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Portugal y España

Conde do José Maria Caldeira Casal Ribeibo





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Pois que entre as boas fortunas, que, no decurso da minha já longa existencia, me tem deparado o favor alheio e o concurso de circunstancias, mais que a valia propria, nenhuma tenho por melhor e mais brilhante que esta de pertencer a uma corporação scientifica de tão alta nomeiada e relevantes serviços, a qual conta no sen seio varões de preclarissima fama justamente admirados por sua vasta erudição e esclarecido criterio nos ramos dos conhecimentos historicos, não só dentro da nobre Hespanha, mas em todo o mundo scientifico.

Se o amor proprio é sentimento universal humano, e portanto, mais que demonstração de modestia, seria signal de hypocresia,ocultar o contentamento grande produzido pela subidissima   —470→   honraria, não deixa de mesclarse nessa alegria o temor de parecer que, em mou proveito, por nimiedade de benevolencia, abriu a Academia excepção ao justo rigor com que habitualmente procede, no recrutamento de seus socios. Pois é bem certo que, na falta de provas de aptidão nos estudos historicos, que formam um dos mais bellos e o mais complexo ramo do saber humano, na carencia de titulos estampados em volumes, é legitima a surpreza por me achar elevado á cathegoria de membro de tão alta e esplendente assemblea scientifica.

Favor tamanho, tão excepcionalmente manifestado, cargo tão alto, como o de Academico da historia, não sollicitado, nem conquistado, e apesar disso unanimemente conferido por mestres da sciencia, somente posso suspeitar devel'o á constancia, á tenacidade no criterio, que, desde mais de um quarto de seculo, venho proclamando e inantendo sobre a situação reciproca, que as lições da historia e as necessidades do presente imperiosamente prescrevem aos dois reinos peninsulares. Essecriterio (devo dizel'o sem ambages aquelles a quem tanto devo) nunca foi em mim producto de enthusiasmo momentaneo, nem filiado em circunstancias accidentaes da politica interna ou externa, nem procedente apenas da affectuosidade ingenita entre filhos de stirpe commum, e visinhos, entre cujas casas e campos não levantou a natureza barreiras de caudalosos rios e alpestres cordilheiras. Não com a mão na conciencia o affirmo-o meu antigo e permanente criterio de politica de lealdade, de intimidade, de cordealidade e cooperação entre Hespanha e Portugal, foi haurido na meditação attenta, e formada pelo estudo imparcial das condições anteriores e actuaes das duas nações, que, cohabitam o territorio e partilham a população da nossa formosa e queridissima peninsula.

Chamado á gerencia do ministerio dos negocios externos em 1866, pelo finado Rei o Snr D. Luiz I, foi condição de minha acceitação o programma, que, acolhido pelos collegas , foi logo traduzido na circular ás legações portuguezas, de 29 de maio de 1866, impressa no primeiro livro branco, ou collecção de documentos diplomaticos, que em Portugal foi presente ao Parlamento.

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Eis-aquí a substancia daquella circular: «Estender e alargar as relações commerciaes do nosso paiz com as outras nações do mundo civilizado, e estreitar e fortificar assim, por uma solidariedade mais intima dos interesses economicos, os laços de mutua amizade e benevolencia, que felizmente nos ligam a essas nações.»

«Manter na grande lucta, que parece inminente na Europa, (a guerra austro-prussiana, donde resultou a hegemonia da Prussia em Alemanha) imparcialidade completa, leal e absoluta neutralidade, visto que nas questões que se agitan, como se apresentam na actualidade, nem os direitos, nem os interesses de Portugal são envolvidos.»

«Estreitar muito particularmente os vinculos de amizade e confiança que nos unem ao reino visinho, vinculos que, no interesse de ambos os povos peninsulares, convem que sejam cada vez mais intimos e cordeaes, dando á fraternidade de Portugal e Hespanha a unica base solida, a unica compativel com as tradições gloriosas dos dois povos, a unica apropriada a accrescentar á felicidade commum o pleno e mutuo respeito da independencia de cada um.»



Seis meses depois, em amigavel conferencia celebrada em Lisboa com o General Calonje, Ministro d'Estado da Rainha Isabel, desenvolviam-se estas bases de politisa peninsular com absoluta franqueza e leal confiança. E' authentica a versão do nosso ilustre consocio o Snr. Sanchez Moguel nas paginas da Ilustración: «Somos dos hermanos (era a minha formula) que hace mucho tiempo hicieron las particiones, pusieron casa aparte y fundaron sus respectivas familias. Como Hermanos debemos vivir en paz, gobernando cada uno su casa, según sus necesidades peculiares, pero auxiliándonos siempre con verdadero cariño en todos los asuntos de interés común dentro y fuera de la península

Não foi estranha á inauguração da politica de cooperação a viagem a Lisboa da Soberana d'Hespanha realisada em dezembro de 1866, nem a visita do Rei de Portugal celebrada no verão seguinte no Real sitio da Granja.

Durante um anno mais, até setembro de 1868, se proseguio aproveitando todo o ensejo de solidificar a politica de cooperação.   —472→   Interrompeu a, como era fatal, a incerta orientição proveniente dos termos negativos proclamados na revolução de setembro de 1868. Não é meu intento lavrar a critica daquelle acontecimento devido porventura mais a fatalidade de circunstancias do que á vontade deliberada de muitos, que nelle tiveram intervenção proeminente. Não me será, porem, levado a conta de temeridade afirmar que, na ausencia em Hespanha de regimen firmemente fundado na tradição monarchica, ou de nova organisação constitucional com visos de exito, não era licito a Portugal senão reserva e observasão attenta das vicissitudes, que rapidamente se iãm succedendo alem da raia; isto sem sombra de malquerença e menos ridicula pretensão de influencia nos destinos da nação irmã. Assim foi que da revolução hespanhola de 1868 proveio a suspensão do movimento de aproximação entre os dois povos peninsulares.

Se agora o recordo é para commemorar a presente rehabilitação do intimo trato entre a minha patria e a patria hespanhola, a tendencia, traduzida ja em actos officiaes, de apertar os laços mercantis, abrir os veios da communicação assidua litteraria e scientifica, de haurir, em fim, em commum, no salutar ambiente da nossa querida peninsula, derribados viciosos anteparos artificiaes construidos pela inercia ou pelo preconceito, a sande, a força, a dignidade de ambos, com a confiança propria de irmãos por nascimento, como nos fez a raça, e irmãos por sorte, como nos fez a historia.

Eu creio (e com esta crença experimento suave alento reste ultimo quartel da vida) eu creio que desta vez a aproximação moral de Portugal e Hespanha está feita de vez, e sem visos de se repetirem novas vacilações e desmaios. Assim o creio, porque, no meu paiz, observo a transformação operada no juizo publico sobre tão grave problema.

Passa já por verdade firme, que a vergonha impede de impugnar abertamente, o que, ha um quarto de seculo, na epocha, a que acima me referi, se affigurava á immensa maioria dos portuguezes excentricidade imaginosa, senão temeraria audacia. As tendencias manifestas d'hoje corrigiram as duvidas d'hontem, e restabeleceram o criterio são da politica peninsular.

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Relembre-se aquella sentença profunda proferida pelo nosso sabio Director, em periodo solemne da historia hispanica contemporanea. «Eu venho (disse) continuar a historia d'Hespanha.»

Pois nós tambem, nós os que vimos trabalhando na honrada obra da cooperação hispano-portugueza, nós com menos auctoridade, mas com fé egual, pretendemos continuar a historia da peninsula.

Não é com enthusiasmos irreflectidos; não é com racionalismos abstractos, que prescindem dos principaes elementos componentes das nacionalidades; não é com planos chimericos, contradictorios das tendencias da actualidade, equidistantes de tradições veneraveis e de aspirações legitimas; não é, emfim, impelindo a sociedade ao revez das correntes seculares, tentando a navegação por mares ignotos, alijando o lastro, que equilibra a nave, desattendendo a bussola por demasias de ambição, e pondo a mira em chimericos organismos, que se ha de fundar o bem estar e a grandeza da patria peninsular. Não; é ephemera a obra do homem, que não tem por base a stratifição lenta e solida, producto do trabalho operado pelas gerações.

Com o lavor de oito seculos se formou o particularismo linguistico e a autonomia politica de Portugal. Desconhecel'o, ou pensar em o supprimir, por magias de transformismo, não passa de erro gravissimo ou tentativa absurda levando no proprio seio a certeza da condemnação. Porem exagerar o separatismo a ponto de fabricar o isolamento, contradizer a lei historica, que creou de Pyreneus para o sul o genio peninsular, contrariar as harmonias, que derivam da communidade de raça, que se deduzem dos paralellismos da historia, que se impoem pela unidade de interesses, de sentimentos e aspirações, seria por outro lado, não somente desvio do trilho natural marcado pela Providencia, mas crime de lesa civilização. Porque na historia da civilização geral nos coube a nós, os filhos das Hespanhas, intervenção gloriosissima em passados seculos, e nos cabe hoje ainda e sempre hade caber, embora em mais modestos planos, a defeza dos foros de independencia com dignidade, a qual, apesar de debilidades e decadencias, forma o fundo do nosso culto, a essencia indomavel da alma nacional.

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Frisando ao de leve estes dois grandes capitulos da nossa existencia, não passarei adeante sem acentuar uma impressão pessoal, que, se não é universalmente compartida, tão pouco reputo excentrica e menos ainda paradoxal. E' que, tributando incondicional admiração aos feitos dos nossos descobridores e colonisadores dos seculos 15.º e 16.º, commungando no geral applauso pela expansão magnificente da nossa raça, quando aventurosa se lançou atravez dos mares, portuguezes pelo tenebroso, costeando e torneiando a Africa até á India, hespanhoes pelo Athlantico em fora buscando a America, ahi Colombo saindo de Palos, aqui o Gama largando do Restello, ambos conquistando mundos novos para as corôas de Portugal e Castella, depois Magalhães, portuguez de origem, castelhano de adopção entrando no Pacifico, com o rumo nas Indias por lado de Oriente, depois Elcano circumnavegando o globo por vez primeira; embevecendo-me na epopea maravilhosa, que nos aporta ao mundo, portuguezes e hespanhoes, solidarios no apice das grandezas da nossa era d'ouro... reservo todavia, mais devoto culto pelas demonstrações patentes e singulares dos povos iberos no amor ferrenho, desesperado, delirante, quasi feroz pela independencia do solo patrio, ainda em tempos calamitosos, nos quaes o organismo nacional se achava desequilibrado, desconjuntado, em presença do poderio enorme de heroes e conquistadores estrangeiros.

Sem demasia de arrogancia se pode affirmar que nenhum povo na Europa amiga ou moderna, den mais ou tanto, como nós, prova inconcussa de ser por tal modo sagrado no peito desta gente o fôgo da independencia, que elle renasce do subsolo, mesmo quando montões de cinzas cobrem a superficie. O rancor indomito ao jugo extranho, sem se curvar a superioridades alheias, sem se assombrar com penurias proprias, é o mais caracteristico traço desta nobre raça iberica.

A distancia de quasi dois mil annos, os primeiros do nosso seculo reproduzem as scenas do final do sexto e começo do setimo seculos da edificação de Roma. Naquella remota epocha era ja extincto Annibal, carthaginez por origem, hispano por educação, o qual nas Hespanhas recrutaca as formidaveis hostes, com que invadiu a Italia amedrontada na segunda guerra punica,   —475→   Annibal o grande capitão, maior que Alexandre, como o confessa Cornelio Nepos com ingenuidade louvavel, por vir de romano fallando do inimigo. Si verum est, quod nemo dubitat, ut populus romanus omnes gentes virtute superari, non est inficiendum Annibalem tanto praestitisse coeteros imperatores prudentia, quanto populus romanus antecedat fortitudine cunctas nationes. Morto Annibal, fora tambem arrasada Carthago, a opulentissima rival de Roma; e a cidade de Romulo, convertida ja em metropole do universo conhecido, submettera a Grecia, patria das artes e da sciencia, domara a Macedonia, berço de Alexandre, Prussia primitiva da Europa oriental, ja sujeita a Roma até ao Euxino. Completara-se tambem com a annexação da Gallia Cisalpina a unidade italiana.

Pois foi então, então quando Roma trazia ja ornada a cabeça com a corôa do imperio universal que encontrou harreira nos iberos semi-barbaros, desprovistos de riquezas, sem organismo militar, acephalos de soberanos e generaes. A cada passo os iberos desfeiteiam as legiões tidas por invenciveis. Dos Herminios surge Viriato, que alguns escriptores romanos denominaram primeiro rei do paiz iberico, e outros capitularam de Romulo da Hespanha, ao qual só faltou a fortuna, que nunca abandonou os descendentes do filho sacrilego de Rhea Silvia e de Marte. Viriato derrota Fabio Maximo, o consul filho de Paolo Emilio, triunfador dos Macedonios, e logo o pretor Quincio, e logo outro Fabio Maximo irmão adoptivo do primeiro. Morre por traição negra o heroe herminio, e levanta-se a vingal'o celtibero Megaravico, que duas vezes vence, com poucos guerreiros, o quadruplo dos romanos commandados por Quinto Pompeu.

Numancia sempre resistente, em cerco não menos memoravel que o de Troya, impõe a paz aos vencedores do mundo, forgando-os á vergonha de renegar a fé jurada. Numancia detem os impetos do propio vencedor de Carthago, embota-lhe as glorias convertidas aqui na paciente tactica do Cunctator ensaiada antes contra Annibal. Somente quaudo a fome extingue a vida dos ultimos defensores, só então atravessa o limiar das portas da cidade heroica o pé do conquistador romano.

Quem era o auctor, o protogonista da desesperada sublevação?...   —476→   Quem? Ninguem, e toda a gente. Era o sangue, a raça; era o culto dos penates, a adoração pela terra mater onde repousavam os ossos dos maiores; era o enraizamento do indigena no chão da patria. Era a subversão des exercitos scientificamente adestrados pelo arranque ingenito, devastador, mobil como o vento, ja occulto nas selvas como fera, ja caindo das serras como avalancha. Era a patria iberica guardada pela creação espontanea, singular do genio nacional... pela guerrilha.

E' ainda o mesmo genio indomavel que toma partido nas guerras civis, em que se consommmem os ultimos dias da grande republica. E' elle quem forma as hostes sublevadas de Sertorio; é elle que, ao lado dos filhos de Pompeo, em Munda e em Hispalis, estremece a fortuna de Cesar, a ponto de o fazer pensar no suicidioquando apenas bruxuleava a aurora do futuro dominador do mundo. E' o genio hispanico sobrio, insubmisso á fome e á canseira, guerreiro por indole a ponto que, repelido o inimigo extranho, por vezes o busca na misera lucta das internas dissensões. Tal com apurada observação o descreveu Justino: «Corpora hominum ad inediam, laboremque, animi ad mortem parati. Dura omnibus et adstricta parcimonia. Bellum quam otium malunt; si extraneus deest domi hostem quaerunt.»

Feição identica á da lucta contra o poder romano, nova, egual e maravilhosa erupção da viril alma nacional, melhor ajudada pela sorte, reproduz-se na peninsula quasi vinte seculos depois, nos primeiros annos da actual centuria. Ja aqui, em vez de turdetanos ou vetões, celtiberos, callaicos ou lusitanos, havia, castelhanos, aragonezes, andaluzes, catalães, navarros, vascos, gallegos e portuguezes.

Que importa, se eramos todos filhos dos antigos ramos iberos? Que importa, se hespanhoes e portuguezes, divididos por dois reinos autonomos por tradição, eramos irmãos por sentimento, e resgatavamos junctos com sangue a jorros a terra da patria? Que importa, se, como dantes, com o mesmo indomavel impeto, das serras, das cumiadas, das selvas, dos plainos ressurgia a guerrilha, e das guerrilhas formavam-se novos, valorosos, diciplinados exercitos contra o poder omnimodo de Napoleão no apogeu?...

Jaziam então os nossos fracos reis, um no captiveiro do francez,   —477→   outro no dourado exilio do Brazil. Haviam decaido a infimo grao as instituições da milicia regular. Nada, porem, obstou á reconquista do sagrado solo da patria. Nada, nem o fulgurante prestigio do inimigo, pois que cem vetes maior que o do antigo conquistador romano, era, no alvorocer desde seculo, o prestigio do Imperador dos francezes.

Do abominavel predominio do terror, do immenso lodaçal ensanguentado, apodrecido nas corrupções do directorio tinham levantado vôo as aguias imperiaes, derramando, desde as nuvens por toda, a parte a preclara fama do herdeiro da republica. Napoleão, o colosso moderno, mais potente, mais genial que Alexandre e Cesar, domador da Europa culta inutilmente colligada, rompendo á propria ambição todo o dique, regeitando como sacrilega toda a opposição á vontade propria, era o inimigo, o conquistador até então invencivel. Que importa? A lenda napoleonica teve, nas campanhas da peninsula, o primeiro e decisivo capitulo do seu epitaphio, cujo epilogo lavraram os gêlos da Russia.

De 1808 a 1814 combatem separados ao principio os exercitos de Portugal e Hespanha, mas pugnando pela mesma causa. A' forte resistencia de Llobregat contra as armas de Duhesme corresponde a da Roliça contra as de Junot. A victoria do Vimeiro decide a convenção de Cintra e a retirada dos francezes por mar. Da jornada gloriosa de Baylen resulta a capitulação do exercito de Dupont. Saragossa, excedendo em valor a Numancia ensopa os campos, as praças, as ruas com o sangue do invasor; para os heroicos defensores desprezando a morte certa pela fome, pelas balas, pelo incendio cada monumento é um castello, cada casa um baluarte, d'onde a fusilaria, a pedra, o azeite e agua fervendo vomita o exterminio no momento em que já parecia segura a conquista. Mais tarde Massena, até alli cognominado anjo da victoria, estaca inerte perante as formidaveis linhas, que, em cordilheira seguida se estendem desde Torres Vedras até ao Tejo. Depois reunidas e entrelaçadas com as legiões hespanholas as portuguezas desde Badajoz e Almeida, desde os campos afortunados de Talavera e Vitoria até aos Pyreneus e alem delles, vibram o golpe vingador da patria no peito do colosso moderno.

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Nem se ponse qué haja em apreciações semelhantes exageração patriotica, e menos assomos de petulante altivez. Nas paginas do historiador do consulado e do imperio, com a eloquencia clarissima que dotava o grande orador moderno, a cada passo ressuma a justa homenagem ao indomito genio hispanico, embora aqui ou alli sombreada, com certo desdem por um povo extranho e adversario, formula inseparavel da filaucia gauleza. E' bem seguro que o ardente patriotismo de Thiers lhe encheria o peito de enthusiasmo, se na medonha derrotada sua querida França, que lhe foi dado presenciar, e mesmo quanto possivel atenuar nos seus effeitos politicos e economicos, elle podesse gosar o contentamento de presenciar tambem essa mescla de patriotismo com cegueira e ferocidade, de grandes acções com atrozes crines, que na sua critica imputa á nobre resistencia da peninsula contra a prepotencia do invasor francez.

O certo é que a magnifica repulsão antiga contra o predominio extranho, renovada agora, dá attestado das qualidades da raça, pois que não está alli um traço peculiar da historia de Hespanha ou de Portugal, mas da historia commum de ambas as nações.

Quando dois povos unidos pela continuidade geographica e pelo parentesco da stirpe realisam juntos proezas semelhantes, sectarios da mesma fé, sorrindo á mesma esperança, ardentes no mesmo amor patrio sublime; quando ambos succumbem juntos para erguer-se amanhã no triunfo, quando do pó mordido pelos soldados e regado pelo sangue dos martyres, ressurgem simultaneas, enthusiastas, invictas, as legiões que hão de expellir o conquistador para alem Pyreneus e alem mar, que valem sophismas ou preconceitos de particularismo excesivo para arrancar ás raizes da historia commum o tronco soberbo do commum ideal?

Outro exemplo frisante é a sorte excepcional das Hespanhas na dissolução do imperio romano. Em quanto no mundo romano, amolecido no luxo, apodrecido pela devassidão e calcado pelas hordas barbaras, é estirpada a ferro e fogo a planta damninha da corrupção, aqui, depois do curto periodo da invasão de suevos, alanos e vandalos, fixam-se por singular fortuna os wisigodos, tão dispares e superiores, dos nomadas que assolam a Europa transpyrenaica. Aqui não se subvertem os traços da civilisação   —479→   anterior; revigoram-se e purificam-se de prompto na fé christã.

Em vez de exterminio, a infiltração saudavel do sangue novo. Mal cabe o apodo de barbaros aos companheiros de Leovigildo, que funde os povos dispersos na unidade nacional, ou aos de Recaredo que abjura o arianismo, e, com o culto catholico aberto aos fieis, abre tambem a era, em que os Concilios de Toledo hão de vir lavrar impericiveis monumentos de sabedoria legislativa. Não cabe o nome de barbaros aos auctores do codigo de Alarico, nem aos legisladores do Fuero Juzgo, onde a philosophia juridica resplandece com luz clarissima. Veja-se por exemplo no tit.º 2.º a definição de lei: «Lex est aemula divinitatis, antistes religionis, fons disciplinarum, artifex juris, bonos mores inveniens atque componens, gubernaculum civitatis, justiliae nuntia, magistra vitae, anima totius corporis popularis.»

Lastima grande foi a invasão sarracena; mas dessa, no periodo enthusiasta da expansão alkoranica salvámos nós a Europa, mais que a espada de Carlos Martel, guerreiando incessantes por oito seculos, desde Pelayo até Isabel e Fernando, desde Covadonga até Granada na epopea maravilhosa da reconquista.

Dos incidentes da lucta derivou a formação do reino portuguez no seculo XII. Deparou-nos a sorte um chefe superior aos contemporaneos na pericia de guerreiro e no engenho de estadista. Favoreceu o ceo o primeiro Rei portuguez talhado para o intento com o dom da longevidade. Affonso Henriques alargou o reino desde o embryão minhoto pelas margens do Douro, do Mondego e do Tejo; com os talhos largos do montante, com a sagacidado diplomatica de sen talento singular creou a nação portugueza. Com mais quatro gerações de Affonsos e Sanchos, senão eguaes ao progenitor, nenhum indigno delle, e todos continuadores do seu pensamento, dentro em pouco mais de cem annos, o reino portuguez, expurgado da mourama, estava assente nos limites, que os seculos respeitaram.

Esta precedencia excepcional na fructificação da laboriosissima obra da reconquista é a origem incontroversa da autonomia portugueza.

Ainda assim a solidariedade com Leão e Castella não se supprime. Antes de conquistado por inteiro o Algarve, em 1212,   —480→   Affonso II de Portugal combate contra os agarenos na grande batalla de Navas de Tolosa. Completa já de ha muito por sen avô a integridade do territorio portuguez, Afonso IV acode a Tarifa, alliado ao genro, feito que o nosso grande epico do seculo XVI celebra naquelles bellissimos versos:



Entrava a formosissima Maria
Pelos paternaes paços sublimados;
[...]

Quantos povos a terra produzio
De Africa toda, gente fera e estranha,
O grão Rei de Marrocos conduzio
Para vir possuir a nobre Hespanha:
[...]

Acude, e corre, pae; que se não corres
Pode ser que não aches quem soccores.
[...]

Juntos os dois Affonsos finalmente,
Nos campos de Tarifa, estão defronte
Da grande multidão da cega gente
[...]

Ja se hia o sol ardente recolhendo,
[...]

Quando o poder do mauro grande e horrendo
Foi pelos fortes Reis desbaratado,
Com tanta mortandade, que a memoria
Nunca no mundo vio tão grão victoria.»



Não somente nas façanhas da guerra empenhada contra os sarracenos se manifestava a irmandade dos reinos de Portugal e Castella, mas tambem em allianças de familia. Já em Castella já em outras mais remotas regiões d' Hespanha buscavam esposa os Reis de Portugal; assim como em Portugal a procuravam os Soberanos dessas regiões. E bem foi, por exemple, ao Rei lavrador, ao fundador da Universidade, o sabio Diniz achando em Isabel de Aragão, a Rainha santa, mesira em christianismo purissimo, segura e certa inspiradora, superior á que a lenda   —481→   creou na nimpha Egeria, que, no bosque sagrado, dictava as leis ao Rei legislador dos primeiros romanos.

E' certo, porem, que a solidariedade com os reinos da nova Hespanha não impedio a consolidação da autonomia portugueza. Já no seculo XIV, havia arreigado tão fundo o sentimento particularista, que, sem embargo das debilidades de D. Fernando e das intrigas de D.ª Leonor Telles, o elemento popular quasi sem excepção, e a melhoria, senão a maioria da nobreza levantaram na pessoa do bastardo d' Aviz dynastia nova contra a pretensãdo á corôa de D. João de Castella. O direito dynastico geralmente respeitado naquelles tempos duas vezes cedeu no mesmo seculo, perante a repulsão dos povos á imposição de Rei estranho. Direito semelhante apoiado nas armas foi repelido pela derrota. Aljubarrota e Toro ficaram na historia como lições memoraveis.

Fomos na primeira vencedores os portuguezes, pugnando pelo Mestre d' Aviz; fomos no segundo vencidos quando, com Affonso o Africano, e seu filho, a quem mais tarde chamaram Principe perfeito, desconhecemos no brio castelhano o direito de reger-se por filho de Castella. E' que sobre o afferro dos povos á sua perfeita independencia, essa virtude antiga de iberos, e moderna de hespanhoes e portuguezes, não prevalecem a superioridade nas armas, nem os argumentos genealogicos das familias regias.

Se em 1640 sacudimos o jugo dos Filipes, em verdade menos duro do que approuve figural'o a escriptores propagandistas de lendas patrioticas, não foi a restauração principalmente devida a causas minusculas, embora muitas dellas coefficientes, como tambem affirmaram outros historiadores menos veridicos na critica.

Foi sobre tudo e mais que tudo o genio autonomista portuguez a origem da restauração personificada na nova dynastia dos Braganças. Aqui alludindo a essa epocha tão diversamente apreciada, cumpre prestar homenagem ao criterio imparcial e profundamente verdadeiro do sabio Director da nossa Academia nos seus magnificos Estudios del Reinado de Filipe IV.

Julguei e julgo adquirida a evidencia da lei de attracção ordenada pela geographia e pela ethnographia, promulgada pela harmonia de sentimentos e interesses entre todas as regiões da peninsula   —482→   iberica, sem exceptuar Portugal. Aprendi nas proprias perturbações incidentaes occorridas no desenvolvimento dessa lei providencial, que toda a violencia ou artificio empregado para lhe accrescentar a intensidade, servio sempre, ao revez, para desviar-lhe a acção, e demorar-lhe o predominio.

Pode agradar, e naturalmente agrada mais ao nosso espirito a memoria do muito que nos unio, do que a do pouco que nos separou. Mas não é licito na tradição escolher uma parte por florida e regeitar outra por sombria.

O culto da tradição não é o fetichismo da immobilidade; mas é a base solida de todo o progresso seguro. Na rocha firme da tradição, e não na areia movediça de theorias abstractas deve assentar o edificio social.

Ninguem melhor o conhece que a doutissima congregação de sabios que compoem a Real Academia da Historia. A ella pois, com o renovado protesto de imperecivel gratidão, submeto a exposiação sincera do meu parecer sobre o ideal da politica peninsular.





Lisboa, 30 de Julho de 1893.



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