesa».

A «Duquesa» era uma grande pata branca, de penas alvas e macias ao olhar, que, pela lentidão e majestade do andar, com o pescoço alto e o passo firme, merecera de Olga esse apelido nobre. O animal tinha morrido havia dias. E que morte! Uma peste que lhe levara duas dúzias de patos, levara a «Duquesa» também. Era uma espécie de paralisia que tomava as pernas, depois o resto do corpo. Três dias levou a agonizar. Deitada sobre o peito, com o bico colado ao chão, atacada pelas formigas, o animal só dava sinal de vida por uma lenta oscilação do pescoço em torno do bico, espantando as moscas que a importunavam na sua última hora.

Era de ver como aquela vida tão estranha à nossa, naquele instante penetrava em nós e sentíamos-lhe o sofrimento, a agonia e a dor.

O galinheiro ficou como uma aldeia devastada; a peste atacou galinhas, perus, patos; ora sobre uma forma, ora sobre outra, foi ceifando, matando, até reduzir a sua população a menos de metade.

E não havia quem soubesse curar. Numa terra cujo governo tinha tantas escolas que produziam tantos sábios, não havia um só homem que pudesse reduzir com as suas drogas ou receitas aquele considerável prejuízo.

Esses contratempos, essas contrariedades abateram muito o cultivador entusiástico dos primeiros meses; entretanto não passara pela mente de Quaresma abandonar os seus propósitos. Adquiriu compêndios de veterinária e até já tratava de comprar as máquinas agrícolas descritas nos catálogos.

Uma tarde, porém, estava à espera da junta de bois que encomendara para o trabalho do arado, quando lhe apareceu à porta um soldado de polícia com um papel oficial. Ele se lembrou da intimação municipal. Estava disposto a resistir, não se incomodou muito.

Recebeu o papel e leu. Não vinha mais da municipalidade, mas da coletoria, cujo escrivão, Antonino Dutra, conforme estava no papel, intimava o Senhor Policarpo Quaresma a pagar quinhentos mil-réis de multa, por ter enviado produtos de sua lavoura sem pagamento dos respectivos impostos.

Viu bem o que havia nisso de vingança mesquinha; mas o seu pensamento voou logo para as cousas gerais, levado pelo seu patriotismo profundo.

A quarenta quilômetros do Rio, pagavam-se impostos para se mandar ao mercado umas batatas? Depois de Turgot, da Revolução, ainda havia alfândegas interiores?

Como era possível fazer prosperar a agricultura, com tantas barreiras e impostos? Se ao monopólio dos atravessadores do Rio se juntavam as exações do Estado, como era possível tirar da terra a remuneração consoladora?

E o quadro que já lhe passara pelos olhos, quando recebeu a intimação da municipalidade, voltou-lhe de novo, mais tétrico, mais sombrio, mais lúgubre; e anteviu a época em que aquela gente teria de comer sapos, cobras, animais mortos, como em França os camponeses, em tempos de grandes reis.

Quaresma veio a recordar-se do seu tupi, do seu folklore, das modinhas, das suas tentativas agrícolas - tudo isso lhe pareceu insignificante, pueril, infantil.

Era preciso trabalhos maiores, mais profundos; tornava-se necessário refazer a administração. Imaginava um governo forte, respeitado, inteligente, removendo todos esses óbices, esses entraves, Sully e Henrique IV, espalhando sábias leis agrárias, levantando o cultivador... Então sim! O celeiro surgiria e a pátria seria feliz.

Felizardo entregou-lhe o jornal que toda a manhã mandava comprar à estação, e lhe disse:

-Seu patrão, amanhã, não venho «trabaiá».

-Por certo; é dia feriado... A Independência.

-Não é por isso.

-Por que então?

-Há «baruio» na Corte e dizem que vão «arrecrutá». Vou pro mato... Nada!

-Que barulho?

-«Tá» nas «foias», sim «sinhô».

Abriu o jornal e logo deu com a notícia de que os navios da esquadra se haviam insurgido e intimado ao Presidente a sair do poder. Lembrou-se das suas reflexões de instantes atrás; um governo forte, até à tirania... Medidas agrárias... Sully e Henrique IV...

Os seus olhos brilhavam de esperança. Despediu o empregado. Foi ao interior da casa, nada disse à irmã, tomou o chapéu, e dirigiu-se à estação.

Chegou ao telégrafo e escreveu:

«Marechal Floriano, Rio. Peço energia. Sigo já. - Quaresma.»

O trovador

-Decerto, Albernaz, não é possível continuar assim... Então, mete-se um sujeito num navio, assesta os canhões pra terra e diz: sai daí «seu» presidente; e o homem vai saindo?... Não! É preciso um exemplo...

-Eu penso também da mesma maneira, Caldas. A República precisa ficar forte, consolidada... Esta terra necessita de governo que se faça respeitar... É incrível! Um país como este, tão rico, talvez o mais rico do mundo, é, no entanto, pobre, deve a todo o mundo... Por quê? Por causa dos governos que temos tido que não têm prestígio, força... É por isso.

Vinham andando, à sombra das grandes e majestosas árvores do parque abandonado; ambos fardados e de espada. Albernaz, depois de um curto intervalo, continuou:

-Você viu o imperador, o Pedro II... Não havia jornaleco, pasquim por aí, que o não chamasse de «banana» e outras cousas... Saía no carnaval... Um desrespeito sem nome! Que aconteceu? Foi-se como um intruso.

-E era um bom homem, observou o almirante. Amava o seu país... Deodoro nunca soube o que fez.

Continuavam a andar. O almirante coçou um dos favoritos e Albernaz olhou um instante para todos os lados, acendeu o cigarro de palha e retomou a conversa:

-Morreu arrependido... Nem com a farda quis ir para a cova!... Aqui para nós que ninguém nos ouve: foi um ingrato; o imperador tinha feito tanto por toda a família, não acha?

-Não há dúvida nenhuma!... Albernaz, você quer saber de uma cousa: estávamos melhor naquele tempo, digam lá o que disserem...

-Quem diz o contrário? Havia mais moralidade... Onde está um Caxias? um Rio Branco?

-E mais justiça mesmo, disse com firmeza o almirante. O que eu sofri, não foi por causa do «velho», foi a canalha... Demais, tudo barato...

-Eu não sei, disse Albernaz com particular acento, como há ainda quem se case... Anda tudo pela hora da morte!

Eles olharam um instante as velhas árvores da Quinta Imperial, por onde vinham atravessando. Nunca as tinham contemplado; e, agora parecia-lhes que jamais tinham pousado os olhos sobre árvores tão soberbas, tão belas, tão tranqüilas e seguras de si, como aquelas que espalhavam sob os seus grandes ramos uma vasta sombra, deliciosa e macia. Pareciam que medravam sentindo-se em terra própria, delas, da qual nunca sairiam desalojadas a machado, para edificação de casebres; e esse sentimento lhes havia dado muita força de vegetar e uma ampla vontade de se expandirem. O solo sobre o qual cresciam era delas e agradeciam à terra estendendo muito os seus ramos, cerrando e tecendo a folhagem, para dar à boa mãe frescura e proteção contra a inclemência do sol.

As mangueiras eram as mais gratas; os ramos longos e cheios de folhas quase beijavam o chão. As jaqueiras se espreguiçavam; os bambus se inclinavam, de um lado e outro da aléia, e cobriam a terra com uma ogiva verde...

O velho edifício imperial se erguia sobre a pequena colina. Eles lhe viam o fundo, aquela parte de construção mais antiga, joanina, com a torre do relógio um pouco afastada e separada do corpo do edifício.

Não era belo o palácio, não tinha mesmo nenhum traço de beleza, era até pobre e monótono. As janelas acanhadas daquela fachada velha, os andares de pequena altura impressionavam mal; todo ele, porém, tinha uma tal ou qual segurança de si, um ar de confiança pouco comum nas nossas habitações, uma certa dignidade, alguma cousa de quem se sente viver, não para um instante, mas para anos, para séculos... As palmeiras cercavam-no, erectas, firmes, com os seus grandes penachos verdes, muito altos, alongados para o céu...

Eram como que a guarda da antiga moradia imperial, guarda orgulhosa do seu mister e função.

Albernaz interrompeu o silêncio:

-Em que dará isto tudo, Caldas?

-Sei lá.

-O «homem» deve estar atrapalhado... Já tinha o Rio Grande, agora o Custódio... hum!

-O poder é o poder, Albernaz.

Vinham andando em demanda à estação de São Cristóvão. Atravessaram o velho parque imperial transversalmente, desde o portão da Cancela até à linha da estrada de ferro. Era de manhã, e o dia estava límpido e fresco.

Caminhavam com pequenos passos seguros, mas sem pressa. Pouco antes de saírem da quinta, deram com um soldado a dormir numa moita. Albernaz teve vontade de acordá-lo: camarada! camarada! O soldado levantou-se estremunhado; e, dando com aqueles dous oficiais superiores, concertou-se rapidamente, fez a continência que lhes era devida e ficou com a mão no boné, um instante firme, mas logo bambeou.

-Abaixe a mão, fez o general. Que faz você aqui?

Albernaz falou em tom ríspido e de comando. A praça, falando a medo, explicou que tinha estado de ronda ao litoral toda a noite. A força se recolhera aos quartéis; ele obtivera licença para ir em casa, mas o sono fora muito e descansava ali um pouco.

-Então como vão as cousas? perguntou o general.

-Não sei, não «sinhô».

-Os «homens» desistem ou não?

O general esteve um instante examinando o soldado. Era branco e tinha os cabelos alourados, de um louro sujo e degradado; as feições eram feias: malares salientes, testa óssea e todo ele anguloso e desconjuntado.

-Donde você é? perguntou-lhe ainda Albernaz.

-Do Piauí, sim «sinhô».

-Da capital?

-Do sertão, de Paranaguá, sim «sinhô».

O almirante até ali não interrogara o soldado que continuava amedrontado, respondendo tropegamente. Caldas, para acalmá-lo, resolveu falar-lhe com doçura.

-Você não sabe, camarada, quais são os navios que «eles» têm?

-O «Aquidabã»... A «Luci».

-A «Luci» não é navio.

-É verdade, sim «sinhô». O «Aquidabã»... Um »bandão» deles, sim, «sinhô».

O general interveio então. Falou-lhe com brandura, quase paternal, mudando o tratamento de você para tu, que parece mais doce e íntimo quando se fala aos inferiores:

-Bem, descansa, meu filho. É melhor ires para casa... Podem furtar-te o sabre e estás na «inácia».

Os dous generais continuaram o seu caminho e, em breve, estavam na plataforma da estação. A pequena estação tinha um razoável movimento. Um grande número de oficiais, ativos, reformados, honorários moravam-lhe nas cercanias e os editais chamavam todos a se apresentar às autoridades competentes. Albernaz e Caldas atravessaram a plataforma no meio de continências. O general era mais conhecido, em virtude de seu emprego; o almirante, não. Quando passavam, ouviam perguntar: «Quem é este almirante?» Caldas ficava contente e orgulhava-se um pouco do seu posto e do seu incógnito.

Havia uma única mulher na estação, uma moça. Albernaz olhou-a e lembrou-se um instante de sua filha Ismênia... Coitada!... Ficaria boa?

Aquelas manias? Onde iria parar? Vieram-lhe as lágrimas, mas ele as conteve com força.

Já a levara a uma meia dúzia de médicos e nenhum fazia parar aquele escapamento do juízo que parecia fugir aos poucos do cérebro da moça.

A bulha de um expresso, chocalhando ferragens com estrépito, apitando com fúria e deixando fumaça pesada pelos ares que rompia, afastou-o de pensar na filha. Passou o monstro, pejado de soldados, de uniformes e os trilhos, depois de ter passado, ainda estremeciam.

Bustamante apareceu; morava nos arredores e vinha tomar o trem, para apresentar-se. Trazia o seu velho uniforme do Paraguai, talhado segundo os moldes dos guerreiros da Criméia. A barretina era um tronco de cone que avançava para a frente; e, com aquela banda roxa e casaquinha curta, parecia ter saído, fugido, saltado de uma tela de Vítor Meireles.

-Então por aqui?... Que é isto? indagou o honorário.

-Viemos pela quinta, disse o almirante.

-Nada, meus amigos, esses bondes andam muito perto do mar... Não me importa morrer, mas quero morrer combatendo; isso de morrer por aí, à toa, sem saber como, não vai comigo...

O general falara um pouco alto e os jovens oficiais que estavam próximo olharam-no com mal disfarçada censura. Albernaz percebeu e ajuntou imediatamente:

-Conheço bem esse negócio de balas... Já vi muito fogo... Você sabe, Bustamante, que, em Curuzu...

-A cousa foi terrível, acrescentou Bustamante.

O trem atracava na estação. Veio chegando manso, vagaroso; a locomotiva, muito negra, bufando, suando gordurosamente, com a sua grande lanterna na frente, um olho de ciclope, avançava que nem uma aparição sobrenatural. Foi chegando; o comboio estremeceu todo e parou por fim.

Estava repleto, muitas fardas de oficiais; a avaliar por ali o Rio devia ter uma guarnição de cem mil homens. Os militares palravam alegres, e os civis vinham calados e abatidos, e mesmo apavorados. Se falavam, era cochichando, olhando com precaução para os bancos de trás.

A cidade andava inçada de secretas, «familiares» do Santo Ofício Republicano, e as delações eram moedas com que se obtinham postos e recompensas.

Bastava a mínima crítica, para se perder o emprego, a liberdade, -quem sabe?- a vida também. Ainda estávamos no começo da revolta, mas o regime já publicara o seu prólogo e todos estavam avisados. O chefe de polícia organizara a lista dos suspeitos. Não havia distinção de posição e talentos. Mereciam as mesmas perseguições do governo um pobre contínuo e um influente senador; um lente e um simples empregado de escritório. Demais surgiam as vinganças mesquinhas, a revide de pequenas implicâncias... Todos mandavam; a autoridade estava em todas as mãos.

Em nome do Marechal Floriano, qualquer oficial, ou mesmo cidadão, sem função pública alguma, prendia e ai de quem caía na prisão, lá ficava esquecido, sofrendo angustiosos suplícios de uma imaginação dominicana. Os funcionários disputavam-se em bajulação, em servilismo... Era um terror, um terror baço, sem coragem, sangrento, às ocultas, sem grandeza, sem desculpa, sem razão e sem responsabilidades... Houve execuções; mas não houve nunca um Fouquier-Tinville.

Os militares estavam contentes, especialmente os pequenos, os alferes, os tenentes e os capitães. Para a maioria a satisfação vinha da convicção de que iam estender a sua autoridade sobre o pelotão e a companhia, a todo esse rebanho de civis; mas, em outros muitos havia sentimento mais puro, desinteresse e sinceridade. Eram os adeptos desse nefasto e hipócrita positivismo, um pedantismo tirânico, limitado e estreito, que justificava todas as violências, todos os assassínios, todas as ferocidades em nome da manutenção da ordem, condição necessária, lá diz ele, ao progresso e também ao advento do regime normal, a religião da humanidade, a adoração do grão-fetiche, com fanhosas músicas de cornetins e versos detestáveis, o paraíso, enfim, com inscrições em escritura fonética e eleitos calçados com sapatos de sola de borracha!...

Os positivistas discutiam e citavam teoremas de mecânica para justificar as suas idéias de governo, em tudo semelhantes aos canatos e emirados orientais.

A matemática do positivismo foi sempre um puro falatório que, naqueles tempos, amedrontava toda a gente. Havia mesmo quem estivesse convencido que a matemática tinha sido feita e criada para o positivismo, como se a Bíblia tivesse sido criada unicamente para a Igreja Católica e não também para a Anglicana. O prestígio dele era, portanto, enorme.

O trem correu, parou ainda em uma estação e foi ter à praça da República. O almirante, cosido com as paredes, seguiu para o Arsenal de Marinha; Albernaz e Bustamante entraram no Quartel-General. Penetraram no grande casarão, no meio do retinir de espadas, de toques de cornetas; o grande pátio estava cheio de soldados, bandeiras, canhões, feixes de armas ensarilhadas, baionetas reluzindo ao sol oblíquo...

No sobrado, nas proximidades do gabinete do ministro, havia um vaivém de fardas, dourados, fazendas multicores, uniformes de várias corporações e milícias, no meio dos quais os trajes escuros dos civis eram importunos como moscas. Misturavam-se oficiais da guarda nacional, da polícia, da armada, do exército, de bombeiros e de batalhões patrióticos que começavam a surgir.

Apresentaram-se e, depois de tê-lo feito ao ajudante-general e ministro da Guerra, a um só tempo, ficaram a conversar nos corredores, com bastante prazer, pois que tinham encontrado o Tenente Fontes e ambos gostavam de ouvi-lo.

O general porque já era noivo de sua filha Lalá, e Bustamante porque aprendia com ele alguma cousa de nomenclatura dos armamentos modernos.

Fontes estava indignado, todo ele era horror, maldição contra os insurrectos, e propunha os piores castigos.

-Hão de ver o resultado... Piratas! Bandidos! Eu, no caso do marechal, se os pegasse... ai deles!

O tenente não era feroz nem mau, antes bom e até generoso, mas era positivista e tinha da sua República uma idéia religiosa e transcendente. Fazia repousar nela toda a felicidade humana e não admitia que a quisessem de outra forma que não aquela que imaginava boa. Fora daí não havia boa fé, sinceridade; eram heréticos interesseiros, e, dominicano do seu barrete frígio, raivoso por não poder queimá-los em autos-de-fé, congesto, via passar por seus olhos uma série enorme de réus confidentes, relapsos, contumazes, falsos, simulados, fictos e confictos, sem samarra, soltos por aí...

Albernaz não tinha tanta fúria contra os adversários. No fundo d'alma, ele os queria até, tinha amigos lá, e essas divergências nada significavam para a sua idade e experiência.

Depositava, entretanto, uma certa esperança na ação do marechal. Estando em apuros financeiros, não lhe dando o bastante a sua reforma e a gratificação de organizador do arquivo do Largo do Moura, esperava obter uma outra comissão, que lhe permitisse mais folgadamente adquirir o enxoval de Lalá.

O almirante, também, tinha grande confiança nos talentos guerreiros e de estadista de Floriano. A sua causa não ia lá muito bem. Perdera-a em primeira instância, estava gastando muito dinheiro... O governo precisava de oficiais de Marinha, quase todos estavam na revolta; talvez lhe dessem uma esquadra a comandar... É verdade que... Mas, que diabo! Se fosse um navio, então sim: mas uma esquadra a cousa não era difícil; bastava coragem para combater.

Bustamante cria com força na capacidade do General Peixoto, tanto assim que, para apoiá-lo e defender o seu governo, imaginava organizar um batalhão patriótico, de que já tinha o nome «Cruzeiro do Sul» e naturalmente seria o seu comandante, com todas as vantagens do posto de coronel.

Genelício, cuja atividade nada tinha de guerreira, esperava muito da energia e da decisão do governo de Floriano: esperava ser subdiretor e não podia um governo sério, honesto e enérgico, fazer outra cousa, desde que quisesse pôr ordem na sua seção.

Essas secretas esperanças eram mais gerais do que se pode supor. Nós vivemos do governo e a revolta representava uma confusão nos empregos, nas honrarias e nas posições que o Estado espalha. Os suspeitos abririam vagas e as dedicações supririam os títulos e habilitações para ocupá-las; além disso, o governo, precisando de simpatias e homens, tinha que nomear, espalhar, prodigalizar, inventar, criar e distribuir empregos, ordenados, promoções e gratificações.

O próprio Doutor Armando Borges, o marido de Olga e sábio sereno e dedicado quando estudante, colocava na revolta a realização de risonhos anelos.

Médico e rico, pela fortuna da mulher, ele não andava satisfeito. A ambição de dinheiro e o desejo de nomeada esporeavam-no. Já era médico do Hospital Sírio, onde ia três vezes por semana e, em meia hora, via trinta e mais doentes. Chegava, o enfermeiro dava-lhe informações, o doutor ia, de cama em cama, perguntando: «Como vai?» «Vou melhor seu doutor», respondia o sírio com voz gutural. Na seguinte, indagava: «Já está melhor?» E assim passava a visita; chegando ao gabinete receitava: «Doente n.º 1, repita a receita; doente 5... quem é?»... «É aquele barbado»... «Ahn!» E receitava.

Mas médico de um hospital particular não dá fama a ninguém: o indispensável é ser do governo, senão ele não passava de um simples prático. Queria ter um cargo oficial, médico, diretor ou mesmo lente da faculdade.

E isso não era difícil, desde que arranjasse boas recomendações pois já tinha certo nome, graças à sua atividade e fertilidade de recursos.

De quando em quando, publicava um folheto. O Cobreiro, Etiologia, Profilaxia e Tratamento ou Contribuição para o Estudo da Sarna no Brasil; e, mandava o folheto, quarenta e sessenta páginas, aos jornais que se ocupavam dele duas ou três vezes por ano; o «operoso Doutor Armando Borges, o ilustre clínico, o proficiente médico dos nossos hospitais», etc., etc.

Obtinha isso graças à precaução que tomara em estudante de se relacionar com os rapazes da imprensa.

Não contente com isso escrevia artigos, estiradas compilações, em que não havia nada de próprio, mas ricos de citações em francês, inglês e alemão.

O lugar de lente é que o tentava mais; o concurso, porém, metia-lhe medo. Tinha elementos, estava bem relacionado e cotado na congregação, mas aquela história de argüição apavorava-o.

Não havia dia em que não comprasse livros, em francês, inglês e italiano; tomara até um professor de alemão, para entrar na ciência germânica; mas faltava-lhe energia para o estudo prolongado e a sua felicidade pessoal fizera evolar-se a pequena que tivera quando estudante.

A sala da frente do alto porão tinha sido transformada em biblioteca. As paredes estavam forradas de estantes que gemiam ao peso dos grandes tratados. À noite, ele abria as janelas das venezianas, acendia todos os bicos-de-gás e se punha à mesa, todo de branco com um livro aberto sob os olhos.

O sono não tardava a vir ao fim da quinta página... Isso era o diabo! Deu em procurar os livros da mulher. Eram romances franceses, Goncourt, Anatole France, Daudet, Maupassant, que o faziam dormir da mesma maneira que os tratados. Ele não compreendia a grandeza daquelas análises, daquelas descrições, o interesse e o valor delas, revelando a todos, à sociedade, a vida, os sentimentos, as dores daqueles personagens, um mundo! O seu pedantismo, a sua falsa ciência e a pobreza de sua instrução geral faziam-no ver naquilo tudo, brinquedos, passatempos, falatórios, tanto mais que ele dormia à leitura de tais livros.

Precisava, porém, iludir-se, a si mesmo e à mulher. De resto, da rua, viam-no e se dessem com ele a dormir sobre os livros?!... Tratou de encomendar algumas novelas de Paulo de Kock em lombadas com títulos trocados e afastou o sono.

A sua clínica, entretanto, prosperava. De comandita com o tutor, chegou a ganhar uns seis contos, tratando de um febrão de uma órfã rica.

Desde muito que a mulher lhe entrava na sua simulação de inteligência, mas aquela manobra indecorosa indignou-a. Que necessidade tinha ele disso? Não era já rico? Não era moço? Não tinha o privilégio de um título universitário? Tal ato pareceu à moça mais vil, mais baixo, que a usura de um judeu, que o aluguel de uma pena...

Não foi desprezo, nojo que ela teve pelo marido; foi um sentimento mais calmo, menos ativo; desinteressou-se dele, destacou-se de sua pessoa. Ela sentiu que tinham cortado todos os laços de afeição, de simpatia, que prendiam ambos, toda a ligação moral, enfim.

Mesmo quando noiva, verificara que aquelas cousas de amor ao estudo, de interesse pela ciência, de ambições de descobertas, nele, eram superficiais, estavam à flor da pele; mas desculpou. Muitas vezes nós nos enganamos sobre as nossas próprias forças e capacidades; sonhamos ser Shakespeare e saímos Mal das Vinhas. Era perdoável, mas charlatão? Era demais!

Passou-lhe um pensamento mau, mas de que valeria essa quase indignidade?... Todos os homens deviam ser iguais; era inútil mudar deste para aquele...

Quando chegou a esta conclusão, sentiu um grande alívio, e a sua fisionomia se iluminou de novo como se já estivesse de todo passada a nuvem que empanava o sol dos seus olhos.

Naquela carreira atropelada para o nome fácil, ele não deu pelas modificações da mulher. Ela dissimulava os seus sentimentos, mais por dignidade e delicadeza, que mesmo por qualquer outro motivo; e a ele faltavam a sagacidade e finura necessárias para descobri-los sob o seu esconderijo.

Continuavam a viver como se nada houvesse, mas quanto estavam longe um do outro!...

A revolta veio encontrá-los assim; e o doutor, desde três dias, pois há tanto ela rebentara, meditava a sua ascensão social e monetária.

O sogro suspendera a viagem à Europa, e, naquela manhã, após o almoço, conforme o seu hábito, lia recostado numa cadeira de viagem os jornais do dia. O genro vestia-se e a filha ocupava-se com sua correspondência, escrevendo à cabeceira da mesa de jantar. Ela tinha um gabinete, com todo o luxo, livros, secretária, estantes, mas gostava pela manhã de escrever ali, ao lado do pai. A sala lhe parecia mais clara, a vista para a montanha, feia e esmagadora, dava mais seriedade ao pensamento e a vastidão da sala mais liberdade no escrever.

Ela escrevia e o pai lia; num dado momento ele disse:

-Sabes quem vem aí, minha filha?

-Quem é?

-Teu padrinho. Telegrafou ao Floriano, dizendo que vinha... Está aqui, n'O País.

A moça adivinhou logo o motivo, o modo de agir e reagir de fato sobre as idéias e sentimentos de Quaresma. Quis desaprovar, censurar; sentiu-o, porém, tão coerente com ele mesmo, tão de acordo com a substância da vida que ele mesmo fabricara, que se limitou a sorrir complacente:

-O padrinho...

-Está doido, disse Coleoni, Per la madonna! Pois um homem que está quieto, sossegado, vem meter-se nesta barafunda, neste inferno...

O doutor voltava já inteiramente vestido, com a sobrecasaca fúnebre e a cartola reluzente na mão. Vinha irradiante e o seu rosto redondo reluzia, exceto onde o grande bigode punha sombras. Ainda ouviu as últimas palavras do sogro, pronunciadas com aquele seu português rouco:

-Que há? perguntou ele.

Coleoni explicou e repetiu os comentários que já fizera:

-Mas não há tal, disse o doutor. É o dever de todo o patriota... Que tem a idade? Quarenta e poucos anos, não é lá velho... Pode ainda bater-se pela República...

-Mas não tem interesse nisso, objetou o velho.

-E há de ser só quem tem interesse que se deve bater pela República? interrogou o doutor.

A moça que acabava de ler a carta que tinha escrito, mesmo sem levantar a cabeça, disse:

-Decerto.

-É vem você com as suas teorias, filhinha. O patriotismo não está na barriga...

E sorriu com um falso sorriso que o brilho morto dos seus dentes postiços mais falsificava.

-Mas vocês só falam em patriotismo? E os outros? É monopólio de vocês o patriotismo? fez Olga.

-Decerto. Se eles fossem patriotas não estariam a despejar balas para a cidade, a entorpecer, a desmoralizar a ação da autoridade constituída.

-Deviam continuar a presenciar as prisões, as deportações, os fuzilamentos, toda a série de violências que se vêm cometendo, aqui e no Sul?

-Você, no fundo, é uma revoltosa, disse o doutor, fechando a discussão.

Ela não deixava de ser. A simpatia dos desinteressados, da população inteira era pelos insurgentes. Não só isso sempre acontece em toda a parte, como particularmente, no Brasil, devido a múltiplos fatores, há de ser assim normalmente.

Os governos, com os seus inevitáveis processos de violência e hipocrisias, ficam alheados da simpatia dos que acreditam nele; e demais, esquecidos de sua vital impotência e inutilidade, levam a prometer o que não podem fazer, de forma a criar desesperados, que pedem sempre mudanças e mudanças.

Não era, pois, de admirar que a moça tendesse para os revoltosos; e Coleoni, estrangeiro e conhecendo, graças à sua vida, as nossas autoridades, calasse as suas simpatias num mutismo prudente.

-Não me vá comprometer, hein, Olga?

Ela se tinha levantado para acompanhar o marido. Parou um pouco, deitou-lhe o seu grande olhar luminoso, e com os finos lábios um pouco franzidos:

-Você sabe bem que eu não te comprometo.

O doutor desceu a escada da varanda, atravessou o jardim e ainda do portão disse adeus à mulher, que lhe seguia a saída, debruçada na varanda, conforme o ritual dos bem ou mal casados.

Por esse tempo, Coração dos Outros sonhava desligado das contingências terrenas.

Ricardo vivia ainda na sua casa de cômodos dos subúrbios, cuja vista ia de Todos os Santos à Piedade, abrangendo um grande trato de área edificada, um panorama de casas e árvores.

Já não se falava mais no seu rival e a sua mágoa tinha assentado.

Por esses dias o triunfo desfilava sem contestação. Toda a cidade o tinha na consideração devida e ele quase se julgava ao termo da sua carreira. Faltava o assentimento de Botafogo, mas estava certo de obter.

Já publicara mais de um volume de canções; e, agora pensava em publicar mais outro.

Há dias vivia em casa, pouco saindo, organizando o seu livro. Passava confinado no seu quarto, almoçando café, que ele mesmo fazia, e pão, indo à tarde jantar a uma tasca próximo à estação.

Notara que sempre que chegava, os carroceiros e trabalhadores, que jantavam nas mesas sujas, abaixavam a voz e olhavam-no desconfiados; mas não deu importância...

Apesar de popular no lugar, não encontrara pessoa alguma conhecida durante os três últimos dias; ele mesmo evitava falar e, em sua casa, limitava-se ao «bom-dia» e à «boa-tarde» trocados com os vizinhos.

Gostava de passar assim dias, metido em si mesmo e ouvindo o seu coração. Não lia jornais para não distrair a atenção do seu trabalho. Vivia a pensar nas suas modinhas e no seu livro que havia de ser mais uma vitória para ele e para o violão estremecido.

Naquela tarde estava sentado à mesa, corrigindo um dos seus trabalhos, um dos últimos, aquele que compusera no sítio de Quaresma - «Os lábios de Carola».

Primeiro, leu toda a produção, cantarolando; voltou a lê-la, agarrou o violão para melhor apanhar o efeito e empacou nestes:

É mais bela que Helena e Margarida,

quando sorri meneando a ventarola.

Só se encontra a ilusão que adoça a vida

nos lábios de Carola.



Nisto ouviu um tiro, depois, outro, outro... Que diabo? pensou. Hão de ser salvas a algum navio estrangeiro. Repinicou o violão e continuou a cantar os lábios de Carola, onde encontrava a ilusão que adoça a vida...

Terceira parte

Patriotas

Havia mais de uma hora que ele estava ali, num grande salão do palácio, vendo o marechal, mas sem lhe poder falar. Quase não se encontravam dificuldades para se chegar à sua presença, mas falar-lhe, a cousa não era tão fácil.

O palácio tinha um ar de intimidade, de quase relaxamento, representativo e eloqüente. Não era raro ver-se pelos divãs, em outras salas, ajudantes-de-ordens, ordenanças, contínuos, cochilando, meio deitados e desabotoados. Tudo nele era desleixo e moleza. Os cantos dos tetos tinham teias de aranha; dos tapetes, quando pisados com mais força, subia uma poeira de rua mal varrida.

Quaresma não pudera vir logo, como anunciara no telegrama. Fora preciso pôr em ordem os seus negócios, arranjar quem fizesse companhia à irmã. Fizera Dona Adelaide mil objeções à sua partida; mostrara-lhe os riscos da luta, da guerra, incompatíveis com a sua idade e superiores à sua força; ele, porém, não se deixara abater, fizera pé firme, pois sentia, indispensável, necessário que toda a sua vontade, que toda a sua inteligência, que tudo o que ele tinha de vida e atividade fosse posto à disposição do governo, para então!... Oh!

Aproveitara os dias até para redigir um memorial que ia entregar a Floriano. Nele expunham-se as medidas necessárias para o levantamento da agricultura e mostravam-se todos os entraves, oriundos da grande propriedade, das exações fiscais, da carestia de fretes, da estreiteza dos mercados e das violências políticas.

O major apertava o manuscrito na mão e lembrava-se da sua casa, lá longe, no canto daquela planície feia, olhando, no poente, as montanhas que se alongavam, se afilavam nos dias claros e transparentes, lembrava-se de sua irmã, dos seus olhos verdes e plácidos que o viram partir com uma impassibilidade que não era natural; mas do que se lembrava mais, naquele momento, era do Anastácio, o seu preto velho, do seu longo olhar, não mais com aquela ternura passiva de animal doméstico, mas cheio de assombro, de espanto e piedade, rolando muito nas órbitas as escleróticas muito brancas, quando o viu penetrar no vagão da estrada de ferro. Parecia que farejava desgraça... Não lhe era comum tal atitude e como que a tomava por ter descoberto nas cousas sinais de dolorosos acontecimentos a vir... Ora!...

Ficara Quaresma a um canto vendo entrar um e outro, à espera que o presidente o chamasse. Era cedo, pouco devia faltar para o meio-dia, e Floriano tinha ainda, como sinal do almoço, o palito na boca.

Falou em primeiro lugar a uma comissão de senhoras que vinham oferecer o seu braço e o seu sangue em defesa das instituições e da pátria. A oradora era uma mulher baixa, de busto curto, gorda, com grandes seios altos e falava agitando o leque fechado na mão direita.

Não se podia dizer bem qual a sua cor, sua raça, ao menos: andavam tantas nela que uma escondia a outra, furtando toda ela a uma classificação honesta.

Enquanto falava, a mulherzinha deitava sobre o marechal os grandes olhos que despediam chispas. Floriano parecia incomodado com aquele chamejar; era como se temesse derreter-se ao calor daquele olhar que queimava mais sedução que patriotismo. Fugia encará-la, abaixava o rosto como um adolescente, batia com os dedos na mesa...

Quando lhe chegou a vez de falar, levantou um pouco o rosto, mas sem encarar a mulher, e, com um grosso e difícil sorriso de roceiro, declinou da oferta, visto a República ainda dispor de bastante força para vencer.

A última frase, ele a disse com mais vagar e quase ironicamente. As damas despediram-se; o marechal girou o olhar em torno do salão e deu com Quaresma:

-Então, Quaresma? fez ele familiarmente.

O major ia aproximar-se, mas logo estacou no lugar em que estava. Uma chusma de oficiais subalternos e cadetes cercou o ditador e a sua atenção convergiu para eles. Não se ouvia o que diziam. Falavam ao ouvido de Floriano, cochichavam, batiam-lhe nas espáduas. O marechal quase não falava: movia com a cabeça ou pronunciava um monossílabo, cousa que Quaresma percebia pela articulação dos lábios.

Começaram a sair. Apertavam a mão do ditador e, um deles, mais jovial, mais familiar, ao despedir-se, apertou-lhe com força a mão mole, bateu-lhe no ombro com intimidade, e disse alto e com ênfase:

-Energia, marechal!

Aquilo tudo parecia tão natural, normal, tendo entrado no novo cerimonial da República, que ninguém, nem o próprio Floriano, teve a mínima surpresa, ao contrário alguns até sorriram alegres por ver o califa, o cã, o emir, transmitir um pouco do que tinha de sagrado ao subalterno desabusado. Não se foram todos imediatamente. Um deles demorou-se mais a segredar cousas à suprema autoridade do país. Era um cadete da Escola Militar, com a sua farda azul-turquesa, talim e sabre de praça de pré.

Os cadetes da Escola Militar formavam a falange sagrada.

Tinham todos os privilégios e todos os direitos; precediam ministros nas entrevistas com o ditador e abusavam dessa situação de esteio do Sila, para oprimir e vexar a cidade inteira.

Uns trapos de positivismo se tinham colado naquelas inteligências e uma religiosidade especial brotara-lhes no sentimento, transformando a autoridade, especialmente Floriano e vagamente a República, em artigo e fé, em feitiço, em ídolo mexicano, em cujo altar todas as violências e crimes eram oblatas dignas e oferendas úteis para a sua satisfação e eternidade.

O cadete lá estava...

Quaresma pôde então ver melhor a fisionomia do homem que ia feixar em suas mãos, durante quase um ano, tão fortes poderes, poderes de Imperador Romano, pairando sobre tudo, limitando tudo, sem encontrar obstáculo algum aos seus caprichos, às suas fraquezas e vontades, nem nas leis, nem nos costumes, nem na piedade universal e humana.

Era vulgar e desoladora. O bigode caído; o lábio inferior pendente e mole a que se agarrava uma grande «mosca»; os traços flácidos e grosseiros; não havia nem o desenho do queixo ou olhar que fosse próprio, que revelasse algum dote superior. Era um olhar mortiço, redondo, pobre de expressões, a não ser de tristeza que não lhe era individual, mas nativa, de raça; e todo ele era gelatinoso -parecia não ter nervos.

Não quis o major ver em tais sinais nada que lhe denotasse o caráter, a inteligência e o temperamento. Essas cousas não vogam, disse ele de si para si.

O seu entusiasmo por aquele ídolo político era forte, sincero e desinteressado. Tinha-o na conta de enérgico, de fino e supervidente, tenaz e conhecedor das necessidades do país, manhoso talvez um pouco, uma espécie de Luís XI forrado de um Bismarck. Entretanto, não era assim. Com uma ausência total de qualidades intelectuais, havia no caráter do Marechal Floriano uma qualidade predominante: tibieza de ânimo; e no seu temperamento, muita preguiça. Não a preguiça comum, essa preguiça de nós todos; era uma preguiça mórbida, como que uma pobreza de irrigação nervosa, provinda de uma insuficiente quantidade de fluido no seu organismo. Pelos lugares que passou, tornou-se notável pela indolência e desamor às obrigações dos seus cargos.

Quando diretor do Arsenal de Pernambuco, nem energia tinha para assinar o expediente respectivo; e durante o tempo em que foi ministro da Guerra, passava meses e meses sem lá ir, deixando tudo por assinar, pelo que «legou» ao seu substituto um trabalho avultadíssimo.

Quem conhece a atividade papeleira de um Colbert, de um Napoleão, de um Filipe II, de Guilherme I, da Alemanha, em geral de todos os grandes homens de Estado, não compreende o descaso florianesco pela expedição de ordens, explicações aos subalternos, de suas vontades, de suas vistas, certamente necessárias deviam ser tais transmissões para que o seu senso superior se fizesse sentir e influísse na marcha das cousas governamentais e administrativas.

Dessa preguiça de pensar e de agir, vinha o seu mutismo, os seus misteriosos monossílabos, levados à altura de ditos sibilinos, as famosas «encruzilhadas dos talvezes», que tanto reagiram sobre a inteligência e imaginação nacionais, mendigas de heróis e grandes homens.

Essa doentia preguiça fazia-o andar de chinelos e deu-lhe aquele aspecto de calma superior, calma de grande homem de Estado ou de guerreiro extraordinário.

Toda a gente ainda se lembra como foram os seus primeiros meses de governo. A braços com o levante de presos, praças e inferiores da fortaleza de Santa Cruz, tendo mandado fazer um inquérito, abafou-o com medo que as pessoas indicadas como instigadoras não fizessem outra sedição, e, não contente com isto, deu a essas pessoas as melhores e mais altas recompensas.

Demais, ninguém pode admitir um homem forte, um César, um Napoleão, que permita aos subalternos aquelas intimidades deprimentes e tenha com eles as condescendências que ele tinha, consentindo que o seu nome servisse de lábaro para uma vasta série de crimes de toda a espécie.

Uma recordação basta. Sabe-se bem sob que atmosfera de má vontade Napoleão assumiu o comando do exército da Itália. Augereau, que o chamava «general de rua», disse a alguém, após lhe ter falado: «O homem meteu-me medo»; e o corso estava senhor do exército sem batidelas no ombro, sem delegar tácita ou explicitamente a sua autoridade a subalternos irresponsáveis.

De resto, a lentidão com que sufocou a revolta de 6 de setembro mostra bem a incerteza, a vacilação de vontade de um homem que dispunha daqueles extraordinários recursos que estavam às suas ordens.

Há uma outra face do Marechal Floriano que muito explica os seus movimentos, atos e gestos. Era o seu amor à família, um amor entranhado, alguma cousa de patriarcal, de antigo que já se vai esvaindo com a marcha da civilização.

Em virtude de insucessos na exploração agrícola de duas das suas propriedades, a sua situação particular era precária, e não queria morrer sem deixar à família as suas propriedades agrícolas desoneradas do peso das dívidas.

Honesto e probo como era, a única esperança que lhe restava repousava nas economias sobre os seus ordenados. Daí lhe veio essa dubiedade, esse jogo com pau de dous bicos, jogo indispensável para conservar os rendosos lugares que teve e o fez atarraxar-se tenazmente à Presidência da República. A hipoteca do «Brejão» e do «Duarte» foi o seu nariz de Cleópatra...

A sua preguiça, a sua tibieza de ânimo e o seu amor fervoroso pelo lar deram em resultado esse «homem-talvez» que, refratado nas necessidades mentais e sociais dos homens do tempo, foi transformado em estadista, em Richelieu, e pôde resistir a uma séria revolta com mais teimosia que vigor, obtendo vidas, dinheiro e despertando até entusiasmo e fanatismo.

Esse entusiasmo e esse fanatismo, que o ampararam, que o animaram, que o sustentaram, só teriam sido possíveis, depois de ter ele sido ajudante general do Império, senador, ministro, isto é, após se ter «fabricado» à vista de todos e cristalizado a lenda na mente de todos.

A sua concepção de governo não era o despotismo, nem a democracia, nem a aristocracia; era a de uma tirania doméstica. O bebê portou-se mal, castiga-se. Levada a cousa ao grande, o portar-se mal era fazer-lhe oposição, ter opiniões contrárias às suas e o castigo não eram mais palmadas, sim, porém, prisão e morte. Não há dinheiro no Tesouro; ponham-se as notas recolhidas em circulação, assim como se faz em casa quando chegam visitas e a sopa é pouca: põe-se mais água.

Demais, a sua educação militar e a sua fraca cultura deram mais realce a essa concepção infantil, raiando-a de violência, não tanto por ele em si, pela sua perversidade natural, pelo seu desprezo pela vida humana, mas pela fraqueza com que acobertou e não reprimiu a ferocidade dos seus auxiliares e asseclas.

Quaresma estava longe de pensar nisso tudo; ele com muitos homens honestos e sinceros do tempo foram tomados pelo entusiasmo contagioso que Floriano conseguira despertar. Pensava na grande obra que o Destino reservava àquela figura plácida e triste; na reforma radical que ele ia levar ao organismo aniquilado da pátria, que o major se habituara a crer a mais rica do mundo, embora, de uns tempos para cá, já tivesse dúvidas a certos respeitos.

Decerto, ele não negaria tais esperanças e a sua ação poderosa havia de se fazer sentir pelos oito milhões de quilômetros quadrados do Brasil, levando-lhes estradas, segurança, proteção aos fracos, assegurando o trabalho e promovendo a riqueza.

Não se demorou muito nessa ordem de pensamentos. Um seu companheiro de espera, desde que o marechal lhe falou familiarmente, começou a considerar aquele homem pequenino, taciturno, de pince-nez e foi-se chegando, se aproximando e, quando já perto, disse a Quaresma, quase como um terrível segredo:

-Eles vão ver o «caboclo»... O major há muito que o conhece?

Respondeu-lhe o major e o outro ainda lhe fez uma outra pergunta; o presidente, porém, ficara só e Quaresma avançou.

-Então, Quaresma? fez Floriano.

-Venho oferecer a Vossa Excelência os meus fracos préstimos.

O presidente considerou um instante aquela pequenez de homem, sorriu com dificuldade, mas, levemente, com um pouco de satisfação. Sentiu por aí a força de sua popularidade e senão a razão boa de sua causa.

-Agradeço-te muito... Onde tens andado? Sei que deixaste o Arsenal.

Floriano tinha essa capacidade de guardar fisionomias, nomes, empregos, situações dos subalternos com quem lidava. Tinha alguma cousa de asiático; era cruel e paternal ao mesmo tempo.

Quaresma explicou-lhe a sua vida e aproveitou a ocasião para lhe falar em leis agrárias, medidas tendentes a desafogar e dar novas bases à nossa vida agrícola. O marechal ouviu-o distraído, com uma dobra de aborrecimento no canto dos lábios.

-Trazia a Vossa Excelência até este memorial...

O presidente teve um gesto de mau humor, um quase «não me amole» e disse com preguiça a Quaresma:

-Deixa aí...

Depositou o manuscrito sobre a mesa e logo o ditador dirigiu-se ao interlocutor de ainda agora:

-Que há, Bustamante? E o batalhão, vai?

O homem aproximou-se mais, um tanto amedrontado:

-Vai bem, marechal. Precisamos de um quartel... Se Vossa Excelência desse ordem...

-É exato. Fala ao Rufino em meu nome que ele pode arranjar... Ou antes: leva-lhe este bilhete.

Rasgou um pedaço de uma das primeiras páginas do manuscrito de Quaresma, e assim mesmo, sobre aquela ponta de papel, a lápis azul, escreveu algumas palavras ao seu ministro da Guerra. Ao acabar é que deu com a desconsideração:

-Ora! Quaresma! rasguei o teu escrito... Não faz mal... Era a parte de cima, não tinha nada escrito.

O major confirmou e o presidente, em seguida, voltando-se para Bustamante:

-Aproveita Quaresma no teu batalhão. Que posto queres?

-Eu! fez Quaresma estupidamente.

-Bem. Vocês lá se entendam.

Os dous se despediram do presidente e desceram vagarosamente as escadas do Itamarati. Até à rua nada disseram um ao outro. Quaresma vinha um pouco frio. O dia estava claro e quente; o movimento da cidade parecia não ter sofrido alteração apreciável. Havia a mesma agitação de bondes, carros e carroças; mas nas fisionomias, um terror, um espanto, alguma cousa de tremendo ameaçava todos e parecia estar suspenso no ar.

Bustamante deu-se a conhecer. Era o Major Bustamante, agora Tenente-Coronel, velho amigo do marechal, seu companheiro do Paraguai.

-Mas nós nos conhecemos! exclamou ele.

Quaresma esteve olhando aquele velho mulato escuro, com uma grande barba mosaica e olhos espertos, mas não se lembrou de tê-lo já encontrado algum dia.

-Não me recordo... Donde?

-Da casa do General Albernaz... Não se lembra?

Policarpo então teve uma vaga recordação e o outro explicou-lhe a formação do seu batalhão patriótico «Cruzeiro do Sul».

-O senhor quer fazer parte?

-Pois não, fez Quaresma.

-Estamos em dificuldades... Fardamento, calçado para as praças... Nas primeiras despesas devemos auxiliar o governo... Não convém sangrar o Tesouro, não acha?

-Certamente, disse com entusiasmo Quaresma.

-Folgo muito que o senhor concorde comigo... Vejo que é um patriota... Resolvi por isso fazer um rateio pelos oficiais, em proporção ao posto: um alferes concorre com cem mil-réis, um tenente com duzentos... O senhor que patente quer? Ah! É verdade! O Senhor é major, não é?

Quaresma então explicou por que o tratavam por major. Um amigo, influência no Ministério do Interior, lhe tinha metido o nome numa lista de guardas-nacionais, com esse posto. Nunca tendo pago os emolumentos, viu-se, entretanto, sempre tratado major, e a cousa pegou. A princípio, protestou, mas como teimassem deixou.

-Bem, fez Bustamante. O senhor fica mesmo sendo major.

-Qual é a minha quota?

-Quatrocentos mil-réis. Um pouco forte, mas... O senhor sabe; é um posto importante... Aceita?

-Pois não.

Bustamante tirou a carteira, tomou nota com uma pontinha de lápis e despediu-se jovialmente:

-Então, major, às seis, no quartel provisório.

A conversa se havia passado na esquina da Rua Larga com o Campo de Sant'Ana. Quaresma pretendia tomar um bonde que o levasse ao centro da cidade. Tencionava visitar o compadre em Botafogo, fazendo, assim, horas para a sua iniciação militar.

A praça estava pouco transitada; os bondes passavam ao chouto compassado das mulas; de quando em quando ouvia-se um toque de corneta, rufos de tambor, e do portão central do quartel-general saía uma força, armas ao ombro, baionetas caladas, dançando nos ombros dos recrutas, faiscando com um brilho duro e mau.

Ia tomar o bonde, quando se ouviram alguns disparos de artilharia e o seco espoucar dos fuzis. Não durou muito; antes que o bonde atingisse à Rua da Constituição, todos os rumores guerreiros tinham cessado, e quem não estivesse avisado havia de supor-se em tempos normais.

Quaresma chegou-se para o centro do banco e ia ler o jornal que comprara. Desdobrou-o vagarosamente, mas foi logo interrompido; bateram-lhe no ombro. Voltou-se.

-Oh! General!

O encontro foi cordial. O General Albernaz gostava dessas cerimônias e tinha mesmo um prazer, uma deliciosa emoção em reatar conhecimentos que se tinham enfraquecido por uma separação qualquer. Estava fardado, com aquele seu uniforme maltratado; não trazia espada e o pince-nez continuava preso por um trancelim de ouro que lhe passava por detrás da orelha esquerda.

-Então veio ver a cousa?

-Vim. Já me apresentei ao marechal.

-«Eles» vão ver com quem se meteram. Pensam que tratam com o Deodoro, enganam-se!... A República, graças a Deus, tem agora um homem na sua frente... O «caboclo» é de ferro... No Paraguai...

-O senhor conheceu-o lá, não, general?

-Isto é... Não chegamos a nos encontrar; mas o Camisão... É duro, o homem. Estou como encarregado das munições... É o fino o «caboclo»: não me quis no litoral. Sabe muito bem quem sou e que munição que saia das minhas mãos, é munição... Lá, no depósito, não me sai um caixote que eu não examine... É necessário... No Paraguai, houve muita desordem e comilança: mandou-se muita cal por pólvora - não sabia?

-Não.

-Pois foi. O meu gosto era ir para as praias, para o combate; mas o «homem» quer que eu fique com as munições... Capitão manda, marinheiro faz... Ele sabe lá...

Deu de ombros, concertou o trancelim que já caía da orelha e esteve calado um instante. Quaresma perguntou:

-Como vai a família?

-Bem. Sabe que Quinota casou-se?

-Sabia, o Ricardo me disse. E Dona Ismênia, como vai?

A fisionomia do general toldou-se e respondeu como a contragosto:

-Vai no mesmo.

O pudor de pai tinha-o impedido de dizer toda a verdade. A filha enlouquecera de uma loucura mansa e infantil. Passava dias inteiros calada, a um canto, olhando estupidamente tudo, com um olhar morto de estátua, numa atonia de inanimado, como que caíra em imbecilidade; mas vinha uma hora, porém, em que se penteava toda, enfeitava-se e corria à mãe, dizendo: «Apronta-me, mamãe. O meu noivo não deve tardar... é hoje o meu casamento.» Outras vezes recortava papel, em forma de participações, e escrevia: Ismênia de Albernaz e Fulano (variava) participam o seu casamento.

O general já consultara uma dúzia de médicos, o espiritismo e agora andava às voltas com um feiticeiro milagroso; a filha, porém, não sarava, não perdia a mania e cada vez mais se embrenhava o seu espírito naquela obsessão de casamento, alvo que fizeram ser da sua vida, a que não atingira, aniquilando-se, porém, o seu espírito e a sua mocidade em pleno verdor.

Entristecia o seu estado aquela casa outrora tão alegre, tão festiva. Os bailes tinham diminuído; e, quando eram obrigados a dar um, nas datas principais, a moça, com todos os cuidados, à custa de todas as promessas, era levada para casa da irmã casada, lá ficava, enquanto as outras dançavam, um instante esquecidas da irmã que sofria.

Albernaz não quis revelar aquela dor de sua velhice; reprimiu a emoção e continuou no tom mais natural, naquele seu tom familiar e íntimo que usava com todos:

-Isto é uma infâmia, Senhor Quaresma. Que atraso para o país. E os prejuízos? Um porto destes fechado a comércio nacional quantos anos de retardamento não representa!

O major concordou e mostrou a necessidade de prestigiar o Governo, de forma a tornar impossível a reprodução de levantes e insurreições.

-Decerto, aduziu o general. Assim não progredimos, não nos adiantamos. E no estrangeiro que mau efeito!

O bonde chegara ao Largo de São Francisco e os dous se separaram. Quaresma foi direitinho ao Largo da Carioca e Albernaz seguiu para a Rua do Rosário.

Olga viu entrar seu padrinho sem aquela alegria expansiva de sempre. Não foi indiferença que sentiu, foi espanto, assombro, quase medo, embora soubesse perfeitamente que ele estava a chegar. Entretanto, não havia mudança na fisionomia de Quaresma, no seu corpo, em todo ele. Era o mesmo homem baixo, pálido, com aquele cavanhaque apontado e o olhar agudo por detrás do pince-nez... Nem mesmo estava mais queimado e o jeito de apertar os lábios era o mesmo que ela conhecia há tantos anos. Mas, parecia-lhe mudado e ter entrado impelido, empurrado por uma força estranha, por um turbilhão; bem examinando, entretanto, verificou que ele entrara naturalmente, com o seu passo miúdo e firme. Donde lhe vinha então essa cousa que a acanhava, que lhe tirara a sua alegria de ver pessoa tão amada? Não atinou. Estava lendo na sala de jantar e Quaresma não se fazia anunciar; ia entrando conforme o velho hábito. Respondeu ao padrinho ainda sob a dolorosa impressão da sua entrada:

-Papai saiu; e o Armando está lá embaixo escrevendo.

De fato, ele estava escrevendo ou mais particularmente: traduzia para o «clássico» um grande artigo sobre «Ferimentos por arma de fogo». O seu último truc intelectual era este do clássico. Buscava nisto uma distinção, uma separação intelectual desses meninos por aí que escrevem contos e romances nos jornais. Ele, um sábio, e sobretudo, um doutor, não podia escrever da mesma forma que eles. A sua sabedoria superior e o seu título «acadêmico» não podiam usar da mesma língua, dos mesmos modismos, da mesma sintaxe que esses poetastros e literatecos. Veio-lhe então a idéia do clássico. O processo era simples: escrevia do modo comum, com as palavras e o jeito de hoje, em seguida invertia as orações, picava o período com vírgulas e substituía incomodar por molestar, ao redor por derredor, isto por esto, quão grande ou tão grande por quamanho, sarapintava tudo de ao invés, em-pós, e assim obtinha o seu estilo clássico que começava a causar admiração aos seus pares e ao público em geral.

Gostava muito da expressão - às rebatinhas; usava-a a todo o momento e, quando a punha no branco do papel, imaginava que dera ao seu estilo uma força e um brilho pascalianos e às suas idéias uma suficiência transcendente. De noite, lia o padre Vieira, mas logo às primeiras linhas o sono lhe vinha e dormia sonhando-se «físico», tratado de mestre, em pleno Seiscentos, prescrevendo sangria e água quente, tal e qual o doutor Sangrado.

A sua tradução estava quase no fim, já estava bastante prático, pois com o tempo adquirira um vocabulário suficiente e a versão era feita mentalmente, em quase metade, logo na primeira escrita. Recebeu o recado da mulher, anunciando-lhe a visita, com um pequeno aborrecimento, mas, como teimasse em não encontrar um equivalente clássico para «orifício», julgou útil a interrupção. Queria pôr «buraco», mas era plebeu; «orifício», se bem que muito usado, era, entretanto, mais digno. Na volta talvez encontrasse, pensou: e subiu à sala de jantar. Ele entrou prazenteiro, com o seu grande bigode esfarelado, o seu rosto redondo e encontrou padrinho e afilhada empenhados em uma discussão sobre autoridade.

Dizia ela:

-Eu não posso compreender esse tom divino com que os senhores falam da autoridade. Não se governa mais em nome de Deus, por que então esse respeito, essa veneração de que querem cercar os governantes?

O doutor, que ouvira toda a frase, não pôde deixar de objetar:

-Mas é preciso, indispensável... Nós sabemos bem que eles são homens como nós, mas, se for assim, tudo vai por água abaixo.

Quaresma acrescentou:

-É em virtude das próprias necessidades internas e externas da nossa sociedade que ela existe... Nas formigas, nas abelhas...

-Admito. Mas há revoltas entre as abelhas e formigas, e a autoridade se mantém lá à custa de assassínios, exações e violências?

-Não se sabe... Quem sabe? Talvez... fez evasivamente Quaresma.

O doutor não teve dúvidas e foi logo dizendo:

-Que temos nós com as abelhas? Então nós, os homens, o pináculo da escala zoológica iremos buscar normas de vida entre insectos?

-Não é isso, meu caro doutor; buscamos nos exemplos deles a certeza da generalidade do fenômeno, da sua imanência, por assim dizer, disse Quaresma com doçura.

Ele não tinha acabado a explicação e já Olga refletia:

-Ainda se essa tal autoridade trouxesse felicidade -vá; mas não; de que vale?

-Há de trazer, afirmou categoricamente Quaresma. A questão é consolidá-la.

Conversaram ainda muito tempo. O major contou a sua visita a Floriano, a sua próxima incorporação ao batalhão «Cruzeiro do Sul». O doutor teve uma ponta de inveja, quando ele se referiu ao modo familiar por que Floriano o tratara. Fizeram um pequeno lunch e Quaresma saiu.

Sentia necessidade de rever aquelas ruas estreitas, com as suas lojas profundas e escuras, onde os empregados se moviam como em um subterrâneo. A tortuosa Rua dos Ourives, a esburacada Rua da Assembléia, a casquilha Rua do Ouvidor davam-lhe saudades.

A vida continuava a mesma. Havia grupos parados e moças a passeio; no Café do Rio, uma multidão. Eram os avançados, os «jacobinos», a guarda abnegada da República, os intransigentes a cujos olhos a moderação, a tolerância e o respeito pela liberdade e a vida alheias eram crimes de lesa-pátria, sintomas de monarquismo criminoso e abdicação desonesta diante do estrangeiro. O estrangeiro era sobretudo o português, o que não impedia de haver jornais «jacobiníssimos» redigidos por portugueses da mais bela água.

A não ser esse grupo gesticulante e apaixonado, a Rua do Ouvidor era a mesma. Os namoros se faziam e as moças iam e vinham. Se uma bala zunia no alto céu azul, luminoso, as moças davam gritinhos de gata, corriam para dentro das lojas, esperavam um pouco e logo voltavam sorridentes, o sangue a subir às faces pouco e pouco, depois da palidez do medo.

Quaresma jantou num restaurant e dirigiu-se ao quartel, que funcionava provisoriamente num velho cortiço condenado pela higiene, lá pelos lados da Cidade Nova. Tinha o tal cortiço andar térreo e sobrado, ambos divididos em cubículos do tamanho de camarotes de navio. No sobrado, havia uma varanda de grade de pau e uma escada de madeira levava até lá, escada tosca e oscilante, que gemia à menor passada. A casa da ordem funcionava no primeiro quartinho do sobrado e o pátio, já sem as cordas de secar ao sol a roupa, mas com as pedras manchadas das barrelas e da água de sabão, servia para a instrução dos recrutas. O instrutor era um sargento reformado, um tanto coxo, e admitido no batalhão com o posto de alferes, que gritava com uma demora majestosa: «om - brô»... armas!

O major entregou a sua quota ao coronel e este esteve a mostrar-lhe o modelo do fardamento.

Era muito singular essa fantasia de seringueiro: o dólmã era verde-garrafa e tinha uns vivos azul-ferrete, alamares dourados e quatro estrelas prateadas, em cruz, na gola.

Uma gritaria fê-los vir até à varanda. Entre soldados entrava um homem, a se debater, a chorar e a implorar, ao mesmo tempo, levando de quando em quando uma reflada.

-É o Ricardo! exclamou Quaresma. O senhor não o conhece, coronel? continuou ele com interesse e piedade.

Bustamante estava impassível na varanda e só respondeu depois de algum tempo:

-Conheço... É um voluntário recalcitrante, um patriota rebelde.

Os soldados subiram com o «voluntário» e Ricardo logo que deu com o major, suplicou-lhe:

-Salve-me, major!

Quaresma chamou de parte o coronel, rogou-lhe e suplicou-lhe, mas foi inútil... Há necessidade de gente... Enfim, fazia-o cabo.

Ricardo, de longe, seguia a conversa dos dous: adivinhou a recusa e exclamou:

-Eu sirvo sim, sim, mas dêem-me o meu violão.

Bustamante perfilou-se e gritou aos soldados:

-Restituam o violão ao cabo Ricardo!

Você, Quaresma, é um visionário

Oito horas da manhã. A cerração ainda envolve tudo. Do lado da terra, mal se enxergam as partes baixas dos edifícios próximos; para o lado do mar, então, a vista é impotente contra aquela treva esbranquiçada e flutuante, contra aquela muralha de flocos e opaca, que se condensa ali e aqui em aparições, em semelhanças de cousas. O mar está silencioso: há grandes intervalos entre o seu fraco marulho. Vê-se da praia um pequeno trecho, sujo, coberto de algas, e o odor da maresia parece mais forte com a neblina. Para a esquerda e para a direita, é o desconhecido, o Mistério. Entretanto, aquela pasta espessa, de uma claridade difusa, está povoada de ruídos. O chiar das serras vizinhas, os apitos de fábricas e locomotivas, os guinchos de guindastes dos navios enchem aquela manhã indecifrável e taciturna; e ouve-se mesmo a bulha compassada de remos que ferem o mar. Acredita-se, dentro daquele decoro, que é Caronte que traz a sua barca para uma das margens do Estige...

Atenção! Todos perscrutam a cortina de névoa pastosa. Os rostos estão alterados; parece que, do seio da bruma, vão surgir demônios...

Não se ouve a bulha: o escaler afastou-se. As fisionomias respiram aliviadas...

Não é noite, não é dia; não é o dilúculo, não é o crepúsculo; é a hora da angústia, é a luz da incerteza. No mar, não há estrelas nem sol que guiem; na terra, as aves morrem de encontro às paredes brancas das casas. A nossa miséria é mais completa e a falta daqueles mudos marcos da nossa atividade dá mais forte percepção do nosso isolamento no seio da natureza grandiosa.

Os ruídos continuam, e, como nada se vê, parece que vêm do fundo da terra ou são alucinações auditivas. A realidade só nos vem do pedaço de mar que se avista, marulhando com grandes intervalos, fracamente, tenuemente, a medo, de encontro à areia da praia, suja de bodelhas, algas e sargaços.

Aos grupos, após o rumor dos remos, os soldados deitaram-se pela relva que continua a praia. Alguns já cochilam; outros procuram com os olhos o céu através do nevoeiro que lhes umedece o rosto.

O cabo Ricardo Coração dos Outros, de rifle à cintura e gorro à cabeça, sentado numa pedra, está de parte, sozinho, e olha aquela manhã angustiosa.

Era a primeira vez que via a cerração assim perto do mar, onde ela faz sentir toda a sua força de desesperar. Em geral, ele só tinha olhos para as alvoradas claras e purpurinas, macias e fragrantes; aquele amanhecer brumoso e feio era uma novidade para ele.

Sob o fardamento de cabo, o menestrel não se aborrece. Aquela vida solta da caserna vai-lhe bem n'alma; o violão está lá dentro e, em horas de folga, ele o experimenta, cantarolando em voz baixa. É preciso não enferrujar os dedos... O seu pequeno aborrecimento é não poder, de quando em quando, soltar o peito.

O comandante do destacamento é Quaresma que, talvez, consentisse...

O major está no interior da casa que serve de quartel, lendo. O seu estudo predileto é agora artilharia. Comprou compêndios; mas, como sua instrução é insuficiente, da artilharia vai à balística, da balística à mecânica, da mecânica ao cálculo e à geometria analítica; desce mais a escada; vai à trigonometria, à geometria e à álgebra e à aritmética. Ele percorre essa cadeia de ciências entrelaçadas com uma fé de inventor. Aprende uma noção elementaríssima após um rosário de consultas, de compêndio em compêndio; e leva assim aqueles dias de ócio guerreiro enfronhado na matemática, nessa matemática rebarbativa e hostil aos cérebros que já não são moços.

Há no destacamento um canhão Krupp, mas ele nada tem a ver com o mortífero aparelho; contudo, estuda artilharia. É encarregado dele o Tenente Fontes, que não dá obediência ao patriota major. Quaresma não se incomoda com isso; vai aprendendo lentamente a servir-se da boca-de-fogo e submete-se à arrogância do subalterno.

O comandante do «Cruzeiro do Sul», o Bustamente da barba mosaica, continua no quartel, superintendendo a vida do batalhão. A unidade tem poucos oficiais e muito poucas praças; mas o Estado paga o pré de quatrocentas. Há falta de capitães, o número de alferes está justo, o de tenentes quase, mas já há um major, que é Quaresma, e o comandante, Bustamente, que, por modéstia, se fez simplesmente tenente-coronel.

Tem quarenta praças o destacamento que Quaresma comanda, três alferes, dous tenentes; mas os oficiais pouco aparecem. Estão doentes ou licenciados e só ele, o antigo agricultor do «Sossego», e um alferes, Polidoro, este mesmo só à noite, estão a postos. Um soldado entrou:

-Senhor comandante, posso ir almoçar?

-Pode. Chama-me o cabo Ricardo.

A praça saiu capengando em cima de grandes botinas; o pobre homem usava aquela peça protetora como um castigo. Assim que se viu no mato, que levava a sua casa, tirou-as e sentiu pelo rosto o sopro da liberdade.

O comandante chegou à janela. A cerração se ia dissipando. Já se via o sol que brilhava como um disco de ouro fosco.

Ricardo Coração dos Outros apareceu. Estava engraçado dentro do seu fardamento de caporal. A blusa era curtíssima, sungada; os punhos lhe apareciam inteiramente; e as calças eram compridíssimas e arrastavam no chão.

-Como vais, Ricardo?

-Bem. E o senhor, major?

-Assim.

Quaresma deitou sobre o inferior e amigo aquele seu olhar agudo e demorado:

-Andas aborrecido, não é?

O trovador sentiu-se alegre com o interesse do comandante:

-Não... Para que dizer, major, que sim... Se a coisa for assim até ao fim, não é mau... O diabo é quando há tiro... Uma coisa, major; não se poderia, assim, aí pelas horas em que não há que fazer, ir nas mangueiras, cantar um pouco...

O major coçou a cabeça, alisou o cavanhaque e disse:

-Eu, não sei... É...

-O senhor sabe que isso de cantar baixo é remar em seco... Dizem que no Paraguai...

-Bem. Cante lá; mas não grite, hein?

Calaram-se um pouco; Ricardo ia partir quando o major recordou:

-Manda-me trazer o almoço.

Quaresma jantava e almoçava ali mesmo. Não era raro também dormir. As refeições eram-lhe fornecidas por um «frege» próximo e ele dormia em um quarto daquela edificação imperial. Porque a casa em que se acantonara o destacamento era o pavilhão do imperador, situado na antiga Quinta da Ponta do Caju. Ficavam nela também a estação da estrada de ferro do Rio Douro e uma grande e barulhenta serraria. Quaresma veio até à porta, olhou a praia suja e ficou admirado que o imperador a quisesse para banhos. A cerração se ia dissipando inteiramente.

As formas das cousas saíam modeladas do seio daquela massa de névoa pesada; e, satisfeitas, como se o pesadelo tivesse passado. Primeiro surgiam as partes baixas, lentamente; e por fim, quase repentinamente, as altas.

À direita, havia a Saúde, a Gamboa, os navios de comércio: galeras de três mastros, cargueiros a vapor, altaneiros barcos à vela -que iam saindo da bruma, e, por instantes, aquilo tudo tinha um ar de paisagem holandesa; à esquerda, era o saco da Raposa, o Retiro Saudoso, a Sapucaia horrenda, a ilha do Governador, os Órgãos azuis, altos de tocar no céu; em frente, a ilha dos Ferreiros, com os seus depósitos de carvão; e, alongando a vista pelo mar sossegado, Niterói, cujas montanhas acabavam de recortar-se no céu azul, à luz daquela manhã atrasada.

A neblina foi-se e um galo cantou. Era como se a alegria voltasse à terra; era uma aleluia. Aqueles chiados, aqueles apitos, os guinchos tinham um acento festivo de contentamento.

Chegou o almoço e o sargento veio dizer a Quaresma que havia duas deserções.

-Mais duas? fez admirado o major.

-Sim, senhor. O cento e vinte e cinco e o trezentos e vinte não responderam hoje a revista.

-Faça a parte.

Quaresma almoçava. O Tenente Fontes, o homem do canhão, chegou. Quase nunca dormia ali; pernoitava em casa, e, durante o dia, vinha ver as cousas como iam.

Uma madrugada, ele não estava. A treva ainda era profunda. O soldado de vigia viu lá ao longe um vulto que se movia dentro da sombra, resvalando sobre as águas do mar. Não trazia luz alguma: só o movimento daquela mancha escura revelava uma embarcação, e também a ligeira fosforescência das águas. O soldado deu rebate; o pequeno destacamento pôs-se a postos e Quaresma apareceu.

-O canhão! Já! Avante! ordenou o comandante. E em seguida, nervoso, recomendou:

-Esperem um pouco.

Correu a casa e foi consultar os seus compêndios e tabelas. Demorou-se e a lancha avançava, os soldados estavam tontos e um deles tomou a iniciativa: carregou a peça e disparou-a.

Quaresma reapareceu correndo, assustado, e disse, entrecortado pelo resfolegar:

-Viram bem... a distância... a alça... o ângulo... É preciso ter sempre em vista a eficiência do fogo.

Fontes veio e sabendo do caso no dia seguinte riu-se muito:

-Ora, major, você pensa que está em um polígono, fazendo estudos práticos... Fogo para diante!

E assim era. Quase todas as tardes havia bombardeio, do mar para as fortalezas, e das fortalezas para o mar; e, tanto os navios como os fortes saíam incólumes de tão terríveis provas.

Lá vinha uma ocasião, porém, que acertavam, então os jornais noticiavam: «Ontem, o forte Acadêmico fez um maravilhoso disparo. Com o canhão tal, meteu uma bala no 'Guanabara'.» No dia seguinte, o mesmo jornal retificava, a pedido da bateria do cais Pharoux, que era a que tinha feito o disparo certeiro. Passavam-se dias e a cousa já estava esquecida, quando aparecia uma carta de Niterói, reclamando as honras do tiro para a fortaleza de Santa Cruz.

O Tenente Fontes chegou e esteve examinando o canhão com o faro de entendedor. Havia uma trincheira de fardo de alfafa e a boca da peça saía por entre os fiapos de palha, como as goelas de um animal feroz oculto entre ervas.

Olhava o horizonte, depois de exame atento ao canhão, e considerava a ilha das Cobras, quando ouviu o gemer do violão e uma voz que dizia:

Prometo pelo Santíssimo Sacramento...



Dirigiu-se para o local donde partiam os sons e se lhe derrapou este lindíssimo quadro: à sombra de uma grande árvore, os soldados deitados ou sentados em círculo, em torno de Ricardo Coração dos Outros, que entoava endechas magoadas.

As praças tinham acabado de almoçar e beber a pinga, e estavam tão embevecidas na canção de Ricardo que não deram pela chegada do jovem oficial.

-Que é isto? disse ele severamente.

Os soldados levantaram-se todos, em continência; e Ricardo, com a mão direita no gorro, perfilado, e a esquerda, segurando o violão, que repousava no chão, desculpou-se:

-«Seu» tenente, foi o major quem permitiu. Vossa Senhoria sabe que se nós não tivéssemos ordem, não iríamos brincar.

-Bem. Não quero mais isto, disse o oficial.

-Mas, objetou Ricardo, o Senhor Major Quaresma...

-Não temos aqui Major Quaresma. Não quero, já disse!

Os soldados debandaram e o Tenente Fontes seguiu para a velha casa imperial, ao encontro do major do «Cruzeiro do Sul». Quaresma continuava no seu estudo, um rolar de Sísifo, mas voluntário, para a grandeza da pátria. Fontes foi entrando e dizendo:

-Que é isto, «Seu» Quaresma! Então o senhor permite cantorias no destacamento?

O major não se lembrava mais da cousa e ficou espantado com o ar severo e ríspido do moço. Ele repetiu:

-Então o senhor permite que os inferiores cantem modinhas e toquem violão, em pleno serviço?

-Mas que mal faz? Ouvi dizer que em campanha...

-E a disciplina? E o respeito?

-Bem, vou proibir, disse Quaresma.

-Não é preciso. Já proibi.

Quaresma não se deu por agastado, não percebeu motivo para agastamento e disse com doçura:

-Fez bem.

Em seguida perguntou ao oficial o modo de extrair a raiz quadrada de uma fração decimal; o rapaz ensinou-lhe e eles estiveram cordialmente conversando sobre cousas vulgares. Fontes era noivo de Lalá, a terceira filha do general Albernaz, e esperava acabar a revolta para efetuar o casamento. Durante uma hora a conversa entre os dous versou sobre este pequenino fato familiar a que estavam ligados aqueles estrondos, aqueles tiros, aquela solene disputa entre duas ambições. Subitamente, a corneta feriu o ar com a sua voz metálica. Fontes assestou o ouvido; o major perguntou:

-Que toque é?

-Sentido.

Os dous saíram. Fontes perfeitamente fardado; e o major apertando o talim, sem encontrar jeito, tropeçando na espada venerável que teimava em se lhe meter entre as pernas curtas. Os soldados já estavam nas trincheiras, armas à mão; o canhão tinha ao lado a munição necessária. Uma lancha avançava lentamente, com a proa alta assestada para o posto. De repente, saiu de sua borda um golfão de fumaça espessa: Queimou! -gritou uma voz. Todos se abaixaram, a bala passou alto, zunindo, cantando, inofensiva. A lancha continuava a avançar impávida. Além dos soldados, havia curiosos, garotos, a assistir o tiroteio, e fora um destes que gritara: queimou!

E assim sempre. Às vezes eles chegavam bem perto à tropa, às trincheiras, atrapalhando o serviço; em outras, um cidadão qualquer chegava ao oficial e muito delicadamente pedia: O senhor dá licença que dê um tiro? O oficial acedia, os serventes carregavam a peça e o homem fazia a pontaria e um tiro partia.

Com o tempo, a revolta passou a ser uma festa, um divertimento da cidade... Quando se anunciava um bombardeio, num segundo, o terraço do Passeio Público se enchia. Era como se fosse uma noite de luar, no tempo em que era do tom apreciá-las no velho jardim de Dom Luís de Vasconcelos, vendo o astro solitário pratear a água e encher o céu.

Alugavam-se binóculos e tanto os velhos como as moças, os rapazes como as velhas, seguiam o bombardeio como uma representação de teatro: «Queimou Santa Cruz! Agora é o 'Aquidabã'! Lá vai!» E dessa maneira a revolta ia, familiarmente, entrando nos hábitos e nos costumes da cidade.

Nos cais Pharoux, os pequenos garotos, vendedores de jornais, engraxates, quitandeiros ficavam atrás das portadas, dos urinários, das árvores, a ver, a esperar a queda das balas; e quando acontecia cair uma, corriam todos em bolo, a apanhá-la como se fosse uma moeda ou guloseima.

As balas ficaram na moda. Eram alfinetes de gravata, berloques de relógios, lapiseiras, feitas com as pequenas balas de fuzis; faziam-se também coleções das médias e com os seus estojos de metal, areados, polidos, lixados, ornavam os consolos, os dunkerques das casas médias; as grandes, os «melões» e as «abóboras», como chamavam, guarneciam os jardins, como vasos de faiança ou estátuas.

A lancha continuava a atirar; Fontes fez um disparo. O canhão vomitou o projétil, recuou um pouco e logo foi posto em posição. A embarcação respondeu e o rapazote gritou: queimou!

Eram sempre esses garotos que anunciavam os tiros do inimigo. Mal viam o fuzilar breve e a fumaça, lá longe, no navio, jorrar devagar, muito pesada, gritavam: queimou!

Houve um em Niterói que teve o seu quarto de hora de celebridade. Chamavam-no «Trinta-Réis»; os jornais do tempo ocuparam-se com ele, fizeram-se subscrições a seu favor. Um herói! Passou a revolta e foi esquecido, tanto ele como a «Luci», uma bela lancha que chegou fazer-se entidade na imaginação da urbs, a interessá-la, a criar inimigos e admiradores.

A embarcação deixou de provocar a fúria do posto do Caju, e Fontes deu instruções ao seu chefe da peça, e foi-se embora.

Quaresma recolheu-se ao seu quarto e continuou os seus estudos guerreiros. Os mais dias que passou naquele extremo da cidade não eram diferentes deste. Os acontecimentos eram os mesmos e a guerra caía na banalidade da repetição dos mesmos episódios.

A espaços, quando o aborrecimento lhe vinha, saía. Descia a cidade e deixava o posto entregue a Polidoro ou a Fontes, se estava.

Raras vezes o fazia de dia, porque Polidoro, o mais assíduo, marceneiro de profissão e em atividade numa fábrica de móveis, só vinha à noite.

No centro da cidade, a noite era alegre e jovial. Havia muito dinheiro, o governo pagava soldos dobrados, e, às vezes, gratificações, além do que havia também a morte sempre presente; e tudo isso estimulava o divertir-se. Os teatros eram freqüentados e os restaurants noturnos também.

Quaresma, porém, não se metia naquele ruído de praça semi-sitiada. Ia às vezes ao teatro, à paisana, e, logo acabado o espetáculo, voltava para o quarto da cidade ou para o posto.

Em outras tardes, logo que Polidoro chegava, saía a pé, pelas ruas dos arredores, pelas praias até o Campo de São Cristóvão.

Ia vendo aquela sucessão de cemitérios, com as suas campas alvas que sobem montanhas, como carneiros tosquiados e limpos a pastar; aqueles ciprestes meditativos que as vigiam; e como que se lhe representava que aquela parte da cidade era feudo e senhorio da morte.

As casas tinham um aspecto fúnebre, recolhidas e concentradas; o mar marulhava lugubremente na ribanceira lodosa; as palmeiras ciciavam doridas; e até o tilintar da campainha dos bondes era triste e lúgubre.

A paisagem se impregnara da Morte e o pensamento de quem passava ali mais ainda, para fazer sentir nela tão forte aspecto funéreo.

Foi vindo até ao Campo; aí deu-lhe vontade de ver a sua antiga casa e afinal entrou na residência do General Albernaz. Devia-lhe aquela visita e aproveitou o ensejo.

Acabavam de jantar e jantara com o general, além do Tenente Fontes e o Almirante Caldas, o comandante de Quaresma, o Tenente-Coronel Inocêncio Bustamante.

Bustamante era um comandante ativo, mas dentro do quartel. Não havia quem como ele se interessasse pelos livros, pela boa caligrafia com que eram escritos os livros mestres, as relações de mostra, os mapas de companhia e outros documentos. Com auxílio deles, a organização do seu batalhão era irrepreensível; e, para não deixar de vigiar a escrituração, aparecia de onde em onde nos destacamentos do seu corpo.

Havia dez dias que Quaresma o não via. Após os cumprimentos, ele logo perguntou ao major:

-Quantas deserções?

-Até hoje, nove, disse Quaresma.

Bustamante coçou a cabeça desesperado e refletiu:

-Eu não sei o que tem essa gente... É um desertar sem nome... Falta-lhes patriotismo!

-Fazem muito bem... Ora! disse o almirante.

Caldas andava aborrecido, pessimista. O seu processo ia mal e até agora o governo não lhe tinha dado cousa alguma. O seu patriotismo se enfraquecia com o diluir-se da esperança de ser algum dia vice-almirante. É verdade que o governo ainda não organizara a sua esquadra; entretanto, pelo rumor que corria, ele não comandaria nem uma divisão. Uma iniqüidade! Era velho um pouco, é verdade; mas, por não ter nunca comandado, nessa matéria ele podia despender toda uma energia moça.

-O almirante não deve falar assim... A pátria está logo abaixo da humanidade.

-Meu caro tenente, o senhor é moço... Eu sei o que são essas cousas...

-Não se deve desesperar... Não trabalhamos para nós, mas para os outros e para os vindouros, continuou Fontes persuasivo.

-Que tenho eu com eles? fez agastado Caldas.

Bustamente, o general e Quaresma assistiam à pequena discussão calados e os dous primeiros um tanto sorridentes com a fúria de Caldas, que não se cansava de dançar a perna e alisar os longos favoritos brancos. O tenente respondeu:

-Muito, almirante. Nós todos devemos trabalhar para que surjam épocas melhores, de ordem, de felicidade e evolução moral.

-Nunca houve e nunca haverá! disse de um jato Caldas.

-Eu também penso assim, acrescentou Albernaz.

-Isto há de sempre ser o mesmo, aduziu ceticamente Bustamante.

O major nada disse; parecia desinteressado da conversa. Fontes, em face daquelas contestações, ao contrário dos seus congêneres de seita, não se agastou. Ele era magro e chupado, moreno carregado e a oval do seu rosto estava amassada aqui e ali.

Com a sua voz arrastada e nasal, agitando a mão direita no jeito favorito dos sermonários, depois de ouvir todos, falou com unção:

-Houve já um esboço: a Idade Média.

Ninguém ali lhe podia contestar. Quaresma só sabia história do Brasil e os outros nenhuma.

E a sua afirmação fez calar todos, embora no íntimo duvidosos. É uma curiosa Idade Média, essa de elevação moral, que a gente não sabe onde fica, em que ano? Se a gente diz: «No tempo de Clotário, ele próprio, com suas mãos, atacou fogo na palhoça em que encerrava o seu filho Crame mais a mulher deste e filhos» -o positivista objeta: «Ainda não estava perfeitamente estabelecido o ascendente da igreja.» «São Luís», diremos logo nós, «quis executar um senhor feudal porque mandou enforcar três crianças que tinham morto um coelho nas suas matas.» Objeta o fiel: «Você não sabe que a nossa Idade Média vai até o aparecimento da Divina Comédia? São Luís já era a decadência»... Citam-se as epidemias de moléstias nervosas, a miséria dos campônios, as ladroagens à mão armada dos barões, as alucinações do milênio, as cruéis matanças que Carlos Magno fez aos saxões; eles respondem: uma hora que ainda não estava perfeitamente estabelecido o ascendente moral da igreja; outra que ele já tinha desaparecido.

Nada disso foi objetado ao positivista e a conversa resvalou para a revolta. O almirante criticava severamente o governo.

Não tinha plano algum, levava a dar tiros à toa; na sua opinião, já devia ter feito todo o esforço para ocupar a ilha das Cobras, embora isso custasse rios de sangue. Bustamente não tinha opinião assentada; mas Quaresma e Fontes julgavam que não: seria uma aventura arriscada e de uma improficuidade patente. Albernaz ainda não tinha dado o seu aviso, e veio a fazê-lo assim:

-Mas nós reconhecemos Humaitá, e por pouco!

-Entretanto, não a tomaram, disse Fontes. As condições naturais eram outras e assim mesmo o reconhecimento foi perfeitamente inútil... O senhor sabe, esteve lá!

-Isto é... Adoeci e vim um pouco antes para o Brasil, mas o Camisão disse-me que foi arriscado.

Quaresma voltara ao silêncio. Ele procurava ver Ismênia. Fontes lhe tinha inteirado do seu estado e o major se sentia por qualquer cousa preso à moléstia da moça. Viu todos: Dona Maricota, sempre ativa e diligente; Lalá, a arrancar, com o olhar, o noivo da conversa interminável, e as outras que vinham, de quando em quando, da sala de visitas à sala de jantar onde ele estava. Por fim, não se conteve, perguntou. Soube que estava em casa da irmã casada e ia pior, cada vez mais abismada na sua mania, enfraquecendo-se de corpo. O general contou tudo com franqueza a Quaresma e quando acabou de narrar aquela sua desgraça íntima, disse com um longo suspiro:

-Não sei, Quaresma... Não sei.

Eram dez horas quando o major se despediu. Voltou de bonde para a Ponta do Caju. Saltou e recolheu-se logo a seu quarto. Vinha cheio da perturbação especial que põe em nós o luar que estava lindo, terno e leitoso, naquela noite. É uma emoção de desafogo do corpo, de delíquio; parece que nos tiram o envoltório material e ficamos só alma, envolvidos numa branda atmosfera de sonhos e quimeras. O major não colhia bem a sensação transcendente, mas sofria sem perceber o efeito da luz pálida e fria do luar. Deitou-se um pouco, vestido, não por sono, mas em virtude daquela doce embriaguez que o astro lhe tinha posto nos sentidos.

Dentro em pouco Ricardo veio chamá-lo: o marechal estava aí. Era seu hábito sair à noite, às vezes, de madrugada, e ir de posto em posto. O fato se espalhou pelo público que o apreciava extraordinariamente, e o Presidente teve mais esse documento para firmar a sua fama de estadista consumado.

Quaresma veio ao seu encontro. Floriano vestia chapéu de feltro mole, abas largas, e uma curta sobrecasaca surrada. Tinha um ar de malfeitor ou de exemplar chefe de família em aventuras extraconjugais.

O major cumprimentou-o e esteve a dar-lhe notícias do ataque que fora feito ao seu posto, há dias passados. O marechal respondia por monossílabos preguiçosos e olhava ao redor. Quase ao despedir-se, falou mais, dizendo vagarosamente, lentamente:

-Hei de mandar pôr um holofote aqui.

Quaresma veio acompanhá-lo até ao bonde. Atravessaram o velho sítio de recreio dos imperadores. Um pouco afastada da estação uma locomotiva, semi-acesa, resfolegava. Semelhava roncar, dormindo; os carros, pequenos, banhados pelo luar, muito quietos, sossegados como que dormiam. As anosas mangueiras, com falta de galhos aqui e ali, pareciam polvilhadas preciosamente de prata. O luar estava magnífico. Os dous andavam, o marechal perguntou:

-Quantos homens tem você?

-Quarenta.

O marechal mastigou um: «não é muito»; e voltou ao mutismo. Num dado momento, Quaresma viu-lhe o rosto inundado pela luz da lua. Pareceu-lhe mais simpática a fisionomia do ditador. Se lhe falasse...

Preparou a pergunta; mas não teve coragem de pronunciá-la. Continuaram a andar. O major pensou: que é que tem? não há desrespeito algum. Aproximaram-se do portão. Num dado momento como que houve uma bulha atrás. Quaresma voltou-se, mas Floriano quase não o fez.

Os edifícios da serraria pareciam cobertos de neve, tanto era o branco luar. O major continuou a mastigar a sua pergunta; urgia, era indispensável; o portão estava a dous passos. Tomou coragem, ousou e falou:

-Vossa Excelência já leu o meu memorial, marechal?

Floriano respondeu lentamente, quase sem levantar o lábio pendente:

-Li.

Quaresma entusiasmou-se:

-Vê Vossa Excelência como é fácil erguer este país. Desde que se cortem todos aqueles empecilhos que eu apontei, no memorial que Vossa Excelência teve a bondade de ler; desde que se corrijam os erros de uma legislação defeituosa e inadaptável às condições do país, Vossa Excelência verá que tudo isto muda, que, em vez de tributários, ficaremos com a nossa independência feita... Se Vossa Excelência quisesse...

À proporção que falava, mais Quaresma se entusiasmava. Ele não podia ver bem a fisionomia do ditador, encoberto agora como lhe estava o rosto pelas abas do chapéu de feltro; mas, se a visse, teria de esfriar, pois havia na sua máscara sinais do aborrecimento mais mortal. Aquele falatório de Quaresma, aquele apelo à legislação, a medidas governamentais, iam mover-lhe o pensamento, por mais que não quisesse. O presidente aborrecia-se. Num dado momento, disse:

-Mas, pensa você, Quaresma, que eu hei de pôr a enxada na mão de cada um desses vadios?! Não havia exército que chegasse...

Quaresma espantou-se, titubeou, mas retorquiu:

-Mas, não é isso, marechal. Vossa Excelência, com o seu prestígio e poder, está capaz de favorecer, com medidas enérgicas e adequadas, o aparecimento de iniciativas, de encaminhar o trabalho, de favorecê-lo e torná-lo remunerador... Bastava, por exemplo...

Atravessavam o portão da velha quinta de Pedro I. O luar continuava lindo, plástico e opalescente. Um grande edifício inacabado que havia na rua parecia terminado, com vidraças e portas feitas com a luz da lua. Era um palácio de sonho.

Floriano já ouvia Quaresma muito aborrecido. O bonde chegou; ele se despediu do major, dizendo com aquela sua placidez de voz:

-Você, Quaresma, é um visionário...

O bonde partiu. A lua povoava os espaços, dava fisionomia às cousas, fazia nascer sonhos em nossa alma, enchia a vida, enfim, com a sua luz emprestada...

... E tornaram logo silenciosos...

-Eu tenho experimentado tudo, Quaresma, mas não sei... não há meio!

-Já a levou a um médico especialista?

-Já. Tenho corrido médicos, espíritas, até feiticeiros, Quaresma!

E os olhos do velho se orvalhavam por baixo do pince-nez. Os dous se haviam encontrado na pagadoria da Guerra e vinham pelo campo de Sant'Anna, a pé, andando a pequenos passos e conversando. O general era mais alto que Quaresma, e enquanto este tinha a cabeça sobre um pescoço alto, aquele a tinha metida entre os ombros proeminentes, como cotos de asas. Albernaz reatou:

-E remédios! Cada médico receita uma cousa; os espíritas são os melhores, dão homeopatia; os feiticeiros tisanas, rezas e defumações... Eu não sei, Quaresma!

E levantou os olhos para o céu, que estava um tanto plúmbeo. Não se demorou, porém, muito nessa postura; o pince-nez não permitia, já começava a cair.

Quaresma abaixou a cabeça e andou assim um pouco olhando as granulações do granito do passeio. Levantou o olhar ao fim de algum tempo, e disse:

-Por que não a recolhe a uma casa de saúde, general?

-Meu médico já me aconselhou isso... A mulher não quer e agora mesmo, no estado em que a menina está, não vale a pena...

Falava da filha, da Ismênia, que, naqueles últimos meses, piorava sensivelmente, não tanto da sua moléstia mental, mas da saúde comum, vivendo de cama, sempre febril, enlanguescendo, definhando, marchando a passos largos para o abraço frio da morte.

Albernaz dizia a verdade; para curá-la tanto de sua loucura como da atual moléstia intercorrente, lançara mão de todos os recursos, de todos os conselhos apontados por quem quer que fosse.

Era de fazer refletir ver aquele homem, general, marcado com um curso governamental, procurar médiuns e feiticeiros, para sarar a filha.

Às vezes até levava-os em casa. Os médiuns chegavam perto da moça, davam um estremeção, ficam com uns olhos desvairados, fixos, gritavam: «Sai, irmão!» -e sacudiam as mãos, do peito para a moça, de lá para cá, rapidamente, nervosamente, no intuito de descarregar sobre ela os fluidos milagrosos.

Os feiticeiros tinham outros passes e as cerimônias para entrar no conhecimento das forças ocultas que nos cercam eram demoradas, lentas e acabadas. Em geral, eram pretos africanos. Chegavam, acendiam um fogareiro no quarto, tiravam de um cesto um sapo empalhado ou outra cousa esquisita, batiam com feixes de ervas, ensaiavam passos de dança e pronunciavam palavras ininteligíveis. O ritual era complicado e tinha a sua demora.

Na saída, a pobre Dona Maricota, um tanto já diminuída da sua atividade e diligência, olhando ternamente aquele grande rosto negro do mandingueiro, onde a barba branca punha mais veneração e certa grandeza, perguntava:

-Então, titio?

O preto considerava um instante, como se estivesse recebendo as últimas comunicações do que não se vê nem se percebe, e dizia com a sua majestade de africano:

-Vô vê, nhãnhã... Tô crotando mandinga...

Ela e o general tinham assistido à cerimônia e o amor de pais e também esse fundo de superstição que há em todos nós levavam a olhá-la com respeito, quase com fé.

-Então foi feitiço que fizeram à minha filha? perguntava a senhora.

-Foi, sim, nhanhã.

-Quem?

-Santo não qué dizê.

E o preto obscuro, velho escravo, arrancado há um meio século dos confins da África, saía arrastando a sua velhice e deixando naqueles dous corações uma esperança fugaz.

Era uma singular situação, a daquele preto africano, ainda certamente pouco esquecido das dores do seu longo cativeiro, lançando mão dos resíduos de suas ingênuas crenças tribais, resíduos que tão a custo tinham resistido ao seu transplante forçado para terras de outros deuses -e empregando-os na consolação dos seus senhores de outro tempo. Como que os deuses de sua infância e de sua raça, aqueles sanguinários manipansos da África indecifrável, quisessem vingá-lo à legendária maneira do Cristo dos Evangelhos...

A doente assistia a tudo aquilo sem compreender e se interessar por aqueles trejeitos e passes de tão poderosos homens que se comunicavam, que tinham às suas ordens os seres imateriais, as existências fora e acima da nossa.

Andando, ao lado de Quaresma, o general lembrava-se de tudo isso e teve um pensamento amargo contra a ciência, contra os espíritos, contra os feitiços, contra Deus que lhe ia tirando a filha aos poucos sem piedade e comiseração.

O major não sabia o que dizer diante daquela imensa dor de pai e parecia-lhe toda e qualquer palavra de consolo parva e idiota. Afinal disse:

-General, o senhor permite que eu a faça ver por um médico?

-Quem é?

-É o marido de minha afilhada... o senhor conhece... É moço, quem sabe lá! Não acha? Pode ser, não é?

O general consentiu e a esperança de ver curada a filha lhe afagou as faces enrugadas. Cada médico que consultava, cada espírita, cada feiticeiro reanimava-o, pois de todos eles esperava o milagre. Nesse mesmo dia, Quaresma foi procurar o Doutor Armando.

A revolta já tinha mais de quatro meses de vida e as vantagens do governo eram problemáticas. No Sul, a insurreição chegava às portas de São Paulo, e só a Lapa resistia tenazmente, uma das poucas páginas dignas e limpas de todo aquele enxurro de paixões. A pequena cidade tinha dentro de suas trincheiras o Coronel Gomes Carneiro, uma energia, uma vontade, verdadeiramente isso, porque era sereno, confiante e justo. Não se desmanchou em violências de apavorado e soube tornar verdade a gasta frase grandiloqüente: resistir até à morte.

A ilha do Governador tinha sido ocupada e Magé tomado; os revoltosos, porém, tinham a vasta baía e a barra apertada, por onde saíam e entravam, sem temer o estorvo das fortalezas.

As violências, os crimes que tinham assinalado esses dous marcos de atividade guerreira do governo, chegavam ao ouvido de Quaresma e ele sofria.

Da ilha do Governador fez-se uma verdadeira mudança de móveis, roupas e outros haveres. O que não podia ser transplantado, era destruído pelo fogo e pelo machado.

A ocupação deixou lá a mais execranda memória e até hoje os seus habitantes ainda se recordam dolorosamente de um capitão, patriótico ou da guarda nacional, Ortiz, pela sua ferocidade e insofrido gosto pelo saque e outras vexações. Passava um pescador, com uma tampa de peixe, e o capitão chamava o pobre homem:

-Venha cá!

O homem aproximava-se amedrontado e Ortiz perguntava:

-Quanto quer por isso?

-Três mil-réis, capitão.

Ele sorria diabolicamente e familiarmente regateava:

-Você não deixa por menos?... Está caro... Isso é peixe ordinário... Carapebas! Ora!

-Bem, capitão vá lá por dous e quinhentos.

-Leve isso lá dentro.

Ele falava na porta de casa. O pescador voltava e ficava um tempo em pé, demonstrando que esperava o dinheiro. Ortiz balançava a cabeça e dizia escarninho:

-Dinheiro! hein? Vá cobrar ao Floriano.

Entretanto, Moreira César deixou boas recordações de si e ainda hoje há lá quem se lembre dele, agradecido por este ou aquele benefício que o famoso coronel lhe prestou.

As forças revoltosas pareciam não ter enfranquecido; tinham, porém, perdido dous navios, sendo um destes o «Javari», cuja reputação na revolta era das mais altas e consideradas. As forças de terra detestavam-no particularmente. Era um monitor, chato, raso com a água, uma espécie de sáurio ou quelônio de ferro, de construção francesa. A sua artilharia era temida; mas o que sobremodo enraivecia os adversários, era ele não ter quase borda acima d'água, ficar quase ao nível do mar e fugir assim aos tiros incertos de terra. As suas máquinas não funcionavam e a grande tartaruga vinha colocar-se em posição de combate com auxílio de um rebocador.

Um dia em que estava nas proximidades de Villegaignon, foi a pique. Não se soube e até hoje não foi esclarecido por que foi. Os legalistas afirmaram que foi uma bala de Gragoatá; mas os revoltosos asseguraram que foi a abertura de uma válvula ou um outro acidente qualquer.

Como o do seu irmão, o «Solimões», que desapareceu nas costas de cabo Polônio, o fim do «Javari» ainda está envolvido no mistério.

Quaresma permanecia de guarnição no Caju, e viera receber dinheiro. Deixara lá Polidoro, pois os outros oficiais estavam doentes ou licenciados, e Fontes, que, sendo uma espécie de inspetor-geral, ao contrário de seus hábitos, dormira aquela noite no pequeno pavilhão imperial e ia ficar até à tarde.

Ricardo Coração dos Outros, desde o dia da proibição de tocar violão, andava macambúzio. Tinham-lhe tirado o sangue, o motivo de viver, e passava os dias taciturno, encostado a um tronco de árvore maldizendo no fundo de si a incompreensão dos homens e os caprichos do destino. Fontes notara a sua tristeza; e, para minorar-lhe o desgosto, obrigara a Bustamante a fazê-lo sargento. Não foi sem custo, porque o antigo veterano do Paraguai encarecia muito essa graduação e só a dava como recompensa excepcional ou quando requerida por pessoas importantes.

A vida do pobre menestrel era assim de um melro engaiolado; e, de quando em quando, ele se afastava um pouco e ensaiava a voz, para ver se ainda a tinha e não fugira com o fumo dos disparos.

Quaresma sabendo que dessa maneira o posto estava bem entregue, resolveu demorar-se mais, e, após despedir-se de Albernaz, encaminhou-se para a casa do seu compadre, a fim de cumprir a promessa que fizera ao general.

Coleoni ainda não decidira a sua viagem à Europa. Hesitava, esperando o fim da rebelião que não parecia estar próximo. Ele nada tinha com ela; até ali, não dissera a ninguém a sua opinião; e, se era muito instado, apelava para a sua condição de estrangeiro e metia-se numa reserva prudente. Mas, aquela exigência de passaporte, tirado na chefatura de polícia, dava-lhe susto. Naqueles tempos, toda a gente tinha medo de tratar com autoridades. Havia tanta má vontade com os estrangeiros, tanta arrogância nos funcionários que ele não se animava a ir obter o documento, temendo que uma palavra, que um olhar, que um gesto, interpretados por qualquer funcionário zeloso e dedicado, não o levassem a sofrer maus quartos de hora.

Verdade é que ele era italiano e a Itália já fizera ver ao ditador que era uma grande potência, mas no caso de que se lembrava, tratava-se de um marinheiro, por cuja vida, extinta por uma descarga das forças legais, Floriano pagara a quantia de cem contos. Ele, Coleoni, porém, não era marinheiro e não sabia, caso fosse preso, se os representantes diplomáticos de seu país tomariam interesse pela sua liberdade.

De resto, não tendo protestado manter a sua nacionalidade, quando o governo provisório expediu o famoso decreto de naturalização, era bem possível que uma ou outra parte se ativessem a isso, para desinteressar-se dele ou mantê-lo na famosa galeria nº 7, da Casa de Correição, transformada, por uma penada mágica, em prisão de Estado.

A época era de susto e temor, e todos esses que ele sentia, só os comunicava à filha, porque o genro cada vez mais se fazia florianista e jacobino, de cuja boca muita vez ouvia duras invectivas aos estrangeiros.

E o doutor tinha razão; já obtivera uma graça governamental. Fora nomeado médico do Hospital de Santa Bárbara, na vaga de um colega, demitido a bem do serviço público como suspeito por ter ido visitar um amigo na prisão. Como o hospital, porém, ficasse no ilhéu do mesmo nome, dentro da baía, em frente à Saúde e a Guanabara ainda estivesse em mão dos revoltosos, ele nada tinha que fazer, pois até agora o governo não aceitara os seus oferecimentos de auxiliar o tratamento dos feridos.

O major foi encontrar pai e filha em casa; o doutor tinha saído, ido dar volta pela cidade, dar arras de sua dedicação à causa legal, conversando com os mais exaltados jacobinos do Café do Rio, não esquecendo também de passear pelos corredores do Itamarati, fazendo-se ver pelos ajudantes-de-ordens, secretários e outras pessoas influentes no ânimo de Floriano.

A moça viu entrar Quaresma com aquele sentimento estranho que o seu padrinho lhe causava ultimamente, e esse sentimento mais agudo se tornava quando o via contar os casos guerreiros do seu destacamento, a passagem de balas, as descargas das lanchas, naturalmente, simplesmente, como se fossem feições de uma festa, de uma justa, de um divertimento qualquer em que a morte não estivesse presente.

Tanto mais que o via apreensivo, deixando perceber numa frase e noutra o desânimo e desesperança.

Na verdade o major tinha um espinho n'alma. Aquela recepção de Floriano às suas lembranças de reformas não esperavam nem o seu entusiasmo e sinceridade nem tampouco a idéia que ele fazia do ditador. Saíra ao encontro de Henrique IV e de Sully e vinha esbarrar com um presidente que o chamava de visionário, que não avaliava o alcance dos seus projetos, que os não examinava sequer, desinteressado daquelas altas cousas de governo como se não o fosse!... Era pois para sustentar tal homem que deixara o sossego de sua casa e se arriscava nas trincheiras? Era, pois, por esse homem que tanta gente morria? Que direito tinha ele de vida e de morte sobre os seus concidadãos, se não se interessava pela sorte deles, pela sua vida feliz e abundante, pelo enriquecimento do país, o progresso de sua lavoura e o bem-estar de sua população rural?

Pensando assim, havia instantes que lhe vinha um mortal desespero, uma raiva de si mesmo; mas em seguida considerava: o homem está atrapalhado, não pode agora; mais tarde com certeza ele fará a cousa...

Vivia nessa alternativa dolorosa e era ela que lhe trazia apreensões, desânimo e desesperança, notados por sua afilhada na sua fisionomia já um pouco acabrunhada.

Não tardou, porém, que, abandonando os episódios da sua vida militar, Quaresma explicasse o motivo de sua visita.

-Mas qual delas? perguntou a afilhada.

-A segunda, a Ismênia.

-Aquela que estava para casar com o dentista?

-Esta mesmo.

-Ahn!...

Ela pronunciou este «ahn» muito longo e profundo, como se pusesse nele tudo que queria dizer sobre o caso. Via bem o que fazia o desespero da moça, mas via melhor a causa, naquela obrigação que incrustam no espírito das meninas, que elas se devem casar a todo o custo, fazendo do casamento o pólo e fim da vida, a ponto de parecer uma desonra, uma injúria, ficar solteira.

O casamento já não é mais amor, não é maternidade, não é nada disso: é simplesmente casamento, uma coisa vazia, sem fundamento nem na nossa natureza nem nas nossas necessidades.

Graças à frouxidão, à pobreza intelectual e fraqueza de energia vital de Ismênia, aquela fuga do noivo se transformou em certeza de não casar mais e tudo nela se abismou nessa idéia desesperada.

Coleoni enterneceu-se muito e interessou-se. Sendo bom de fundo, quando lutava pela fortuna se fez duro e áspero, mas logo que se viu rico, perdeu a dureza de que se revestira, pois percebia bem que só se pode ser bom quando se é forte de algum modo.

Ultimamente o major tinha diminuído um pouco o interesse pela moça; andava atormentado com o seu caso de consciência, entretanto, se não tinha um constante e particular pensamento pela desdita da filha de Albernaz, abrangia-a ainda na sua bondade geral, larga e humana.

Não se demorou muito na casa do compadre; ele queria, antes de voltar ao Caju, passar pelo quartel do seu batalhão. Ia ver se arranjava uma pequena licença, para visitar a irmã que deixara lá, no «Sossego», e de quem tinha notícias, por carta, três vezes por semana. Eram elas satisfatórias, contudo ele tinha necessidade de ver tanto ela como o Anastácio, fisionomias com quem se encontrava diariamente há tantos anos e cuja contemplação lhe fazia falta e talvez lhe restituísse a calma e a paz de espírito.

Na última carta que recebera de Dona Adelaide, havia uma frase de que, no momento, se lembrava sorrindo: «Não te exponhas muito, Policarpo. Toma muita cautela.» Pobre Adelaide! Estava a pensar que esse negócio de balas é assim como a chuva?!...

O quartel ainda ficava no velho cortiço condenado pela higiene, lá para as bandas da Cidade Nova. Assim que Quaresma apontou na esquina, a sentinela deu um grande berro, fez uma imensa bulha com a arma e ele entrou, tirando o chapéu da cabeça baixa, pois estava a paisana e tinha abandonado a cartola com medo de que esse traje fosse ferir as susceptibilidades republicanas dos jacobinos.

No pátio, o instrutor coxo adestrava novos voluntários e os seus majestosos e demorados gritos: ombroôô... armas! mei-ããã volta... volver! subiam no céu e ecoavam longamente pelos muros da antiga estalagem.

Bustamente estava no seu cubículo, mais conhecido por gabinete, irrepreensível no seu uniforme verde-garrafa, alamares dourados e vivos azul-ferrete. Com auxílio de um sargento, examinava a escrita de um livro quarteleiro.

-Tinta vermelha, sargento! É como mandam as instruções de 1864.

Tratava-se de uma emenda ou de cousa semelhante.

Logo que viu Quaresma entrar, o comandante exclamou radiante:

-O major adivinhou!

Quaresma descansou placidamente o chapéu, bebeu um pouco d'água, e o Coronel Inocêncio explicou a alegria:

-Sabe que temos de marchar?

-Para onde?

-Não sei... Recebi ordem do Itamarati.

Ele não dizia nunca do quartel-general, nem mesmo do ministro da Guerra; era do Itamarati; do Presidente, do chefe supremo. Parecia que assim dava mais importância a si mesmo e ao seu batalhão, fazia-o uma espécie de batalhão da guarda, favorito e amado do ditador. Quaresma não se espantou, nem se aborreceu. Percebeu que era impossível obter a licença e também necessário mudar os seus estudos: da artilharia, tinha que passar para a infantaria.

-O major é que vai comandar o corpo, sabia?

-Não, coronel. E o senhor não vai?

-Não, disse Bustamante, alisando o cavanhaque mosaico e abrindo a boca para o lado esquerdo. Tenho que acabar a organização da unidade e não posso... Não se assuste, mais tarde irei lá ter...

Começava a tarde, quando Quaresma saiu do quartel. O instrutor coxo continuava, com força, majestade e demora, a gritar: om-brôôô... armas! A sentinela não pôde fazer a bulha da entrada, porque só viu o major quando já ia longe. Ele desceu até à cidade e foi ao correio. Havia alguns tiros espaçados; no Café do Rio, os levitas continuavam a trocar idéias para a consolidação definitiva da República.

Antes de chegar ao correio, Quaresma lembrou-se de sua partida. Correu a uma livraria e comprou livros sobre infantaria; precisava também dos regulamentos: arranjaria no quartel-general.

Para onde ia? Para o Sul, para Magé, para Niterói? Não sabia... Não sabia... Ah! se isso fosse para realização dos seus desejos e sonhos! Mas quem sabe?... Podia ser... talvez... Mais tarde...

E passou o dia atormentado pela dúvida do bom emprego de sua vida e de suas energias.

O marido de Olga não fez nenhuma questão em ir ver a filha do general. Ele levava a íntima convicção de que a sua ciência toda nova pudesse fazer alguma cousa; mas assim não se deu.

A moça continuou a definhar, e, se a mania parecia um pouco atenuada, o seu organismo caía. Estava magra e fraca, a ponto de quase não poder sentar-se na cama. Era sua mãe quem mais junto a ela vivia; as irmãs se desinteressavam um pouco, pois as exigências de sua mocidade levavam-nas para outros lados.

Dona Maricota, tendo perdido todo aquele antigo fervor pelas festas e bailes, estava sempre no quarto da filha, a consolá-la, animá-la e, às vezes, quando a olhava muito, como que se sentia um tanto culpada pela sua infelicidade.

A moléstia tinha posto mais firmeza nos traços de Ismênia, tinha-lhe diminuído a lassidão, tirado o mortiço dos olhos e os seu lindos cabelos castanhos, com reflexos de ouro, mais belos se faziam quando cercavam a palidez de sua face.

Raro era falar muito; e assim foi que, naquele dia, se espantou muito Dona Maricota com a loquacidade da filha.

-Mamãe, quando se casa Lalá?

-Quando se acabar a revolta.

-A revolta ainda não acabou?

A mãe respondeu-lhe e ela esteve um instante calada, olhando o teto, e, após essa contemplação disse à mãe:

-Mamãe... Eu vou morrer...

As palavras saíram-lhe dos lábios, seguras, doce e naturais.

-Não diga isso, minha filha, adiantou-se Dona Maricota. Qual morrer! Você vai ficar boa; seu pai vai levar você para Minas; você engorda, toma forças...

A mãe dizia-lhe tudo isso devagar, alisando-lhe a face com a mão, como se se tratasse de uma criança. Ela ouvia tudo com paciência e voltou por sua vez serenamente:

-Qual, mamãe! Eu sei: vou morrer e peço uma cousa à senhora...

A mãe ficou espantada com a seriedade e firmeza da filha. Olhou em redor, deu com a porta semicerrada e levantou-se para fechá-la. Quis ainda ver se a dissuadia daquele pensamento; Ismêndia, porém, continuava a repeti-lo pacientemente, docemente, serenamente:

-Eu sei, mamãe.

-Bem. Suponho que é verdade: o que é que você quer?

-Eu quero, mamãe, ir vestida de noiva.

Dona Maricota ainda quis brincar, troçar; a filha, porém, voltou-se para o outro lado, pôs-se a dormir, com um leve respirar espaçado. A mãe saiu do quarto, comovida, com lágrimas nos olhos e a secreta certeza de que a filha falava a verdade.

Não tardou muito a se verificar. O Doutor Armando a tinha visitado naquela manhã pela quarta vez; ela parecia melhor, desde alguns dias, falava com discernimento, sentava-se à cama e conversava com prazer.

Dona Maricota teve que fazer uma visita e deixou a doente entregue às irmãs. Elas foram lá ao quarto várias vezes e parecia dormir. Distraíram-se.

Ismênia despertou: viu, por entre a porta do guarda-vestidos meio aberto, o seu traje de noiva. Teve vontade de vê-lo mais de perto. Levantou-se descalça e estendeu-o na cama para contemplá-lo. Chegou-lhe o desejo de vesti-lo. Pôs a saia; e, por aí, vieram recordações do seu casamento falhado. Lembrou-se do seu noivo, do nariz fortemente ósseo e dos olhos esgazeados de Cavalcanti; mas não se recordou com ódio, antes como se fosse um lugar visto há muito tempo, e que a tivesse impressionado.

De quem ela se lembrava com raiva era da cartomante. Iludindo sua mãe, acompanhada por uma criada, tinha conseguido consultar Mme. Sinhá. Com que indiferença ela lhe respondeu: não volta! Aquilo doeu-lhe... Que mulher má! Desde esse dia... Ah! Acabou de abotoar a saia em cima do corpinho, pois não encontrara colete; e foi ao espelho. Viu os seu ombros nus, o seu colo muito branco...Surpreendeu-se. Era dela aquilo tudo? Apalpou-se um pouco e depois colocou a coroa. O véu afagou-lhe as espáduas carinhosamente, como um adejo de borboleta. Teve uma fraqueza, uma cousa, deu um ai e caiu de costas na cama, com as pernas para fora... Quando a vieram ver, estava morta. Tinha ainda a coroa na cabeça e um seio, muito branco e redondo, saltava-lhe do corpinho.

O enterro foi feito no dia imediato e a casa de Albernaz esteve os dous dias cheia, como nos dias de suas melhores festas.

Quaresma foi ao enterro; ele não gostava muito dessa cerimônia; mas veio, e foi ver a pobre moça, no caixão, coberta de flores, vestida de noiva, com um ar imaculado de imagem. Pouco mudara, entretanto. Era ela mesma ali; era a Ismênida dolente e pobre de nervos, com os seus traços miúdos e os seus lindos cabelos, que estava dentro daquelas quatro tábuas. A morte tinha fixado a sua pequena beleza e o seu aspecto pueril; e ela ia para a cova com a insignificância, com a inocência e a falta de acento próprio que tinha tido em vida.

Contemplando aqueles tristes restos, Quaresma viu o caixão do coche parar na porta do cemitério, atravessar pelas ruas de túmulos -uma multidão que trepava, se tocava, lutava por espaço, na estreiteza da várzea e nas encostas das colinas. Algumas sepulturas como se olhavam com afeto e se queriam aproximar; em outras, transparecia repugnância por estarem perto. Havia ali, naquele mudo laboratório de decomposições, solicitações incompreensíveis, repulsões, simpatias e antipatias; havia túmulos arrogantes, vaidosos, orgulhosos, humildes, alegres e tristes; e de muito, ressumava o esforço, um esforço extraordinário, para escapar ao nivelamento da morte, ao apagamento que ela traz às condições e às fortunas.

Quaresma ainda contemplava o cadáver da moça e o cemitério surgia aos seus olhos com as esculturas que se amontoavam, com vasos, cruzes e inscrições, em alguns túmulos; noutros, eram pirâmides de pedra tosca, retratos, caramanchões extravagantes, complicações de ornatos, cousas barrocas e delirantes, para fugir ao anonimato do túmulo, ao fim dos fins.

As inscrições exuberam: são longas, são breves; têm nomes, têm datas, sobrenomes, filiações, toda a certidão de idade do morto que, lá embaixo, não se pode mais conhecer e é lama pútrida.

E se sente um desespero em não se deparar com um nome conhecido, nem uma celebridade, uma notabilidade, um desses nomes que enchem décadas e, às vezes, mesmo já mortos, parece que continuam a viver. Tudo é desconhecido; todos aqueles que querem fugir do túmulo para a memória dos vivos são anódinos felizes e medíocres existências que passaram pelo mundo sem ser notadas.

E lá ia aquela moça por ali afora para o buraco escuro, para o fim, sem deixar na vida um traço mais fundo de sua pessoa, de seus sentimentos, de sua alma!

Quaresma quis afastar essa visão triste e encaminhou-se para o interior da casa. Ele estivera na sala de visitas, onde Dona Maricota também estava, cercada de outras senhoras amigas que nada lhe diziam. O Lulu, fardado do colégio, com fumo no braço, cochilava a uma cadeira. As irmãs iam e vinham. Na sala de jantar, estava o general silencioso, tendo ao lado Fontes e outros amigos.

Caldas e Bustamante conversavam baixo, afastados; e quando Quaresma passou, pôde ouvir o almirante dizer:

-Qual! Os homens estão dentro em pouco aqui... O governo está exausto.

O major ficou na janela que dava para o quintal. O tecido do céu se tinha adelgaçado; o azul estava sedoso e fino; e tudo tranqüilo, sereno e calmo.

A Estefânia, a doutora, a de olhos maliciosos e quentes, passou, tendo ao lado Lalá, que levava, de quando em quando, o lenço aos olhos já secos, a quem aquela dizia:

-Eu, se fosse você, não comprava lá... É caro! Vai ao «Bonheur des Dames»... Dizem que tem cousas boas e é pechincheiro.

O major voltou de novo a contemplar o céu que cobria o quintal. Tinha uma tranqüilidade quase indiferente. Genelício apareceu demasiadamente fúnebre. Todo de preto, ele tinha afivelado ao rosto a mais profunda máscara de tristeza. O seu pince-nez azulado também parecia de luto.

Não lhe fora possível deixar de ir trabalhar; um serviço urgente fizera-o indispensável na repartição.

-É isto, general, disse ele, não está lá o Doutor Genelício, nada se faz... Não há meio da Marinha mandar os processos certos... É um relaxamento...

O general não respondeu; estava deveras combalido. Bustamente e Caldas continuavam a conversar baixo. Ouviu-se o rodar de uma carruagem na rua. Quinota chegou à sala de jantar.

-Papai, está aí o coche.

O velho levantou-se a custo e foi para a sala de visitas. Falou à mulher que se ergueu com a face contraída, exprimindo uma grande contensão. Os seus cabelos já tinham muitos fios de prata. Não deu um passo; esteve um instante parada e logo caiu na cadeira, chorando. Todos estavam vendo sem saber o que fazer; alguns choravam; Genelício tomou um partido: foi retirando os círios de ao redor do caixão. A mãe levantou-se, veio até ao esquife, beijou o cadáver: minha filha!

Quaresma adiantou-se, foi saindo com o chapéu na mão. No corredor, ainda ouviu Estefânia dizer a alguém: o coche é bonito.

Saiu. Na rua parecia que havia festa. As crianças da vizinhança cercavam o carro fúnebre e faziam inocentes comentários sobre os dourados e enfeites. As grinaldas foram aparecendo e sendo penduradas nas extremidades das colunas do coche: «À minha querida filha», «À minha irmã». As fitas roxas e pretas, com letras douradas, moviam-se lentamente ao leve vento que soprava.

Apareceu o caixão, todo roxo, com guarnições de galões dourados, muito brilhantes. Tudo aquilo ia pra terra. As janelas se povoaram, de um lado e doutro da rua; um menino na casa próxima gritou da rua para o interior: «Mamãe, lá vai o enterro da moça!»

O caixão foi afinal amarrado fortemente no carro mortuário, cujos cavalos, ruços, cobertos com uma rede preta, escarvavam o chão cheios de impaciência.

Aqueles que iam acompanhar até ao cemitério procuravam os seus carros. Embarcaram todos, e o enterro rodou.

A esse tempo, na vizinhança, alguns pombos imaculadamente brancos, as aves de Vênus, ergueram o vôo, ruflando estrepitosamente; deram volta por cima do coche e tornaram logo silenciosos, quase sem bater asas, para o pombal que se ocultava nos quintais burgueses...

O Boqueirão

O Sítio de Quaresma, em Curuzu, voltava aos poucos ao estado de abandono em que ele o encontrara. A erva daninha crescia e cobria tudo. As plantações que fizera tinham desaparecido na invasão do capim, do carrapicho, das urtigas e outros arbustos. Os arredores da casa ofereciam um aspecto desolador, apesar dos esforços de Anastácio, sempre vigoroso e trabalhador na sua forte velhice africana, mas baldo de iniciativa, de método, de continuidade no esforço.

Um dia capinava aqui, noutro dia ali, outro pedaço, e assim ia saltando de trecho em trecho, sem fazer trabalho que se visse, permitindo que as terras e os arredores da casa adquirissem um aspecto de desleixo que não condizia com o seu trabalho efetivo.

As formigas voltaram também, mais terríveis e depredadoras, vencendo obstáculos, devastando tudo, restos de seara, brotos de fruteiras, até os araçazeiros depenavam, com uma energia e bravura que sorriam aos fracos expedientes da inteligência crestada do antigo escravo, incapaz de achar meios eficazes de batê-las ou afungentá-las.

Entretanto ele cultivava. Era a sua mania, o seu vício, uma teimosia de caduco. Tinha uma horta que disputava diariamente às saúvas; e, como os animais da vizinhança a tivessem um dia invadido, ele a protegeu pacientemente com uma cerca de materiais mais inconcebíveis: latas de querosene desdobradas, caibros bons, folhas de coqueiros, tábuas de caixão, não obstante ter à mão bambus à vontade.

Na sua inteligência havia uma necessidade do tortuoso, do aparentemente fácil; e, em tudo ele punha esse jeito de sua psique, tanto no falar, com grandes rodeios, como nos canteiros que traçava, irregulares, maiores aqui, menores ali, fugindo à regularidade, ao paralelismo, à simetria, com um horror artístico.

A revolta tinha tido sobre a política local efeito pacificador. Todos os partidos se fizeram dedicadamente governistas, de forma que, entre os dous poderosos contendores, o Doutor Campos e o Tenente Antonino, houve um traço-de-união que os reconciliou e os fez entenderem-se. Ao osso que ambos disputavam encarniçadamente, chegou um outro mais forte que pôs em perigo a segurança de ambos e eles se puseram em expectativa, um instante unidos.

O candidato foi imposto pelo governo central e as eleições chegaram. É um momento bem curioso esse das eleições na roça. Não se sabe bem donde saem tantos tipos exóticos. De tal forma são eles esquisitos que se pode mesmo esperar que apareçam calções e bofes de renda, espadins e gibão. Há sobrecasacas de cintura, há calças boca de sino, há chapéus de seda -todo um museu de indumentária que aqueles roceiros vestem e por um instante fazem viver por entre as ruas esburacadas e estradas poeirentas das vilas e lugarejos. Não faltam também os valentões, com calças bombachas e grandes bengalões de pequiá, à espera do que der e vier.

Para a monótona vida que levava Dona Adelaide, esse desfile de manequins de museu, por sua porteira, em direção à seção eleitoral que lhe ficava nas proximidades, foi um divertimento. Ela passava longos e tristes dias naquele isolamento. Fazia-lhe companhia desde muito a mulher de Felizardo, a Sinhá Chica, uma velha cafuza, espécie de Medéia esquelética, cuja fama de rezadeira pairava por sobre todo o município. Não havia quem como ela soubesse rezar dores, cortar febres, curar cobreiros e conhecesse os efeitos das ervas medicinais: a língua-de-vaca, a silvina, o cipó-chumbo - toda aquela drogaria que crescia pelos campos, pelas capoeiras, e pelos troncos de árvores.

Além desse saber que a fazia estimada e respeitável, tinha também a habilidade de assistir partos. Na redondeza, entre a gente pobre e mesmo remediada, todos os nascimentos se faziam aos cuidados de suas luzes.

Era de ver como pegava uma faca e agitava o pequeno instrumento doméstico em cruz, repetidas vezes, sobre a sede da dor ou da tarefa, rezando em voz baixa, balbuciando preces que afugentavam o espírito maligno que estava ali. Contavam-se dela milagres, vitórias extraordinárias, denunciadoras do seu estranho poder quase mágico, sobre as forças ocultas, que nos perseguem ou nos auxiliam.

Um dos mais curiosos, e era contado em toda a parte e a toda a hora, consistia no afastamento das lagartas. Os vermes haviam dado num feijoal, aos milheiros, cobrindo as folhas e os colmos; o proprietário já desesperava e tinha tudo por perdido quando se lembrou dos maravilhosos poderes de Sinhá Chica. A velha lá foi. Pôs cruzes de gravetos pelas bordas da roça, assim como se fizesse uma cerca de invisível material que nelas se apoiasse; deixou uma extremidade aberta e colocou-se na oposta a rezar. Não tardou o milagre a verificar-se. Os vermes, num rebanho moroso e serpejante, como se fossem tocados pela vara de um pastor, foram saindo na sua frente, devagar, aos dous, aos quatro, aos cinco, aos dez, aos vinte, e um só não ficou.

O Doutor Campos não tinha absolutamente nenhuma espécie de ciúme dessa rival. Armou-se de um pequeno desdém pelo poder sobre-humano da mulher, mas não apelou nunca para o arsenal de leis, que vedava o exercício de sua transcendente medicina. Seria a impopularidade; ele era político...

No interior, e não é preciso afastar-se muito do Rio de Janeiro, as duas medicinas coexistem sem raiva e ambas atendem às necessidades mentais e econômicas da população.

A da Sinhá Chica, quase grátis, ia ao encontro da população pobre, daquela em cujos cérebros, por contágio ou herança, ainda vivem os manitus e manipansos, sujeitos a fugirem aos exorcismos, benzeduras e fumigações. A sua clientela, entretanto, não se resumia só na gente pobre da terra, ali nascida ou criada; havia mesmo recém-chegados de outros ares, italianos, portugueses e espanhóis, que se socorriam da sua força sobrenatural, não tanto pelo preço ou contágio das crenças ambientes, mas também por aquela estranha superstição européia de que todo o negro ou gente colorida penetra e é sagaz para descobrir as coisas malignas e exercer a feitiçaria.

Enquanto a terapêutica fluídica ou herbácea de Sinhá Chica atendia aos miseráveis, aos pobretões, a do Doutor Campos era requerida pelos mais cultos e ricos, cuja evolução mental exigia a medicina regular e oficial.

Às vezes, um de um grupo passava para o outro; era nas moléstias graves, nas complicadas, nas incuráveis, quando as ervas e as rezas da milagrosa nada podiam ou os xaropes e pílulas do doutor eram impotentes.

Sinhá Chica não era lá uma companheira muito agradável. Vivia sempre mergulhada no seu sonho divino, abismada nos misteriosos poderes dos feitiços, sentada sobre as pernas cruzadas, olhos baixos, fixos, de fraco brilho, parecendo esmalte de olhos de múmia, tanto ela era encarquilhada e seca.

Não esquecia também os santos, a santa madre igreja, os mandamentos, as orações ortodoxas; embora não soubesse ler, era forte no catecismo e conhecia a história sagrada aos pedaços, aduzindo a eles interpretações suas e interpolações pitorescas.

Com o Apolinário, o famoso capelão das ladainhas, era ela o forte poder espiritual da terra. O vigário ficava relegado a um papel de funcionário, espécie de oficial de registro civil, encarregado dos batizados e casamentos, pois toda a comunicação com Deus e o invisível se fazia por intermédio de Sinhá Chica ou do Apolinário. É de dever falar em casamento, mas bem podiam ser esquecidos, porque a nossa gente pobre faz uso reduzido de tal sacramento e a simples mancebia, por toda a parte, substitui a solene instituição católica.

Felizardo, o marido dela, aparecia pouco em casa de Quaresma; e, se aparecia, era à noite, passando os dias pelos matos com medo do recrutamento e logo que chegava indagava da mulher se o barulho já tinha acabado.

Vivia num constante pavor; dormia vestido, galgando a janela e embrenhando-se na capoeira, à menor bulha ouvida.

Tinham dous filhos, mas que tristeza de gente! Ajuntavam à depressão moral dos pais uma pobreza de vigor físico e uma indolência repugnante. Eram dous rapazes: o mais velho, José, orçava pelos vinte anos; ambos inertes, moles, sem força e sem crenças, nem mesmo a da feitiçaria, das rezas e benzeduras, que fazia o encanto da mãe e merecia o respeito do pai.

Não houve quem os fizesse aprender qualquer cousa e os sujeitasse a um trabalho contínuo. De quando em quando, assim de quinze em quinze dias, faziam uma talha de lenha e vendiam ao primeiro taverneiro pela metade do valor; voltavam para casa alegres, satisfeitos, com um lenço de cores vivas, um vidro de água-de-colônia, um espelho, bugigangas que denunciavam ainda neles gostos bastantes selvagens.

Passavam então uma semana em casa, a dormir ou perambular pelas estradas e vendas; à noite, quase sempre nos dias de festa e domingos, saíam com a «harmônica» a tocar peças, no que eram exímios, sendo a presença deles muito requestada nos bailes da vizinhança.

Embora seus pais vivessem em casa de Quaresma, raramente lá apareciam; e, se o faziam, era porque de todo não tinham que comer. Levavam o descuido da vida, a imprevidência, a ponto de não terem medo do recrutamento. Eram, entretanto, capazes de dedicação, de lealdade e bondade, mas o trabalho continuado, todo o dia, repugnava-lhes à natureza, como uma pena ou castigo.

Essa atonia da nossa população, essa espécie de desânimo doentio, de indiferença nirvanesca por tudo e todas as cousas cercam de uma caligem de tristreza desesperada a nossa raça e tira-lhe o encanto, a poesia e o viço sedutor de plena natureza.

Parece que nem um dos grandes países oprimidos, a Polônia, a Irlanda, a Índia apresentará o aspecto cataléptico do nosso interior. Tudo aí dorme, cochila, parece morto; naqueles há revolta, há fuga para o sonho; no nosso... Oh!... dorme-se...

A ausência de Quaresma trouxera para o seu sítio essa atmosfera geral da roça. O «Sossego» parecia dormir, dormir de encantamento, à espera que o príncipe o viesse despertar.

Máquinas agrícolas, que não haviam ainda servido, enferrujavam com a etiqueta da casa. Aqueles arados de ponta de aço, que tinham chegado com a relva reluzente, de um brilho azulado e doce, estavam hediondos e morriam de tédio no abandono em que jaziam, bracejando angustiosamente para o céu mudo. De manhã, não se ouvia mais o cacarejar das aves no galinheiro, o esvoaçar dos pombos -todo esse hino matinal de vida, de trabalho, de fartura não mais se casava com as auroras rosadas e com o chilreio álacre do passaredo; e ninguém sabia ver as paineiras em flor; com as suas lindas flores rosadas e brancas que, a espaços, caíam docemente como aves feridas.

Dona Adelaide não tinha nem gosto nem atividade para superintender aqueles serviços e fruir a poesia da roça. Sofria com a separação do irmão e vivia como se estivesse na cidade. Comprava os gêneros na venda e não se incomodava com as cousas do sítio.

Ansiava pela volta do irmão; escrevia-lhe cartas desesperadas, às quais ele respondia aconselhando calma, fazendo promessas. A última recebida, porém, tinha de sopetão outro acento; não era mais confiante, entusiástica, traía desânimo, desalento, mesmo desespero.

«Querida Adelaide. Só agora posso responder-te a carta que recebi há quase duas semanas. Justamente quando ela me chegou às mãos, acabava de ser ferido, ferimento ligeiro é verdade, mas que me levou à cama e tratar-me-á uma convalescença longa. Que combate, milha filha! Que horror! Quando me lembro dele, passo as mãos pelos olhos como para afastar uma visão má. Fiquei com um horror à guerra que ninguém pode avaliar... Uma confusão, um infernal zunir de balas, chorões sinistros, imprecações - e tudo isto no seio da treva profunda da noite... Houve momentos que se abandonaram as armas de fogo: batíamo-nos à baioneta, a coronhadas, a machado, a facão. Filha: um combate de trogloditas, uma cousa pré-histórica... Eu duvido, eu duvido, duvido da justiça disso tudo, duvido da sua razão de ser, duvido que seja certo e necessário ir tirar do fundo de nós todos a ferocidade adormecida, aquela ferocidade que se fez e se depositou em nós nos milenários combates com as feras, quando disputávamos a terra a elas... Eu não vi homens de hoje; vi homens de Cro-Magnon, do Neanderthal armados com machados de sílex, sem piedade, sem amor, sem sonhos generosos, a matar, sempre a matar... Este teu irmão que estás vendo também fez das suas, também foi descobrir dentro de si muita brutalidade, muita ferocidade, muita crueldade... Eu matei, minha irmã; eu matei! E não contente de matar, ainda descarreguei um tiro quando o inimigo arquejava a meus pés... Perdoa-me! Eu te peço perdão, porque preciso de perdão e não sei a quem pedir, a que Deus, a que homem, a alguém enfim... Não imaginas como isto faz-me sofrer... Quando caí embaixo de uma carreta, o que doía não era a ferida, era a alma, era a consciência; e Ricardo, que foi ferido e caiu ao meu lado, a gemer e pedir -«capitão, meu gorro; meu gorro!»- parecia que era o meu próprio pensamento que ironizava o meu destino...

Esta vida é absurda e ilógica; eu já tenho medo de viver, Adelaide. Tenho medo, porque não sabemos para onde vamos, o que faremos amanhã, de que maneira havemos de nos contradizer de sol para sol...

O melhor é não agir, Adelaide; e desde que o meu dever me livre destes encargos, irei viver na quietude, na quietude mais absoluta possível, para que do fundo de mim mesmo ou do mistério das cousas não provoque a minha ação o aparecimento de energias estranhas à minha vontade, que mais me façam sofrer e tirem o doce sabor de viver...

Além do que, penso que todo este meu sacrifício tem sido inútil. Tudo o que nele pus de pensamento não foi atingido; e o sangue que derramei, e o sofrimento que vou sofrer toda a vida foram empregados, foram gastos, foram estragados, foram vilipendiados e desmoralizados em prol de uma tolice política qualquer...

Ninguém compreende o que quero, ninguém deseja penetrar e sentir; passo por doido, tolo, maníaco e a vida se vai fazendo inexoravelmente com a sua brutalidade e fealdade.»

Como Quaresma dizia na carta, o seu ferimento não era grave, era, porém, delicado e exigia tempo para uma cura completa e sem perigos. Ricardo, este, fora ferido mais gravemente. E se o sofrimento de Quaresma era profundamente moral, o de Coração dos Outros era físico e não se cansava de gemer e imprecar contra a sorte que o arrastara até à posição de combatente.

Os hospitais em que se tratavam estavam separados pela baía, agora intransponível, exigindo a viagem de uma margem à outra bem doze horas por estrada de ferro.

Tanto na ida como na volta, ferido como estava, Quaresma passara pela estação em que morava. O trem, porém, não parava, e ele se limitou a deitar pela portinhola um longo e saudoso olhar para aquele seu «Sossego», de terras pobres e árvores velhas, onde sonhara repousar calmamente por toda a vida; e, entretanto, o lançara na mais terrível das aventuras.

E ele perguntava de si para si, onde, na terra, estava o verdadeiro sossego, onde se poderia encontrar esse repouso de alma e corpo, pelo qual tanto ansiava, depois dos sacolejamentos por que vinha passando - onde? E o mapa dos continentes, as cartas dos países, as plantas das cidades, passavam-lhe pelos olhos e não viu, não encontrou um país, uma província, uma cidade, uma rua onde o houvesse.

A sua sensação era de fadiga, não física, mas moral e intelectual. Tinha vontade de não mais pensar, de não mais amar; queria, contudo, viver, por prazer físico, pela sensação material pura e simples de viver.

Assim, convalesceu longamente, demoradamente, melancolicamente, sem uma visita, sem ver uma face amiga.

Coleoni e família se haviam retirado para fora; o general, por preguiça e desleixo, não viera vê-lo. Vivia só, envolvido na suavidade da convalescença, a pensar no Destino, na sua vida, nas idéias e mais que tudo nas suas desilusões.

Entretanto, a revolta na baía chegava ao fim; toda a gente já pressentia isso e queria esse alívio.

O almirante e Albernaz, ambos pelos mesmos motivos, observavam esse fim com tristeza. O primeiro via fugir o seu sonho de comandar uma esquadra e a conseqüente volta para o quadro; e o general sentia perder a sua comissão, cujos rendimentos faziam de forma tão notável melhorar a situação da família.

Naquela manhã, bem cedo, Dona Maricota acordara o marido:

-Chico, levanta-te! Olha que tens que ir à missa do Senador Clarimundo...

Ouvindo a recomendação da mulher, Albernaz ergueu-se logo do leito. Era preciso não faltar. A sua presença se impunha e significava muito. Clarimundo fora um republicano histórico, agitador, tribuno temido, no tempo do Império; após a República, porém, não apresentara aos seus pares do Senado nada de útil e benfazejo. Embora assim, a sua influência ficara sendo grande; e, com diversos outros, era chamado patriarca da República. Há nos próceres republicanos uma necessidade extraordinária de serem gloriosos e não esquecidos pelo futuro, a que eles se recomendam com teimoso interesse.

Clarimundo era um desses próceres e, durante a comoção, não se sabia bem por quê, o seu prestígio cresceu e já se falava nele para substituir o marechal. Albernaz conhecera-o vagamente, mas assistir a sua missa era quase uma afirmação política.

A dor da morte da filha já se esvaíra muito na sua memória. O que o fazia sofrer era aquela semivida da moça, mergulhada na loucura e na moléstia. A morte tem a virtude de ser brusca, de chocar, mas não corroer, como essas moléstias duradouras nas pessoas amadas; passado que é o choque, vai ficando em nós uma suave recordação do ente querido, uma boa fisionomia sempre presente aos nossos olhos.

Dava-se isso com Albernaz e a sua satisfação de viver e a sua jovialidade natural foram voltando insensivelmente.

Obediente à mulher, preparou-se, vestiu-se e saiu. Conquanto se estivesse ainda em plena revolta, esses ofícios fúnebres se faziam nas igrejas do centro da cidade. O general chegou a tempo e à hora. Havia uniformes e cartolas e todos se comprimiam para assinar as listas de presença. Não tanto que quisessem atestar à família do morto esse ato delicado; dominava-os, além disso, a esperança de ter os nomes nos jornais.

Albernaz não deixou de atirar-se também a uma das listas que andavam pelas mesas da sacristia; e, quando ia assinar, alguém lhe falou. Era o almirante. A missa ia começar, mas ambos evitaram entrar na nave cheia, e ficaram a um vão da janela, na sacristia, conversando.

-Então acaba breve, hein?

-Dizem que a esquadra já saiu de Pernambuco.

Fora Caldas quem falara primeiro e a resposta do general fê-lo sorrir irônico dizendo:

-Enfim...

-A baía está cercada de canhões, continuou o general, após uma pausa, e o marechal vai intimá-los a renderem-se.

-Já era tempo, fez Caldas... Comigo, a cousa já estava acabada... levar quase sete meses para dar cabo de uns calhambeques!...

-Você exagera, Caldas; a cousa não era tão fácil assim... E o mar?

-Que fez, a esquadra tanto tempo no Recife, você não me dirá? Ah! Se fosse com este seu criado, tinha logo partido e atacado... Sou pelas decisões prontas...

O padre, no interior da igreja, continuava a pedir a Deus repouso para a alma do Senador Clarimundo. O místico cheiro de incenso vinha até eles e o votivo perfume, votivo ao Deus da paz e da bondade, não os demovia dos seus pensamentos guerreiros.

-Entre nós, aduziu Caldas, não há mais gente que preste... Isto é um país perdido, acaba colônia inglesa...

Coçou nervoso um dos favoritos e esteve um instante a olhar o ladrilho do chão. Albernaz avançou, meio sarcástico:

-Agora não; agora a autoridade está prestigiada, consolidada, e uma era de progresso vai abrir-se para o Brasil.

-Qual o quê! Onde é que você viu um governo...

-Mais baixo, Caldas!

-... onde é que se viu um governo que não aproveita as aptidões, abandona-as, deixa-as por aí vegetar?... Dá-se o mesmo com as nossas riquezas naturais: jazem por aí à toa!

A sineta soou e olharam um pouco a nave cheia. Pela porta, via-se uma porção de homens, todos de negro, ajoelhados, contritos, batendo nos peitos, a confessar de si para si: mea culpa, mea maxima culpa...

Uma réstia de sol coava-se por uma das aberturas do alto e resplandecia sobre algumas cabeças.

Insensivelmente, os dous, na sacristia, levaram a mão ao peito e confessaram também: mea culpa, mea maxima culpa...

A missa veio a acabar e ambos entraram para o abraço da pragmática. A nave rescendia a incenso e tinha um aspecto tranqüilo de imortalidade.

Todos tinham um grande ar de compunção: amigos, parentes, conhecidos e desconhecidos pareciam sofrer igualmente. Albernaz e Caldas, logo que penetraram no corpo da igreja, apanharam no ar um sentimento profundo e afivelaram-no ao rosto.

Genelício também viera; ele tinha o vício das missas das pessoas importantes, dos cartões de pêsames, dos cumprimentos em dias de aniversário. Temendo que a memória não lhe ajudasse, possuía um caderninho onde as datas aniversárias estavam assentadas e as residências também. O índice era organizado com muito cuidado. Não havia sogra, prima, tia, cunhada, de homem importante que, em dia de aniversário, não recebesse os seus parabéns, e, por morte, não o levasse à igreja em missa de sétimo dia.

O seu traje de luto era de pano grosso, pesado; e, olhando-o, lembrava-nos logo de um castigo dantesco.

Na rua, Genelício escovava a cartola com a manga da sobrecasaca e dizia ao sogro e ao almirante:

-A cousa está pra acabar!... Breve...

-E se resistirem? perguntou o general.

-Qual! Não resistem. Corre que já propuseram rendição... É preciso arranjar uma manifestação ao marechal...

-Não acredito, fez o almirante. Conheço muito o Saldanha, é orgulhoso e não se entrega assim...

Genelício ficou um pouco assustado com a entonação da voz do seu parente; teve medo que ele falasse mais alto, desse na vista e o comprometesse. Calou-se; Albernaz, porém, avançou:

-Não há orgulho que resista a uma esquadra mais forte.

-Forte! Uns calhambeques, homem!

Caldas continha a custo a fúria que lhe ia n'alma. O céu estava azul e calmo. Havia nele nuvens brancas, leves, esgarçadas, que se moviam lentamente, como velas, naquele mar infinito. Genelício olhou-o um pouco e aconselhou:

-Almirante não fale assim... Olhe que...

-Qual! Não tenho medo... Porcarias!...

-Bom, fez Genelício, eu tenho que ir à Rua Primeiro de Março e...

Despediu-se e saiu com o seu traje de chumbo, curvado, olhando o chão com o seu pince-nez azulado, palmilhando a rua com passo miúdo e cauteloso.

Albernaz e Caldas ainda estiveram conversando um tempo e se despediram sempre amigos, cada um com o seu desgosto e a sua decepção.

Tinham razão: a revolta veio a acabar daí a dias. A esquadra legal entrou; os oficiais revoltosos se refugiaram nos navios de guerra portugueses e o Marechal Floriano ficou senhor da baía.

No dia da entrada, acreditando que houvesse canhoneio, uma grande parte da população abandonou a cidade, refugiando-se nos subúrbios, por baixo das árvores, na casa de amigos ou nos galpões construídos adrede pelo Estado.

Era de ver o terror que se estampava naquelas fisionomias, a ânsia e a angústia também. Levavam trouxas, samburás, pequenas malas; crianças de peito, a chorar, o papagaio querido, o cachorro de estimação, o passarinho que de há muito quebrava a tristeza de uma casa pobre.

O que mais metia medo era o famoso canhão de dinamite, do «Niterói», uma espalhafatosa invenção americana, instrumento terrível, capaz de causar terremotos e de abalar os fundamentos das montanhas graníticas do Rio.

As crianças e as mulheres, mesmo fora do alcance de seu poder, temiam ouvir o seu estrondo; entretanto, esse fantasma yankee, esse pesadelo, essa quase força da natureza, foi morrer abandonado num cais, desprezado e inofensivo.

O fim do levante foi um alívio; a cousa já estava ficando monótona e o marechal ganhou feições sobre-humanas com a vitória.

Quaresma teve alta por esse tempo; e uma ala de seu batalhão foi destacada para guarnecer a ilha das Enxadas. Inocêncio Bustamente continuava a superintender o corpo com muito zelo, do interior do seu gabinete, na estalagem condenada que lhe servia de quartel. A escrituração estava em dia e era feita com a melhor letra.

Policarpo aceitou com repugnância o papel de carcereiro, pois na ilha das Enxadas estavam depositados os marinheiros prisioneiros. Os seus tormentos d'alma mais cresceram com o exercício de tal função. Quase os não olhava; tinha vexame, piedade e parecia-lhe que dentre eles um conhecia o segredo de sua consciência.

De resto, todo o sistema de idéias que o fizera meter-se na guerra civil se tinha desmoronado. Não encontrara o Sully e muito menos o Henrique IV. Sentia também que o seu pensamento motriz não residia em nenhuma das pessoas que encontrara. Todos tinham vindo ou com pueris pensamentos políticos, ou por interesse; nada de superior os animava. Mesmo entre os moços, que eram muitos, se não havia baixo interesse, existia uma adoração fetíchica pela forma republicana, um exagero das virtudes dela, um pendor para o despotismo que os seus estudos e meditações não podiam achar justo. Era grande a sua desilusão.

Os prisioneiros se amontoavam nas antigas salas de aulas e alojamentos dos aspirantes. Havia simples marinheiros; havia inferiores; havia escreventes e operários de bordo. Brancos, pretos, mulatos, caboclos, gente de todas as cores e todos os sentimentos, gente que se tinha metido em tal aventura pelo hábito de obedecer, gente inteiramente estranha à questão em debate, gente arrancada à força aos lares ou à calaçaria das ruas, pequeninos, tenros, ou que se haviam alistado por miséria; gente ignara, simples, às vezes cruel e pervesa como crianças inconscientes; às vezes, boa e dócil como um cordeiro, mas, enfim, gente sem responsabilidade, sem anseio político, sem vontade própria, simples autômatos nas mãos dos chefes e superiores que a tinham abandonado à mercê do vencedor.

De tarde, ele ficava a passear, olhando o mar. A viração soprava ainda e as gaivotas continuavam a pescar. Os barcos passavam. Ora eram lanchas fumarentas que lá iam para o fundo da baía; ora pequenos botes ou canoas, roçando carinhosamente a superfície das águas, pendendo para lá e para cá, como se as suas alvas velas enfunadas quisessem afagar a espelhenta superfície do abismo. Os Órgãos vinham suavemente morrendo na violeta macia; e o resto era azul, um azul imaterial que inebriava, embriagava, como um licor capitoso.

Ficava assim um tempo longo, a ver, e quando se voltava, olhava a cidade que entrava na sombra, aos beijos sangrentos do ocaso.

A noite chegava e Quaresma continuava a passear na borda do mar, meditando, pensando, sofrendo com aquelas lembranças de ódios, de sangueiras e ferocidade.

A sociedade e a vida pareceram-lhe cousas horrorosas, e imaginou que do exemplo delas vinham os crimes que aquela punia, castigava e procurava restringir. Eram negras e desesperadas, as suas idéias; muita vez julgou que delirava.

E então se lamentava por estar sozinho, por não ter um companheiro com quem conversar, que lhe fizesse fugir àqueles tristes pensamentos que o assediavam e se estavam transformando em obsessão.

Ricardo estava de guarnição na ilha das Cobras; e, mesmo que ali estivesse, os rigores da disciplina não lhe permitiriam uma conversa mais amigável. Vinha a noite inteiramente, e o silêncio e a treva envolviam tudo.

Quaresma ainda ficava horas ao ar livre a pensar, olhando o fundo da baía, onde quase não havia luzes que interrompessem a continuidade do negror noturno.

Fixava bem os olhos para lá, como se os quisesse habituar a penetrar nas cousas indecifráveis e adivinhar dentro da sombra negra a forma das montanhas, o recorte das ilhas que a noite tinha feito desaparecer.

Fatigado, ia dormir. Nem sempre dormia bem; tinha insônia e, se queria ler, a atenção recusava fixar-se e o pensamento vagabundava muito longe do livro.

Certa noite em que ia dormindo melhor, um inferior veio acordá-lo pela madrugada:

-Senhor major, está aí o «home» do Itamarati.

-Que homem?

-O oficial que vem buscar a turma do Boqueirão.

Sem atinar bem do que se tratava, levantou-se e foi ao encontro do visitante. O homem já estava no interior de um dos alojamentos. Uma escolta estava à porta. Seguiam-se algumas praças, das quais uma levava uma lanterna que derramava no salão uma fraca luzerna amarelada. A vasta sala estava cheia de corpos, deitados, seminus, e havia todo o íris das cores humanas. Uns roncavam, outros dormiam somente; e, quando Quaresma entrou, houve alguém que em sonho gemeu - ai! Cumprimentaram-se, Quaresma e o emissário do Itamarati, e nada disseram. Ambos tiveram medo de falar. O oficial despertou um dos prisioneiros e disse para as praças: «Levem este.»

Seguiu adiante e despertou outro: - «Onde você esteve?» «Eu» -respondeu o marinheiro- «na 'Guanabara'»... «Ah! patife» acudiu o homem do Itamarati... «Este também... Levem!»...

Os soldados condutores iam até à porta, deixavam o prisioneiro e voltavam.

O oficial passou por uma porção deles e não fez reparo; adiante, deu com um rapaz claro, franzino, que não dormia. Gritou então: «Levante-se!» O rapaz ergueu-se tremendo -«Onde esteve você?» perguntou -«Eu era enfermeiro», retrucou o rapaz. -«Que enfermeiro!» fez o emissário. «Levem este também»...

-Mas, «seu» tenente, deixe-me escrever à minha mãe, pediu o rapaz quase chorando.

-Que mãe! respondeu o homem do Itamarati. Siga! Vá!

E assim foi uma dúzia, escolhida a esmo, ao acaso, cercada pela escolta, a embarcar num batelão que uma lancha logo rebocou para fora das águas da ilha.

Quaresma não atinou de pronto com o sentido da cena e foi após o afastamento da lancha que ele encontrou uma explicação.

Não deixou de pensar então por que força misteriosa, por que injunção irônica ele se tinha misturado em tão tenebrosos acontecimentos, assistindo ao sinistro alicerçar do regime...

A embarcação não ia longe. O mar gemia demoradamente de encontro às pedras do cais. A esteira da embarcação estrelejava fosforescente. No alto, num céu negro e profundo, as estrelas brilhavam serenamente.

A lancha desapareceu nas trevas do fundo da baía. Para onde ia? Para o Boqueirão...

A afilhada

Como lhe parecia ilógico com ele mesmo estar ali metido naquele estreito calabouço. Pois ele, o Quaresma plácido, o Quaresma de tão profundos pensamentos patrióticos, merecia aquele triste fim? De que maneira sorrateira o Destino o arrastara até ali, sem que ele pudesse pressentir o seu extravagante propósito, tão aparentemente sem relação com o resto da sua vida? Teria sido ele com os seus atos passados, com as suas ações encadeadas no tempo, que fizera com que aquele velho deus docilmente o trouxesse até à execução de tal desígnio? Ou teriam sido os fatos externos que venceram a ele, Quaresma, e fizeram-no escravo da sentença da onipotente divindade? Ele não sabia, e, quando teimava em pensar, as duas cousas se baralhavam, se emaranhavam e a conclusão certa e exata lhe fugia.

Não estava ali há muitas horas. Fora preso pela manhã, logo ao erguer-se da cama; e, pelo cálculo aproximado do tempo, pois estava sem relógio e mesmo se o tivesse não poderia consultá-lo à fraca luz da masmorra, imaginava podiam ser onze horas.

Por que estava preso? Ao certo não sabia; o oficial que o conduzira nada lhe quisera dizer; e, desde que saíra da ilha das Enxadas para a das Cobras, não trocara palavra com ninguém, não vira nenhum conhecido no caminho, nem o próprio Ricardo que lhe podia, com um olhar, com um gesto, trazer sossego às suas dúvidas. Entretanto, ele atribuía a prisão à carta que escrevera ao presidente, protestando contra a cena que presenciara na véspera.

Não se pudera conter. Aquela leva de desgraçados a sair assim, a desoras, escolhidos a esmo, para uma carniçaria distante, falara fundo a todos os seus sentimentos; pusera diante dos seus olhos todos os seus princípios morais; desafiara a sua coragem moral e a sua solidariedade humana; e ele escrevera a carta com veemência, com paixão, indignado. Nada omitiu do seu pensamento; falou claro, franca e nitidamente.

Devia ser por isso que ele estava ali naquela masmorra, engaiolado, trancafiado, isolado dos seus semelhantes como uma fera, como um criminoso, sepultado na treva, sofrendo umidade, misturado com os seus detritos, quase sem comer... Como acabarei? Como acabarei? E a pergunta lhe vinha, no meio da revoada de pensamentos que aquela angústia provocava pensar. Não havia base para qualquer hipótese. Era de conduta tão irregular e incerta o Governo que tudo ele podia esperar: a liberdade ou a morte, mais esta que aquela.

O tempo estava de morte, de carnificina; todos tinham sede de matar, para afirmar mais a vitória e senti-la bem na consciência cousa sua, própria, e altamente honrosa.

Iria morrer, quem sabe se naquela noite mesmo? E que tinha ele feito de sua vida? Nada. Levara toda ela atrás da miragem de estudar a pátria, por amá-la e querê-la muito, no intuito de contribuir para a sua felicidade e prosperidade. Gastara sua mocidade nisso, a sua virilidade também; e, agora que estava na velhice, como ela o recompensava, como ela o premiava, como ela o condecorava? Matando-o. E o que não deixara de ver, de gozar, de fruir, na sua vida? Tudo. Não brincara, não pandegara, não amara -todo esse lado da existência que parece fugir um pouco à sua tristeza necessária, ele não vira, ele não provara, ele não experimentara.

Desde dezoito anos que o tal patriotismo lhe absorvia e por ele fizera a tolice de estudar inutilidades. Que lhe importavam os rios? Eram grandes? Pois que fossem... Em que lhe contribuiria para a felicidade saber o nome dos heróis do Brasil? Em nada... O importante é que ele tivesse sido feliz. Foi? Não. Lembrou-se das suas cousas de tupi, do folk-lore, das suas tentativas agrícolas... Restava disso tudo em sua alma uma satisfação? Nenhuma! Nenhuma!

O tupi encontrou a incredulidade geral, o riso, a mofa, o escárnio; e levou-o à loucura. Uma decepção. E a agricultura? Nada. As terras não eram ferazes e ela não era fácil como diziam os livros. Outra decepção. E, quando o seu patriotismo se fizera combatente, o que achara? Decepções. Onde estava a doçura de nossa gente? Pois ele não a viu combater como feras? Pois não a via matar prisioneiros, inúmeros? Outra decepção. A sua vida era uma decepção, uma série, melhor, um encadeamento de decepções.

A pátria que quisera ter era um mito; era um fantasma criado por ele no silêncio do seu gabinete. Nem a física, nem a moral, nem a intelectual, nem a política que julgava existir, havia. A que existia de fato era a do Tenente Antonino, a do Doutor Campos, a do homem do Itamarati.

E, bem pensando, mesmo na sua pureza, o que vinha a ser a Pátria? Não teria levado toda a sua vida norteado por uma ilusão, por uma idéia a menos, sem base, sem apoio, por um Deus ou uma deusa cujo império se esvaía? Não sabia que essa idéia nascera da amplificação da crendice dos povos greco-romanos de que os ancestrais mortos continuariam a viver como sombras e era preciso alimentá-las para que eles não perseguissem os descendentes? Lembrou-se do seu Fustel de Coulanges... Lembrou-se de que essa noção nada é para a Menenanã, para tantas pessoas... Pareceu-lhe que essa idéia como que fora explorada pelos conquistadores por instantes sabedores das nossas subserviências psicológicas, no intuito de servir às suas próprias ambições.

Reviu a história; viu as mutilações, os acréscimos em todos os países históricos e perguntou de si para si: como um homem que vivesse quatro séculos, sendo francês, inglês, italiano, alemão, podia sentir a Pátria?

Uma hora, para o francês, o Franco-Condado era terra dos seus avós, outra não era; num dado momento, a Alsácia não era, depois era e afinal não vinha a ser.

Nós mesmos não tivemos a Cisplatina e não a perdemos; e, porventura, sentimos que haja lá manes dos nossos avós e por isso sofremos qualquer mágoa?

Certamente era uma noção sem consistência racional e precisava ser revista.

Mas, como é que ele tão sereno, tão lúcido, empregara sua vida, gastara o seu tempo, envelhecera atrás de tal quimera? Como é que não viu nitidamente a realidade, não a pressentiu logo e se deixou enganar por um falaz ídolo, absorver-se nele, dar-lhe em holocausto toda a sua existência? Foi o seu isolamento, o seu esquecimento de si mesmo; e assim é que ia para a cova, sem deixar traço seu, sem um filho, sem um amor, sem um beijo mais quente, sem nenhum mesmo, e sem sequer uma asneira!

Nada deixava que afirmasse a sua passagem e a terra não lhe dera nada de saboroso.

Contudo, quem sabe se os outros que lhe seguissem as pegadas não seriam mais felizes? E logo respondeu a si mesmo: mas como? Se não se fizera comunicar, se nada dissera e não prendera o seu sonho, dando-lhe corpo e substância?

E esse seguimento adiantaria alguma coisa? E essa continuidade traria enfim para a terra alguma felicidade? Há quantos anos vidas mais valiosas que a dele se vinham oferecendo, sacrificando e as cousas ficaram na mesma, a terra na mesma miséria, na mesma opressão, na mesma tristeza.

E ele se lembrava que há bem cem anos, ali, naquele mesmo lugar onde estava, talvez naquela mesma prisão, homens generosos e ilustres estiveram presos por quererem melhorar o estado de cousas de seu tempo. Talvez só tivessem pensado, mas sofreram pelo seu pensamento. Tinha havido vantagem? As condições gerais tinham melhorado? Aparentemente sim; mas, bem examinado, não.

Aqueles homens, acusados de crime tão nefando em face da legislação da época, tinham levado dous anos a ser julgados; e ele, que não tinha crime algum, nem era ouvido, nem era julgado: seria simplesmente executado!

Fora bom, fora generoso, fora honesto, fora virtuoso -ele que fora tudo isso, ia para a cova sem acompanhamento de um parente, de um amigo, de um camarada...

Onde estariam eles? Sobre o Ricardo Coração dos Outros, tão simples, e tão inocente na sua mania de violão, ele não poria mais os olhos? Era tão bom que o pudesse, para mandar à sua irmã o último recado, ao preto Anastácio um adeus, à sua afilhada um abraço! Nunca mais os veria, nunca!

E ele chorou um pouco.

Quaresma, porém, enganava-se em parte. Ricardo soubera de sua prisão e procurava soltá-lo. Teve notícia do exato motivo dela; mas não se intimidou. Sabia perfeitamente que corria grande risco, pois a indignação no palácio contra Quaresma fora geral. A vitória tinha feito os vitoriosos inclementes e ferozes, e aquele protesto soou entre eles como um desejo de diminuir o valor das vantagens alcançadas. Não havia mais piedade, não havia mais simpatia, nem respeito pela vida humana; o que era necessário era dar o exemplo de um massacre à turca, porém clandestino, para que jamais o poder constituído fosse atacado ou mesmo discutido. Era a filosofia social da época, com forças de religião, com os seus fanáticos, com os seus sacerdotes e pregadores, e ela agia com a maldade de uma crença forte, sobre a qual fizéssemos repousar a felicidade de muitos.

Ricardo, entretanto, não se amedrontou; procurou influências de amigos. Ao entrar no Largo de São Francisco encontrou Genelício. Vinha da missa da irmã da sogra do Deputado Castro. Como sempre, trajava uma pesada sobrecasaca preta que parecia de chumbo. Já estava subdiretor e o seu trabalho era agora imaginar meios e modos de ser diretor. A cousa era difícil; mas trabalhava num livro: Os Tribunais de Contas nos Países Asiáticos - o qual, demonstrando uma erudição superior, talvez lhe levasse ao alto lugar cobiçado.

Vendo-o, Ricardo não se deteve. Correu-lhe ao encalço e falou-lhe:

-Doutor, Vossa Excelência dá licença que lhe dê uma palavra?

Genelício perfilou-se todo e, como tivesse péssima memória das fisionomias humildes, perguntou com solenidade e arrogância:

-Que deseja, camarada?

Coração dos Outros estava com a sua farda do «Cruzeiro do Sul» e não ficava bem a Genelício dar-se como conhecido de soldado. O trovador julgou-o mesmo esquecido e indagou ingenuamente:

-Não me conhece mais, doutor?

Genelício fechou um pouco os olhos por detrás do pince-nez azulado e disse secamente:

-Não.

-Eu, fez com humildade Ricardo, sou Ricardo Coração dos Outros, que cantou no seu casamento.

Genelício não sorriu, não deu mostras de alegria e limitou-se:

-Ah! É o senhor! Bem: que deseja?

-O senhor não sabe que o major Quaresma está preso?

-Quem é?

-Aquele que foi vizinho do seu sogro.

-Aquele maluco... Ahn!... E daí?

-Eu queria que o senhor se interessasse...

-Não me meto nessas cousas, meu amigo. O governo tem sempre razão. Passe bem.

E Genelício seguiu com o seu passo cauteloso de quem poupa as solas das botas, enquanto Ricardo ficava de pé a olhar o largo, a gente que passava, a estátua imóvel, as casas feias, a igreja... Tudo lhe pareceu hostil, mau ou indiferente; aquelas caras de homens tinham cataduras de feras e ele quis por um momento chorar de desespero por não poder salvar o amigo.

Lembrou-se, porém, de Albernaz, e correu a procurá-lo. Não era longe, mas o general ainda não tinha chegado. Ao fim de uma hora o general chegou e, dando com Ricardo, perguntou:

-Que há?

O trovador, bastante emocionado, explicou-lhe com voz dorida todo o fato. Albernaz concertou o pince-nez, ajeitou bem o trancelim de ouro na orelha e disse com doçura:

-Meu filho, eu não posso... Você sabe; sou governista e parece, se eu for pedir por um preso, que já não o sou bastante... Sinto muito, mas... que se há de fazer? Paciência.

E entrou para o seu gabinete prazenteiro, muito seguro de si, dentro do seu plácido uniforme de general.

Os oficiais continuavam a entrar e a sair; as campainhas soavam; os contínuos iam e vinham; e Ricardo procurava entre todas aquelas fisionomias uma que lhe pudesse valer. Não havia e ele desesperava. Mas quem havia de ser? Quem? Lembrou-se: o comandante; e foi ter com o Coronel Bustamante, na velha estalagem que servia de quartel ao garboso «Cruzeiro do Sul».

O batalhão ainda continuava em pé de guerra. Embora terminada a revolta no porto do Rio de Janeiro era preciso mandar forças para o Sul; de forma que os batalhões não tinham sido dissolvidos e um dos apontados para partir era o «Cruzeiro».

O alferes coxo, no ensaboado pátio da antiga estalagem, continuava na sua faina de instrutor dos novos recrutas. Om - brôôô... armas! Mei - ãã volta!

Ricardo entrou, subiu rapidamente a oscilante escada do velho cortiço e logo que chegou ao cubículo do comandante, gritou: «Com licença, comandante!»

Bustamante andava de mau humor. Aquele negócio de partir para o Paraná não lhe agradava. Como é que havia de superintender a escrita do batalhão, no fervor de batalhas, nas desordens de marchas e contramarchas? Isso era uma tolice do comandante marchar; o chefe devia ficar a resguardo, para providenciar e dirigir a escrituração.

Ele pensava nessas cousas, quando Ricardo pediu licença.

-Entre, disse ele.

O bravo coronel coçava a grande barba mosaica, tinha o dólmã desabotoado e acabava de calçar um dos pés de botina, para com mais decência receber o inferior.

Ricardo expôs o seu pedido e esperou com paciência a resposta, que custou a vir. Por fim, Inocêncio disse, sacudindo a cabeça e olhando o inferior cheio de severidade:

-Vai-te embora, senão mando-te prender! Já!

E apontou com o dedo a porta da saída num gesto marcial e enérgico. O cabo não se demorou mais. No pátio o instrutor coxo, veterano do Paraguai, continuava com solenidade a encher a arruinada estalagem com as suas vozes de comando: Om-brôôô... armas! Meia-ãã... volta... volver!

Ricardo veio andando triste e desalentado. O mundo lhe parecia vazio de afeto e de amor. Ele que sempre decantara nas suas modinhas a dedicação, o amor, as simpatias, via agora que tais sentimentos não existiam. Tinha marchado atrás de cousas fora da realidade, de quimeras. Olhou o céu alto. Estava tranqüilo e calmo. Olhou as árvores. As palmeiras cresciam com orgulho e titanicamente pretendiam atingir o céu. Olhou as casas, as igrejas, os palácios e lembrou-se das guerras, do sangue, das dores que tudo aquilo custara. E era assim que se fazia a vida, a história e o heroísmo: com violência sobre os outros, com opressões e sofrimentos.

Logo, porém, recordou que era preciso salvar o amigo e que era necessário dar mais uns passos. Quem poderia? Consultou sua memória. Viu um, viu outro e por fim lembrou-se da afilhada de Quaresma, e foi procurá-la na Real Grandeza.

Chegou, narrou-lhe o fato e as suas sinistras apreensões. Ela estava só, pois o marido cada vez mais trabalhava para aproveitar os despojos da vitória; não perdia um minuto, andando atrás de um e de outro.

Olga lembrou-se bem do padrinho, do seu eterno sonhar, da sua ternura, da tenacidade que punha em seguir as suas idéias, da sua candura de donzela romântica...

Durante um instante uma grande pena tomou-a toda inteira e tirou-lhe a vontade de agir. Pareceu-lhe que era bastante a sua piedade e ela ia de algum modo dar lenitivo ao sofrimento do padrinho; mas bem cedo o viu ensangüentado - ele, tão generoso, ele, tão bom, e pensou em salvá-lo.

-Mas que fazer, meu caro Senhor Ricardo, que fazer? Eu não conheço ninguém... Eu não tenho relações... Minhas amigas... A Alice, a mulher do Doutor Brandão, está fora... A Cassilda, a filha do Castrioto, não pode... Não sei, meu Deus!

E acentuou estas últimas palavras com grande e lancinante desespero. Os dous ficaram calados. A moça, que estava sentada, tomou a cabeça entre as mãos e as suas unhas longas e aperoladas engastaram-se nos seus cabelos negros. Ricardo estava de pé e aparvalhado.

-Que hei de fazer, meu Deus? repetiu ela.

Pela primeira vez, ela sentiu que a vida tinha cousas desesperadoras. Possuía a mais forte disposição de salvar seu padrinho; faria sacrifício de tudo, mas era impossível, impossível! Não havia um meio; não havia um caminho. Ele tinha que ir para o posto de suplício, tinha que subir o seu Calvário, sem esperança de ressurreição.

-Talvez seu marido, disse Ricardo.

Pensou um pouco, demorou-se mais no exame do caráter do esposo; mas, em breve, viu bem que o seu egoísmo, a sua ambição e sua ferocidade interesseira não permitiriam que ele desse o mínimo passo.

-Qual, esse...

Ricardo não sabia o que aconselhá-la e olhava sem pensamentos os móveis e a montanha negra e alta que se avistava da sala onde estavam. Queria encontrar um alvitre, um conselho; mas nada!

A moça continuava a cravar os dedos nos seus cabelos negros e a olhar a mesa em que repousavam os seus cotovelos. O silêncio era augusto.

Num dado momento, Ricardo teve uma grande alegria no olhar e disse:

-Se a senhora fosse lá...

Ela levantou a cabeça; os seus olhos se dilataram de espanto e o rosto lhe ficou rígido. Pensou um pouco, um nada, e falou com firmeza:

-Vou.

Ricardo ficou só e sentou-se. Olga foi vestir-se.

Ele então pensou com admiração naquela moça que por simples amizade se dava a tão arriscado sacrifício, que tinha a alma tão ao alcance dela mesma e a sentiu bem longe desse nosso mundo, deste nosso egoísmo, dessa nossa baixeza e cobriu a sua imagem com um grande olhar de reconhecimento.

Não tardou que ela ficasse pronta e ainda abotoava as luvas, na sala de jantar, quando o marido entrou. Vinha radiante, com os seus grandes bigodes e o seu rosto redondo cheio de satisfação de si mesmo. Nem fez menção de ter visto Ricardo e foi logo direto à mulher:

-Vais sair?

Ela, afogueada pela ânsia desesperada de salvar Quaresma, disse com certa vivacidade:

-Vou.

Armando ficou admirado de vê-la falar daquele modo. Voltou-se um instante para Ricardo, quis interrogá-lo, mas logo, dirigindo-se à mulher, perguntou com autoridade:

-Onde vais?

A mulher não lhe respondeu logo e, por sua vez, o doutor interrogou o trovador:

-Que faz o senhor aqui?

Coração dos Outros não teve ânimo de responder; adivinhava uma cena violenta que ele teria querido evitar, mas Olga adiantou-se:

-Vai acompanhar-me ao Itamarati, para salvar da morte meu padrinho. Já sabe?

O marido pareceu acalmar-se. Acreditou que, com meios suasórios, poderia evitar que a mulher desse passo tão perigoso para os seus interesses e ambições. Falou docemente:

-Fazes mal.

-Por quê? perguntou ela com calor.

-Vais comprometer-se. Sabes que...

Ela não lhe respondeu logo e mirou-o um instante com os seus grande olhos cheios de escárnio; mirou-o um, dous minutos; depois, riu-se um pouco e disse:

-É isto! «Eu», porque «eu», porque «eu», é só «eu», para aqui, «eu»para ali... Não pensas noutra cousa... A vida é feita para ti, todos só devem viver para ti... Muito engraçado! De forma que eu (agora digo «eu»também) não tenho direito de me sacrificar, de provar a minha amizade, de ter na minha vida um traço superior? É interessante! Não sou nada, nada! Sou alguma cousa como um móvel, um adorno, não tenho relações, não tenho amizades, não tenho caráter? Ora!...

Ela falava, ora vagarosa e irônica, ora rapidamente e apaixonada; e o marido tinha diante de suas palavras um grande espanto. Ele vivera sempre tão loge dela que não a julgara nunca capaz de tais assomos. Então aquela menina? Então aquele bibelot? Quem lhe teria ensinado tais cousas? Quis desarmá-la com uma ironia e disse risonho:

-Está no teatro?

Ela lhe respondeu logo:

-Se é só no teatro que há grandes cousas, estou.

E acrescentava com força:

-É o que te digo: vou e vou, porque devo, porque quero, porque é do meu direito.

Apanhou a sombrinha, concertou o véu e saiu solene, firme, alta e nobre. O marido não sabia o que fazer. Ficou assombrado e assombrado e silencioso viu-a sair pela porta fora.

Em breve, estava no palácio da Rua Larga. Ricardo não entrou: deixou que a moça o fizesse e foi esperá-la no Campo de Sant'Anna.

Ela subiu. Havia um imenso burburinho, uma agitação de entradas e saídas. Toda a gente queria mostrar-se a Floriano, queria cumprimentá-lo, queria dar mostras de sua dedicação, provar os seus serviços, mostrando-se co-participante na sua vitória. Lançavam mão de todos os meios, de todos os planos, de todos os processos. O ditador tão acessível antes, agora se esquivava. Havia quem lhe quisesse beijar as mãos, como ao papa ou a um imperador; e ele já tinha nojo de tanta subserviência. O califa não se supunha sagrado e aborrecia-se.

Olga falou aos contínuos, pedindo ser recebida pelo marechal. Foi inútil. A muito custo conseguiu falar a um secretário ou ajudante-de-ordens. Quando ela lhe disse a que vinha, a fisionomia terrosa do homem tornou-se de oca e sob as suas pálpebras correu um firme e rápido lampejo de espada:

-Quem, Quaresma? disse ele. Um traidor! Um bandido!

Depois, arrependeu-se da veemência, fez com certa delicadeza:

-Não é possível, minha senhora. O marechal não a atenderá.

Ela nem lhe esperou o fim da frase. Ergueu-se orgulhosamente, deu-lhe as costas e teve vergonha de ter ido pedir, de ter descido do seu orgulho e ter enxovalhado a grandeza moral do padrinho com o seu pedido. Com tal gente, era melhor tê-lo deixado morrer só e heroicamente num ilhéu qualquer, mas levando para o túmulo inteiramente intacto o seu orgulho, a sua doçura, a sua personalidade moral, sem a mácula de um empenho que diminuísse a injustiça de sua morte, que de algum modo fizesse crer aos seus algozes que eles tinham direito de matá-lo.

Saiu e andou. Olhou o céu, os ares, as árvores de Santa Teresa, e se lembrou que, por estas terras, já tinham errado tribos selvagens, das quais um dos chefes se orgulhava de ter no sangue o sangue de dez mil inimigos. Fora há quatro séculos. Olhou de novo o céu, os ares, as árvores de Santa Teresa, as casas, as igrejas: viu os bondes passarem; uma locomotiva apitou; um carro, puxado por uma linda parelha, atravessou-lhe na frente, quando já a entrar do campo... Tinha havido grande e inúmeras modificações. Que fora aquele parque? Talvez um charco. Tinha havido grandes modificações nos aspectos, na fisionomia da terra, talvez no clima... Esperemos mais, pensou ela; e seguiu serenamente ao encontro de Ricardo Coração dos Outros.

Todos os Santos (Rio de Janeiro), janeiro - março de 1911.