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Canudos: antecedentes

Canudos, velha fazenda de gado à beira do Vaza-Barris, era, em 1890, uma tapera de cerca de cinqüenta capuabas de pau-a-pique.

Já em 1876, segundo o testemunho de um sacerdote, que ali fora, como tantos outros, e nomeadamente o vigário de Cumbe, em visita espiritual às gentes de todo despeadas da terra, lá se aglomerava, agregada à fazenda então ainda florescente, população suspeita e ociosa, «armada até aos dentes» e «cuja ocupação, quase exclusiva, consistia em beber aguardente e pitar uns esquisitos cachimbos de barro em canudos de metro de extensão» de tubos naturalmente fornecidos pelas solanáceas (canudos-de-pito), vicejantes em grande cópia à beira do rio.

Assim, antes da vinda do Conselheiro, já o lugarejo obscuro -e o seu nome claramente se explica- tinha, como a maioria dos que jazem desconhecidos pelos nossos sertões, muitos germens da desordem e do crime. Estava, porém, em plena decadência quando lá chegou aquele em 1893; tijupares em abandono; vazios os pousos; e, no alto de um esporão da Favela, destelhada, reduzida às paredes exteriores, a antiga vivenda senhoril, em ruínas...

Data daquele ano a sua revivescência e crescimento rápido. O aldeamento efêmero dos matutos vadios, centralizado pela igreja velha, que já existia, ia transmudar-se, ampliando-se em pouco tempo, na Tróia de taipa dos jagunços.

Era o lugar sagrado, cingido de montanhas, onde não penetraria a ação do governo maldito.

A sua topografia interessante modelava-o ante a imaginação daquelas gentes simples como o primeiro degrau, amplíssimo e alto, para os céus...

Crescimento vertiginoso

Não surpreende que para lá convergissem, partindo de todos os pontos, turmas sucessivas de povoadores convergentes das vilas e povoados mais remotos.

Diz uma testemunha: «Alguns lugares desta comarca e de outras circunvizinhas, e até do Estado de Sergipe, ficaram desabitados, tal a aluvião de famílias que subiam para os Canudos, lugar escolhido por Antônio Conselheiro para o centro de suas operações. Causava dó verem-se expostos à venda nas feiras, extraordinária quantidade de gado cavalar, vacum, caprino, etc., além de outros objetos, por preços de nonada, como terrenos, casas, etc. O anelo extremo era vender, apurar algum dinheiro e ir reparti-lo com o Santo Conselheiro.»

Assim se mudavam os lares.

Inhambupe, Tucano, Cumbe, Itapicuru, Bom Conselho, Natuba, Maçacará, Monte Santo, Jeremoabo, Uauá, e demais lugares próximos; Entre Rios, Mundo Novo, Jacobina, Itabaiana e outros sítios remotos forneciam constantes contingentes. Os raros viajantes que se arriscavam a viagens naquele sertão topavam grupos sucessivos de fiéis que seguiam, ajoujados de fardos, carregando as mobílias toscas, as canastras e os oratórios, para o lugar eleito. Isoladas a princípio, essas turmas adunavam-se pelos caminhos, aliando-se a outras, chegando, afinal, conjuntas, a Canudos.

O arraial crescia vertiginosamente, coalhando as colinas.

A edificação rudimentar permitia à multidão sem lares fazer até doze casas por dia; -e, à medida que se formava, a tapera colossal parecia estereografar a feição moral da sociedade ali acoutada. Era a objetivação daquela insânia imensa. Documento iniludível permitindo o corpo de delito direto sobre os desmandos de um povo.

Aquilo se fazia a esmo, adoudadamente.

Aspecto original

A urbs monstruosa, de barro, definia bem a civitas sinistra do erro. O povoado novo surgia, dentro de algumas semanas, já feito ruínas. Nascia velho. Visto de longe, desdobrado pelos cômoros, atulhando as canhadas, cobrindo área enorme, truncado nas quebradas, revolto nos pendores -tinha o aspecto perfeito de uma cidade cujo solo houvesse sido sacudido e brutalmente dobrado por um terremoto.

Não se distinguiam as ruas. Substituía-as dédalo desesperador de becos estreitíssimos, mal separando o baralhamento caótico dos casebres feitos ao acaso, testadas volvidas para todos os pontos, cumeeiras, orientando-se para todos os rumos, como se tudo aquilo fosse construído, febrilmente, numa noite, por uma multidão de loucos...

Feitas de pau-a-pique e divididas em três compartimentos minúsculos, as casas eram paródia grosseira da antiga morada romana: um vestíbulo exíguo, um átrio servindo ao mesmo tempo de cozinha, sala de jantar e de recepção; e uma alcova lateral, furna escuríssima mal revelada por uma porta estreita e baixa. Cobertas de camadas espessas de vinte centímetros, de barro, sobre ramos de icó, lembravam as choupanas dos gauleses de César. Traíam a fase transitória entre a caverna primitiva e a casa. Se as edificações em suas modalidades evolutivas objetivam a personalidade humana, o casebre de teto de argila dos jagunços equiparado ao wigwam dos peles-vermelhas sugeria paralelo deplorável. O mesmo desconforto e, sobretudo, a mesma pobreza repugnante, traduzido de certo modo, mais do que a miséria do homem, a decrepitude da raça.

Quando o olhar se acomodava à penumbra daqueles cômodos exíguos, lobrigava, invariavelmente, trastes raros e grosseiros: um banco tosco; dous ou três banquinhos com a forma de escabelos; igual número de caixas de cedro, ou canastras; um jirau pendido do teto; e as redes. Eram toda a mobília. Nem camas, nem mesas. Pendurados aos cantos, viam-se insignificantes acessórios: o bogó ou borracha, espécie de balde de couro para o transporte de água; pares de caçuás (jacás de cipó) e os aiós, bolsa de caça, feita das fibras de caroá. Ao fundo do único quarto, um oratório tosco. Neste, copiando a mesma feição achamboada do conjunto, santos mal acabados, imagens de linhas duras, a objetivarem a religião mestiça em traços incisivos de manganosos: Santo Antônios proteiformes e africanizados, de aspecto bronco, de fetiches; Marias Santíssimas, feias como megeras...

Por fim as armas -a mesma revivescência de estádios remotos: o facão jacaré, de folha larga e forte; a parnaíba dos cangaceiros, longa como uma espada; o ferrão ou guiada, de três metros de comprido, sem a elegância das lanças, reproduzindo os piques antigos; os cacetes ocos e cheios pela metade de chumbo, pesadelos como montantes; as bestas e as espingardas.

Entre estas últimas, gradações completas, desde a de cano fino, carregada com escumilha, até à «legítima de Braga», cevada com chumbo grosso, ao trabuco brutal ao modo de uma colubrina portátil, capaz de arremessar calhaus e pontas de chifre, à lazarina ligeira, ou ao bacamarte de boca-de-sino.

Nada mais. De nada mais necessitava aquela gente. Canudos surgia com a feição média entre a de um acampamento de guerreiros e a de um vasto kraal africano. A ausência de ruas, as praças que, à parte a das igrejas, nada mais eram que o fundo comum dos quintais, e os casebres unidos, tornavam-no como vivenda única, amplíssima, estendida pelas colinas, e destinada a abrigar por pouco tempo o clã tumultuário de Antônio Conselheiro.

Sem a alvura reveladora das paredes caiadas e telhados encaliçados, a certa distância era invisível. Confundia-se com o próprio chão. Aparecia, de perto, de chofre, constrito numa volta do Vaza-Barris, que o limitava do levante ao sul abarcando-o.

Emoldurava-o uma natureza morta: paisagens tristes; colinas nuas, uniformes, prolongando-se, ondeantes, até às serraniasdistantes, sem uma nesga de mato; rasgadas de lascas de talcoxisto, mal revestidas, em raros pontos, de acervos de bromélias, encimadas, noutros, pelos cactos esguios e solitários. O monte da Favela, ao sul, empolava-se mais alto, tendo no sopé, fronteiro à praça, alguns pés de quixabeiras, agrupados em horto selvagem. À meia encosta via-se solitária, em ruínas, a antiga casa da fazenda...

A uma banda, perto e dominante, um contraforte, o morro dos Pelados, termina de chofre em barranca a prumo sobre o rio e este, dali por diante progredindo numa inflexão forte para montante, abarca o povoado em leito escavado e fundo, como um fosso. Ali vão ter quebradas de bordas a pique, abertas pelas erosões intensas por onde, no inverno, rolam acachoando afluentes efêmeros tendo os nomes falsos de rios: o Mucuim, o Umburanas, e outro, que sucessos ulteriores denominariam da «Providência».

Canudos, assim circunvalado quase todo pelo Vaza-Barris, embatia ao sul contra as vertentes da Favela e dominado no ocidente pelas lombas mais altas de flancos em escarpa em que se comprimia aquele nas enchentes, desatava-se para o levante segundo o expandir dos plainos ondulados. As montanhas longínquas fechavam-se em roda, formando, quase contínua, uma elipse de eixos dilatados. Feito postigos em baluarte desmedido, abriam-se, estreitas, as gargantas em que passavam os caminhos: o do Uauá, estrangulado entre os pendores fortes do Caipã; o de Jeremoabo, insinuando-se nos desfiladeiros de Cocorobó; o do Cambaio, em aclives, investindo com as vertentes do Calumbi; e o do Rosário.

Ora, por estas veredas, prendendo, no se ligarem a outras trilhas, o povoado nascente ao fundo dos sertões do Piauí, Ceará, Pernambuco e Sergipe -chegavam sucessivas caravanas de fiéis. Vinham de todos os pontos, carregando os haveres todos; e, transpostas as últimas voltas do caminho, quando divisavam o campanário humilde da antiga capela, caíam genuflexos sobre o chão aspérrimo. Estava atingido o termo da romagem. Estavam salvos da pavorosa hecatombe, que vaticinavam as profecias do evangelizador. Pisavam, afinal, a terra da promissão -Canaã sagrada, que o Bom Jesus isolara do resto do mundo por uma cintura de serras...

Chegavam, estropiados da jornada longa, mas felizes. Acampavam à gandaia pelo alto dos cômoros. À noite acendiam-se as fogueiras nos pousos dos peregrinos relentados. Uma faixa fulgurante enlaçava o arraial; e, uníssonas, entrecruzavam-se, ressoando nos pousos e nas casas, as vozes da multidão penitente, na melopéia plangente dos benditos.

Ao clarear da manhã entregavam-se à azáfama da construção dos casebres. Estes, a princípio apinhando-se próximos à depressão em que se erigia a primitiva igreja, e descendo desnivelados ao viés das encostas breves até ao rio, começavam a salpintar, esparsos, o terreno rugado, mais longe.

Construções ligeiras, distantes do núcleo compacto da casaria, pareciam obedecer ao traçado de um plano de defesa. Sucediam-se escalonadas, ladeando os caminhos. Marginavam o de Jeremoabo, erectas numa e outra margem do Vaza-Barris, para jusante, até Trabubu e o ribeirão de Macambira. Pontilhavam o do Rosário, transpondo o rio e contornando a Favela. Espalhavam-se pelos cerros, que se sucediam inúmeros segundo o rumo de Uauá. Inscritas em cercas impenetráveis de gravatás, plantados na borda de um fosso envolvente, cada uma era, do mesmo passo, um lar e um reduto. Dispunham-se formando linhas irregulares de baluartes.

Porque a cidade selvagem, desde o princípio, tinha em torno, acompanhando-a no crescimento rápido, um círculo formidável de trincheiras cavadas em todos os pendores, enfiando todas as veredas, planos de fogo volvidos, rasantes com o chão, para todos os rumos. Veladas por touceiras inextricáveis de macambiras ou lascas de pedra, não se revelavam à distância. Vindo do levante, o viajor que as abeirasse, ao divisar, esparsas sobre os cerros, as choupanas exíguas à maneira de guaritas, acreditaria topar uma rancharia esparsa de vaqueiros inofensivos. Atingia, de repente, a casaria compacta, surpreso, como se caísse numa tocaia.

Para quem viesse do sul, porém, pelo Rosário ou Calumbi, galgado o alto da Favela, ou as ladeiras fortes que se derivam para o Rio Sargento, o casario aparecia a um quilômetro, ao norte, esbatido num plano inferior, francamente exposto, de modo a se poder num lance único de vista aquilatar-lhe as condições de defesa.

Eram na aparência deploráveis. O arraial parecia disposto para o choque das cargas fulminantes, rolando impetuosas, com a força viva de uma queda, pelos aclives abruptos. O inimigo, livre de escaladas penosas, varejá-lo-ia em tiros mergulhantes. Podia assediá-lo todo, batendo todas as entradas, com uma bateria única.

Tinha, entretanto, condições táticas preexcelentes. Compreendera-as algum Vauban inculto...

Fechado ao sul pelo morro, descendo escancelado de gargantas até ao rio, fechavam-no, a oeste, uma muralha e um valo. De fato, infletindo naquele rumo, o Vaza-Barris, comprimido entre as últimas casas e as escarpas a pique dos morros sobranceiros, torcia para o norte feito um canyon fundo. A sua curva forte rodeava, circunvalando-a, a depressão em que se erigia o povoado, que se trancava a leste pelas colinas, a oeste e norte pelas ladeiras das terras mais altas, que dali se entumescem até aos contrafortes extremos do Cambaio e do Caipã; e ao sul pela montanha.

Canudos era uma tapera dentro de um furna. A praça das igrejas, rente ao rio, demarcava-lhe a área mais baixa. Dali, segundo um eixo orientado ao norte, se expandia alteando-se a pouco e pouco, em plano inclinado breve, feito um vale largo, em declive. Lá dentro se apertavam os casebres, atulhando toda a baixada, subindo, mais esparsos, pelas encostas de leste, transbordando, afinal, nas exíguas vivendas que vimos salpintando, raras, o alto dos cerros minados de trincheiras. A grei revoltosa -como se vê- não se ilhava em uma eminência, assoberbando os horizontes, a cavaleiro dos assaltos. Entocara-se. Naquela região belíssima, em que as linhas de cumeadas se rebatem no plano alto dos tabuleiros, escolhera precisamente o trecho que recorda uma vala comum enorme...

Regime da «urbs»

Lá se firmou logo um regime modelado pela religiosidade do apóstolo extravagante.

Jugulada pelo seu prestígio, a população tinha, engravescidas, todas as condições do estádio social inferior. Na falta da irmandade do sangue, a consangüinidade moral dera-lhe a forma exata de um clã, em que as leis eram o arbítrio do chefe e a justiça as suas decisões irrevogáveis. Canudos estereotipava o facies dúbio dos primeiros agrupamentos bárbaros.

O sertanejo simples transmudava-se, penetrando-o, no fanático destemeroso e bruto. Absorvia-o a psicose coletiva. E adotava, ao cabo, o nome até então consagrado aos turbulentos de feira, aos valentões das refregas eleitorais e saqueadores de cidades -jagunço.

População multiforme

De sorte que ao fim de algum tempo a população constituída dos mais díspares elementos, do crente fervoroso abdicando de si todas as comodidades da vida noutras paragens, ao bandido solto, que lá chegava de clavinote ao ombro em busca de novo campo de façanhas, se fez a comunidade homogênea e uniforme, massa inconsciente e bruta, crescendo sem evolver, sem órgãos e sem funções especializadas, pela só justaposição mecânica de levas sucessivas, à maneira de um polipeiro humano. É natural que absorvesse, intactas, todas as tendências do homem extraordinário do qual a aparência protéica -de santo exilado na terra, de fetiche de carne e osso e de bonzo claudicante- estava adrede talhada para reviver os estigmas degenerativos de três raças.

Aceitando, às cegas, tudo quanto lhe ensinara aquele; imersa de todo no sonho religioso; vivendo sob a preocupação doentia de outra vida, resumia o mundo na linha de serranias que a cingiam. Não cogitava de instituições garantidoras de um destino na terra.

Eram-lhes inúteis. Canudos era o cosmos.

E este mesmo transitório e breve: um ponto de passagem, uma escala terminal, de onde decampariam sem demora; o último pouso na travessia de um deserto -a Terra. Os jagunços errantes ali armavam pela derradeira vez as tendas, na romaria miraculosa para os céus...

Nada queriam desta vida. Por isto a propriedade tornou-se-lhes uma forma exagerada do coletivismo tribal dos beduínos: apropriação pessoal apenas de objetos móveis e das casas, comunidade absoluta da terra, das pastagens, dos rebanhos e dos escassos produtos das culturas, cujos donos recebiam exígua quota parte, revertendo o resto para a companhia. Os recém-vindos entregavam ao Conselheiro noventa e nove por cento do que traziam, incluindo os santos destinados ao santuário comum. Reputavam-se felizes com a migalha restante. Bastava-lhes de sobra. O profeta ensinara-lhes a temer o pecado mortal do bem-estar mais breve. Voluntários da miséria e da dor, eram venturosos na medida das provações sofridas. Viam-se bem, vendo-se em andrajos. Este desprendimento levado às últimas conseqüências, chegava a despi-los das belas qualidades morais, longamente apuradas na existência patriarcal dos sertões. Para Antônio Conselheiro -e neste ponto ele ainda copia velhos modelos históricos- a virtude era como que o reflexo superior da vaidade. Uma quase impiedade. A tentativa de enobrecer a existência na terra implicava de certo modo a indiferença pela felicidade sobrenatural iminente, o olvido do além maravilhoso anelado.

O seu senso moral deprimido só compreendia a posse deste pelo contraste das agruras suportadas.

De todas as páginas de catecismos que soletrara ficara-lhe preceito único:

Bem-aventurados os que sofrem...

A extrema dor era a extrema-unção. O sofrimento duro a absolvição plenária; a teriaga infalível para a peçonha dos maiores vícios.

Que os homens se desmandassem ou agissem virtuosamente -era questão somenos. Consentia de boa feição que errassem, mas que todas as impurezas, todas as escorralhas de uma vida infame, saíssem, afinal, gota a gota, nas lágrimas vertidas.

Ao saber de caso escandaloso em que a lubricidade de um devasso maculara incauta donzela teve, certa vez, uma frase ferozmente cínica, que os sertanejos repetiam depois sem lhe aquilatarem a torpeza:

«Seguiu o destino de todas: passou por baixo da árvore do bem e do mal» !


Não é para admirar que se esboçasse logo, em Canudos, a promiscuidade de um hetairismo infrene. Os filhos espúrios não tinham à fronte o labéu indelével da origem, a situação infamante dos bänklings entre os germanos. Eram legião.

Porque o dominador, se não estimulava, tolerava o amor livre. Nos conselhos diários não cogitava da vida conjugal, traçando normas aos casais ingênuos. E era lógico. Contados os últimos dias do mundo, fora malbaratá-los agitando preceitos vãos, quando o cataclismo iminente viria, em breve, apagar para sempre as uniões mais íntimas, dispersar os lares e confundir no mesmo vórtice todas as virtudes e todas as abominações. O que urgia era antecipá-lo pelas provações e pelo martírio. Pregava, então, os jejuns prolongados, as agonias da fome, a lenta exaustão da vida. Dava o exemplo fazendo constar, pelos fiéis mais íntimos, que atravessava os dias alimentando-se com um pires de farinha. Conta-se que em certo dia foi visitado por um crente abastado das cercanias. Repartiu com ele a refeição escassa; e este -milagre que abalou o arraial inteiro!- saiu do banquete minúsculo repleto, empanzinado, como se volvesse de festim soberbo.

Esse regime severo tinha efeito duplo: tornava, pela própria debilidade, mais vibrátil a inervação enferma dos crentes e preparava-os para as aperturas dos assédios, talvez previstos. Era, talvez, intenção recôndita de Antônio Conselheiro. Nem de outro modo se compreende que permitisse assistissem no arraial indivíduos cuja índole se contrapunha à sua placabilidade humilde.

Canudos era o homizio de famigerados facínoras. Ali chegavam, de permeio com os matutos crédulos e vaqueiros iludidos, sinistros heróis da faca e da garrucha. E estes foram logo os mais quistos daquele homem singular, os seus ajudantes-de-ordens prediletos, garantindo-lhe a autoridade inviolável. Eram, por um contraste natural, os seus melhores discípulos. A seita esdrúxula -caso de simbiose moral em que o belo ideal cristão surgia monstruoso dentre aberrações fetichistas- tinha os seus naturais representantes nos batistas truculentos, capazes de carregar os bacamartes homicidas com as contas dos rosários...

Polícia de bandidos

Graças a seus braços fortes, Antônio Conselheiro dominava o arraial, corrigindo os que saíam das trilhas demarcadas. Na cadeia ali paradoxalmente instituída -a poeira, no dizer dos jagunços- viam-se, diariamente, presos pelos que haviam cometido a leve falta de alguns homicídios os que haviam perpetrado o crime abominável de faltar às rezas.

Inexorável para as pequenas culpas, nulíssima para os grandes atentados, a justiça era, como tudo o mais, antinômica, no clã policiado por facínoras. Visava uma delinqüência especial, traduzindo-se na inversão completa do conceito do crime. Exercitava-se, não raro duramente, cominando penas severíssimas sobre leves faltas.

O uso da aguardente, por exemplo, era delito sério. Ai! do dipsomaníaco incorrigível que rompesse o interdito imposto!

Conta-se que de uma feita alguns tropeiros inexpertos, vindos do Juazeiro, foram ter a Canudos, levando alguns barris do líquido inconcesso. Atraía-os o engodo de lucro inevitável. Levavam a eterna cúmplice das horas ociosas dos matutos. Ao chegarem, porém, tiveram, depois de descarregarem na praça a carga valiosa, desagradável surpresa. Viram, ali mesmo, abertos os barris, a machado, e inutilizado o contrabando sacrílego. E volveram rápidos, desapontados, tendo às mãos, ao invés do ganho apetecido, o ardor de muitas dúzias de palmatoadas, amargos bolos com que os presenteara aquela gente ingrata.

Este caso é expressivo. Sólida experiência ensinara ao Conselheiro todos os perigos que adviriam deste haxixe nacional. Interdizia-o menos por debelar um vício que para prevenir desordens. Mas fora do povoado, estas podiam espalhar-se à larga. Dali partiam bandos turbulentos arremetendo com os arredores. Toda a sorte de tropelias era permitida, desde que aumentasse o patrimônio da grei. Em 1894, as algaras, chefiadas por valentões de nota, tornaram-se alarmantes. Foram em um crescendo tal, de depredações e desacatos, que despertaram a atenção dos poderes constituídos, originando mesmo calorosa e inútil discussão na Assembléia Estadual da Bahia.

Depredações

Em dilatado raio em torno de Canudos, talavam-se fazendas, saqueavam-se lugarejos, conquistavam-se cidades! No Bom Conselho, uma horda atrevida, depois de se apossar da vila, pô-la em estado de sítio, dispersou as autoridades, a começar pelo juiz da comarca e, como entreato hilariante na razzia escandalosa, torturou o escrivão dos casamentos que se viu em palpos de aranha para impedir que os crentes sarcásticos lhe abrissem, tosquiando-o, uma coroa larga, que lhe justificasse o invadir as atribuições sagradas do vigário.

Os desordeiros volviam cheios de despojos para o arraial, onde ninguém lhes tomava conta dos desmandos.

Muitas vezes, diz o testemunho unânime da população sertaneja, tais expedições eram sugeridas por intuito diverso. Alguns fiéis abastados tinham veleidades políticas. Sobrevinha a quadra eleitoral. Os grandes conquistadores de urnas que, a exemplo de milhares de comparsas disseminados neste país transformam a fantasia do sufrágio universal na calva de Hércules da nossa dignidade, apelavam para o Conselheiro.

Canudos fazia-se, então, provisoriamente, o quartel das guardas pretorianas dos capangas, que de lá partiam, trilhando rumos prefixos, para reforçarem, a pau e a tiro, a soberania popular, expressa na imbecilidade triunfante de um régulo qualquer; e para o estraçoamento das atas; e para as mazorcas periódicas que a lei marca, denominando-as «eleições», eufemismo que é entre nós o mais vivo traço das ousadias da linguagem. A nossa civilização de empréstimo arregimentava, como sempre o fez, o banditismo sertanejo.

Ora, estas arrancadas eram um ensinamento. Eram úteis. Eram exercícios práticos indispensáveis ao preparo para recontros mais valentes. Compreendera-as, talvez, assim, o Conselheiro. Tolerava-as. No arraial, porém, exigia, digamos em falta de outro termo -porque os léxicos não o têm para exprimir um tumulto disciplinado,- ordem inalterável. Ali permaneciam, inofensivos porque eram inválidos, os seus melhores crentes: mulheres, crianças, velhos alquebrados, doentes inúteis. Viviam parasitariamente da solicitude do chefe, que lhes era o Santo protetor, ao qual saudavam entoando versos há vinte e tantos anos correntes nos sertões.

Do céu veio uma luz

Que Jesus Cristo mandou.

Santo Antônio Aparecido

Dos castigos nos livrou!

Quem ouvir e não aprender

Quem souber e não ensinar

No dia do Juízo

A sua alma penará!



Estas velhas quadras, que a tradição guardara, lembravam ao infeliz os primeiros dias da vida atormentada e avivavam-lhe, porventura, os últimos traços da vaidade, no confronto vantajoso com o santo milagreiro por excelência.

O certo é que abria aos desventurados os celeiros fartos pelas esmolas e produtos do trabalho comum. Compreendia que aquela massa, na aparência inútil, era o cerne vigoroso do arraial. Formavam-na os eleitos, felizes por terem aos ombros os frangalhos imundos, esfiapados sambenitos de uma penitência que lhes fora a própria vida; bem-aventurados porque o passo trôpego, remorado pelas muletas e pelas anquiloses, lhes era a celeridade máxima, no avançar para a felicidade eterna.

Além disto ali os aguardava, no termo da jornada, a última penitência: a construção do templo.

A antiga capela não bastava. Era frágil e pequena. Mal sobranceava os colmos achatados. Retratava por demais, no aspecto modestíssimo, a pureza principal da religião antiga.

Era necessário que se lhe contrapusesse a arx monstruosa, erigida como se fosse o molde monumental da seita combatente.

Começou a erigir-se a igreja nova. Desde antemanhã enquanto uns se entregavam às culturas ou tangiam os rebanhos de cabras, ou abalavam para fazer o saco nas vilas próximas, e outros, dispersando-se em piquetes vigilantes, estacionavam nas cercanias, bombeando quem chegava, o resto do povo moirejava na missão sagrada.

Defrontando o antigo, o novo templo erguia-se no outro extremo da praça. Era retangular, e vasto, e pesado. As paredes mestras, espessas, recordavam muralhas de reduto. Durante muito tempo teria esta feição anômala, antes que as duas torres muito altas, com ousadias de um gótico rude e imperfeito, o transfigurassem.

É que a catedral admirável dos jagunços tinha essa eloqüência silenciosa dos edifícios, de que nos fala Bossuet...

Devia ser como foi. Devia surgir, mole formidável e bruta, da extrema fraqueza humana, alteada pelos músculos gastos dos velhos, pelos braços débeis das mulheres e das crianças. Cabia-lhe a forma dúbia de santuário e de antro, de fortaleza e de templo, irmanando no mesmo âmbito, onde ressoariam mais tarde as ladainhas e as balas, a suprema piedade e os supremos rancores...

Delineara-a o próprio Conselheiro. Velho arquiteto de igrejas, requintara no monumento que lhe cerraria a carreira. Levantava, volvida para o levante, aquela fachada estupenda, sem módulos, sem proporções, sem regras; de estilo indecifrável; mascarada de frisos grosseiros e volutas impossíveis cabriolando num delírio de curvas incorretas; rasgada de ogivas horrorosas, esburacada de troneiras; informe e brutal, feito a testada de um hipogeu desenterrado; como se tentasse objetivar, a pedra e cal, a própria desordem do espírito delirante.

Era a sua obra-prima. Ali passava os dias, sobre os andaimes altos e bailéus bamboantes. O povo enxameando embaixo, na azáfama do transporte dos materiais, estremecia muita vez ao vê-lo passar, lentamente, sobre as tábuas flexuosas e oscilantes, impassível, sem um tremor no rosto bronzeado e rígido, feito uma cariátide errante sobre o edifício monstruoso.

Não faltavam braços para a tarefa. Não cessavam reforços e recursos à sociedade acampada no deserto. Metade, por assim dizer, das gentes de Tucano e de Itapicuru para lá abalou. De Alagoinhas, Feira de Santana e Santa Luzia, iam toda a sorte de auxílios. De Jeremoabo, Bom Conselho e Simão Dias, grandes fornecimentos de gados.

Não assombravam aos recém-vindos os quadros que se lhes antolhavam. Tinham-nos como obrigatória a prova desafiando-lhes a fé inabalável.

Estrada para o céu

Os ingênuos contos sertanejos desde muito lhes haviam revelado as estradas fascinadoramente traiçoeiras que levam ao Inferno. Canudos, imunda ante-sala do Paraíso, pobre peristilo dos céus, devia ser assim mesmo repugnante, aterrador, horrendo...

Entretanto, lá tinham ido, muitos, alimentado esperanças singulares. «Os aliciadores da seita se ocupam em persuadir o povo de que todo aquele que se quiser salvar precisa vir para Canudos, porque nos outros lugares tudo está contaminado e perdido pela República. Ali, porém, nem é preciso trabalhar, é a terra da promissão, onde corre um rio de leite e são de cuscuz de milho as barrancas.»

Chegavam.

Deparavam o Vaza-Barris seco, ou empanzinado, volvendo apenas águas barrentas das enchentes, entre os flancos entorroados das colinas...

Tinham esvaecida a miragem feliz; mas não se despeavam do misticismo lamentável...

Ao cair da tarde, a voz do sino apelidava os fiéis para a oração. Cessavam os trabalhos. O povo adensava-se sob a latada coberta de folhagens. Derramava-se pela praça. Ajoelhava.

Difundia-se nos ares o coro do primeira reza.

A noite sobrevinha, prestes, mal prenunciada pelo crepúsculo sertanejo, fugitivo e breve como o dos desertos.

Fulguravam as fogueiras, que era costume acenderem-se acompanhando o perímetro do largo. E os seus clarões vacilantes emolduravam a cena meio afogada nas sombras.

Consoante antiga praxe, ou, melhor, capricho de Antônio Conselheiro, a multidão repartia-se, separados os sexos, em dous agrupamentos destacados. E em cada um deles um baralhamento enorme de contrastes...

Agrupamentos bizarros

Ali estavam, gafadas de pecados velhos, serodiamente penitenciados, as beatas -êmulas das bruxas das igrejas- revestidas da capona preta lembrando a holandilha fúnebre da Inquisição; as solteiras, termo que nos sertões tem o pior dos significados, desenvoltas e despejadas, soltas na gandaíce sem freios; as moças donzelas ou moças damas, recatadas e tímidas; e honestas mães de famílias; nivelando-se pelas mesmas rezas.

Faces murchas de velhas -esgrouviados viragos em cuja boca deve ser um pecado mortal a prece;- rostos austeros de matronas simples; fisionomias ingênuas de raparigas crédulas, misturavam-se em conjunto estranho.

Todas as idades, todos os tipos, todas as cores...

Grenhas maltratadas de crioulas retintas; cabelos corredios e duros, de caboclas; trunfas escandalosas, de africanas; madeixas castanhas e louras de brancas legítimas, embaralhavam-se, sem uma fita, sem um grampo, sem uma flor, o toucado ou a coifa mais pobre. Nos vestuários singelos, de algodão ou de chita, deselegantes e escorridos, não havia lobrigar-se a garridice menos pretensiosa: um xale de lã, uma mantilha ou um lenço de cor, atenuando a monotonia das vestes encardidas quase reduzidas a saias e camisas estraçoadas, deixando expostos os peitos cobertos de rosários, de verônicas, de cruzes, de figas, de amuletos, de dentes de animais, de bentinhos, ou de nôminas encerrando cartas santas, únicos atavios que perdoava a ascese exigente do evangelizador. Aqui, ali, extremando-se a relanços naqueles acervos de trapos, um ou outro rosto formosíssimo, em que ressurgiam, suplantando impressionadoramente a miséria e o sombreado das outras faces rebarbativas, as linhas dessa beleza imortal que o tipo judaico conserva imutável através dos tempos. Madonas emparceiradas a fúrias, belos olhos profundos, em cujos negrumes afuzila o desvario místico; frontes adoráveis, mal escampadas sob os cabelos em desalinho, eram profanação cruel afogando-se naquela matulagem repugnante que exsudava do mesmo passo o fartum engulhento das carcaças imundas e o lento salmear dos benditos lúgubres como responsórios...

A reveses, as fogueiras quase abafadas, vasquejando sob nuvens de fumo, crepitam, revivendo ao sopro da viração noturna e chofrando precípites clarões sobre a turba. Destaca-se, então, mais compacto, o grupo varonil dos homens, mostrando idênticos contrastes: vaqueiros rudes e fortes, trocando, como heróis decaídos, a bela armadura de couro pelo uniforme reles de brim americano; criadores, ricos outrora, felizes pelo abandono das boiadas e dos pousos animados; e menos numerosos, porém mais em destaque, gandaieiros de todos os matizes, recidivos de todos os delitos.

Na claridade amortecida dos braseiros esbatem-se os seus perfis interessantes e vários. Já são famosos alguns. Prestigia-os o renome de arriscadas aventuras, que a imaginação popular romanceia e amplia. Lugar-tenentes do ditador humilde, tomam armados a frente do ajuntamento. Mas não há distinguir-se-lhes neste instante, na atitude e no gesto, o desgarre provocante dos valentões incorrigíveis.

De joelhos, mãos enclavinhadas sobre o peito, o olhar tençoeiro e mau esvai-se-lhes contemplativo e vago...

José Venâncio, o terror da Volta Grande, deslembra-se das dezoito mortes cometidas e do espantalho dos processos à revelia, dobrando, contrito, a fronte para a terra.

Ladeia-o o afoito Pajeú, rosto de bronze vincado de apófises duras, mal aprumado o arcabouço atlético. Estático, mãos postas, volve, como as suçuaranas em noite de luar, olhar absorto para os céus. Logo após o seu ajudante-de-ordens inseparável, Lalau, queda-se igualmente humílimo, joelhos dobrados sobre o trabuco carregado. Chiquinho e João da Mota, dous irmãos aos quais estava entregue o comando dos piquetes vigilantes nas estradas de Cocorobó e Uauá, aparecem unidos, desfiando, crédulos, as contas do mesmo rosário. Pedrão, cafuz entroncado e bruto, que com trinta homens escolhidos guardava as vertentes da Canabrava, mal se distingue, afastado, próximo de um digno êmulo de tropelias. Estêvão, negro reforçado, disforme, corpo tatuado a bala e a faca, que lograra vingar centenas de conflitos graças à disvulnerabilidade rara. Era o guarda do Cambaio.

Joaquim Tranca-Pés, outro espécime de guerrilheiro sanhudo, que velava no Angico, ombreia com o Major Sariema, de estatura mais elegante, lidador sem posição fixa, destemeroso mas irrequieto, talhado para as arrancadas subitâneas e atrevidas. Antepõe-se-lhe, no aspecto, o tragicômico Raimundo Boca-Torta, do Itapicuru, espécie de funâmbulo patibular, face contorcida em esgar ferino, como um traumatismo hediondo. O ágil Chico Ema, a quem se confiara coluna volante de espias, surge junto a um cabecilha de primeira linha, Norberto, predestinado à chefia suprema nos últimos dias de Canudos.

Quinquim de Coiqui, um crente abnegado que alcançaria a primeira vitória sobre a tropa legal; Antônio Fogueteiro, do Pau Ferro, incansável aliciador de prosélitos; José Gamo; Fabrício de Cocobocó...

A massa restante dos fiéis volve-lhes, intermitentes, nos intervalos dos kyries inçados de silabadas incríveis, olhares carinhosos, refertos de esperanças.

O velho Macambira, pouco afeiçoado à luta, de coração mole, segundo o dizer expressivo dos matutos, mas espírito infernal no gizar tocaias incríveis; espécie de Imanus decrépito, mas perigoso ainda, tomba de bruços no chão, tendo ao lado o filho, Joaquim, criança arrojada e impávida, que figuraria em belo lance de heroísmo, mais tarde.

Alheio à credulidade geral, um explorador solerte, Vila-Nova, finge que ora, remascando cifras. E na frente de todos, o comandante da praça, o chefe do povo, o astuto João Abade, abrange no olhar dominador a turba genuflexa.

No meio destes perfis trágicos uma figura ridícula, Antônio Beato, mulato espigado, magríssimo, adelgaçado pelos jejuns, muito da privança do Conselheiro; meio sacristão, meio soldado, misseiro de bacamarte, espiando, observando, indagando, insinuando-se jeitosamente pelas casas, esquadrinhando todos os recantos do arraial, e transmitindo a todo instante ao chefe supremo, que raro abandonava o santuário, as novidades existentes. Completa-o, como um prolongamento, José Félix, o Taramela, quinhoneiro da mesma predileção, guarda das igrejas, chaveiro e mordomo do Conselheiro, tendo sob as ordens as beatas de vestidos azuis cingidas de cordas de linho, encarregadas da roupa, da refeição exígua daquele e de acenderem diariamente as fogueiras para as rezas.

E um tipo adorável, Manuel Quadrado, olhando para tudo aquilo com indiferença nobilitadora. Era o curandeiro; o médico. Na multidão suspeita a natureza tinha, afinal, um devoto, alheio à desordem, vivendo num investigar perene pelas drogarias primitivas das matas.

O «beija» das imagens

As rezas, em geral, prolongavam-se. Percorridas todas as escalas das ladainhas, todas as contas dos rosários, rimados todos os benditos, restava ainda a cerimônia final do culto, remate obrigado daquelas.

Era o «beija» das imagens.

Instituíra-o o Conselheiro completando no ritual fetichista a transmutação do cristianismo incompreendido.

Antônio Beatinho, o altareiro, tomava de um crucifixo; contemplava-o com o olhar diluído de um faquir em êxtase; aconchegava-o do peito, prostrando-se profundamente; imprimia-lhe ósculo prolongado; e entregava-o, com gesto amolentado, ao fiel mais próximo, que lhe copiava, sem variantes, a mímica reverente. Depois erguia uma virgem santa, reeditando os mesmos atos; depois o Bom Jesus. E lá vinham, sucessivamente, todos os santos, e registros, e verônicas, e cruzes, vagarosamente, entregues à multidão sequiosa, passando, um a um, por todas as mãos, por todas as bocas e por todos os peitos. Ouviam-se os beijos chirriantes, inúmeros e, num crescendo, extinguindo-lhes a assonância surda, o vozear indistinto das prédicas balbuciadas a meia voz, dos mea-culpas ansiosamente socados nos peitos arfantes e das primeiras exclamações abafadas, reprimidas ainda, para que se não perturbasse a solenidade.

O misticismo de cada um, porém, ia-se a pouco e pouco confundindo na nevrose coletiva. De espaço a espaço a agitação crescia, como se o tumulto invadisse a assembléia adstrito às fórmulas de programa preestabelecido, à medida que passavam as sagradas relíquias. Por fim as últimas saíam, entregues pelo Beato, quando as primeiras alcançavam as derradeiras filas de crentes. E cumulava-se a ebriez e o estonteamento daquelas almas simples. Desbordavam as emoções isoladas, confundindo-se repentinamente, avolumando-se, presas no contágio irreprimível da mesma febre; e, como se as forças sobrenaturais, que o animismo ingênuo emprestava às imagens, penetrassem afinal as consciências, desequilibrando-as em violentos abalos, salteava a multidão um desvairamento irreprimível. Estrugiam exclamações entre piedosas e coléricas; desatavam-se movimentos impulsivos, de iluminados; estalavam gritos lancinantes de desmaios. Apertando ao peito as imagens babujadas de saliva, mulheres alucinadas tombavam escabujando nas contorções violentas da histeria, crianças assustadiças desandavam em choros; e, invadido pela mesma aura de loucura, o grupo varonil dos lutadores, dentre o estrépito, e os tinidos, e o estardalhaço das armas entrebatidas, vibrava no mesmo ictus assombroso, em que explodia, desapoderadamente, o misticismo bárbaro...

Mas de repente o tumulto cessava.

Todos se quedavam ofegantes, olhares presos no extremo da latada junto à porta do Santuário, aberta e enquadrando a figura singular de Antônio Conselheiro.

Este abeirava-se de uma mesa pequena. E pregava...

Por que não pregar contra a República?

Pregava contra a República; é certo.

O antagonismo era inevitável. Era um derivativo à exacerbação mística; uma variante forçada ao delírio religioso.

Mas não traduzia o mais pálido intuito político: o jagunço é tão inapto para apreender a forma republicana como a monárquico-constitucional.

Ambas lhe são abstrações inacessíveis. É espontaneamente adversário de ambas. Está na fase evolutiva em que só é conceptível o império de um chefe sacerdotal ou guerreiro.

Insistamos sobre esta verdade: a guerra de Canudos foi um refluxo em nossa história. Tivemos, inopinadamente, ressurrecta e em armas em nossa frente, uma sociedade velha, uma sociedade morta, galvanizada por um doudo. Não a conhecemos. Não podíamos conhecê-la. Os aventureiros do século XVII, porém, nela topariam relações antigas, da mesma sorte que os iluminados da Idade Média se sentiriam à vontade, neste século, entre os demonopatas de Verzegnis ou entre os Stundistas da Rússia. Porque essas psicoses epidêmicas despontam em todos os tempos e em todos os lugares como anacronismos palmares, contrastes inevitáveis na evolução desigual dos povos, patentes sobretudo quando um largo movimento civilizador lhes impele vigorosamente as camadas superiores.

Os perfectionistas exagerados rompem, então, ilógicos, dentre o industrialismo triunfante da América do Norte, e a sombria Stürmisch, inexplicavelmente inspirada pelo gênio de Klopstock, comparte o berço da renascença alemã...

Entre nós o fenômeno foi porventura ainda mais explicável.

Vivendo quatrocentos anos no litoral vastíssimo, em que palejam reflexos da vida civilizada, tivemos de improviso, como herança inesperada, a República. Ascendemos, de chofre, arrebatados na caudal dos ideais modernos, deixando na penumbra secular em que jazem, no âmago do país, um terço da nossa gente. Iludidos por uma civilização de empréstimos; respigando, em faina cega de copistas, tudo o que de melhor existe nos códigos orgânicos de outras nações, tornamos, revolucionariamente, fugindo ao transigir mais ligeiro com as exigências da nossa própria nacionalidade, mais fundo o contraste entre o nosso modo de viver e o daqueles rudes patrícios mais estrangeiros nesta terra do que os imigrantes da Europa. Porque não no-los separa um mar, separam-no-los três séculos...

E quando pela nossa imprevidência inegável deixamos que entre eles se formasse um núcleo de maníacos, não vimos o traço superior do acontecimento. Abreviamos o espírito ao conceito estreito de uma preocupação partidária. Tivemos um espanto comprometedor ante aquelas aberrações monstruosas; e, com arrojo digno de melhores causas, batemo-los a cargas de baionetas, reeditando por nossa vez o passado, numa entrada inglória, reabrindo nas paragens infelizes as trilhas apagadas das bandeiras...

Vimos no agitador sertanejo, do qual a revolta era um aspecto da própria rebeldia contra a ordem natural, adversário sério, estrênuo paladino do extinto regime, capaz de derruir as instituições nascentes.

E Canudos era a Vendéia...

Entretanto quando nos últimos dias do arraial foi permitido ingresso nos casebres estraçoados, salteou o ânimo dos triunfadores decepção dolorosa. A vitória duramente alcançada dera-lhes direito à devassa dos lares em ruínas. Nada se eximiu à curiosidade insaciável.

Ora, no mais pobre dos saques que registra a História, onde foram despojos opimos imagens mutiladas e rosários de coco, o que mais acirrava a cobiça dos vitoriosos eram as cartas, quaisquer escritos e, principalmente, os desgraciosos versos encontrados. Pobres papéis, em que a ortografia bárbara corria parelha com os mais ingênuos absurdos e a escrita irregular e feia parecia fotografar o pensamento torturado, eles resumiam a psicologia da luta. Valiam tudo porque nada valiam. Registravam as prédicas de Antônio Conselheiro; e, lendo-as, põe-se de manifesto quanto eram elas afinal inócuas, refletindo o turvamento intelectual de um infeliz. Porque o que nelas vibra em todas as linhas, é a mesma religiosidade difusa e incongruente, bem pouca significação política permitindo emprestar-se às tendências messiânicas expostas. O rebelado arremetia com a ordem constituída porque se lhe afigurava iminente o reino de delícias prometido. Prenunciava-o a República -pecado mortal de um povo- heresia suprema indicadora do triunfo efêmero do anticristo. Os rudes poetas, rimando-lhe os desvarios em quadras incolores, sem a espontaneidade forte dos improvisos sertanejos, deixam bem vivos documentos nos versos disparatados, que deletreamos pensando, como Renan, que há, rude e eloqüente, a segunda Bíblia do gênero humano, nesse gaguejar do povo.

Copiemos ao acaso alguns:

«Sahiu D. Pedro segundo

Para o reyno de Lisboa

Acabosse a monarquia

O Brazil ficou atôa!»



A República era a impiedade:

Garantidos pela lei

Aquelles malvados estão

Nós temos a lei de Deus

Elles tem a lei do cão

«Bem desgraçados são elles

Pra fazerem a eleição

Abatendo a lei de Deus

Suspendendo a lei do cão

«Casamento vão fazendo

Só para o povo iludir

Vão casar o povo todo

No casamento civil!»



O governo demoníaco, porém, desaparecerá em breve:

«D. Sebastião já chegou

E traz muito regimento

Acabando com o civil

E fazendo o casamento!»

«O anticristo nasceu

Para o Brazil governar

Mas ahi está o Conselheiro

Para delles nos livrar!»

«Visita nos vem fazer

Nosso rei D. Sebastião.

Coitado daquele pobre

Que estiver na lei do cão



A lei do cão...

Este era o apotegma mais elevado da seita. Resumia-lhe o programa. Dispensa todos os comentários.

Eram, realmente, fragílimos aqueles pobres rebelados...

Requeriam outra reação. Obrigavam-nos a outra luta.

Entretanto enviamo-lhes o legislador Comblain; e esse argumento único, incisivo, supremo e moralizador -a bala.

Mas antes tentou-se empresa mais nobre e mais prática.

Uma missão abortada

Em 1895, em certa manhã de maio, no alto de um contraforte da Favela, apareceu, ladeada de duas outras, figura estranha àqueles lugares. Era um missionário capuchinho.

Considerou por instantes o arraial imenso, embaixo. Desceu devagar a encosta.

Daniel vai penetrar na furna dos leões...

Acompanhemo-lo.

Seguido de Frei Caetano de S. Léo e do vigário do Cumbe, Frei João Evangelista de Monte-Marciano passa o rio e abeira-se dos primeiros casebres. Alcança a praça desbordante de povo «perto de mil homens armados de bacamartes, garrucha, facão, etc.»; e tem a impressão de haver caído, de súbito, no meio de um acampamento de beduínos. Não se lhe entibia, porém, o ânimo blindado pela fortaleza tranqüila dos apóstolos. Passa, impassível, por diante da Capela, em cuja porta se adensam mais compactos agrupamentos. Envereda logo por um beco tortuoso. Atravessa-o, seguido dos companheiros de apostolado. Enquanto às portas os moradores surpreendidos saem a vê-los, «ar irrequieto e o olhar ao mesmo tempo indagador e sinistro, denunciando consciências perturbadas e intenções hostis».

Chega por fim à casa do velho vigário do Cumbe (que não se abria há mais de ano, porque a tanto remontava a sua ausência, ressentido por desacato que sofrera) e mal se refaz da jornada extenuadora. Comoviam-no o espetáculo dos infelizes que acabava de encontrar armados até aos dentes, e o quadro emocionante daquela Tebaida turbulenta.

Antolham-se-lhe novas impressões desagradáveis.

A breve trecho passam-lhe à porta oito defuntos levados sem sinal algum religioso para o cemitério, ao fundo da igreja velha: oito redes de caroá sob que arcavam carregadores ofegantes passando, rápidos, ansiosos por alijá-las, como se na cidade sinistra o morto fosse um desertor do martírio, indigno da atenção mais breve.

Entrementes, correra a nova da chegada, sem que o Conselheiro se abalasse ao encontro dos emissários da Igreja. Permanecera indiferente, assistindo aos trabalhos de reconstrução da Capela. Procuraram-no, então, os padres.

Deixam a casa. Tomam de novo pela viela sinuosa. Entram na praça. Atravessam-na, sem que o menor brado hostil os perturbe, e ao chegarem à sede dos trabalhos «os magotes de homens cerram fileiras junto à porta da Capela» abrindo-lhes extensa ala.

Do ajuntamento temeroso parte animadora saudação de paz: «Louvado seja Nosso Senhor Jesus Cristo!», à qual era de praxe a resposta:

«Para sempre seja louvado tão bom Senhor!»

Entram no pequeno templo e acham-se diante de Antônio Conselheiro, que os acolhe com boa sombra; e, com a placabilidade habitual, dirige-lhes a mesma saudação pacífica.

Retrato de conselheiro

«Vestia túnica de azulão, tinha a cabeça descoberta e empunhava um bordão. Os cabelos crescidos sem nenhum trato, a caírem sobre os ombros; as longas barbas grisalhas mais para brancas; os olhos fundos raramente levantados para fitar alguém; o rosto comprido de uma palidez quase cadavérica; o porte grave e ar penitente» impressionaram grandemente os recém-vindos.2

Reanima-os, contudo, recepção quase cordial. De encontro ao que previam, o Conselheiro parece aprazer-se da visita. Quebra a habitual reserva e o obstinado mutismo. Informa-os do andamento dos trabalhos; convida-os a visitá-los; e presta-se de boa feição a servir-lhes de guia pelos repartimentos do edifício. E lá seguem todos, vagarosos, guiados pelo velho solitário que orçava nesse tempo dos sessenta anos, e cujo corpo franzino, arcado sobre o bordão, avançava em andar remorado, sacudido de instante a instante, por súbitos acessos de tosse..

Não se podiam exigir melhores preliminares à missão.

Aquele agasalho era meia vitória. Mas coube ao missionário anulá-la, desajeitadamente. Ao atingirem o coro, como se achassem um tanto afastados do grosso dos fiéis, que os seguiam à distância, pareceu-lhe que a oportunidade era de molde para interpelação decisiva.

Era uma precipitação sobre inútil, contraproducente. O insucesso sobreveio, inevitável.

...«aproveitei a ocasião de estarmos quase a sós e disse-lhe que o fim a que eu ia era todo de paz e que assim muito estranhava só enxergar ali homens armados e não podia deixar de condenar que se reunissem em lugar tão pobre tantas famílias entregues à ociosidade, num abandono e misérias tais que diariamente se davam de 8 a 9 óbitos. Por isto, de ordem, e em nome do Sr. Arcebispo ia abrir uma santa missão e aconselhar o povo a dispersar-se e a voltar aos lares e ao trabalho no interesse de cada um e para o bem geral.»

Esta intransigência, este mal sopitado assomo partindo a finura diplomática nas arestas rígidas do dogma, não teria, certo, o beneplácito de S. Gregório -o Grande- a quem não escandalizam os ritos bárbaros dos saxônios; e foi um desafio imprudente.

«Enquanto isto dizia, a capela e o coro enchiam-se de gente e ainda não acabara eu de falar e já eles a uma voz clamavam:

«Nós queremos acompanhar o nosso Conselheiro!»

Era a desordem iminente. Sobresteve-a, porém, a placidez admirável, a mansuetude -por que não dizer cristã?- de Antônio Conselheiro. Que o próprio missionário fale:

«Este os fez calar e voltando-se para mim disse:

É para minha guarda que tenho comigo estes homens armados porque V. Revma. há de saber que a polícia atacou-me e quis matar-me no lugar chamado Massete, onde houve mortes de um e outro lado. No tempo da monarquia deixei-me prender porque reconhecia o governo, hoje não porque não reconheço a República.»

Esta explicação, de forma respeitosa e clara, não satisfez o capuchinho, que tinha a coragem de um crente mas não o tato finíssimo de um apóstolo. Contraveio, parafraseando a Prima Petri:

«-Senhor, se é católico, deve considerar que a Igreja condena as revoltas e, aceitando todas as formas de governo, ensina que os poderes constituídos regem os povos em nome de Deus.»

Era quase, sem variantes, a própria frase de S. Paulo, em pleno reinado de Nero...

E continuou:

«É assim em toda parte: a França, que é uma das principais nações da Europa, foi monarquia por muitos séculos mas há mais de 20 anos é República; e todo o povo, sem exceção dos monarquistas de lá, obedece às autoridades e às leis do governo.»

Frei Monte-Marciano, nesse remoer nulíssimas considerações políticas, insciente da significação real da desordem sertaneja, diz por si mesmo as causas do insucesso. Desdobrou, afinal, inteira, a estatura anômala de propagandista, faltando apenas ter sob as dobras do hábito a escopeta do cura de Santa Cruz:

«Nós mesmos aqui no Brasil, a principiar do Bispo até o último católico, reconhecemos o governo atual; somente vós não vos quereis sujeitar?

É mau pensar esse, é uma doutrina errada a vossa!»

A frase final vibrou como uma apóstrofe. De dentro da multidão partiu, pronta, a réplica arrogante:

«-V. Revma. é que tem uma falsa doutrina e não o nosso Conselheiro

Desta vez ainda o tumulto, prestes a explodir, retraiu-se a um gesto lento do Conselheiro que, voltando-se para o missionário, disse:

«-Eu não desarmo a minha gente, mas também não estorvo a santa missão.»

Esta iniciava-se agora sob maus auspícios. Apesar disto correu em paz até ao quarto dia, e concorridíssima: cerca de cinco mil assistentes, entre os quais todos os homens válidos se destacavam:

«...carregando bacamartes, garruchas, espingardas, pistolas e facões; de cartucheira à cinta e gorro à cabeça, na atitude de quem vai à guerra.»

Assistia-as também o Conselheiro, ao lado do altar, atento e impassível como um fiscal severo, «deixando escapar alguma vez gestos de desaprovação que os maiorais da grei confirmavam com incisivos protestos.»

Estes, contudo, ao que parece, não tinham gravidade alguma. Apenas um ou outro exaltado, violando velho privilégio, se permitia sulcar de apartes a oratória sagrada.

Assim que praticando o pregador sobre o jejum, como meio de mortificar a matéria e refrear as paixões, pela sobriedade, sem entretanto exigir demoradas angústias, porque «podia-se jejuar muitas vezes comendo carne ao jantar e tomando pela manhã uma chávena de café», tolheu-lhe o sermão irreverente e irônica contradita:

«-Ora! Isto não é jejum, é comer a fartar!»

No quarto dia da missão, porém, reincidindo o capuchinho no descabido tema político, pioraram as cousas. Começou intensa propaganda contra a «pregação do padre maçom protestante e republicano», «emissário do governo e que de inteligência com este ia abrir caminho à tropa que viria de surpresa prender o Conselheiro e exterminar todos eles».

Não se temeu aquele da rebelião emergente. Afrontou-se com ela, acirrando-a temerariamente. Escolheu como assunto da prédica subseqüente o homicídio e, sem se furtar aos perigos da arrojada tese, falando em corda na casa do enforcado, espraiou-se em alusões imprudentes que temos por escusado registrar.

A reação foi imediata. Chefiava-a João Abade, cujo apito, vibrando estridulamente na praça, congregou todos os fiéis. O caso passou em 20 de maio, sétimo da missão. Reunidos, arrancaram dali em algazarra estrepitante de vivas ao Bom Jesus e ao Divino Espírito Santo, na direção da casa em que se acolhiam os visitantes, fazendo-lhes sentir que deles não careciam para a salvação eterna.

Estava extinta a missão. Excetuando «55 casamentos de amancebados, 102 batizados e mais de 400 confissões», o resultado fora nulo, ou antes negativo.

Maldição sobre a Jerusalém de Taipa

O missionário, «como outrora os apóstolos às portas das cidades que os repeliam, sacudiu o pó das sandálias» apelando para o veredicto tremendo da Justiça Divina:

E abalou, furtando-se a seguro pelos becos, acompanhado dos dous sócios de reveses...

Galga a estrada coleante, entre os declives da Favela.

Atinge o alto da montanha. Pára um momento...

Considera pela última vez o povoado, embaixo...

É invadido de súbita onda de tristeza. Equipara-se «ao Divino Mestre diante de Jerusalém».

Mas amaldiçoou...

Preliminares

Quando se tornou urgente pacificar o sertão de Canudos, o governo da Bahia estava a braços com outras insurreições. A cidade de Lençóis fora investida por atrevida malta de facínoras, e as suas incursões alastravam-se pelas Lavras Diamantinas; o povoado de Barra do Mendes caíra às mãos de outros turbulentos; e em Jequié se cometiam toda a sorte de atentados.

Antecedentes

O mal era antigo.

O trato do território que recortam as cadeias de Sincorá até as margens do S. Francisco era, havia muito, dilatado teatro de tropelias às gentes indisciplinadas do sertão.

Opulentada de esplêndidas minas, aquela paragem, malsina-a a própria opulência. Procuram-na há duzentos anos irrequietos aventureiros ferrotoados pelo anelo de espantosas riquezas, e eles, esquadrinhando afanosamente os flancos das suas serraniase as nascentes dos rios, fizeram mais do que amaninhar a terra com a ruinaria das catas e o indumento áspero das grupiaras: legaram à prole erradia e, de contágio, aos rudes vaqueiros que os seguiram, a mesma vida desenvolta e inútil livremente expandida na região fecunda, onde por muitos anos foram moeda corrente o ouro em pó e o diamante bruto.

De sorte que sem precisarem despertar pela cultura as energias de um solo em que não se fixam e atravessam na faina desnorteada de faiscadores, conservaram na ociosidade turbulenta a índole aventureira dos avós, antigos fazedores de desertos. E como, a pouco e pouco, se foram exaurindo os cascalhos e afundando os veeiros, o banditismo franco impôs-se-lhes como derivativo à vida desmandada.

O jagunço, saqueador de cidades, sucedeu ao garimpeiro, saqueador da terra. O mandão político substituiu o capangueiro decaído.

A transição é antes de tudo um belo caso de reação mesológica.

Caracterizemo-la, de relance.

Vimos como se formaram ali os mamalucos bravos e diligentes, interpostos tão a propósito, na quadra colonial, entre o torvelinho das bandeiras e o curso das missões, como elemento conservador formando o cerne da nossa nacionalidade nascente e criando uma situação de equilíbrio entre o desvario das pesquisas mineiras e as utopias românticas do apostolado. Ora, aqueles homens, depois de esboçarem talvez a única feição útil da nossa atividade naqueles tempos, tiveram desde o começo do século XVIII, quando se desvendaram as lavras do Rio de Contas à Jacobina, perigosos agentes que se lhes não derrancaram o caráter varonil os nortearam a lamentáveis destinos. De feito, transmudaram-se em contacto com os sertanistas gananciosos. Estes vinham, então, do oriente, espavorindo a ferro e fogo o selvagem e fundando povoados que, ao revés dos já existentes, não tinham o gérmen de uma fazenda de gado, mas as ruínas das malocas. Bateram rudemente a região, estacionando largo tempo ante a barreira de serras que vão de Caetité para o norte; e quando as minas esgotadas lhes demandaram aparelhos para a exploração intensiva, tiveram, logo adiante, entre as matas que vão de Macaúbas a Açuruá, novas paragens opulentas, atraindo-os para o âmago das terras.

Devassaram-nas até nova barreira, o Rio S. Francisco. Transpuseram-na. Na frente, indefinido, se lhe antolhou, cavado nos chapadões, aquele maravilhoso vale do Rio das Éguas, tão aurífero que o ouvidor de Jacobina em carta dirigida à rainha Maria I (1794) afirmava «que as suas minas eram a cousa mais rica de que nunca se descobriu nos domínios de Sua Majestade.»

Naquele ponto se abeiravam das lindes de Goiás.

Não deram mais um passo além. Ultimara-se uma empresa deplorável. Pelos campos de criação avermelhavam, nodoando-os, os montões de argila revolvida das catas entorroadas; e da envergadura atlética do vaqueiro surgira, destemeroso, o jagunço. A nossa história tão malsinada de indisciplinados heróis adquiria um de seus mais sombrios atores. Fez-se a metamorfose da situação anterior: de par com a sociedade robusta e tranqüila dos campeiros, uma outra caracterizando-se pelo nomadismo desenvolto, pela combatividade irrequieta, e por uma ociosidade singular sulcada de tropelias.

Imaginemos que dentro do arcabouço titânico do vaqueiro estale, de súbito, a vibratibilidade incomparável do bandeirante. Teremos o jagunço.

É um produto histórico expressivo. Nascendo de cruzamento tardio entre colaterais, que o meio físico já diversificara, resume os atributos essenciais de uns e outros -na atividade bifronte que oscila, hoje, das vaquejadas trabalhosas às incursões dos quadrilheiros. E a terra, aquela incomparável terra que mesmo quando abrangida pelas secas, desnuda e empobrecida, ainda lhe sustenta os rebanhos nas baixadas salinas dos barreiros, ampara-o de idêntico modo ante as exigências da vida combatente: dá-lhe grátis em toda a parte o salitre para a composição da pólvora, enquanto as balas, luxuosos projetis feitos de chumbo e prata, lá estão, incontáveis, na galena argentífera do Açuruá...3

É natural que desde o começo do século passado a história dramática dos povoados do S. Francisco começasse a refletir uma situação anômala.4 E embora em todas as narrativas emocionantes, que a formam, se destaquem rivalidades partidárias e desmandos impunes de uma política intolerável de potentados locais, todas as desordens, surgindo sempre precisamente nos lugares em que se ostentou, outrora, mais ativa a ânsia mineradora, denunciam a gênese remota que esboçamos.

Exemplifiquemos. Todo o vale do Rio das Éguas e, para o norte, o do Rio Preto, formam a pátria original dos homens mais bravos e mais inúteis da nossa terra.5 Dali abalam para as algaras aventurosas alugando a bravura aos poteneados, e têm sempre, culminando-lhas, o incêndio e o saque de vilas e cidades, em todo o vale do grande rio. Avançando contra a corrente já chegaram, em 1879, à cidade mineira de Januária que conquistaram, tornando a Carinhanha, de onde haviam partido, carregados de despojos. Desta vila para o norte a história das depredações avulta cada vez maior, até Xiquexique, lendária nas campanhas eleitorais do Império.

Não há traçá-la em meia dúzia de páginas. O mais obscuro daqueles arraiais tem a sua tradição especial e sinistra.

Um único, talvez, se destaca sob outro aspecto, o de Bom Jesus da Lapa. É a Meca dos sertanejos. A sua conformação original, ostentando-se na serra de grimpas altaneiras, que ressoam como sinos; abrindo-se na gruta de âmbito caprichoso semelhando a nave de uma igreja, escassamente aclarada; tendo pendidos dos tetos grandes candelabros de estalactites; prolongando-se em corredores cheios de velhos ossuários diluvianos; e a lenda emocionante do monge que ali viveu em companhia de uma onça -tornaram-no objetivo predileto de romarias piedosas, convergentes dos mais longínquos lugares, de Sergipe, Piauí e Goiás.

Ora, entre as dádivas que jazem em considerável cópia no chão e às paredes do estranho templo, o visitante observa de par com as imagens e as relíquias, um traço sombrio de religiosidade singular: facas e espingardas.

O clavinoteiro ali entra, contrito, descoberto. Traz à mão o chapéu de couro, e a arma à bandoleira. Tomba genuflexo, a fronte abatida sobre o chão úmido do calcário transudante... E reza. Sonda longo tempo, batendo no peito, as velhas culpas. Ao cabo cumpre devotamente a promessa que fizera para que lhe fosse favorável o último conflito que travara: entrega ao Bom Jesus o trabuco famoso, tendo da coronha alguns talhos de canivete lembrando o número de mortes cometidas. Sai desapertado de remorsos, feliz pelo tributo que rendeu. Amatula-se de novo à quadrilha. Reata a vida temerosa.

Pilão Arcado, outrora florescente e hoje deserta, na derradeira fase de uma decadência que começou em 1856; Xiquexique, onde durante decêncios se digladiaram liberais e conservadores; Macaúbas, Monte Alegre e outras, e todas as fazendas de seus termos, delatam, nas vivendas derruídas ou esburacadas a bala, esse velho regime de desmandos.

São lugares em que se normalizou a desordem esteada no banditismo disciplinado.

O conceito é paradoxal, mas exato.

Porque há, de fato, uma ordem notável entre os jagunços. Vaidosos de seu papel de bravos condutícios e batendo-se lentamente pelo mandão que os chefia, restringem as desordens às minúsculas batalhas em que entram, militarmente, arregimentados.

O saque das povoações que conquistam, têm-no como direito de guerra, e neste ponto os absolve a História inteira.

Fora disto, são raros os casos de roubos, que consideram desaire e indigno labéu. O mais frágil positivo pode atravessar, inerme e indene, procurando o litoral, aquelas matas e campos, com os picuás atestados de diamantes e pepitas. Não lhe faltará um só no termo da viagem. O forasteiro, alheio às lutas partidárias, atravessa-os igualmente imune.

Não raro um mascate, seguindo por ali, com seus cargueiros rengueando ao peso das caixas preciosas, estaca -tremendo- ao ver aparecer inesperadamente um grupo de jagunços, acampados na volta do caminho...

Mas perde em momentos o medo. O clavinoteiro-chefe aproxima-se. Saúda-o com boa sombra; dirige-lhe a palavra, risonho; e mete-lhe à bulha o terror, galhofeiro. Depois lhe exige um tributo -um cigarro. Acende-o numa pancada única do isqueiro; e deixa-o passar, levando, intactas, a vida e a fortuna.

São numerosos os casos deste teor revelando notável nobreza entre aqueles valentes desgarrados.

Cerca de dez ou oito léguas de Xiquexique demora a sua capital, o arraial de Santo Inácio, erecto entre montanhas e inacessível até hoje a todas as diligências policiais.

Estas, de ordinário, conseguem pacificar os lugares conflagrados, tornando-se interventoras neutras ante as facções combatentes. É uma ação diplomática entre potências. A justiça armada parlamentada com os criminosos; balanceia as condições de um e outro partido; discute; evita os ultimatos; e acaba ratificando verdadeiros tratados de paz, sancionando a soberania da capangagem impune.

Assim os estigmas hereditários da população mestiça se têm fortalecido na própria transigência das leis.

Não surpreende que hajam crescido, avassalando todo o vale do S. Francisco, e desbordando para o norte.

Porque o cangaceiro da Paraíba e Pernambuco é um produto idêntico, com diverso nome. Distingue-o do jagunço talvez a nulíssima variante da arma predileta: a parnaíba de lâmina rígida e longa suplanta a fama tradicional do clavinote de boca-de-sino. As duas sociedades irmãs tiveram, entretanto, longo afastamento que as isolou uma da outra. Os cangaceiros nas incursões para o sul, e os jagunços nas incursões para o norte, defrontavam-se, sem se unirem, separados pelo valado em declive de Paulo Afonso.

A insurreição da comarca de Monte Santo ia ligá-las.

A campanha de Canudos despontou da convergência espontânea de todas estas forças desvairadas, perdidas nos sertões.

Causas próximas da luta

Determinou-a incidente desvalioso.

Antônio Conselheiro adquirira em Juazeiro certa quantidade de madeiras, que não podiam fornecer-lhe as caatingas paupérrimas de Canudos. Contratara o negócio com um dos representantes da autoridade daquela cidade. Mas ao terminar o prazo ajustado para o recebimento do material, que se aplicaria no remate da igreja nova, não lho entregaram. Tudo denuncia que o distrato foi adrede feito, visando o rompimento anelado.

O principal representante da justiça do Juazeiro tinha velha dívida a saldar com o agitador sertanejo, desde a época em que sendo juiz do Bom Conselho fora coagido a abandonar precipitadamente a comarca, assaltada pelos adeptos daquele.

Aproveitou, por isto, a situação, que surgia a talho para a desafronta. Sabia que o adversário revidaria à provocação mais ligeira. De fato, ante a violação do trato aquele retrucou com a ameaça de uma investida sobre a bela povoação do S. Francisco: as madeiras seriam de lá arrebatadas, à força.

O caso passou em dias de outubro de 1896.

Historiemos, adstritos a documentos oficiais:

«Era esta a situação quando recebi do Dr. Arlindo Leoni, Juiz de Direito de Juazeiro, um telegrama urgente comunicando-me correrem boatos mais ou menos fundados de que aquela florescente cidade seria por aqueles dias assaltada por gente de Antônio Conselheiro, pelo que solicitava providências para garantir a população e evitar o êxodo que da parte desta já se ia iniciando. Respondi-lhe que o governo não podia mover força por simples boatos e recomendei, entretanto, que mandasse vigiar as estradas em distância e verificado o movimento dos bandidos, avisasse por telegrama, pois o governo ficava prevenido para evitar incontinenti, em trem expresso, a força necessária para rechaçá-los e garantir a cidade.»

Desfalcada a força policial aquartelada nesta Capital, em virtude das diligências a que anteriormente me referi, requisitei do Sr. General comandante do distrito 100 praças de linha, a fim de seguirem para Juazeiro, apenas me chegasse aviso do Juiz de Direito daquela comarca. Poucos dias depois recebi daquele magistrado um telegrama em que me afirmava estarem os sequazes de Antônio Conselheiro distantes do Juazeiro pouco mais ou menos dous dias de viagem. Dei conhecimento do fato ao Sr. General que, satisfazendo a minha requisição, fez seguir em trem expresso e sob o comando do Tenente Pires Ferreira, a força preparada, a qual devia ali proceder de acordo com o Juiz de Direito.

«Esse distinto oficial, chegando ao Juazeiro, combinou com aquela autoridade seguir ao encontro dos bandidos, a fim de evitar que eles invadissem a cidade.»

Não se podem imaginar móveis mais insignificantes para sucessos tão graves. O trecho acima extratado, entretanto, diz de modo claro que, desdenhando os antecedentes da questão, o governo da Bahia não lhe deu a importância merecida.

Antônio Conselheiro há vinte e dous anos, desde 1874, era famoso em todo o interior do Norte e mesmo nas cidades do litoral até onde chegavam, entretecidos de exageros e quase lendários, os episódios mais interessantes de sua vida romanesca; dia a dia ampliara o domínio sobre as gentes sertanejas; vinha de uma peregrinação incomparável, de um quarto de século, por todos os recantos do sertão, onde deixara como enormes marcos, demarcando-lhe a passagem, as torres de dezenas de igrejas que construíra; fundara o arraial de Bom Jesus, quase uma cidade; de Xorroxó à vila do Conde, de Itapicuru a Jeremioabo, não havia uma só vila, ou lugarejo obscuro, em que não contasse adeptos fervorosos, e não lhe devesse a reconstrução de um cemitério, a posse de um templo ou a dádiva providencial de um açude; insurgira-se desde muito, atrevidamente, contra a nova ordem política e pisara, impune, sobre as cinzas dos editais das câmaras de cidades que invadira; destroçara completamente, em 1893, forte diligência policial, em Massete, e fizera voltar outra, de 80 praças de linha, que seguira até Serrinha; em 1894, fora, no Congresso Estadual da Bahia, assunto de calorosa discussão na qual impugnando a proposta de um deputado, chamando a atenção dos poderes públicos para a «parte dos sertões perturbada pelo indivíduo Antônio Conselheiro», outros eleitos do povo, e entre eles um sacerdote, apresentaram-no como benemérito do qual os conselheiros se modelavam pela ortodoxia cristã mais rígida; fizera voltar, abortícia, em 1895, a missão apostólica planeada pelo arcebispado baiano, e no Relatório alarmante a propósito escrito por Frei João Evangelista, afirmara o missionário a existência, em Canudos -excluídas as mulheres, as crianças, os velhos e os enfermos- de mil homens, mil homens robustos e destemerosos «armados até aos dentes»; por fim, sabia-se que ele imperava sobre extensa zona dificultando o acesso à cidadela em que se entocara, porque a dedicação dos seus sequazes era incondicional, e fora do círculo dos fiéis que o rodeavam havia, em toda a parte, a cumplicidade obrigatória dos que o temiam... E achou-se suficiente para debelar uma situação de tal porte uma força de cem soldados.

Relata o general Frederico Solon, comandante do 3º distrito militar:

«A 4 de novembro do ano findo (1896) em obediência à ordem já referida, prontamente satisfiz a requisição, pessoalmente feita pelo Dr. Governador do Estado, de uma força de cem praças da guarnição para ir bater os fanáticos do arraial de Canudos, asseverando-me que, para tal fim, era aquele número mais que suficiente.

Confiado no inteiro conhecimento, que ele devia ter, de tudo quanto se passava no interior de seu Estado, não hesitei; fazendo-lhe apresentar, sem demora, o bravo tenente Manuel da Silva Pires Ferreira, do 9º Batalhão de Infantaria, a fim de receber as suas ordens e instruções o qual, para cumpri-las, seguiu, a 7 do dito mês para Juazeiro, ponto terminal da estrada de ferro, na margem direita do Rio S. Francisco, comandando 3 oficiais e 104 praças de pré daquele Corpo, conduzindo apenas uma pequena ambulância, fazendo eu seguir logo depois um médico com mais alguns recursos para o exercício de sua profissão. O mais correu pelo Estado.»

Aquele punhado de soldados foi recebido com surpresa em Juazeiro, onde chegou a 7 de novembro, pela manhã.

Não obstou a fuga de grande parte da população, subtraindo-se ao assalto iminente. Aumentou-a. Conhecendo a situação, os habitantes viram, de pronto, que um contingente tão diminuto tinha o valor negativo de exercer maior atração sobre a horda invasora.

Previram a derrota inevitável. E enquanto os partidários encobertos do Conselheiro, que os havia em toda a roda, se rejubilavam, prefigurando-a, alguns homens sinceros pediram ao comandante expedicionário para não seguir avante.

As dificuldades encontradas na aquisição de elementos essenciais à marcha ali retiveram a força até ao dia 12 em que partiu, ao anoitecer, quando, certo, já chegara a Canudos a nova da investida.1 Partiu sem os recursos indispensáveis a uma travessia de 200 quilômetros, em terreno agro e despovoado, orientada por dous guias contratados em Juazeiro.

De sorte que logo em princípio o comandante reconheceu inexeqüível dar à marcha uma norma capaz de poupar as forças das praças. No sertão, mesmo antes do pleno estio, é impossível o caminhar de homens equipados, ajoujados de mochilas e cantis, depois das dez horas da manhã. Pelos tabuleiros o dia desdobra-se abrasador, sem sombras; a terra nua reverbera os ardores da canícula, multiplicando-os; e sob o influxo exaustivo de uma temperatura altíssima aceleram-se de modo pasmoso as funções vitais, determinando assaltos súbitos de cansaço. Por outro lado raro é possível o itinerário disposto de maneira a aproveitarem-se as horas da madrugada ou da noite. É forçoso avançar a despeito das soalheiras fortes até às cacimbas dos pousos dos vaqueiros.

Além disto, aqueles lugares estão, como vimos, entre os mais desconhecidos da nossa terra. Pousos se têm afrontado com o aspérrimo vale do Vaza-Barris que, das vertentes orientais da Itiúba até Jeremoabo, se prolonga inóspito, desfreqüentado, tendo, de léguas, esparsas, insignificantes vivendas. É o trecho da Bahia mais assolado pelas secas.

Por um contraste explicável ante as disposições orográficas, rodeiam-no, contudo, paragens exuberantes: ao norte o belo sertão de Curaçá e as várzeas feracíssimas estendidas para leste até Santo Antônio da Glória, perlongando a margem direita do S. Francisco; a oeste as terras fecundas centralizadas em Vila Nova da Rainha. Emolduram, porém, o deserto. O Vaza-Barris, quase sempre seco, atravessa-o feito um urde tortuoso e longo.

Piores que os gerais, onde ficam vários, às vezes, os mais atilados pombeiros, sem rumos, desnorteados pela uniformidade dos planos indefinidos, as paisagens sucedem-se, uniformes e mais melancólicos mostrando os mais selvagens modelos, engravescidos por uma flora aterradora.

A própria caatinga assume um aspecto novo. E uma melhor caracterização da flora sertaneja, segundo os vários cambiantes que apresenta acarretando denominações diversas, talvez a definisse mais acertadamente como a paragem clássica das caatanduvas, progredindo, extensa para o levante e para o sul até às cercanias de Monte Santo.

A pequena expedição penetrou-a logo ao segundo dia de viagem, quando, depois de repousar bivacando duas léguas além de Juazeiro, teve que calcar, seguidamente, quarenta quilômetros de estrada deserta, até uma ipueira minúscula, a lagoa do Boi, onde havia uns restos de água. Dali por diante caminhou no deserto com escalas por Caraibinhas, Mari, Mocambo, Rancharia e outros pousos solitários, ou fazendas. Alguns estavam abandonados. O estio prenunciava a seca.

Os raros moradores, ou por evitá-la, ou aterrados pelas novas alarmantes, haviam abalado para o norte tangendo por diante os rebanhos de cabras, únicos animais afeitos àquele clima e àquele solo.

A tropa chegou exausta a Uauá no dia 19, depois de uma travessia penosíssima.

Este arraial -duas ruas desembocando numa praça irregular- é o ponto mais animado daquele trecho do sertão. Como a maior parte dos vilarejos pomposamente gravados nos nossos mapas, é uma espécie de transição entre maloca e aldeia -agrupamento desgracioso de cerca de cem casas malfeitas e tijupares pobres, de aspecto deprimido e tristonho.

Alcançam-no quatro estradas que, a partir de Jeremoabo passando em Canudos, de Monte Santo, de Juazeiro e Patamoté conduzem para a sua feira, aos sábados, grande número de tabaréus, sem recursos para viagens longas a lugares mais prósperos. Ali chegam por ocasião das festas como se procurassem opulenta capital das terras grandes:6 entrajados das melhores vestes, ou encourados de novo; pasmos ante os mostradores de duas ou três casas de negócio, e contemplando no barracão da feira, no largo, os produtos de uma indústria pobre em que aparecem, como valiosos espécimes, courinhos curtidos e redes de caroá. Nos demais dias, aberta uma ou outra venda, deserta a praça, Uauá figura-se um local abandonado. E foi num destes que a população recolhida, aguardando a passagem das horas mais ardentes, despertou surpreendida por uma vibração de cometas.

Era a tropa.

Entrou pela rua em continuação à estrada e fez alto no largo. Foi um sucesso. Entre curiosos e tímidos os habitantes atentavam para os soldados -poentos, malfirmes na formatura, tendo aos ombros as espingardas cujas baionetas fulguravam- como se vissem exército brilhante.

Ensarilhadas as armas, a força acantonou.

Fez-se em torno um círculo de vigilância: postaram-se sentinelas à saída dos quatro caminhos e nomeou-se pessoal das rondas.

Feito praça de guerra, o vilarejo obscuro era, entretanto, uma escala transitória. A expedição, depois de breve descanso, devia abalar imediatamente para Canudos, ao alvorecer do dia subseqüente, 20. Não o fez. Ali, como em toda a parte, variavam, díspares, as informações, impedindo ajuizar-se sobre as cousas.

De sorte que todo aquele dia foi despendido inutilmente, em indagações, sendo resolvido o acontecimento para o imediato, depois de demora prejudicialíssima. E ao cair da noite operou-se um incidente só explicado na manhã seguinte: a população, quase na totalidade, fugira. Deixara as vivendas, sem ser percebida, em pequenos grupos deslizando, furtivos, entre os claros das guardas avançadas. No repentino êxodo lá se foram os próprios doentes, famílias inteiras, ao acaso, pela noite dentro, dispartindo espavoridos, descampados em fora.

Ora, este fato era um aviso. Uauá, como os demais lugares convizinhos, estava sob o domínio de Canudos. Habitavam-no dedicados adeptos de Antônio Conselheiro; de sorte que mal a força fizera alto no largo, haviam-se aqueles precipitado para o arraial ameaçado, onde chegaram no amanhecer de 20, levando o alarma...

Aquela fuga de uma população em massa delatava que os emissários haviam tido tempo de voltar prevenindo os moradores do contra-ataque, resolvido pelos homens de Canudos. Ficaria, assim, o campo livre aos lutadores.

Os expedicionários não ligaram, porém, grande importância ao caso. Aprestaram-se para continuar a marcha na manhã seguinte; e inscientes da gravidade das cousas repousaram tranqüilamente, acantonados.

Primeiro combate

Despertou-os o adversário, que imaginavam ir surpreender.

Na madrugada de 21 desenhou-se no extremo da várzea o agrupamento dos jagunços...

Um coro longínquo esbatia-se na mudez da terra ainda adormida, reboando longamente nos ermos desolados. A multidão guerreira avançara para Uauá, derivando à toada vagarosa dos kyries, rezando. Parecia uma procissão de penitência dessas a que há muito se afeiçoaram os matutos crendeiros para abrandarem os céus quando os estios longos geram os flagícios das secas.

O caso é original e verídico. Evitando as vantagens de uma arrancadura noturna, os sertanejos chegavam com o dia e anunciavam-se de longe. Despertavam os adversários para a luta.

Mas não tinham, ao primeiro lance de vistas, aparências guerreiras. Guiavam-nos símbolos de paz: a bandeira do Divino e, ladeando-a, nos braços fortes de um crente possante, grande cruz de madeira, alta como um cruzeiro. Os combatentes armados de velhas espingardas, de chuços de vaqueiros, de foices e varapaus, perdiam-se no grosso dos fiéis que alteavam, inermes, vultos e imagens dos santos prediletos, e palmas ressequidas retiradas dos altares. Alguns, como nas romarias piedosas, tinham à cabeça as pedras dos caminhos, e desfiavam rosários de coco. Equiparavam aos flagelos naturais, que ali descem periódicos, a vinda dos soldados. Seguiam para a batalha rezando, cantando -como se procurassem decisiva prova às suas almas religiosas.

Eram muitos. Três mil disseram depois informantes exagerados, triplicando talvez o número. Mas avançavam sem ordem. Um pelotão escasso de infantaria que os aguardasse, distribuído pelas caatingas envolventes, dispersá-los-ia em alguns minutos.

O arraial na frente, porém, não revelava lutadores a postos. Dormia.

A multidão aproximou-se, tudo o indica, até beirar a linha de sentinelas avançadas. E despertou-as. Os vedetas estremunhando, surpresos, dispararam, à toa, as carabinas e refluíram precipitadamente para a praça que ficava à retaguarda, deixando em poder dos agressores um companheiro, espostejado a faca. Foi, então, o alarma: soldados correndo estonteadamente pelo largo e pelas ruas; saindo, seminus, pelas portas; saltando pelas janelas; vestindo-se e armando-se às carreiras e às encontroadas... Não formaram. Mas se distendeu às pressas, dirigida por um sargento, incorreta linha de atiradores. Porque os jagunços lá chegaram logo, de envolta com os fugitivos. E o recontro empenhou-se brutalmente, braço a braço, adversários enleados entre disparos de garruchas e revólveres, pancadas de cacetes e coronhas, embates de facões e sabres -adiante, sobre a frágil linha de defesa. Esta cedeu logo. E a turba fanatizada, entre vivas ao «Bom Jesus» e ao «Conselheiro», e silvos estridentes de apitos de taquara, desdobrada, ondulante, a bandeira do Divino, erguidos para os ares os santos e as armas, seguindo empós o curiboca audaz que levava meio inclinada em aríete a grande cruz de madeira -atravessou o largo arrebatadamente...

Este movimento foi instantâneo e foi, afinal, a única manobra percebida pelos que testemunhavam a ação. Dali por diante não a descrevem os próprios protagonistas. Foi uma desordem de feita turbulenta.

Na maioria, as praças, protegidas pelas casas, e abrindo-lhes as paredes em seteiras, volveram à defensiva franca.

Foi a salvação. Os matutos conjuntos à roda dos símbolos sacrossantos, no largo, começaram a ser fuzilados em massa. Baquearam em grande número; e tornou-se-lhes a luta desigual a despeito da vantagem numérica. Batidos pelas armas de repetição, opunham um disparo de clavinote a cem tiros de Comblain. Enquanto o soldado os alvejava em descargas nutridas, os jagunços revolviam os aiós, tirando sucessivamente a pólvora, a bucha e as balas no demorado processo de carga de seu armamento grosseiro; enfiando depois pelo cano largo do trabuco a vareta; cevando-o devagar, socando lá dentro aqueles ingredientes como se enchessem uma mina; escorvando-o depois; aperrando-o afinal, e ao cabo disparando-o; realizando o heroísmo de uma imobilidade de dous minutos na estonteante ebriez do tiroteio....

Renunciaram, por isto, transcorrido algum tempo, à operação inexeqüível. Caíram sobre os contrários, de facão desembainhando e ferrão em riste, vibrando as foices reluzentes.

Mas foi-lhes ainda nefasta esta arremetida douda. Rareavam-se-lhes as fileiras sem vantagem contra adversários abrigados, ou aparecendo de golpe nas janelas, que se abriam em explosões de descargas. Numa delas, um alferes, serodiamente espertado, bateu-se longo tempo, quase desnudo, abocando, sobre o peitoril, a carabina ao peito dos assaltantes, sem errar um tiro; até cair, morto, sobre o leito em que dormira e não tivera tempo de deixar.

O conflito continuou, deste modo, ferozmente, cerca de quatro horas, sem episódios dignos de nota e sem vislumbrar um único movimento tático; batendo-se cada um por conta própria, consoante as circunstâncias. No quintal da casa em que se aboletara, o comandante se ateve à missão única compatível com a desordem: distribuía, jogando-os por sobre a cerca, cartuchos, sofregamente retirados, às mancheias, dos cunhetes abertos a machado.

Reunidos sempre em volta da bandeira do Divino, estraçoada de balas e vermelha como um pendão de guerra, os jagunços enfiavam pelas ruas. Contorneavam o arraial. Volviam ao largo, vozeando imprecações vivas, em ronda desnorteada e célere. E foram, lentamente, nesses giros revoltados, abandonando a ação e dispersando-se pelas cercanias. Reconheciam a inutilidade dos esforços feitos, ou imaginavam atrair os antagonistas para o plaino desafogado da várzea.

Como quer que fosse, abandonaram, a pouco e pouco, o campo. Em breve ao longe, desapareceu, listrando uma ponta das caatingas, a bandeira sagrada que reconduziam a Canudos.

Os soldados não os encalçaram. Estavam exaustos.

Uauá patenteava quadro lastimoso. Lavravam incêndios em vários pontos. Sobre os soalhos e balcões ensangüentados, à soleira das portas, pelas ruas e na praça, onde dardejava o sol, contorciam-se os feridos e estendiam-se os mortos.

Entre estes, dezenas de sertanejos -cento e cinqüenta- diz a parte oficial do combate, número desconforme ante as dez mortes -um alferes, um sargento, seis praças e os dous guias- e 16 feridos da expedição. Apesar disto, o comandante, com setenta homens válidos, renunciou prosseguir na empresa. Assombrara-o o assalto. Vira de perto o arrojo dos matutos. Apavorara-o a própria vitória, se tal nome cabe ao sucedido, pois as suas conseqüências o desanimavam. O médico da força enlouquecera... Desvairara-o o aspecto da peleja. Quedava-se, inútil, ante os feridos, alguns graves.

A retirada impunha-se, por tudo isto, urgente, antes da noite, ou de um outro recontro, idéia que fazia tremer aqueles triunfadores. Resolveram-na logo. Mal inumados na capela de Uauá os companheiros mortos, largaram dali sob um sol ardentíssimo.

Foi como uma fuga.

A travessia para Juazeiro fez-se a marchas forçadas, em quatro dias. E quando lá chegou o bando dos expedicionários, fardas em trapos, feridos, estropiados, combalidos, davam a imagem da derrota. Parecia que lhes vinham em cima, nos rastros, os jagunços. A população alarmou-se, reatando o êxodo. Ficaram de fogos acesos na estação da via férrea todas as locomotivas. Arregimentaram-se todos os habitantes válidos, dispostos ao combate. E as linhas do telégrafo transmitiram ao país inteiro o prelúdio da guerra sertaneja...

Preparativos da reação

O revés de Uauá requeria reação segura.

Esta, porém, preparou-se sob extemporânea disparidade de vistas entre o chefe da força federal na Bahia e o governador do Estado. Ao otimismo deste, resumindo a agitação sertaneja a desordem vulgar acessível às diligências policiais, contrapunha-se aquele, considerando-a mais séria, capaz de determinar verdadeiras operações de guerra.

De tal modo, a segunda expedição organizou-se sem um plano firme, sem responsabilidades definidas, através de explicações recíprocas entre as duas autoridades independentes e iguais. Compôs-se a princípio de 100 praças e 8 oficiais de linha, e 100 praças e 3 oficiais da força estadual.

Assim constituída, seguiu, a 25 de novembro, para Queimadas, sob o comando de um major do 9º Batalhão de Infantaria, Febrônio de Brito.

Simultaneamente o comandante do Distrito apelava para o governo federal requisitando, para a aparelhar melhor, 4 metralhadoras Nordenfelt, 2 canhões Krupp, de campanha, e mais 250 soldados: 100 do 26º Batalhão, de Aracaju, e 150 do 33º, de Alagoas.

Todo este aparato era justificável. Sucediam-se informações alarmantes, dando, dia a dia, realce à gravidade das cousas. À parte os exageros que houvessem, delas se colhiam a grandeza do número de rebeldes e os sérios empecilhos inerentes à região selvagem em que se acoutavam.

Estas novas, porém, baralhavam-nas sem-número de versões contraditórias agravadas pelos interesses inconfessáveis de uma falsa política sobre a qual nos dispensamos de discorrer.

Nem os apontaremos, embora largo tempo se perdesse, inútil, nesse agitar estéril de minudências desvaliosas -enquanto as linhas telegráficas vibravam da orla dos sertões para o Brasil inteiro, e permanecia, expectante, em Queimadas, o chefe da nova expedição, à frente de 243 praças de pré.

Baldo de recursos e a braços com toda espécie de dificuldades; oscilando no desencontro das informações; ora em desalentos, afigurando-se-lhe insuperável a empresa; ora cheio de inesperadas esperanças no alcançar o fim que se propunha, dali abalou somente em dezembro, para Monte Santo, ao tempo que lhe era mandado da Bahia novo reforço, de 100 praças.

Esta avançada já ia adscrita a um plano de campanha.

O comandante do Distrito compreendera a situação. Planeara atacar a revolta por dous pontos, fazendo avançar para um objetivo único não uma, mas duas colunas, sob a direção geral do coronel do 9º de Infantaria Pedro Nunes Tamarindo. Era um plano compatível com as circunstâncias da luta: estabelecer antes de tudo um cerco a distância; bater os insurrectos parceladamente e apertá-los, ao cabo, em movimentos envolventes de forças pouco numerosas e adestradas.

Realmente, libertas, estas, da morosidade própria às grandes massas, ajustar-se-iam melhor às escabrosidades do terreno, e do mesmo passo enfraqueceriam todas as causas de insucesso. Por outro lado, por mais original que seja o método combatente dos matutos -guerrilheiros impalpáveis dentro da tática estonteadora da fuga!- rola todo neste círculo único. Não se desenvolve num plano qualquer permitindo dar aos grupos dispersos o centro unificador de um objetivo prefixado. Atacá-los, atraindo-os para diferentes pontos, é vencê-los.

Foi o que perceberam, desde muito, os nossos patrícios de há cem anos. Práticos nas vicissitudes das lutas sertanejas tinham organização militar correlativa -visando a formação sistemática de «tropas irregulares», que, sem o embaraço das unidades táticas inalteráveis, e sem formaturas, agissem folgadamente no trançado das matas e sobre as asperezas do solo, auxiliando, reforçando e esclarecendo a ação das tropas regulares.

Daí as façanhas que crivam a nossa história nos XVII e XVIII séculos; o sem conto de revoltas debeladas ou quilombos dissolvidos por aqueles minúsculos exércitos de capitães-do-mato, através de batalhas ferocíssimas e sem nome. Imitando o próprio sistema do africano e do índio, os sertanistas dominavam-nos graças à mesma norma que se traduz por uma fórmula paradoxal: -dividir para fortalecer.

Devíamos, num transe igual, adotá-la. Era sem dúvida um recuo inevitável à guerra primitiva. Mas quando não o impusesse o jagunço solerte e bravo, impunha-o a natureza excepcional, que o defendia.

Vejamos.

Os doutores na arte de matar que hoje, na Europa, invadem escandalosamente a ciência, perturbando-lhe o remanso com um retinir de esporas insolentes -e formulam leis para a guerra pondo em equação as batalhas, têm definido bem o papel das florestas como agente tático precioso, de ofensiva ou defensiva. E ririam os sábios feldmarechais -guerreiros de cujas mãos caiu o franquisque heróico trocado pelo lápis calculista- se ouvissem a alguém que às caatingas pobres cabe função mais definida e grave que às grandes matas virgens.

Porque estas, malgrado a sua importância para a defesa do território -orlando as fronteiras e quebrando o embate às invasões, impedindo mobilizações rápidas e impossibilitando a translação das artilharias- se tornam de algum modo neutras no curso das campanhas. Podem favorecer, indiferentemente, aos dous beligerantes oferecendo a ambos a mesma penumbra às emboscadas, dificultando-lhes por igual as manobras ou todos os desdobramentos em que a estratégia desencadeia os exércitos. São uma variável nas fórmulas do problema tenebroso da guerra, capaz dos mais opostos valores.

Ao passo que as caatingas são um aliado incorruptível do sertanejo em revolta. Entram também de certo modo a luta. Armam-se para o combate; agridem. Trançam-se, impenetráveis, ante o forasteiro, mas abrem-se em trilhas multívias, para o matuto que ali nasceu e cresceu.

E o jagunço faz-se o guerrilheiro-tugue, intangível...

As caatingas não o escondem apenas, amparam-no.

Ao avistá-las, no verão, uma coluna em marcha não se surpreende. Segue pelos caminhos em torcicolos, aforradamente. E os soldados, devassando com as vistas o matagal sem folhas, nem pensam no inimigo. Reagindo à canícula e com o desalinho natural às marchas, prosseguem envoltos no vozear confuso das conversas travadas em toda a linha, virguladas de tinidos de armas, cindidas de risos joviais mal sofreados.

É que nada pode assustá-los. Certo, se os adversários imprudentes com eles se afrontarem, serão varridos em momentos. Aqueles esgalhos far-se-ão em estilhas a um breve choque de espadas e não é crível que os gravetos finos quebrem o arranco das manobras prontas. E lá se vão, marchando, tranqüilamente heróicos...

De repente, pelos seus flancos, estoura, perto, um tiro...

A bala passa, rechinante, ou estende, morto, em terra, um homem. Sucedem-se, pausadas, outras, passando sobre as tropas, em sibilos longos. Cem, duzentos olhos, mil olhos perscrutadores, volvem-se, impacientes, em roda. Nada vêem.

Há a primeira surpresa. Um fluxo de espanto corre de uma a outra ponta das fileiras.

E os tiros continuam raros, mas insistentes e compassados, pela esquerda, pela direita, pela frente agora, irrompendo de toda a banda...

Então estranha ansiedade invade os mais provados valentes, ante o antagonista que vê e não é visto. Forma-se celeremente em atiradores uma companhia, mal destacada da massa de batalhões constritos na vereda estreita. Distende-se pela orla da caatinga. Ouve-se uma voz de comando; e um turbilhão de balas rola estrugidoramente dentro das galhadas...

Mas constantes, longamente intervalados sempre, zunem os projetis dos atiradores invisíveis batendo em cheio as fileiras.

A situação rapidamente engravesce, exigindo resoluções enérgicas. Destacam-se outras unidades combatentes, escalonando-se por toda a extensão do caminho, prontas à primeira voz; -e o comandante resolve carregar contra o desconhecido. Carrega-se contra os duendes. A força, de baionetas caladas, rompe, impetuosa, o matagal numa expansão irradiante de cargas. Avança com rapidez. Os adversários parecem recuar apenas. Nesse momento surge o antagonismo formidável da caatinga.

As seções precipitam-se para os pontos onde estalam os estampidos e estacam ante uma barreira flexível, mas impenetrável, de juremas. Enredam-se no cipoal que as agrilhoa, que lhes arrebata das mãos as armas, e não vingam transpô-lo. Contornam-no. Volvem aos lados. Vê-se um como rastilho de queimada: uma linha de baionetas enfiando pelos gravetos secos. Lampeja por momentos entre os raios do Sol joeirados pelas árvores sem folhas; e parte-se, faiscando, adiante, dispersa, batendo contra espessos renques de xiquexiques, unidos como quadrados cheios, de falanges, intransponíveis, fervilhando espinhos...

Circuitam-nos, estonteadamente, os soldados. Espalham-se, correm, à toa, num labirinto de galhos. Caem presos pelos laços corredios dos quipás reptantes; ou estacam, pernas imobilizadas por fortíssimos tentáculos. Debatem-se desesperadamente até deixarem em pedaços as fardas, entre as garras felinas de acúleos recurvos das macambiras...

Impotentes estadeiam, imprecando, o desapontamento e a raiva, agitando-se furiosos e inúteis. Por fim a ordem dispersa do combate faz-se a dispersão do tumulto. Atiram a esmo, sem pontarias, numa indisciplina de fogo que vitima os próprios companheiros. Seguem reforços. Os mesmos transes reproduzem-se maiores, acrescidas a confusão e a desordem; -enquanto em torno, circulando-os, rítmicos, fulminantes, seguros, terríveis bem apontados, caem inflexivelmente os projetis do adversário.

De repente cessam. Desaparece o inimigo que ninguém viu.

As seções voltam desfalcadas para a coluna, depois de inúteis pesquisas nas macegas. E voltam como se saíssem de recontro braço a braço, com selvagens: vestes em tiras; armas estrondeadas ou perdidas; golpeadas de gilvazes; claudicando, estropiados; mal reprimindo o doer infernal das folhas urticantes; frechados de espinhos...

Reorganiza-se a tropa. Renova-se a marcha. A coluna, estirada a dous de fundo, deriva pelas veredas em fora, estampado no cinzento da paisagem o traço vigoroso das fardas azuis listradas de vermelho e o coruscar intenso das baionetas ondulantes. Alonga-se; afasta-se; desaparece.

Passam-se minutos. No lugar da refrega, então, surgem, dentre moitas esparsas, cinco, dez, vinte homens no máximo. Deslizam, rápidos, em silêncio, entre os arbúsculos secos...

Agrupam-se na estrada. Consideram por momentos a tropa, indistinta, ao longe; e sopesando as espingardas ainda aquecidas, tomam precípites pelas veredas dos pousos ignorados.

A força vai prosseguindo mais cautelosa agora.

Subjugam o ânimo dos combatentes, caminhando em silêncio, o império angustioso do inimigo impalpável e a expectativa torturante dos assaltos imprevistos. O comandante rodeia-os de melhores resguardos: ladeiam-nos companhias dispersas, pelos flancos: duzentos metros na frente, além da vanguarda, norteia-os um esquadrão de praças escolhidas.

No descair da encosta agreste, porém, escancela-se um sulco de quebrada que é preciso transpor. Felizmente as barrancas, esterilizadas dos enxurros, estão limpas: escassos restolhos de gramíneas; cactos esguios avultando raros, entre blocos em montes; ramalhos mortos de umbuzeiros alvejando na estonadura da seca...

Desce por ali a guarda da frente. Seguem-se-lhe os primeiros batalhões. Escoam-se, vagarosas, as brigadas pela ladeira agreste. Embaixo, coleando nas voltas do vale estreito já está toda a vanguarda, armas fulgurantes, feridas pelo sol, feito uma torrente escura transudando raios...

E um estremecimento, choque convulsivo e irreprimível, fá-la estacar de súbito.

Passa, ressoando, uma bala.

Desta vez os tiros partem, lentos, de um só ponto, do alto, parecendo feitos por um atirador único.

A disciplina contém as fileiras; debela o pânico emergente; e como anteriormente, uma seção se destaca e vai, encosta acima, rastreando a direção dos estampidos. O torvelino dos ecos numerosos, porém, torna aquela variável; e os tiros não revelados, porque o fumo não se condensa naqueles ares ardentes, continuam lentos, assustadores, seguros.

Afinal cessam. Soldados esparsos pelos pendores, pesquisaram-nos inutilmente.

Volvem exaustos. Vibram os clarins. A tropa renova a marcha com algumas praças de menos. E quando as últimas armas desaparecem, ao longe, na última ondulação do solo, desenterra-se de montões de blocos -feito uma cariátide sinistra em ruínas ciclópicas- um rosto bronzeado e duro; depois um torso de atleta, encourado e rude; e transpondo velozmente as ladeiras vivas desaparece, em momentos, o trágico caçador de brigadas...

Estas seguem desinfluídas de todo. Daí por diante velhos lutadores têm pavores de criança. Há estremecimentos em cada volta do caminho, a cada estalido seco nas macegas. O exército sente na própria força a própria fraqueza.

Sem plasticidade segue numa exaustão contínua pelos ermos, atormentado no golpear das ciladas, lentamente sangrado pelo inimigo, que o assombra e que foge.

A luta é desigual. A força militar decai a um plano inferior. Batem-na o homem e a terra. E quando o sertão estua nos bochornos dos estios longos não é difícil prever a quem cabe a vitória. Enquanto o minotauro, impotente e possante, inerme com a sua envergadura de aço e grifos de baionetas, sente a garganta exsicar-se-lhe de sede e, aos primeiros sintomas da fome, reflui à retaguarda, fugindo ante o deserto ameaçador e estéril, aquela flora agressiva abre ao sertanejo um seio carinhoso e amigo.

Então -nas quadras indecisas entre a seca e o verde, quando se topam os últimos fios de água no lodo das ipueiras e as últimas folhas amareladas nas ramas das baraúnas, e o forasteiro se assusta e foge ante o flagelo iminente, aquele segue feliz nas travessias longas, pelos desvios das veredas, firme na rota como quem conhece a palmo todos os recantos do imenso lar sem teto. Nem lhe importa que a jornada se alongue, e as habitações rareiem, e se extingam as cacimbas, e escasseiem, nas baixadas, os abrigos transitórios, onde sesteiam os vaqueiros fatigados.

Cercam-lhe relações antigas. Todas aquelas árvores são para ele velhas companheiras. Conhece-as todas. Nasceram juntos; cresceram irmãmente; cresceram através das mesmas dificuldades, lutando com as mesmas agruras, sócios dos mesmos dias remansados.

O umbu desaltera-o e dá-lhe a sombra escassa das derradeiras folhas; o araticum, o ouricuri virente, a mari elegante, a quixaba de frutos pequeninos, alimentam-no a fartar; as palmatórias, despidas em combustão rápida dos espinhos numerosos, os mandacarus talhados a facão, ou as folhas dos juás -sustentam-lhe o cavalo; os últimos lhe dão ainda a cobertura para o rancho provisório; os caroás fibrosos fazem-se cordas flexíveis e resistentes... E se é preciso avançar a despeito da noite, e o olhar afogado no escuro apenas lobriga a fosforescência azulada dascunanãs dependurando-se pelos galhos como grinaldas fantásticas, basta-lhe partir e acender um ramo verde de candombá e agitar pelas veredas, espantando as suçuaranas deslumbradas, um archote fulgurante...

A natureza toda protege o sertanejo. Talha-o como Anteu, indomável. É um titã bronzeado fazendo vacilar a marcha dos exércitos.

Autonomia duvidosa

Ia-o demonstrar a campanha emergente... cópia mais ampla de outras que em todo o Norte têm aparecido, permitindo aquilatar-se de antemão tais dificuldades.

As medidas planeadas pelo general Solon denotavam, portanto, exata previsão de sucessos semelhantes, na luta excepcionalíssima para a qual nenhum Jomini delineara regras, porque invertia até os preceitos vulgares da arte militar.

Malgrado os defeitos do confronto, Canudos era a nossa Vendéia. O chouan e as charnecas emparelham-se bem com o jagunço e as caatingas. O mesmo misticismo, gênese da mesma aspiração política; as mesmas ousadias servidas pelas mesmas astúcias, e a mesma natureza adversa, permitiam que se lembrasse aquele lendário recanto da Bretanha, onde uma revolta depois de fazer recuar exércitos destinados a um passeio militar por toda a Europa, só cedeu ante as divisões volantes de um general sem fama, «as colunas infernais» do general Turreau -pouco numerosas mas céleres, imitando a própria fugacidade dos vendeanos, até encurralá-los num círculo de dezesseis campos entrincheirados.

Não se olhou, porém, para o ensinamento histórico.

É que se preestabelecera a vitória inevitável sobre a rebeldia sertaneja insignificante.

O governo baiano afirmou «serem mais que suficientes as medidas tomadas para debelar e extinguir o grupo de fanáticos e não haver necessidade de reforçar a força federal para tal diligência, pois as medidas tomadas pelo comandante do distrito significavam mais prevenção que receio»; e aditava «não ser tão numeroso o grupo de Antônio Conselheiro, indo pouco além de quinhentos homens, etc.»

Contravinha o chefe militar entendendo ter a repressão legal vingado o círculo das diligências policiais, cumprindo-lhe não mais prender criminosos «mas extirpar o móvel de decomposição moral que se observava no arraial de Canudos em manifesto desprestígio à autoridade e às instituições», acrescentando que a força federal deveria seguir bastante forte para se subtrair à contingência de «retiradas prejudiciais e indecorosas». O governo estadual, porém, agindo dentro do elástico art. 6º da Constituição de 24 de fevereiro, cerrou a controvérsia levantando o espantalho de uma ameaça à soberania do Estado, e repelindo a intervenção que lhe implicava incompetência para manter a ordem nos seus próprios domínios. Deslembrara-se que em documento público se confessara desarmado para suplantar a revolta e que apelando para os recursos da União justificava naturalmente a intervenção que procurava encobrir.

Vinha serôdio o falar em soberania apisoada pelos turbulentos impunes. Ademais ninguém se iludia ante a situação sertaneja. Acima do desequilibrado que a dirigia estava toda uma sociedade de retardatários. O ambiente moral dos sertões favorecia o contágio e o alastramento da neurose. A desordem, local ainda, podia ser núcleo de uma conflagração em todo o interior do Norte. De sorte que a intervenção federal exprimia o significado superior dos próprios princípios federativos: era a colaboração dos Estados numa questão que interessava não já à Bahia, mas ao país inteiro.

Foi o que sucedeu. A nação inteira interveio. Mas sobre as bandeiras vindas de todos os pontos, do extremo norte e do extremo sul, do Rio Grande ao Amazonas, pairou sempre, intangível, miraculosamente erguida pelas exegetas constitucionais, a soberania do Estado...

Para a resguardar melhor foi removido da Bahia o chefe da força militar, que traçara a sua atitude retilineamente pela lei. E somente depois disto a coluna do major Febrônio -até então oscilante entre Monte Santo e Queimadas e objetivando nas contramarchas as vacilações do governo- seguiu reforçada pela tropa policial e adstrita às deliberações do governo baiano.

Perdera-se esterilmente o tempo -que o adversário aproveitara, aparelhando-se a um revide enérgico. Num raio de três léguas em roda de Canudos, fizera-se o deserto. Para todos os rumos e por todas as estradas e em todos os lugares, os escombros carbonizados das fazendas e dos pousos avultavam, insulando o arraial num grande círculo isolador, de ruínas. Estava pronto o cenário para um emocionante drama da nossa história.

Travesia do Cambaio

No dia 29 de dezembro entraram os expedicionários em Monte Santo. O povoado de Frei Apolônio de Todi ia, a partir daquela data, celebrizar-se como base das operações de todas as arremetidas contra Canudos. Era o que mais se avantajava por aqueles sertões em fora na direção do objetivo da campanha, permitindo, além disto, mais rápidas comunicações com o litoral, por intermédio da estação de Queimadas.

A tais requisitos aliavam-se outros.

Vimos-lhe em páginas anteriores a gênese tocante.

Não dissemos, porém, que, criando-o, o estóico Anchieta do Norte aquilatara bem as condições privilegiadas do local.

De fato, a vila -erecta no sopé da serrania de onde promana a única fonte perene da redondeza- contrasta, insulada, com a esterilidade ambiente. Decorre isto de sua situação topográfica. A sublevação de rochas primitivas que se alteiam aos lados, para o norte e para leste, levanta-se como anteparo aos ventos regulares, que até lá progridem, e torna-se condensador admirável dos escassos vapores que ainda os impregnam, graças ao resfriamento decorrente de uma ascensão repentina pelos flancos das serranias. Depõem-se, então, aqueles, em chuvas quase regulares, originando regime climatológico mais suportável, a dous passos dos sertões estéreis para onde rolam, mais secos, os ventos, depois da travessia.

De sorte que enquanto em roda se desenrolam plainos desolados, num raio de alguns quilômetros partindo de Monte Santo se estende região incomparavelmente mais vivaz. Recortam-na pequenos cursos d'água resistentes às secas. Pelas baixadas, para onde descaem os morros, notam-se rudimentos de florestas, transmudando-se as caatingas em cerradões virentes; e o rio de Cariacá com seus tributários minúsculos, embora efêmero como os demais das cercanias, não se esgota de todo nas maiores secas: fraciona-se, retalhado em cacimbas reduzidas a imperceptíveis filetes deslizando entre pedras, mas permitindo ainda que resistam ao flagelo os habitantes convizinhos.

É natural que seja Monte Santo, desde muito, uma paragem remansada, predileta aos que se aventuram naquele sertão bravio. Não surgia pela primeira vez na história. Muito antes dos que agora o procuravam, outros expedicionários, porventura mais destemerosos e, com certeza, mais interessantes, por ali haviam passado, norteados por outros desígnios. Mas quer para os bandeirantes do século XVII, quer para os soldados destes tempos, o lugar predestinado constituiu-se escala transitória e breve mal relembrando em acontecimentos de maior monta. Não deixa, contudo, de ser expressiva a sua função histórica, entre devassadores de sertões, distintos por opostos intuitos e desunidos por três séculos, porém tendo -como veremos- a afinidade dos mesmos rancores e das mesmas arrancadas violentas.

Ali estacionara o pai de Robério Dias, Belchior Moréia, na sua rota atrevida «do rio Real para as serras de Jacobina pelo rio Itapicuru acima, buscando os sertões de Maçacará». E em torno desta entrada, continuaram outras, orientadas pelos roteiros confusos nos quais, todavia, o antigo nome da serra -Piquaraçá- se lê sempre, demarcando uma paragem benfazeja naqueles terrenos agros.

Por isto centralizou, de algum modo, a primeira agitação feita em torno das lendárias «Minas de Prata», desde as pesquisas inúteis do Muribeca, que até lá chegara e não passara avante, «com pouco efeito e pouca diligência», até ao tenaz Pedro Barbosa Leal, acompanhando as trilhas de Moréia e estacionando por muitos dias na montanha, onde marcas indecifráveis denotavam a passagem de antecessores igualmente audazes.

Passaram-se, porém, os tempos. Ficou perdida no sertão a serraria misteriosa onde muitos imaginavam, talvez a sede do eldorado apetecido, até que Apolônio de Todi a transformasse em templo majestoso e rude, como vimos.

E hoje quem segue pelo caminho de Queimadas, trilhando um solo abrolhando cactos e pedras, ao divisá-la, das cercanias de Quirinquinquá, duas léguas aquém, -estaca: volve em cheio para o levante a vista deslumbrada, e acredita que o ondular dos ares referventes e a fascinação da luz lhe alteiam defronte, entre o firmamento claro e as chapadas amplas, uma miragem estonteadora e grande.

A serra feita dessa massa de quartzito, tão própria às arquiteturas monumentais da Terra, alteia-se, ao longe, acrescida a altitude pelas várzeas deprimidas em torno. Lança retilínea a linha de cumeadas. A vertente oriental cai, a pique, lembrando uma muralha, sobre o vilarejo. Este ali se encosta, sobre socalco breve, humílimo, assoberbado pela majestade da montanha.

Entretanto é por esta acima até ao vértice que se prolonga, saindo da praça, a mais bela de suas ruas -a via-sacra dos sertões, macadamizada de quartzito alvíssimo, por onde têm passado multidões sem conto em um século de romarias. A religiosidade ingênua dos matutos ali talhou, em milhares de degraus, coleante, em caracol pelas ladeiras sucessivas, aquela vereda branca de sílica, longa de mais de dous quilômetros, como se construísse uma escada para os céus...

Esta ilusão é empolgante ao longe.

Vêem-se as capelinhas alvas, que a pontilham a espaços, subindo a princípio em rampa fortíssima, derivando depois, tornejantes, à feição dos pendores; alteando-se sempre, erectas sobre despenhadeiros, perdendo-se nas alturas, cada vez menores, diluídas a pouco e pouco no azul puríssimo dos ares, até a última, no alto...

E quem segue pelo caminho de Queimadas, atravessando um esboço de deserto, onde agoniza uma flora de gravetos -arbustos que nos esgalhos revoltos retratam contorções de espasmos, cardos agarrados a pedras ao modo de tentáculos constritores, bromélias desabotoando em floração sanguinolenta- avança rápido, ansiando pela paragem que o arrebata.

Chega; e não sofreia doloroso desapontamento.

A estrada vai até à praça, retangular, em declive, de chão estriado de enxurros. No centro o indefectível barracão da feira tem, ao lado, pequena igreja, e de outro o único ornamento da vila -um tamarineiro, secular talvez. Em torno casas baixas e velhas; e, sobressaído, um sobrado único que seria mais tarde o quartel-general das tropas.

Monte Santo, afinal, resume-se naquele largo. Ali desembocam pequenas ruas, descendo umas em ladeiras para larga sanga apaulada; abrindo outras para a várzea; outras embatendo, sem saídas, contra a serra.

Esta por sua vez, de perto, perde parte do encanto. Parece diminuir de altitude. Sem mais o perfil regular que assume à distância, tem, revestindo-lhe as encostas, uma flora de vivacidade inexplicável, arraigada na pedra, brotando pelas frinchas dos estratos e vivendo apenas das reações maravilhosas da luz. As capelinhas, tão brancas de longe, por sua vez aparecem exíguas e descuradas. E a estrada ciclópica de muros laterais, de alvenaria, a desabarem em certos trechos, cheia de degraus fendidos, tortuosa, lembra uma enorme escadaria em ruínas. O povoado triste e de todo decadente reflete o mesmo abandono, traindo os desalentos de uma raça que morre, desconhecida à História, entre paredes de taipa. Nada recorda o encanto clássico das aldeias. As casas baixas, unidas umas contra as outras, feitas à feição dos acidentes do solo, têm todas a mesma forma -tetos deprimidos sobre quatro muros de barro- gizadas todas por este estilo brutalmente chato a que tanto se afeiçoavam os primitivos colonizadores. Algumas devem ter cem anos. As mais novas, copiando-lhes, linha a linha, os contornos desgraciosos, por sua vez nascem velhas.

Deste modo, Monte Santo surge desgracioso dentro de uma natureza que lhe cria em roda -como um parênteses naquele sertão aspérrimo- situação aprazível e ridente.

A campanha incipiente ia agravar o seu aspecto. Menos que arraial obscuro, transformá-lo-ia em grandíssimo quartel acaçapado, envolto de casernas.

Triunfos antecipados

Ali acantonaram as 543 praças, 14 oficiais combatentes e 3 médicos -toda a primeira expedição regular contra Canudos. Era uma massa heterogênea de três cascos de batalhões, o 9º, o 26º e o 33º, tendo, adidas, duzentas e tantas praças de polícia e pequena divisão de artilharia, dous canhões Krupp 7 ½ e duas metralhadoras Nordenfeldt.

Menos de uma brigada, pouco mais de um batalhão completo.

Entretanto, afinados pelo otimismo oficial, as autoridades receberam os lutadores em triunfo, antes da batalha. Engalanou-se o vilarejo pobre, transfigurando-se, ataviado de bandeiras e ramagens, com o ornamento supletivo dos vivos fortes das fardas e irradiação das armas.

E fez-se um dia de festa. A missão mais concorrida, a mais animada feira, jamais tiveram tanto brilho. Tudo aquilo era uma novidade estupenda. Ao chegarem da rota fatigante, rompendo, surpreendidos, pelas ruas cheias de combatentes, os vaqueiros amarravam o campeão à sombra do tamarineiro, na praça, e iam quedar-se, longo tempo, contemplando as peças em que tanto ouviam falar e nunca haviam visto, capazes de esboroar montanhas e abalar com um só tiro, mais forte que o de mil roqueiras, o sertão inteiro. E aqueles titãs, enrijados pelos climas duros, estremeciam dentro das armaduras de couro considerando as armas portentosas da civilização.

Galgavam, muitos, logo, os lombilhos retovados e largavam, transidos de susto, da vila, demandando a caatinga. Alguns volviam a toda a brida para o norte, tocando para Canudos. Ninguém os percebia. Na alacridade dos festejos, não se distinguiam os emissários solertes de Antônio Conselheiro -espiando, observando, indagando, contando o número de praças, examinando todo o trem de guerra e desaparecendo depois, rápidos, precipitando-se para a aldeia sagrada.

Outros ali ficavam, encapotados, contemplando tudo aquilo com ironia cruel, certos do prelúdio hilariante de um drama doloroso. O profeta não podia errar: a sua vitória era fatal. Dissera-o -os invasores não veriam sequer as torres das igrejas sacrossantas.

Acendiam-se recônditos altares. E o riso dos soldados, e o estrépito das botas, percutindo as calçadas, e o vibrar dos clarins, e os vivas entusiásticos das ruas, coavam-se pelas paredes, penetravam as frestas das casas e iam perturbar, lá dentro, as preces abafadas dos fiéis genuflexos...

No banquete, preparado na melhor vivenda, ao mesmo tempo se ostentava o mais simples e emocionante gênero de oratória -a eloqüência militar, esta eloqüência singular do soldado, que é tanto mais expressiva quanto é mais rude- feita de frases sacudidas e breves, como as vozes de comando, e em que as palavras mágicas -Pátria, Glória e Liberdade- ditas em todos os tons, são toda a matéria-prima dos períodos retumbantes. Os rebeldes seriam destruídos a ferro e fogo... Como as rodas dos carros de Shiva, as rodas dos canhões Krupp, rodando pelas chapadas amplas, rodando pelas serranias altas, rodando pelos tabuleiros vastos, deixariam sulcos sanguinolentos. Era preciso um grande exemplo e uma lição. Os rudes impenitentes, os criminosos retardatários, que tinham a gravíssima culpa de um apego estúpido às mais antigas tradições, requeriam corretivo enérgico. Era preciso que saíssem afinal da barbaria em que escandalizavam o nosso tempo, e entrassem repentinamente pela civilização adentro, a pranchadas.

O exemplo seria dado. Era a convicção geral. Dizia-o a despreocupação e todo o arrebatamento feliz de uma população inteira; e a alegria ruidosa e vibrante dos oficiais e das praças; e toda aquela festa -ali- na véspera dos combates, a dous passos do sertão referto de emboscadas...

À tarde grupos ruidosos salpintavam a praça. Derivavam pelos becos. Espalhavam-se pelas cercanias. Atraídos pela novidade de uma perspectiva rara, outros ascendiam a montanha, pela ladeira sinuosa orlada de capelinhas brancas.

Paravam nos passos, refazendo-se para a ascensão exaustiva. Examinavam, curiosos, os registros e estampas, que pendiam às paredes, e os altares toscos; e subiam.

No «alto da Santa Cruz», batidos pelas lufadas fortes do nordeste, consideravam em torno.

Ali estava -defronte- o sertão...

Uma breve opressão salteava os mais tímidos; mas desaparecia prestes. Volviam tranqüilos para a vila, onde se acendiam as primeiras luzes, ao cair da noite...

Decididamente a campanha começara bem auspiciada.

Monte Santo antecipara-lhe as honras da vitória.

Incompreensão da campanha

Foi um mal.

Sob a sugestão de um aparato bélico, de parada, os habitantes preestabeleceram o triunfo; invadida pelo contágio desta crença espontânea, a tropa, por sua vez, compartiu-lhes as esperanças.

Firmara-se, de antemão, a derrota dos fanáticos.

Ora, nos sucessos guerreiros entra, como elemento paradoxal embora, a preocupação da derrota. Está nela o melhor estímulo dos que vencem. A história militar é toda feita de contrastes singulares. Além disto a guerra é uma cousa monstruosa e ilógica em tudo. Na sua maneira atual é uma organização técnica superior. Mas inquinam-na todos os estigmas do banditismo original. Sobranceiras ao rigorismo da estratégia, aos preceitos da tática, à segurança dos aparelhos sinistros, a toda a altitude de uma arte sombria, que põe dentro da frieza de uma fórmula matemática o arrebentamento de um shrapnel e subordina a parábolas invioláveis o curso violento das balas, permanecem -intactas- todas as brutalidades do homem primitivo. E estas são, ainda, a vis a tergo dos combates.

A certeza do perigo estimula-as. A certeza da vitória deprime-as.

Ora, a expedição ia na opinião de toda a gente, positivamente -vencer. A consciência do perigo determinaria mobilização rápida e um investir surpreendedor com o adversário. A certeza do sucesso imobilizou-a quinze dias em Monte Santo.

Analisemos o caso. O comandante expedicionário deixara em Queimadas grande parte de munições, para não protelar por mais tempo a marcha e impedir que os inimigos ainda mais se robustecessem. Assim, teve o intento de uma arremetida fulminante. Revoltado com as dificuldades que encontrara, entre as quais se notava quase completa carência de elementos de transporte, dispusera-se a ir celeremente ao couto dos rebeldes, embora levando apenas a munição que as praças pudessem carregar nas patronas. Isto, porém, não se realizou. De sorte que a partida rápida a uma localidade condena a demora inconseqüente na outra. Esta somente se justificaria se, ponderando melhor a seriedade das cousas, ele a aproveitasse para agremiar melhores elementos, fazendo, principalmente, vir de Queimadas o resto dos trens de guerra. Os inconvenientes de uma longa pausa, justificá-los-iam as vantagens adquiridas. Ganharia em força o que perdesse em celeridade. Às aventuras de um plano temerário, resumindo-se numa investida e num assalto, substituiria operação mais lenta e mais segura. Não fez isto. Fez o inverso: depois de longa inatividade em Monte Santo, a expedição partiu ainda menos aparelhada do que quando ali chegara quinze dias antes, abandonando, ainda uma vez, parte dos restos de um trem de guerra já muitíssimo reduzido. Entretanto, contravindo ao modo de ver dos propagandistas de uma vitória fácil, chegavam constantes informações sobre o número e recursos dos fanáticos. E no disparatado das opiniões -entre as que elevavam aquele, no máximo, a quinhentos, e as que o firmavam, decuplicando-o, no mínimo, em cinco mil, cumpria inferir-se uma média razoável. Além disto, de envolta num sussurrar de cautelosas denúncias e mal boquejados avisos, esboçava-se a hipótese de uma traição. Apontavam-se influentes mandões locais, cujas velhas relações com o Conselheiro sugeriam, veemente, a presunção de que o estivessem auxiliando à socapa, fornecendo-lhe recursos e instruindo-o dos menores movimentos da investida. Ainda mais, sabia-se que a tropa, quando mesmo o maior sigilo rodeasse as deliberações, seria, no avançar, precedida e ladeada pelos espias espertos do inimigo, muitos dos quais, verificou-se depois, dentro da própria vila acotovelavam os expedicionários. Uma surpresa, depois de tantos dias perdidos e em tais circunstâncias, era inadmissível. Em Canudos saberiam da estrada escolhida para linha de operações com antecedência bastante para se fortificarem os seus trechos mais difíceis, de sorte que, reeditando o caso de Uauá, o alcance do arraial preestabelecia a preliminar de um combate em caminho. Assim a partida da base de operações, do modo por que se fez, foi um erro de ofício. A expedição endireitava para o objetivo da luta como se voltasse de uma campanha. Abandonando novamente parte das munições, seguia como se, pobre de recursos em Queimadas, paupérrima de recursos em Monte Santo, ela fosse abastecer-se -em Canudos... Desarmava-se à medida que se aproximava do inimigo. Afrontava-se com o desconhecido, ao acaso, tendo o amparo único da fragilidade da nossa bravura impulsiva.

A derrota era inevitável.

Porque a tais deslizes se aditaram outros, denunciando a mais completa ignorância da guerra.

Revela-se a ordem do dia organizadora das forças atacantes.

Escassa como uma ordem qualquer distribuindo contingentes, não há rastrear-se nela a mais fugaz indicação sobre o desdobramento, formaturas ou manobras das unidades combatentes, consoante os vários casos fáceis de prever. Não há uma palavra sobre inevitáveis assaltos repentinos. Nada, afinal, visando uma distribuição de unidades, de acordo com os caracteres especiais do adversário e do terreno. Adstrito a uns rudimentos de tática prussiana, transplantados às nossas ordenanças, o chefe expedicionário, como se levasse o pequeno corpo de exército para algum campo esmoitado da Bélgica, dividiu-o em três colunas, parecendo dispô-lo, de antemão, para recontros em que lhe fosse dado entrar repartido em atiradores, reforço e apoio. Nada mais, além desse subordinar-se a uns tantos moldes rígidos de velhos ditames clássicos de guerra.

Ora estes eram inadaptáveis no momento.

Segundo o exato conceito de Von der Goltz, qualquer organização militar deve refletir alguma cousa do temperamento nacional. Entre a incoercível tática prussiana, em que é tudo a precisão mecânica da bala, e a nervosa tática latina, em que é tudo o arrojo cavalheiresco da espada, tínhamos a esgrima perigosa com os guerrilheiros esquivos cuja força estava na própria fraqueza, na fuga sistemática, num vaivém doudejante de arrancadas e recuos, dispersos, escapantes no seio da natureza protetora. Eram por igual inúteis as cargas e as descargas. Contra tais antagonistas e num tal terreno não havia supor-se a probabilidade de se estender a mais apagada linha de combate. Não havia até a possibilidade de um combate, no rigorismo técnico do termo. A luta, digamos com mais acerto, uma monteria a homens, uma batida brutal em torno à ceva monstruosa de Canudos, ia reduzir-se a ataques ferozes, a esperas ardilosas, a súbitas refregas, instantâneos recontros em que fora absurdo admitir-se que se pudessem desenvolver as fases principais daquele, entre os dous extremos dos fogos violentos, que o iniciam, ao epílogo delirante das cargas de baioneta. Função do homem e do solo, aquela guerra devia impulsionar-se a golpes de mão de estrategista revolucionário e inovador. Nela iam surgir, tumultuariamente, fundidas, penetrando-se, simultâneas, todas as situações, naturalmente distintas, em que se pode encontrar qualquer força em operações -a de repouso, a de marcha e a de combate. O exército marchando pronto a encontrar o inimigo em todas as voltas dos caminhos, ou a vê-lo romper dentre as próprias fileiras, surpreendidas, devia repousar nos alinhamentos da batalha.

Nada se deliberou quanto a condições tão imperiosas. O comandante limitou-se a formar três colunas e a ir para a frente, pondo diante da astúcia sutil dos jagunços a potência ronceira de três falanges compactas -homens inermes carregando armas magníficas. Ora, um chefe militar deve ter algo de psicólogo. Por mais mecanizado que fique o soldado pela disciplina, tendendo para esse sinistro ideal de homúnculo, feito um feixe de ossos amarrados por um feixe de músculos, energias inconscientes sobre alavancas rígidas, sem nervos, sem temperamento, sem arbítrio, agindo como um autômato pela vibração dos clarins, transfiguram-no as emoções da guerra. E a marcha nos sertões desperta-as a todo o instante. Trilhando veredas desconhecidas, envolto por uma natureza selvagem e pobre, o nosso soldado, que é corajoso na frente do inimigo, acobarda-se, invadido de temores, todas as vezes que este, sem aparecer, se revela, impalpável, dentro das tocaias. Assim, se um tiroteio das guardas da frente se constitui, na campanha, aviso salutar ao resto dos lutadores, naquelas circunstâncias anormais era um perigo. Quase sempre as seções se baralhavam, sacudidas pelo mesmo espanto, numa desordem súbita, tendendo a um refluxo instintivo para a retaguarda.

Era natural que fossem previstas estas conjunturas inevitáveis. Para atenuá-las, as diversas unidades deviam seguir com o máximo afastamento, embora agissem, no primeiro momento, completamente isoladas. Este dispositivo, além de lhes altear o ânimo, pela certeza de um pronto auxílio por parte das que fora da ação imediata do inimigo podiam acometê-lo levando a força moral do ataque, evitava o alastramento do pânico e facultava um desdobramento desafogado. Embora a direção dos vários movimentos escapasse da autoridade de um comando único, substituída pela iniciativa mais eficaz dos comandantes de pequenas unidades, agindo autônomas de acordo com as circunstâncias do momento, impunha-se largo fracionamento das colunas. Era parodiar a norma guerreira do adversário, seguindo-a paralelamente, em traçados mais firmes e opondo-lhe a mesma dispersão, única capaz de amortecer as causas de insucesso, de anular o efeito de repentinas emboscadas, de criar melhores recursos de reação, e de acarretar, ao cabo, a vitória, do único modo por que esta poderia ser alcançada, feito uma soma de sucessivos ataques parciais.

Em síntese, as forças, dispersas em marcha, a partir da base das operações, deviam ir, a pouco e pouco, apertando os fanáticos, concentrar-se em Canudos.

Fez-se sempre o contrário. Partiam unidas, em colunas, dentro da estrutura maciça das brigadas. Avançavam emboladas pelos caminhos em fora. Ia dispersar-se, repentinamente -em Canudos...

Em marcha para Canudos

Foi nestas condições desfavoráveis que partiram a 12 de janeiro de 1897.

Tomaram pela estrada do Cambaio.

É a mais curta e a mais acidentada. Ilude a princípio, perlongando o vale do Cariacá, numa cinta de terrenos férteis sombreados de cerradões que prefiguram verdadeiras matas.

Transcorridos alguns quilômetros, porém, acidenta-se; perturba-se em trilhas pedregosas e torna-se menos praticável à medida que se avizinha do sopé da Serra do Acaru. Dali por diante se encurva para leste transmontando a serrania por três ladeiras sucessivas, até galgar o sítio da Lajem de Dentro, alçado trezentos metros sobre o vale.

Gastaram-se dous dias para atingir-se este ponto. A artilharia reduzia a marcha. Ascendiam penosamente os Krupps, enquanto os separadores na frente reparavam a estrada, desentulhando-a e destocando-a, ou abrindo desvios contornantes, evitando fortíssimos declives. E a tropa, que tinha as condições de sucesso na mobilidade, paralisava-se presa no travão daquelas massas metálicas.

Transposta a Lajem de Dentro e a divisória das vertentes do Itapicuru e do Vaza-Barris, a estrada desce. Torna-se, porém, mais séria a travessia, metendo-se no acidentado de contrafortes, de onde fluem os tributários efêmeros do Bendegó. A bacia de captação deste desenha-se, então, ligando as abas de três serras, a do Acaru, a Grande e do Atanásio, que se articulam em desmedida curva. A expedição entrou por aquele vale fundo como uma furna até a um outro sítio, Ipueiras, onde acampou. Foi uma temeridade. O acampamento, envolto de fraguedos, centralizaria os fogos do inimigo, se este aparecesse pelo topo dos morros. Felizmente não chegavam até lá os jagunços. De sorte que na antemanhã seguinte, rumo firme ao norte, a tropa prosseguiu para Penedo, salva de uma posição dificílima.

Tinha meio caminho andado. As estradas pioravam, crivadas de veredas, serpeando em morros, alçando-se em rampas, caindo em grotões, desabrigadas, sem sombras...

Até Mulungu, duas léguas além do Penedo, os sapadores estradaram o solo para os canhões, e a jornada remorava-se no passo tardo da divisão que os guarnecia.

Entretanto, era imprescindível a máxima celeridade. Tornava-se suspeita a paragem: restos de fogueiras à margem do caminho e vivendas incendiadas davam sinais do inimigo. Em Mulungu, à noite, eles se tornaram evidentes. Alarmou-se o acampamento. Tinham-se distinguido, próximos, encobertos na sombra, rondando em torno, vultos fugazes, de espias. Os soldados dormiram em armas. E no amanhecer de 17 a expedição que se encravara nas montanhas, muito aquém ainda de um objetivo que podia ser atingido em três dias de marcha, começou de ser terrivelmente torturada.

Acabaram-se as munições de boca. Foram abatidos os dous últimos bois para quinhentos e tantos combatentes. Isto valia por um combate perdido. A feição da luta agravava-se em plena marcha, antes de se dar um tiro. Prosseguir para Canudos, poucas léguas distante, era quase a salvação. Era lutar pela vida.

Completando o transe, desapareceram à noite, em grande parte, os cargueiros contratados em Monte Santo. E sob o pretexto de providenciar para urgente remessa de munições, o comissário daquela vila largou para ignoradas paragens -e não voltou.

Alguém, entretanto, salvou a lealdade sertaneja, o guia Domingos Jesuíno. Conduziu as tropas para a frente até ao Rancho das Pedras, onde acamparam.

Estavam cerca de duas léguas de Canudos.

E à noite um observador que do acampamento atentasse para o norte, distinguiria talvez, escassas, em bruxeleiros longínquos, fulgindo e extinguindo-se, intermitentes, muito altas, como estrelas rubras entre nevoeiros, algumas luzes vacilantes. Demarcavam as posições inimigas.

Ao alvorecer, desdobraram-se imponentes.

As massas do Cambaio amontoavam-se na frente, dispostas de modo caprichoso, fundamente recortadas e gargantas longas e circulantes como fossos, ou alteando-se em patamares sucessivos, lembrando desmedidas bermas de algum baluarte derruído, de titãs.

A imagem é perfeita. São vulgares naquele trato dos sertões esses aspectos originais da terra. As lendas das «cidades encantadas», na Bahia, que têm conseguido dar à fantasia dos matutos o complemento de sérias indagações de homens estudiosos, originando pesquisas que fora descabido relembrar, não têm outra origem.

E não se acredite que as exagere a imaginação daquelas gentes simples, iludindo tanto a expectativa dos graves respingadores que por ali têm perlustrado, levando ansioso anelo de sábias sociedades ou institutos, onde se debateu o caso interessante. Frios observadores atravessando escoteiros aquele estranho vale do Vaza-Barris têm estacado, pasmos, ao defrontar.

«serras de pedra naturalmente sobrepostas formando fortalezas e redutos inexpugnáveis com tal perfeição que parecem obras de 'arte'»


Às vezes esta ilusão se amplia.

Surgem necrópoles vastas. Os morros, cuja estrutura se desvenda em pontiagudas apófises, em rimas de blocos, em alinhamentos de penedias, caprichosamente repartidos, semelham, de fato, grandes cidades mortas ante as quais o matuto passa, medroso, sem desfitar a esposa dos ilhais de cavalo em disparada, imaginando lá dentro uma população silenciosa e trágica de almas do outro mundo...

São deste tipo as «casinhas» que se vêem para lá do Aracati, perto da estrada de Jeremoabo a Bom Conselho; e outras, despontando por todos aqueles lugares e imprimindo um traço singularmente misterioso naquelas paisagens melancólicas.

Baluartes sine calcü linimenti

A Serra do Cambaio é um desses monumentos rudes.

Certo ninguém lhe pode enxergar geométricas linhas de cortinas ou parapeitos bojando em rebentes circuitados de fossos. Eram piores aqueles redutos bárbaros. Erigiam-se à têmpera dos que os guarneciam. E à distância, indistintos os ressaltos das pedras e desfeitos os vincos das quebradas, o conjunto da serra incute, de fato, no observador, a impressão de topar, de súbito, fraldejando-a, subindo por elas em patamares sucessivos e estendidas pelas vertentes, as barbacãs de velhíssimos castelos, onde houvessem embatido, outrora, assaltos sobre assaltos que os desmantelaram e aluíram, reduzindo-os a montões de silhares em desordem, mal aglomerados em enormes hemiciclos, sucedendo-se em renques de plintos, e torres, e pilastras truncadas, avultando mais ao longe no aspecto pinturesco de grandes colunatas derruídas...

Porque o Cambaio é uma montanha em ruínas. Surge, disforme, rachando sob o periódico embate de tormentas súbitas e insolações intensas, disjungida e estalada -num desmoronamento secular e lento.

A estrada para Canudos não a torneja. Ajusta-se-lhe, retilínea, às ilhargas, subindo em declive, constrangida entre escarpas, mergulhando por fim, feito um túnel, na angustura de um desfiladeiro. A tropa por ali enfiou...

Naquela hora matinal a montanha deslumbrava. Batendo nas arestas das lajens em pedaços, os raios do Sol refrangiam em vibrações intensas alastrando-se pelas assomadas, e dando a ilusão de movimentos febris, fulgores vivos de armas cintilantes, como se em rápidas manobras forças numerosas ao longe se apercebessem para o combate. Os binóculos, entretanto, percorriam inutilmente as encostas desertas. O inimigo traía-se apenas na feição ameaçadora da terra. Encantoara-se. Rentes com o chão, rebatidos nas dobras do terreno, entaliscados nas crastas -esparsos, imóveis, expectantes- dedos presos aos gatilhos dos clavinotes, os sertanejos quedavam, em silêncio, tenteando as pontarias, olhos fitos nas colunas ainda distantes, embaixo, marchando após os exploradores que esquadrinhavam cautelosamente as cercanias.

Caminhavam vagarosamente. Atulhavam as primeiras ladeiras cortadas a meia encosta. Seguiam devagar, sem aprumo, emperradas pelos canhões onde se revezavam soldados ofegantes em auxílio aos muares impotentes à tração vingando aqueles declives.

E foi nesta situação que as surpresou o inimigo.

Dentre as frinchas, dentre os esconderijos, dentre as moitas esparsas, aprumados no alto dos muramentos rudes, ou em despenhos ao viés das vertentes -apareceram os jagunços, num repentino deflagrar de tiros.

Toda a expedição caiu, de ponta a ponta, debaixo das trincheiras do Cambaio.

Primeiro encontro

O recontro fez-se em vozeira em quem, através dos costumeiros vivas ao «Bom Jesus» e ao «nosso Conselheiro», rompiam brados escandalosos de linguagem solta, apóstrofes insolentes, e entre outras uma frase desafiadora que no decorrer da campanha soaria invariável como um estribilho irônico:

«Avança! fraqueza do governo!»

Houve uma vacilação em toda a linha. A vanguarda estacou e pareceu recuar. Conteve-a, porém, uma voz imperiosa. O major Febrônio rompeu pelas fileiras alarmadas e centralizou a resistência -em réplica fulminante e admirável, atentas às desvantajosas condições em que se realizou. Conteirados rapi- damente os canhões, bombardearam os matutos a queima-roupa, e estes, vendo pela primeira vez aquelas armas poderosas, que decuplavam o efeito despedaçando pedras, debandaram, tontos, numa dispersão instantânea. Aproveitando este refluxo foi feita a investida, iniciada de pronto, pelas cento e tantas praças do 33º de Infantaria. Tropeçando, escorregando nas lajens, contornando-as, ou transpondo-as aos saltos, insinuando-se pelos talhados, atirando a esmo para a frente, as praças arremeteram com as rampas; e logo depois a linha do assalto se estirou, tortuosa e ondulante, extremada à direita pelo 9º e à esquerda pelo 16º e a polícia baiana.

O combate generalizou-se em minutos, e, como era de prever, as linhas romperam-se de encontro aos obstáculos do terreno. Foi um avançar em desordem. Fracionados, galgando penhascos a pulso, carabinas presas aos dentes pelas bandoleiras, ou abordoando-se às armas, os combatentes arremeteram em tumulto -sem o mínimo simulacro de formatura, confundidos batalhões e companhias- vagas humanas raivando contra os morros, num marulho de corpos, arrebentando em descargas, espadanando brilhos de aço, e estrugindo em estampidos sobre que passavam, estrídulas, as notas dos clarins soando a carga.

Embaixo, na ladeira em que ficara a artilharia, os animais de tração e os cargueiros, espavoridos pelas balas, partindo os tirantes, sacudindo fora canastras bruacas, desapareciam a galope ou tombavam pelos taludes íngremes. Acompanhou-os o resto dos tropeiros, fugindo, surdos às intimativas feitas com revólveres engatilhados, e agravando o tumulto.

No alto, mais longe, pelo teso da serra, reapareciam os sertanejos. Pareciam dispostos em duas sortes de lutadores: os que se agitavam, velozes, surgindo e desaparecendo, às carreiras, e os que permaneciam firmes nas posições alterosas. A cavaleiro do assalto, estes iludiam de modo engenhoso a carência de espingardas e o lento processo de carregamento das que possuíam. Para isto se dispunham em grupos de três ou quatro rodeando a um atirador único, pelas mãos do qual passavam, sucessivamente, as armas carregadas pelos companheiros invisíveis, sentados no fundo da trincheira. De sorte que se alguma bala fazia baquear o clavinoteiro, substituía-o logo qualquer dos outros. Os soldados viam tombar, mas ressurgir imediatamente, indistinto pelo fumo, o mesmo busto, apontando-lhes a espingarda. Alvejavam-no de novo. Viam-no outra vez cair, de bruços, baleado. Mas viam outra vez erguer-se, invulnerável, assombroso, terrível, abatendo-se e aprumando-se, o atirador fantástico.

João Grande

Este ardil foi logo descoberto pelas diminutas frações atacantes que se avantajaram até às canhoneiras mais altas. Chegaram ali esparsas. A fugacidade do inimigo e o terreno davam por si mesmos à tropa a distribuição tática mais própria, circunstância que, aliada ao pequeno alcance das armas daquele, tornara a expedição quase indene. Os únicos topreços à escalada eram as asperezas do solo. As cargas amorteciam-se nas escarpas. Não as esperavam os jagunços. Certos da inferioridade de seu armamento bruto, pareciam desejar apenas que ali ficassem, como ficaram, a maior parte das balas destinadas a Canudos. E falseavam a peleja franca. Via-se entre eles, sopesando o clavinote curto, um negro corpulento e ágil. Era o chefe, João Grande. Desencadeava as manobras, estadeando ardilezas de facínora provecto nas correrias do sertão. Imitavam-lhe os movimentos, as carreiras, os saltos, as figurações selvagens, os sertanejos amotinados -num vaivém de avançadas e recuos, ora dispersos, ora agrupados, ou desfilando em fileiras sucessivas, ou repartindo-se extremamente rarefeitos; e a rojões, rolantes pelos pendores, subindo, descendo, atacando, fugindo, baqueando trespassados de balas, muitos; malferidos, outros, em plena descida, e rolando até ao meio das praças, que os acabavam a couce de armas.

Desapareciam inteiramente, às vezes.

Os projetis das Mannlichers estralavam à toa na ossamenta rígida da serra. As seções avançadas ascendiam, porém, mais rápidas, pelas barrancas, conquistando o terreno, até que outra irrupção repentina do adversário lhes tomasse a frente, ou as aferrasse de soslaio. Algumas, então, paravam. Algumas recuavam mesmo, tolhidas de espanto, sem que as animassem oficiais acobardados, cujos nomes pouparam as partes oficiais, mas não os comentários acerbos dos companheiros. A maior parte reagia. Rompia o espingardeamento a queima-roupa sobre os fanáticos dizimando-os, espalhando-os, em grandes correrias pelos cerros.

Por fim o rude cabecilha predispô-los, ao que se figura, a recontro decisivo, braço a braço. O seu perfil de gorila destacou-se, temerariamente, à frente de um bando de súbito congregado. Num belo movimento heróico avançou sobre a artilharia. Cortou-lhe, porém, o passo a explosão de uma lanterneta estraçoando-o e aos caudatários mais próximos, enquanto os demais fugiam para as posições primitivas de envolta, agora, com as avançadas da tropa. Contingentes misturados de todos os corpos saltavam afinal dentro das últimas trincheiras à direita, perdendo o oficial que até lá os levara, Venceslau Leal.

Estava conquistada a montanha após três horas de conflito. A vitória, porém, resultava da coragem cega junta à mais completa indisciplina de fogo -e compreende-se que mais tarde a ordem do dia relativa ao feito desse preeminente lugar às praças graduadas. Os seus cabos-de-guerra foram os cabos-de-esquadra. Sobre os jagunços em fuga confluíram cargas em desordem: soldados em grupos, turbas sem comando disparando à toa as carabinas, num fanfarrear irritante e numa alacridade feroz de monteiros no último lance de uma batida a javardos.

Os jagunços escapavam-se-lhes adiante. Perseguiram-nos.

A artilharia, embaixo, começou a rodar, puxada a pulso, pelas ladeiras acima.

Realizara-se a travessia; e, tirante o dispêndio de munições, eram poucas as perdas -quatro mortos e vinte e tantos feridos. Em troca os sertanejos deixavam cento e quinze cadáveres, contados rigorosamente.

Episódio trágico

Fora uma hecatombe. Cumulou-a um episódio trágico.

A algara tumultuária teve um desfecho teatral.

Foi no volver das últimas bicadas da serra...

Ali sobre barranca agreste, avergoada de algares, se alteava, oblíqua e mal tocando por um dos extremos o solo, imensa lajem presa entre duas outras que a sustinham pelo atrito, semelhando um dólmen abatido. Este abrigo coberto tinha, na frente, a barbacã de um muro de rocha viva. Nele se acoutaram muitos sertanejos -cerca de quarenta, segundo um espectador do quadro- provavelmente os que possuíam as derradeiras cargas dos trabucos.

A terra protetora dava aos vencidos o último reduto.

Aproveitaram-no. Abriram sobre os perseguidores um tiroteio escasso, e fizeram-nos estacar um momento, fazendo parar, mais longe, a artilharia que se aprestou a bombardear o pequeno grupo de temerários.

O bombardeio reduziu-se a um tiro. A granada partiu levemente desviada do alvo, e foi arrebentar numa das junturas em que se engastava a pedra. Dilatou-a. Abriu-a, de alto a baixo.

E o bloco despregado desceu pesadamente, em baque surdo, sobre os infelizes, sepultando-os...

Reatou-se a marcha. Adiante, numa exaustão crescente, percebida no rarear dos tiros, os últimos defensores do Cambaio tocavam para Canudos. Desapareceram, por fim.

Nos tabuleirinhos

As colunas chegaram à tarde em Tabuleirinhos, quase à orla do arraial, e não prosseguiram aproveitando o ímpeto da marcha perseguidora. Combalidos da refrega e famintos desde a véspera, tiveram apenas abrandada a sede na água impura da lagoa minúscula do Cipó, e acamparam. Fizeram-no, porém, com o desleixo das fadigas acumuladas e, talvez, também com a ilusão enganadora do triunfo recente. De sorte que não pressentiram, em torno, a sobrerolda dos jagunços. Porque a nova da investida chegara ao arraial com os foragidos; e para quebrar o ímpeto do invasor sobrestante, grande número de lutadores de lá partiram. Meteram-se, imperceptíveis, pelas caatingas; e aproximaram-se do acampamento.

À noite circularam-no. A tropa adormeceu sob a guarda terrível do inimigo...

Segundo combate

Ao amanhecer, porém, nada lho revelou; e, formadas cedo, as colunas dispuseram-se ao último arranco sobre o arraial, depois de um quarto de hora a marche-marche sobre o terreno, que ali é desafogado e chão.

Mas antes de abalarem sobreveio ligeiro contratempo. Um shrapnel emperrara na alma de um dos canhões resistindo a todos os esforços para a extração. Adotou-se, então, o melhor dos alvitres: disparar o Krupp na direção provável de Canudos.

Seria uma aldrabada batendo às portas do arraial, anunciando estrepitosamente o visitante importuno e perigoso.

De fato, o tiro partiu... E a tropa foi salteada por toda a banda! Reeditou-se o episódio de Uauá. Abandonando as espingardas imperfeitas pelos varapaus, pelos fueiros dos carros, pelas foices, pelas forquilhas, pelas aguilhadas longas e pelos facões de folha larga, os sertanejos enterreiraram-na, surgindo em grita, todos a um tempo, como se aquele disparo lhes fosse um sinal prefixo para o assalto.

Felizmente os expedicionários, em ordem de marcha, tinham prontas as armas para a réplica, que se realizou logo em descargas rolantes e nutridas.

Mas os jagunços não recuaram. O arremesso da investida jogara-os dentro dos intervalos dos pelotões. E pela primeira vez os soldados viam, de perto, as faces trigueiras daqueles antagonistas, até então esquivos, afeitos às correrias velozes nas montanhas...

A primeira vítima foi um cabo do 9º. Morreu matando.

Ficou trespassado na sua baioneta o jagunço que o abatera atravessando-o com o ferrão de vaqueiro.

A onda assaltante passou sobre os dous cadáveres.

Tomara-lhe a frente um mamaluco possante, -rosto de bronze afeiado pela pátina das sardas- de envergadura de gladiador sobressaindo no tumulto. Este campeador terrível ficou desconhecido à história. Perdeu-se-lhe o nome. Mas não a imprecação altiva que arrojou sobre a vozeria e sobre os estampidos, ao saltar sobre o canhão da direita, que abarcou nos braços musculosos, como se estrangulasse um monstro:

«Viram, canalhas, o que é ter coragem?!»

A guarnição da peça recuara espavorida, enquanto ela rodava, arrastada a braço, apresada.

Era o desastre iminente.

Avaliou-o o comandante expedicionário, que tudo indica ter sido o melhor soldado da própria expedição que dirigiu. Animou valentemente os companheiros atônitos e, dando-lhes o exemplo, precipitou-se contra o grupo. E a luta travou-se braço a braço, brutalmente, sem armas, a punhadas, quase surda: um torvelinho de corpos enleados, de onde se difundiam estertores de estrangulados, ronquidos de peitos ofegantes, baques de quedas violentas...

O canhão retomado volveu à posição primitiva. As cousas, porém, não melhoraram. Apenas repelidos os jagunços, num retroceder repentino que não era uma fuga, mas uma negaça perigosa, fervilharam no matagal rarefeito, em roda: vultos céleres, fugazes, indistintos, aparecendo e desaparecendo nos claros das galhadas. Novamente esparsos e intangíveis, punham, ressoantes, sobre os contrários, os projetis grosseiros -pontas de chifre, seixos rolados, e pontas de pregos- de sua velha ferramenta da morte, desde muito desusada. Renovavam o duelo a distância, antepondo as espingardas de pederneira e os trabucos de cano largo às Mannlichers fulminantes. Volviam ao sistema habitual de guerra, o que era delongar indefinidamente a ação, dando-lhe um caráter mais sério que o do ataque violento anterior; fazendo-a derivar cruelmente monótona, sem peripécias, na iteração fatigante dos mesmos incidentes, até ao esgotamento completo do adversário que, relativamente incólume, cairia afinal exausto de os bater, vencido pelo cansaço de minúsculas vitórias, num esfalfamento trágico de algozes enfastiados de matar; punhos amolecidos e frouxos pelo multiplicado dos golpes; forças perdidas em arremessos doudos contra o vácuo.

A situação desenhou-se insanável.

Restava aos invasores um recurso em desespero de causa: -o avançar aforradamente, deslocando o campo do combate, e cair sobre o arraial, assaltantes e assaltados, tendo às ilhargas os guerrilheiros atrevidos, e talvez na frente, antes da entrada daquele, outros reforços tolhendo-lhes o passo. Mas nesse pelejar em marcha de três quilômetros, as munições, prodigamente gastas na façanha prejudicial do Cambaio, talvez se extinguissem em caminho e não podia alvitrar-se o meio extremo de se ultimar a empresa a choques de armas brancas, ante a sobrecarga muscular dos soldados famintos e combalidos a que se aditavam cerca de setenta feridos agitando-se, inúteis, na desordem.

Estava, além disto, excluída a hipótese eficaz de um bombardeio preliminar: restavam apenas vinte tiros de artilharia.

A retirada impôs-se urgente e inevitável. Reunida em plena refrega a oficialidade, o comandante definiu-lhe a situação e determinou que optasse por uma das pontas do dilema: o prosseguimento da luta até o sacrifício completo ou o seu abandono imediato. Foi aceita a última sob a condição expressa de não se deixar uma única arma, um único ferido e não ficar um único cadáver insepulto.

Este recuo, entretanto, era de todo contraposto aos resultados diretos do combate. Como na véspera, as perdas sofridas de um e outro lado estavam fora de qualquer paralelo. A tropa perdera apenas quatro homens excluídos trinta e tantos feridos, ao passo que os contrários, desconhecido o número dos últimos, foram dizimados.

Um dos médicos contou rapidamente mais de trezentos cadáveres. Tingira-se a água impura da lagoa do Cipó e o sol batendo de chapa na sua superfície, destacava-a, sinistramente no pardo escuro da terra requeimada, como uma nódoa amplíssima, de sangue...

A Legio Fulminata de João Abade

A retirada foi a salvação. Mas o investir de arranco com o arraial, arrostando tudo, talvez fosse a vitória.

Desvendemos -arquivando depoimentos de testemunhas contestes- um dos casos originais dessa campanha. Algum tempo depois de travado o conflito em Tabuleirinhos, os habitantes de Canudos, impressionados com a intensidade dos tiroteios, alarmaram-se; e prevendo as conseqüências que adviriam se os soldados ali chegassem, de chofre, caindo sobre a beataria medrosa, João Abade reuniu o resto dos homens válidos, cerca de seiscentos, seguindo em reforço aos companheiros. A meio caminho, porém, a sua coluna foi inopinadamente colhida pelas balas. Atirando contra os primeiros agressores no lugar do encontro, os soldados mal apontavam; de sorte que, na maior parte, os tiros, partindo em trajetórias altas, se lançavam segundo o alcance máximo das armas. Ora, todos estes projetis perdidos, passando sobre os combatentes, iam cair, adiante, no meio da gente de João Abade. Os jagunços, perplexos, viam os companheiros baqueando, como fulminados; percebiam o assovio tenuíssimo das balas e não lobrigavam o inimigo. Em torno os arbúsculos estonados e raros não permitiam tocaias; os cerros mais próximos viam-se desnudos, desertos. E as balas desciam incessantes, aqui, ali, de soslaio, de frente, pelo centro da legião surpreendida, pontilhando-a de mortos -como uma chuva silenciosa de raios... Um assombro supersticioso sombreou logo nos rostos mais enérgicos. Volveram, atônitos, as vistas para o firmamento ofuscante, varado pelos ramos descendentes das parábolas invisíveis; e não houve, depois, contê-los. Precipitaram-se, desapoderadamente, para Canudos, onde chegaram originando alarma espantoso.

Não havia ilusão possível: o inimigo, dispondo de engenhos de tal ordem, ali estaria em breve, sobrestante, no rastro dos derradeiros defensores do arraial. Quebrou-se o encanto do Conselheiro. Tonto de pavor, o povo ingênuo perdeu, em momentos, as crenças que o haviam empolgado. Bandos de fugitivos, sobraçando trouxas estavanadamente feitas, porfiavam na fuga, atravessando, rápidos, a praça e os becos, demandando as caatingas, sem que os contivessem os cabecilhas mais prestigiosos; enquanto as mulheres, em desalinho, em gritos, soluçando, clamando, numa algazarra indefinível, mas ainda fascinadas, agitando os relicários, rezando se agrupavam à porta do Santuário, implorando a presença do evangelizador.

Novo milagre do conselheiro

Mas Antônio Conselheiro, que nos dias normais mesmo evitava encará-las, naquelas aperturas estabeleceu separação completa. Subiu com meia dúzia de fiéis para os andaimes altos da igreja nova, e fez retirar, depois, a escada.

O agrupamento agitado ficou embaixo, imprecando, chorando, rezando. Não o olhou sequer o apóstolo esquivo, atravessando impassível sobre as tábuas que inflectiam, rangendo. Atentou para o povoado revolto, em que se atropelavam, prófugos, os desertores da fé, e preparou-se para o martírio inevitável...

Neste comenos sobreveio a nova de que a força recuava.

Foi um milagre. A desordem desfechava em prodígio.

Começara, de fato, a retirada.

Extintas as esperanças de sucesso, resta aos exércitos infelizes o recurso desse oscilar entre a derrota e o triunfo, numa luta sem vitórias em que, entretanto, o vencido vence em cada passo que consegue dar para a frente, pisando, indomável, o território do inimigo -e conquistando a golpes de armas todas as voltas dos caminhos.

Ora, a retirada do major Febrônio se, pelo restrito do campo em que se operou, não se equipara a outros feitos memoráveis, pelas circunstâncias que a enquadraram é um dos episódios mais emocionantes de nossa história militar. Os soldados batiam-se ia para dous dias, sem alimento algum, entre os quais mediava o armistício enganador de uma noite de alarmas; cerca de setenta feridos enfraqueciam as fileiras; grande número de estropiados mal carregavam as armas; os mais robustos deixavam a linha de fogo para arrastarem os canhões ou arcavam sobre feixes de espingardas, ou, ainda, em padiolas, transportavam malferidos e agonizantes; -e, na frente desta multidão revolta, se estendia uma estrada de cem quilômetros, em sertão maninho, inçado de tocaias...

Ao perceberem o movimento, os jagunços encalçaram-na.

Capitaneava-os, agora, um mestiço de bravura inexcedível e ferocidade rara, Pajeú. Legítimo cafuz, no seu temperamento impulsivo acolcheteavam-se todas as tendências das raças inferiores que o formavam. Era o tipo completo do lutador primitivo -ingênuo, feroz e destemeroso- simples e mau, brutal e infantil, valente por instinto, herói sem o saber -um belo caso de retroatividade atávica, forma retardatária de troglodita sanhudo aprumando-se ali com o mesmo arrojo com que, nas velhas idades, vibrava o machado de sílex à porta das cavernas...

Este bárbaro ardiloso distribuiu os companheiros pelas caatingas, ladeando as colunas.

Estas marchavam lutando. Dado um último choque partindo o círculo assaltante, começou a desfilar pelas veredas ladeirentas, sem que se lobrigasse neste movimento gravíssimo, o mais sério das guerras, o mais breve resquício de preceitos táticos onde avulta a clássica formatura em escalões permitindo às unidades combatentes alternarem-se na repulsa.

É que a expedição perdera de todo em todo a estrutura militar, nivelados oficiais e praças de pré pelo mesmo sacrifício. Enquanto o comandante, cujo ânimo não afrouxara, procurava os pontos mais arriscados; enquanto capitães e subalternos, sobraçando carabinas, se precipitavam, de mistura com as praças de pré, em cargas feitas sem vozes de comando, um sargento, contra todas as praxes, dirigia a vanguarda.

Desta maneira penetraram de novo nas gargantas do Cambaio. Ali estava a mesma passagem temerosa, estreitando-se em gargantas, ou içada a meia encosta, num releixo sobre os abismos; entalando-se entre escarpas; aberta a esmo ao viés das vertentes; sobranceada em torno o percurso pelas trincheiras alterosas. Uma variante apenas: de bruços ou de supino sobre as pedras, desenlapando-se à boca das furnas, esparsos pelas encostas, viam-se os jagunços vitimados na véspera.

Os companheiros sobreviventes passavam-lhes, agora, de permeio, parecendo uma turba vingadora de demônios entre caída multidão de espectros...

Não arremetiam mais em chusma sobre a linha, desafiando as últimas granadas; flanqueavam-na, em correrias pelos altos, deixando que agisse, quase exclusiva, a sua arma formidável -a terra. Esta bastava-lhes. O curiboca que partira a lazarina ou perdera o ferrão no torvelino, volvia o olhar em torno -e a montanha era um arsenal. Ali estavam blocos esparsos ou arrumados em pilhas vacilantes prestes a desencadear o potencial de quedas violentas, pelos declives. Abarcava-os; transmudava a espingarda imprestável em alavanca; e os monólitos abalados oscilavam, e caíam, e rolavam, a princípio em rumo incerto entre as dobras do terreno, depois, mais rápidos, pelas normais de máximo declive, despenhando-se, por fim, vertiginosamente, em saltos espantosos; e batendo contra as outras pedras, e esfarelando-as em estilhas, passavam como balas rasas monstruosas sobre as tropas apavoradas.

Estas embaixo salvavam-se cobertas pelo ângulo morto do próprio caminho a meia encosta, sob uma avalanche de blocos e graeiros. As fadigas da marcha abatiam-nas mais que o inimigo. O Sol culminara ardente e a luz crua do dia tropical, caindo na região pedregosa e despida, refluía aos espaços num flamejar de queimadas grandes alastrando-se pelas serras.

A natureza toda quedava-se imóvel naquele deslumbramento, sob o espasmo da canícula. Os próprios tiros mal quebravam o silêncio: não havia ecos nos ares rarefeitos, irrespiráveis. Os estampidos estalavam, secos, sem ressoarem; e a brutalidade humana rolava surdamente dentro da quietude universal das cousas...

A travessia das trincheiras foi lenta.

Entretanto, os sertanejos por bem dizer não agrediam.

Num tripúdio de símios amotinados pareciam haver transmudado tudo aquilo num passatempo doloroso e num apedrejamento. Desfilavam pelos altos em corrimaças turbulentas e ruidosas. Os lutadores embaixo seguiam como atores infelizes, no epílogo de um drama mal representado. Toda a agitação de dous dias sucessivos de combates e provações tinha o repentino desfecho de uma arruaça sinistra. Piores que as descargas, ouviam brados irônicos e irritantes, cindidos de longos assovios e cachinadas estrídulas, como se os encalçasse uma matula barulhenta de garotos incorrigíveis.

Assim chegaram, ao fim de três horas de marcha, a Bendegó de Baixo. Salvou-os a admirável posição desse lugar, breve planalto em que se complana a estrada, permitindo mais eficazes recursos de defesa.

O último recontro aí se fez, ao cair da noite, à meia-luz dos rápidos crepúsculos do sertão.

Foi breve, mas temeroso. Os jagunços deram a última investida com a artilharia, que timbravam em arrebatar à tropa. As metralhadoras, porém, disparadas a cavaleiro, rechaçaram-nos; e, varridos a metralha, deixando vinte mortos, rolaram para as baixadas, perdendo-se na noite...

Estavam findas as horas de provações.

Um incidente providencial completou o sucesso. Fustigado talvez pelas balas, um rebanho de cabras ariscas invadiu o acampamento, quase ao tempo em que refluíam os sertanejos repelidos. Foi uma diversão feliz. Homens absolutamente exaustos apostaram carreiras doudas com os velozes animais em torno dos quais a força circulou delirante de alegria; prefigurando os regalos de um banquete, após dous dias de jejum forçado; e, uma hora depois, acocorados em torno das fogueiras, dilacerando carnes apenas sapecadas -andrajosos, imundos, repugnantes- agrupavam-se, tintos pelos clarões dos braseiros, os heróis infelizes, como um bando de canibais famulentos em repasto bárbaro...

A expedição, no outro dia, cedo, prosseguiu para Monte Santo.

Não havia um homem válido. Aqueles mesmos que carregavam os companheiros sucumbidos claudicavam, a cada passo, com os pés sangrando, varados de espinhos e cortados pelas pedras. Cobertos de chapéus de palha grosseiros, fardas em trapos, alguns tragicamente ridículos mal velando a nudez com os capotes em pedaços, mal alinhando-se em simulacro de formatura, entraram pelo arraial lembrando uma turma de retirantes, batidos dos sóis bravios, fugindo à desolação e à miséria.

A população recebeu-os em silêncio.

Procissão dos jiraus

Naquele mesmo dia, à tarde, animaram-se de novo as encostas do Cambaio. O fragor dos combates, porém, trocara-se pela assonância das litanias melancólicas. Lentamente, caminhando para Canudos, extensa procissão derivava pelas serras. Os crentes substituíam os batalhadores e volviam para o arraial, carregando aos ombros, em toscos pálios de jiraus de paus roliços amarrados com cipós, os cadáveres dos mártires da fé.

O dia fora despendido na lúgubre pesquisa, a que se dedicara a população inteira. Haviam-se esquadrinhado todas as anfractuosidades, e todos os dédalos rasgados entre as pedras, e todos os algares fundos, e todas as taliscas apertadas...

Muitos lutadores ao baquearem pelas ladeiras, em resvalos, tinham caído em barrocais e grotas; outros, mal seguros pelas arestas pontiagudas das rochas atravessando-lhes as vestes, balouçavam-se sobre abismos; e, descendo às grotas profundas, e alando-se aos vértices dos fraguedos abruptos, colhiam-nos os companheiros compassivos.

À tarde ultimava-se a missão piedosa.

Faltavam poucos, os que a tropa queimara.

O fúnebre cortejo seguia agora para Canudos...

Muito baixo no horizonte, o Sol descia vagarosamente, tangenciando com o limbo rutilante o extremo das chapadas remotas, e o seu último clarão, a cavaleiro das sombras, que já se adunavam nas baixadas, caía sobre o dorso da montanha... Aclarou-o por momentos. Iluminou, fugaz, o préstito que seguia à cadência das rezas. Delizou, insensivelmente, subindo, à medida que lentamente ascendiam as sombras, até ao alto, onde os seus últimos raios cintilaram nos píncaros altaneiros. Estes fulguravam por instantes, como enormes círios, prestes acesos, prestes apagados, bruxuleando na meia-luz do crepúsculo.

Brilharam as primeiras estrelas. Rutilando na altura, a cruz resplandecente de Órion alevantava-se sobre os sertões...