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Guido de Warwick, historia latine exarata: um epígono de romance de cavalaria entre os monges de Alcobaça

Aires A. Nascimento


[Nota preliminar: reproduïm l'edició digital de l'obra oferint la possibilitat de consultar l'edició facsímil dels ff. 252v-253v del manuscrit del fons del Monestir Cistercenc d'Alcobassa, dipositat a la Biblioteca Nacional de Portugal (B.N. Alc. 414); foliació en color blau.]



1. No final de um manuscrito do fundo do mosteiro cisterciense de Alcobaça (B. N. Alc. 4141), encontramos lançado um pequeno conto, em latim, que não ocupa mais de fólio e meio (seis colunas de texto, fl. 252v-253v), e que tem passado despercebido.2

O seu interesse começa quando nos damos conta que ele corresponde ao conto de Guido de Warwick, de Inglaterra. É assim a história de um cavaleiro que, inicialmente enamorado da filha do próprio senhor, depois de ter provado o seu valor em aventuras pelas mais diversas partes do mundo e de, com isso, ter obtido a mão de sua amada, alguns dias após o casamento, se faz romeiro e de romeiro se torna ermita desconhecido na própria terra, onde volta a vestir as armas para a salvar dos inimigos que pretendem subjugá-la.3

Ainda que passado para latim e em versão resumida, a identificação do romance de cavalaria que está na base não sofre dúvidas. Os nomes são equivalentes, ainda que com algumas variantes menores ou omissões: Gui ou Guido (Gye, na versão inglesa do séc. XV) é Guinus (forma que tem na base o antigo caso-regime Guynon, de Guy, caso-sujeito)4; Felícia, ou Felice, é Felix (em transliteração de variante vulgar Felys, atestada em 1379, em vez de Felicia, anterior)5; Warwick é Baruic; Anlaf, o rei estrangeiro que invade a Inglaterra, é Ouius; o gigante Colbrond é Colibronte. Há algumas omissões: o nome do Conde de Warwick, Rohand (ou Rohold), não é referido, como o não é também o do rei Athelstan e o das terras inglesas (Whitsuntide, por exemplo, onde se situa o palácio contal). Alguns episódios da narrativa são também silenciados (como a luta contra o dragão, após o regresso de Guido à sua terra, ao fim de sete anos de aventuras cavaleirescas). Eliminada é igualmente a referência ao septenário de anos que demoram as aventuras de Guido antes de ser aceite em casamento por Felice. Mas permanece o duplo período em que a comprovação do seu valor se realiza. Excluído fica ainda o quase desespero em que Felice entra quando o marido lhe anuncia os seus propósitos de mudança de vida. Sem registo fica finalmente o reencontro de Guido e de Felice à hora da morte daquele. Em compensação o tempo dilata-se de tal modo que o filho de ambos cresce e vai em busca de seu pai, sem todavia o encontrar.

Tais variantes, se são de considerar numa análise de dependência, não prejudicam a narrativa. Guino, passavante do Conde Warwick, em Inglaterra, arrebatado de amor pela filha do senhor, consome-se em paixão silenciosa e está às portas da morte, quando recebe a visita da amada, Felice. A declaração de amor tem como resposta um adiamento até o passavante ganhar a promoção a cavaleiro, através de provas correspondentes. Assim se dispõe ele a fazer até ao momento em que volta à sua pátria coberto de glória para ser armado cavaleiro. Uma vez cumprida a condição, Felice aceita recebê-lo em casamento. Com a morte do conde titular, que ocorre dias depois, Guino é investido na dignidade. Todavia, quarenta dias após o casamento, ele cai em si e recordando os crimes entretanto cometidos por causa do amor de uma mulher, resolve mudar de vida: partirá como peregrino pelo mundo fora, fazendo assim penitência. Sua esposa fica surpreendida, mas sentindo-se responsável da primeira decisão, também agora lhe não nega o seu consentimento e ela própria divide com ele o anel de casamento que um dia será sinal de reconhecimento. Felice fica grávida de um filho. Passados anos, resolve este ir em busca de seu pai. Para tal efeito, monta espera numa encruzilhada, onde interpela quem passa. Um dia chega um ancião, alquebrado pelos anos e pelo regime de penitência a que se entregara. A sua recusa em confiar-lhe o nome dá lugar a luta entre pai e filho, acabando aquele por sair molestado, mas sem revelar o segredo da sua identidade. Guino volta assim ignorado à sua terra, onde toma lugar nas filas de pobres que todos os dias se apresentam para obter esmola junto ao palácio condal. Felice, sua esposa, não o reconhece, mas ele pode apreciar a fidelidade que ela lhe mantém. Lembrando-lhe a memória do seu marido, consegue dela a construção de um ermitério, onde ele passará os seus dias. Um acontecimento vem alterar esta tranquilidade. Um dia, os inimigos invadem o reino de Inglaterra. O rei é derrotado e o seu inimigo, o rei Óvio, propõe-lhe resolver o conflito por um duelo entre um gigante, de nome Colibronte, e alguém que o rei de Inglaterra escolha entre os seus homens. Ninguém se apresenta em tais circunstâncias. Em ajuda do rei vem uma voz divina que durante a noite lhe revela que será o ancião vestido de branco que costuma vir esmolar junto ao palácio quem há-de lutar contra o gigante e vencê-lo. As recusas iniciais são ultrapassadas e o ancião assume a luta com o gigante. A sorte propende em primeiro momento para o gigante e todos temem o pior do lado inglês, com excepção do rei, que se mantém confiante. Num segundo tempo, os factores alteram-se e o ancião leva o outro de vencida, decepando-lhe o braço esquerdo e depois a mão direita. Perante a fuga dos inimigos, as ovações dos seus conterrâneos e os testemunhos de gratidão do rei, o ancião apenas pretende voltar ao seu retiro. O rei deseja saber a identidade daquele que ele se atreve a considerar como seu súbdito, pois a fala o denuncia. Depois da promessa de que o seu nome só será revelado depois da sua morte, o ancião aceita revelá-lo.

Eis o texto original:

  -[fol. 252v]-  

In Anglia comes Baruic communi nomine sic dictus olim fuit. Ei dumtaxat filia nomine Felix [erat] cuius radicitus illius amorem signifer Guinus tenebat, et dudum amore raptus cecidit in grabatum. Quem non solum comes uerum etiam celeri quam maxime condolebant quia humilis, curialis, facundus et affabilis6 [atque] inter cunctos bonus erat. Et iam quasi propinquus morti ad ipsum Felix perrexit.

Que, eius amorem ignorans, cur sic neci apropinquabat ignoto morbo illi ait. Cui subicere uix uerbo potuit quod in corde tenebat et si remedium improm[p]tum non adhiberet, omnino, quia presto mors erat, decederet.

Tum sagax illa sapienter illi respondet: amice Guine, uiuite iam, precor, namque me diligitis, sic mihi uos amare libet. Disponente deo, armis tanta geretis ut nec propter gentes dictamenue uerecundia impediat et ad uestri libitum que optatis fient.

Letus Guinus reuixit confortatus. Post dies uero surrexit et, dum bene sanus, comitem petiit ut militem eum statueret quia militaria opera exercere uolebat. Placuit quidem comiti, precanti deum, ut milicie nomen incopulularet. Denique scutiferis duobus concomitatus, in Franciamque Alemaniam perrexit. Ibidem tanta gestabat quod ab omnibus diligebaturque laudabatur non solum militia sed urbanitate et summa largitate. Aduolat per quascumque mundi partes iamque discurrebat fama. Quamobrem reuersus in comitis domum est; qui ingenti aplausuque leticia eum recepit.

Post aliquot dies, cuncta numerans gesta propter Felicem facta, eam petiit amorem.

Cui illa: amice Guine, donec tanta exerceatis quod tempore nostro nomen excelentis militie acquiratis, non satisfaciam petitioni quia nec mihi acresceret nec honos uobis.

Huius arcani tamen nemo preter hos conscius erat. Libuitque ei, comitem licentiam petit; inde recessit in Ytaliamque Romam denique Greciamque Pruciam. Ceterum quibuscumque partibus pugna excelentes milites sciebat hos indagabat. Demum, maiora opera nunc quam primum fecit, unquam uictus est. Quapropter nomen melioris militis totius mundi tunc temporis acquisiuit.

Tempore uero illo a patre Felix ut nuberet requisita respuit, poscens ut non iuberet donec illa peteret.

Postquam igitur Guinus tanta fecisse intellexit quod eum laudes non fugerent sed etiam dignum optati facerent reuersus in Angliam et strenue receptus ab omnibus est, singulariter tamen a comite ac si filius esset promittens facturum se omnia que ad eius posse forent.

Post diues aliquot amorem petiit. Respondens illa ait: uerbum patri offeram; si iubet, obtemperabo.

Domnum concitem petit Guinus et ait: filiam peto cui, comes, si illi libuerit, placet.

Que interrogata respondet: filia sum, patris uoluntas fiat.

Factis conubiis, in uxorem illam recepit. Post breues dies, decessit comes. Guinus tunc institutus est comes. Qui nocte una steliferum celum respiciens consideransque diuina opera permansuraque mundana casura itidem multorum neces quos propter mundi laudem occiderat, in corde relinquere uxorem proposuit et seruitio dei se dare per loca stranea, de terra in terram peregrinando, dum dies breues uiueret. Heus, dulcis amica, ait, tui amore dei amorem perdidi et mala multa contra eius uoluntatem peregi; in illum me errare cognosco optoque emendari et Iherusalem gressus dirigere et ad cetera loca que romipite solent uisitare et in his tempus uite patrare!

Illa mesta tristisque lugubris opponi non potuit; tunc anulus per medium diuisit et sua pars unuicuique mansit.

Illa fecunda manet. Quadraginta numero elapsi sunt dies quibus nuptie celebrare facte sunt quando de Felice recessit ille. Primo per Romam commisit, secundo Iherusalem, tertio in Sanctam   -[fol. 253r]-   Catherinam; similiter per similia loca suum tempus consummabat.

Felix ut exanimis tristis in suo comitatu mansit; que tempore suo filium peperit qui bonus, nobilis et bene patrissans erat et, cum in aetate positus decima octaua esset, patrem indagare si reperire posset, per quascumque seculi partes peregrinando proposuit. Dum sic laboraretque operam daret, nequiuit eum finaliter inuenire. Veruntamen in Ytalia locum repperit per quem cunctos opportere transire decebat; nullus tamen transibat qui ei uel nomen diceret ui uel gratuitu.

Post magni temporis curriculum, ecce senex Guinus canus, fragilis et curuus, solus ut romipita cum suo fuste solo uenit.

Cui filius: cedo nomen.

Cui respondens: seruitor dei et uirginis, ait.

Cui filius: de solo nomine baptismi quero.

Qui, nequaquam, ait, dicam.

Tum filius: ui ut illud dicas faciam.

Illo declinante confiteri, habita inter eos est pugna. Senex ut se melius poterat defendebat. Filius, quia senem inhermen uidebat, percutere nolebat, finaliter ille furoris habenas laxauit et locum prebuit seni.

Post diuturnum tempus in Angliam reuenit senex et Felicis domum uisitauit, sedens cum pauperibus ut solitas elemosinas ibidem ederet. De uita Felicis nimium ei libuit quia queque gerebat pro mariti anima gestabat, credens non uiuum sed mortuum martitum quia adeo de eo nunquam ad eam noua peruenerant. Ille cute rugosaque denigrata multumque mutatus colore dissimilis ualde tempora incognitus omnibus erat. Verba cuius [ut] alia non mundana sed anime salutiferaque dulcia, quibus detenta Felix ceteris plus eum diligebat.

Ecce dies qua ille Felicem dei amore et Guini anima sui uiri petiitque orauit quod heremitorium leucam ab oppido Baruic distans edificari preciperet, in quo dies paucos in dei amoreque seruitio finiret. Illa uero illius nomen audiens quem conceptum in mente tanto amore tenebat: placet, inquit; et opere compleuit ibidem.

Senex uitam miseram ferebat, quandoque Felicis aulam uisitabat ut refectionem cum aliis pauperibus summeret, quandoque uictum aliunde querebat.

Tempore quo sic uiueret extraneus rex in Angliam uenit ut suo dominio illam supponeret et habito prelio deuictus rex Anglie est et conclusus in ciuitate timore manebat. Ad quem rex pugnans legationem mandauit ut si in suo regno pugnator uir tantus esset qui pugnam cum Colibronte suo gigante accep[t]are uelet el [si] eum (quod absit) fortuna iuuante tristi omine uinceret, rediret in suum regnum et pacifice illum sineret; sed si Colibrontem fortuna iuuaret liuore, tunc rex Anglie illi tributum certum preberet.

Ad duellum neminem anglicus iuenit, quom nocte una anxius rex et spiritu afflictus toreumate iaceret, uox ecce illius aures pulsauit diuina: ad ianuam solis aurora rutilante more solito perge, uidebisque senem ueste alba indutum; hic cum gigante prelium faciet et uincet.

Explicita iam tenebris aurora ualue prefuit rex ut assuetus erat pecuniam pauperibus erogando. En senem uestibus albis indutum fustem manu tenentem ut ceteri mendicantes tenere solent. Quem ut uidit, cognouit de quo lata uox erat hic senex totus albus longo corpore protractus. Quem rex postquam in atrium asportauit, ei supplicuit et rogauit quod de seruitute regnum liberaret et duellum intraret.

Qui respondens ait: bone rex, senectus et meis deficientes corporis uires me excusant; etiam ualidissimi uiri suppleant tui regni quod a me deposcis.

Cui rex: neminem duello se disponentem reperio.

Culpa mihi non est, infit ille, forte iuuenis feceram.

Iterum rex precibus supplicat illi ut dei amoreque uirginis Marie anglicum regnum liberum a subicione faciat.

Cui senex: tantorum dominorum amore me tue summito petitioni.

Letus rex nuntium Ouio regi misit ut presto ad pugnam gigantem pararet. Ecce positus in aruo armatos, deinde iurati sunt reges inter eos statuta seruasse.

  -[fol. 253v]-  

Duo igitur illi pugnam inceperunt, omnes tamen, preter regem, de sene ambigebant, qui solus in deo spem uoce promulgante uictoriam tenebat; etiam magnanimum illum quia dispositum ad arma uidebat. Ceteri in agricolarum numero eum existimabant nec arte militari unquam fungi.

Pedestres igitur se icere exercuerunt primo uenabulis; quibus fractis, assunt manibus mucrones arrepti. De senis ictibus omnes ammirabantur, quia in nihilo eum superabat gigas et laus antiquo exhibebatur.

Cui gigas: oro ut potum sumamus de fluuii aqua secus currentis.

Cui senex: sitim non patior.

Iterum orauit et fas impetrauit nobilitatisque curialitatis causa. Bibit ergo solus et se ut primo quietum inuenit pugnamque fortius cepit. Se ut melius poterat defendebat senex, assiduat ictus gigas et male tractat senem qui resistere tante furie appetens descendit dextra et galea se muto abdidit; quem cudere sine fractura nequiuit, ludere siccus cepit.

Tum ait illi senex: urbanitatem quam me potu recepisti recipiam a te et da otiumque licentiam ut bipennem de inter illa que geris arma curru assumam.

Cui gigas: absit ut mee fauorabilis sim neci; uide, quid petis concedi minime potest, sed modicum infra fatuitas quam incepistis apparebit.

Cepit igitur illum acriter ictibus ferire. Sed omnipotens deus cun[c]tos suos iuuans posse illi dedit ut currui accederet in quo gigantis arma dupla erant; bipennem igitur arripuit et tota ui ut potuit humerum ictu amputat. Qui cadens ad terram deuenit. Forcius eum tunc dextra feriebat gigas ipsumque similiter senex. Ecce ictus superdescendit gigantis ulnam et cissa mucrone descendit ad planum quo iam uiduatus membro utroque dentibusque uertice ruit in senem tauri ludo. Sed labor eius inanis, quom mors proxima appropinquabat; non diu susti[n]uit, sed mox cecidit. Cuius caput uictor scidit, et, genibus flexis, eximias deo exhibuit gratias oratione quia tanta sua pietate peccatori et indigno in eius naturali patria fecerat.

Quom rex gigantem mortuum uidit similiter gratias deo altissimo exhibuit quia eorum sic misertus est. Rex uero Ouius alter secessit tristis et sua regna petiuit. Anglicus quidem nimium antiquum honorabat, rogans eum uelle manere secum et maiorem illiun ceteris sui regni faceret.

Is, referens gratias, ait: o rex bone, me redire in meum heremitorium concede quia ipse maiorem terram non opto quam possideo illa.

Iterum rex precibus rogat ut eius uellet obtemperare dictis. Ille se excusans cum efficacia licentiam petit.

Tum rex uidens se in uanum orare fas concessit et rogauit ut nomen et non denegaret suum quia anglicum ipsum suus sermo ostendebat. Incognitus tamen is omnibus erat quom triginta annos et ultra in peregrinatione fuerat et mortuorum numero tenebatur. Illius tamen milite gesta omnibus publica erant.

Tum sic respondens regi ait: te posco, rex bone, ne me culpaueris quia satisfacere tue petitioni nequeo. Tum rex cum ceteris concomitati sunt illum per leucas duas. Et priusquam rex diceret uale, sic ait: mi bone amice, te dei amore exoro ut petitioni satisfacias et mihi nomen non deneges, et fide mea reuera promitto ut nulli detegam illud.

Cui senex: bone rex, mihi sacramentum facite quod nulli nomen in quantum uixero denudetur.

Placuit regi et nomen exposuit.

Quom rex audisset illum Baruic comitem esse, horruit ammiratione nimia. Et ore cum gaudio magno obsculatus est. Et ait: iam letus redibo quia mihi nomen abstulit tristitiam que curam longam fecerat si personam demostratam non agnoueram ipse.

Deo gracias. Historia latine exarata



Em tradução, temos:

Havia em Inglaterra noutro tempo o conde de Barwic, como era seu nome na língua da terra. Tinha ele, a esse tempo, uma filha de nome Felice, por quem o passavante Guino mantinha un amor do fundo da alma e de um momento para o outro, fora de si de amor, caiu de cama. Condoiam-se em extremo por ele não só o conde, mas também outros, pois ele era humilde, distinto, bem falante, afável e excelente entre todos.

Ora, estando já às portas da morte, Felice foi ter com ele. Não sabia ela do amor que ele lhe tinha e perguntou-lhe como é que se deixava chegar assim à morte, com uma doença desconhecida. A custo pôde ele significar-lhe por palavras aquilo que tinha no coração e que se não proporcionasse remédio de pronto desfaleceria de todo, pois a morte estava perto.

Ela que logo se apercebeu do que se passava, respondeu-lhe avisadamente: amigo Guino, recobrai ânimo, sem demora, peço-vos; já que me tendes amor, assim me apraz amar-vos também; por vontade de Deus tão grandes feitos emprendereis pelas armas que nem o que se diga entre o povo nem o receio das situações será impedimento e de acordo com o vosso desejo far-se-á o que pretendeis.

Cheio de alegria, Guino ganhou ânimo, remoçado. Alguns dias depois, por outro lado, levantou-se e já de perfeita saúde pediu ao Conde que o fizesse cavaleiro, pois pretendia entregar-se a feitos de cavalaria. Agradou isso, por sua vez, ao Conde, que o encomendou a Deus para que incluisse o seu nome na cavalaria. Depois disso, acompanhado de dois escudeiros, dirigiu ele os seus passos a França e Alemanha. Aí foi realizando tantos feitos que por todos era estimado e louvado não a penas pelos feitos de armas mas também pela sua cortesia e larga generosidade. Por toda a parte do mundo voa a sua fama e já ela ia alastrando. Por tal motivo, voltou ao palácio do Conde, o qual o recebe com largos aplausos de alegria.

Alguns dias depois, dando conta de toda e cada uma das gestas que realizara em atenção a Felice, pediu o seu amor.

Ela responde-lhe: Guino amigo, enquanto não levardes a cabo tão grandes façanhas que em nossos dias adquirais renome de valoroso cavaleiro, não satisfarei o pedido, pois nem para mim nem para vós haveria honra bastante.

De tal segredo, todavia, ninguém, fora eles, tinha qualquer conhecimento. Anuiu ele e pede autorização ao Conde; seguidamente, retira-se para Itália e Roma e depois para a Grécia e Prússia. Aliás, onde quer que tomasse conhecimento da existência de cavaleiros valorosos, ele os procurava. Em suma, de cada vez realizava façanhas maiores do que antes e nunca ficou vencido. Por tal motivo, conquistou o nome do melhor cavaleiro do mundo inteiro no seu tempo.

Ora, tendo Felice por esse tempo sido convidada por seu pai a casar, recusou, solicitando que não lho impusesse até ela o propor.

Quando, pois, Guino se apercebeu de que praticara tanta gesta que a fama não lhe escaparia, mas mais o tornaria desejado, voltou a Inglaterra e foi recebido com honrarias por todos, particularmente pelo Conde, como se fosse seu filho, prometendo ele fazer tudo o que fosse para aumentar o seu poder.

Alguns dias mais tarde pediu amor. Em resposta disse-lhe ela: entregarei a decisão a meu pai; se ele o ordenar, obedecerei.

Dirigiu-se Guino ao Conde e disse: peço a tua filha, Conde, para quem a deseja se a ela for do seu agrado.

Interpelada, ela responde: sou filha, faça-se a vontade de meu pai.

Celebrado o matrimónio, toma-a ele por esposa. Poucos dias depois, morreu o Conde. Guino foi então feito Conde. Olhava ele uma noite para o céu estrelado e meditava nas obras divinas que hão de manter-se e nas mundanas que hão-de perecer e bem assim no infortúnio de muitos a quem dera a morte por causa dos louvores do mundo, e no seu coração formou o propósito de deixar a esposa e entregar-se ao serviço de Deus por lugares estranhos, peregrinando de terra em terra enquanto tivesse dias de vida, que são curtos. Ai! doce amiga, disse, por amor de ti perdi o amor de Deus e pratiquei más acções contra a sua vontade; reconheço que errei e desejo emendar-me, tomando o caminho de Jerusalém e de outros locais que os romeiros têm por costume visitar e neles passar o tempo de vida.

Ela, acabrunhada de tristeza e em pranto, não foi capaz de o contrariar. Então partiu o anel em dois e para cada um ficou a sua parte.

Ela estava grávida. Haviam-se passado quarenta dias desde que fora celebrado o casamento, quando ele partiu de junto de Felice. Primeiro, fez caminho por Roma; segundo, dirigiu-se a Jerusalém; terceiro, a Santa Catarina; com intenção idêntica, passava o seu tempo por locais semelhantes a estes.

Felice, desfalecida pela tristeza, permaneceu no seu condado. No devido tempo, deu à luz um filho. Era ele bom, nobre e muito parecido com o pai.

Ao atingir a idade de dezoito anos, propôs-se ele ir em busca do pai, percorrendo todas as partes do mundo a ver se conseguia dar com ele. Mau grado as canseiras e os esforços feitos, não foi capaz alguma vez de encontrá-lo. No entanto, em Itália, chegou a um lugar por onde tinham todos de passar a seu tempo. Ninguém, todavia, passava que lhe indicasse ao menos o nome, fosse à força fosse espontâneamente.

Passado um período de longo tempo, eis que Guino, encanecido, fraco e encurvado, só, como um romeiro, apenas com o seu bordão, se aproxima.

O filho diz-lhe: para cá o nome.

Respondeu-lhe: sou um servidor de Deus e da Virgem.

Diz-lhe o filho: só pergunto pelo nome de baptismo.

Volve-lhe ele: nunca o direi.

Então o filho: farei que o digas à força.

Negando-se ele a confessá-lo, travou-se luta entre os dois. O ancião defendia-se o melhor que podia. O filho, ao ver o ancião sem forças desistiu de bater-lhe. Por fim relaxou as rédeas do seu furor e deixou o local ao ancião.

Passado longo tempo, o ancião regressou a Inglaterra e foi até ao palácio de Felice, tomando lugar com os pobres a fim de aí receber comida das esmolas costumadas. Muito lhe agradou a vida de Felice, pois tudo quanto ela fazia, era por alma do marido, considerando que o marido não estava vivo, mas morto, pois nunca até ali dele lhe tinham chegado notícias. Ele, com a pele enrugada e enegrecida e diferente do que tinha sido pela alteração do semblante passava os tempos completamente desapercebido a toda a gente. As suas palavras não eran mundanas, como as dos outros, mas agradáveis e salutares para a alma, de tal modo que atentando nelas Felice gostava mais dele que dos outros.

Eis que um dia em que ele se dirigiu a Felice e por amor de Deus e por alma de Guino seu marido lhe pediu que mandasse edificar um ermitério a uma légua de distância do castelo de Barwic, onde acabasse os seus poucos dias no amor e no serviço de Deus. Ela, por sua parte, ao ouvir o nome daquele que mantinha gravado com tanto amor no seu espírito, respondeu: estou de acordo. E imediatamente lhe mandou dar execução.

O ancião levava vida de pobre; uma vezes vinha até ao palácio de Felice para tomar a refeição com outros pobres, outras vezes procurava de comer por outra parte.

Ao tempo em que ele assim vivia, chega um rei estrangeiro a Inglaterra com o intento de a submeter ao seu domínio. Travada batalha, ficou vencido o rei de Inglaterra e permanecia ele encerrado na cidade, com medo. O rei que oferecia combate mandou-lhe uma mensagem no sentido de que se no seu reino houvesse um homem tão lutador que quisesse aceitar luta com o seu gigante Colibronte e se acaso por triste sina (para longe fosse o agoiro) o vencesse, voltaria ao seu reino e deixá-lo-ia em paz, mas se a fortuna favorecesse na luta a Colibronte, então, o rei de Inglaterra prestar-lhe-ia tributo certo.

Para o duelo, o inglês não encontrava ninguém, quando, uma noite estando o rei perplexo e preocupado a pensar, no seu leito, eis que uma voz divina bateu aos seus ouvidos dizendo: ao despontar da aurora, vai, como costumas ir até à porta e verás um ancião revestido de uma veste branca; será ele quem travará combate com o gigante e o vencerá.

Desembaraçada já a aurora das trevas, pôs-se o rei à frente da porta, como costumava, distribuindo dinheiro aos pobres. Eis que chega o ancião, de vestes brancas e segurando o bordão como os outros mendigos costumam fazer. Logo que o viu, apercebeu-se de que era a respeito dele que lhe chegara a voz. Era um ancião todo de branco, corpo longo, encurvado. O rei, logo que ele entrou no átrio, suplicou-lhe insitentemente que libertasse o reino da escravidão e travasse o duelo.

Ele respondeu: bom rei, a velhice e as forças do corpo escasseiam e impedem-mo; outros homens de grande valentia do teu reino podem satisfazer o que me pedes.

Volveu-lhe o rei: não encontro ninguém que se disponha para um duelo.

A culpa disso não é minha, respondeu-lhe ele; acaso o faria enquanto mais novo.

De novo o rei lhe suplica em rogos que por amor de Deus e da Virgem Maria livre o reino de Inglaterra de uma sujeição.

Volveu-lhe o ancião: por amor de tão grandes senhores acedo ao teu pedido.

Cheio de contentamento, mandou o rei um mensageiro ao rei Óvio a fim de preparar sem demora o gigante para o combate.

Ei-los colocados com as suas armas em campo aberto. De seguida os reis juram observar o estabelecido entre eles.

Os dois começaram, pois, a combater. Todos, porém, duvidavam do ancião, salvo o rei que era o único que punha a sua esperança em Deus que por uma voz dera a saber a vitória. Também ele o considerava de grande valentia ao vê-lo disposto a combater; os outros julgavam-no saído dos aldeões sem nunca ter praticado as artes militares.

A pé, pois, começaram primeiro a bater-se com venábulos; quebrados estes, pegam em espadas e lutam corpo a corpo. Todos ficam admirados com os golpes do ancião, pois em nada lhe levava vantagem o gigante e para o ancião iam os aplausos manifestados.

Disse-lhe o gigante: peço que bebamos da água do rio que corre próximo.

Respondeu-lhe o ancião: não tenho sede.

De novo ele rogou e implorou autorização em nome da nobreza e da cordialidade.

Bebeu, pois, sozinho e achou-se com a mesma disposição de início, retomando o combate com maior ímpeto. O ancião defendia-se o melhor que podia, intensifica os golpes o gigante e maltrata o ancião, o qual, procurando resistir a tamanha fúria, se inclina sobre a direita e se esconde no elmo sem nada dizer. Não conseguindo bater-lhe sem sofrer fractura, começou a brincar em seco.

Então diz-lhe o ancião: a gentileza que de mim recebeste para beber peço-te que ma retribuas e me concedas descanso e autorização para pegar no bipene de entre as armas que trazes no carro.

Responde-lhe o gigante: era o que faltava que eu fosse contribuir para a minha morte; vê bem: o que pedes não pode ser concedido de forma alguma, mas dentro em pouco a loucura que encetaste ficará patente.

Começou, pois, a bater-lhe rudemente com golpes sucessivos. Mas Deus omnipotente que ajuda todos os seus deu-lhe possibilidade de se aproximar do carro em que estavam os machados de dois gumes do gigante; agarrou, pois, um bipene e com toda a força que pôde decepa-lhe um ombro num golpe. Ele descaiu e ficou por terra. Com mais força lhe atirava então o gigante com a direita e o mesmo fazia o ancião. Eis que um golpe se abate sobre o antebraço do gigante e atingido pelo fio da espada descai para o chão. Daí, privado agora de ambos os membros atira-se sobre o ancião, à dentada e à cabeçada, em luta de touro. Mas o esforço foi inútil, pois já a morte se avizinhava de perto; não aguentou por muito tempo, e depressa tombou. Vitorioso, ele cortou-lhe a cabeça e, de joelhos, rendeu intensas graças a Deus, em oração, já que tão grandes coisas lhe fizera na sua piedade a ele indigno pecador na sua pátria de origem.

Quando viu morto o gigante, o rei deu igualmente graças a Deus altíssimo, pois se tinha compadecido deles. O outro rei, Óvio, porém, retirou-se abatido e dirigiu-se para os seus reinos. O inglês, por seu lado, prestava as maiores honras ao ancião, pedindo-lhe que aceitasse ficar com ele e fá-lo-ia maior que os outros do seu reino.

Ele, agradecendo, diz-lhe: bom rei, concede-me que volte ao meu ermitério, pois mais terra não desejo do que aquela que possuo.

De novo o rei insiste em pedir-lhe que aceite corresponder ao que lhe propusera. Ele recusa com determinação e pediu licença para se retirar.

Então o rei, vendo que era vão insistir, autorizou-o a partir e rogou-lhe que não lhe recusasse o seu nome, pois a sua fala mostrava que era inglês. Era, todavia, desconhecido de toda a gente, pois, há mais de trinta anos andava fora da sua terra e era considerado do número dos mortos. Os seus feitos de cavaleiro, porém, eram manifestos a todos.

Então assim respondeu ao rei: bom rei, peço-te que não me leves a mal por não poder satisfazer ao que me pedes.

Então o rei com outros acompaharam-no por duas léguas. Antes de se despedir, diz-lhe o rei: meu bom amigo, peço-te, por amor de Deus, que satisfaças o meu pedido e não me recuses o teu nome e por minha fé te prometo deveras que a ninguém o revelarei.

Responde-lhe o ancião: bom rei, dai-me a garantia de que a ninguém ele será revelado enquanto for vivo.

Anuiu o rei e ele deu-lhe a conhecer o seu nome.

Quando o rei ouviu que ele era Barwic, ficou fora de si cheio de espanto e beijou-o com grande júbilo. E disse: regressarei agora com alegria, pois esse nome tirou-me a tristeza que me haveria de fazer grandes cuidados se não ficasse a conhecer a pessoa que tinha na minha frente.

Graças a Deus. História lavrada em latim.



A colocação deste conto no final de um antigo leccionário do ofício (Lectionnarius nocturnalis, como se lê no incipit), revela sem dúvida uma intenção que não pode ser outra que a de tornar em hagiografia o que na base não passa de um romance de cavalaria. A razão está certamente em que nele se reviam os monges de Alcobaça em momento que julgamos dever colocar em meados do séc. XV, em período em que o convívio com gentes inglesas lhes terá posto ao seu alcance este conto, trazido de Inglaterra.

É mais que evidente a existência de motivos literários que ficam ou reduzidos ou sem seguimento: falta o reencontro final pressuposto na partilha do anel de casamento que não chega a realizar-se; nada consta da sorte do filho de Guino e Felice que nem chega ao reconhecimento do pai nem deixa mais qualquer rasto depois da luta que ambos travam numa encruzilhada longe da sua terra... A falta de integração desses motivos cegos, se constitui elemento menos valorativo na estruturação narrativa, deixa entrever que a intencionalidade na recolha do conto está para além dessa preocupação de mantener a unidade literária. Mas com isso ressalta a própria mensagem: a entrega ao serviço de Deus, em vida retirada, é mais favorável aos próprios homens do que as proezas que alguém possa fazer, porque mesmo nestas só o favor divino é determinante.

Os filhos de S. Bernardo que liam o Livro sobre as glórias da nova milícia tinham aqui a exemplificação «dessa nova milícia, superior a qualquer outra, porque feita de luta sem trégua em dupla frente: contra homens de carne e osso e contra as forças espirituais do mal». É que, continuava o santo patrono, «fazer frente com as forças do corpo a um inimigo poderoso nada tem de extraordinário nem é nada raro; por outro lado, travar batalha com a disponibilidade do espírito contra os vícios ou contra os demónios nem isso é de admirar, ainda que seja de louvar, pois vê-se o mundo cheio de monges; mas quando é uma e mesma pessoa a cingir-se com o poder da espada e a tornar-se assinalado pela nobreza do seu hábito, quem é que não considerará que é digno da maior admiração, ainda que pareça insólito? O cavaleiro efectivamente destemido e forte em toda a sua pessoa é aquele que tal como reveste o seu corpo de ferro também reveste o espírito da couraça da fé; munido com uma e outra arma não teme nem o demónio nem o homem» (Liber de laude novae militiae, I, 1). A correcção de abusos, ou apelo à entrada no mosteiro não careceria provavelmente também de oportunidade. Este pequeno conto servia para ambos os efeitos e prolongava, em exemplum, a doutrina de Bernardo: «Todas as vezes que entras em combate tu, que militas nas fileiras de um exército exclusivamente secular, deverias temer duas coisas: matar o inimigo corporalmente e matar-te a ti mesmo espiritualmente, ou que ele possa matar-te a ti no corpo e na alma» (Ib. II, 2). A mensagem do conto tradicional que chega do estrangeiro é assim retomada e orientada. A felicidade não pode ser obtida neste mundo e há que assegurá-la no outro ainda que à custa de separação familiar, para cada um se entregar ao serviço dos outros e à prática de boas obras. A separação do mundo fica aqui mais acentuada, quando esquece o reencontro final entre marido e esposa.

Várias chamadas de atenção (nove, ao todos) nas margens do texto, no manuscrito, põem em evidência o sentido da leitura procurada. Os momentos da narrativa retidos são: 1) decisão de Guino de abandonar o mundo; 2) luta entre pai e filho; 3) construção do ermitério; 4) resposta divina à inquietação do rei; 5) anuência de Guino quando instado pelo rei em nome de Deus e da Virgem Maria; 6) suspensão momentânea do combate no duelo; 7) momento de sorte favorável a Guino; 8)insistência de Guino para voltar ao ermitério; 9) revelação do nome, sob juramento de não ser revelado.

Essas notas são contemporâneas do primitivo lançamento do texto no manuscrito alcobacense. A intencionalidade de retenção não pode ficar mais em evidência com estas reacções à leitura.

Quem será o autor desta historia latine exarata, que mais não é que um resumo do Romance de Guido de Warwick? Um anónimo, que trairia o espírito e a mensagem do próprio conto se deixasse a sua subscrição no final do texto7.

Aceitemos que a transmissão desta história é fruto do encontro de alguém com o grupo dos monges de Alcobaça, por quem foi acolhido e com quem trocou experiências de outras terras.

Em alternativa, o conto poderia ter sido recolhido na própria corte portuguesa, onde o Abade de Alcobaça fora chamado, desde 1440, na regência do Infante D. Pedro, para conselheiro, nas funções de esmoler-mor.

Que a presença de ingleses, a partir de finais do séc. XIV, contribuiu para trazer para Portugal livros e narrativas da sua terra sabemo-lo por outras vias. A Confessio amantis de John Gower é um exemplo conhecido; dessa obra foi feita uma tradução portuguesa (hoje perdida) por Roberto Payno, cónego da catedral de Lisboa, mas certamente ligado à corte na pessoa de Tomas Payn (Payno), secretário e tesoureiro da rainha, Dona Filipa de Lencastre, de origem inglesa8.

De reter, porém, que agora o texto não seja dado em vernáculo, mas em latim e que no final se acentue tal circunstância. Naquele período, era a língua vernácula que esperaríamos, como se verifica por outros testemunhos, nomeadamente pelo incremento das traduções, que têm lugar na corte e noutras partes, como no mosteiro de Alcobaça, onde a intervenção de D. Estêvão de Aguiar, vindo do estrangeiro e animado de intenções renovadoras, aproveita orientações já anteriores.

Não há razão para julgar que a versão latina do Romance de Guido de Warwick, tenha sido feita para responder a intenção de incluir o texto no final do leccionário do ofício (tratando-se de um leccionário de matinas, com homiliários, nada faz supor um aproveitamento de leitura suplementar neste texto). É bem mais provável que o conto tenha sido recolhido directamente em latim.

Por outra parte, se não há propriamente léxico que denuncie a origem de tal versão, há pelo menos uma particularidade, pouco vulgar, que chama a atenção: é o uso da partícula copulativa -que associada não ao segundo membro de um grupo (como era usual), mas ao primeiro. Sendo um pequeno traço, não deixa de supor uma certa familiaridade e habituação para não causar estranheza; no meio português parece-nos uma particularidade difícil de explicar. Na primeira parte do séc. XV, em Alcobaça só registamos, efectivamente, o nome de Martinho de Alcobaça que escrevesse em latim; mestre de noviços em 1410, compôs um pequeno tratado de gramática e deixou em colofões modalidades de expressão um tanto rebarbativas, mas não consta nem num lado nem noutro tal particularidade9. Não nos parece assim que devamos atribuir a tradutor português tal versão.

A data a que atribuimos o lançamento, e que temos de confiar a critérios paleográficos, leva-nos a meados do séc. XV. Não é pouco significativo que justamente a esse período remonte o interesse declarado de príncipes portugueses pelo Romance de Guido de Warwick. A dedicatória do Tirant lo Blanc por Joan Martorell10 dirigida ao príncipe D. Fernando de Portugal (n. 1433, m. 1470) escrita entre 1464 e 1466, não deixa dúvidas. Por muito tipificada que possa considerar-se é testemunho manifesto desse interesse. Mais difícil é de determinar o valor do expediente de Martorell em remeter para aquela personalidade a iniciativa de lhe confiar uma tradução de Guillem de Varoic da língua inglesa para «a língua portuguesa», baseado em que a presença do valenciano em Inglaterra lhe dera conhecimento da língua original. Na verdade, nada consta relativamente à competência de Joanot na língua portuguesa que o habilitasse para tal. Mas se a denegação, como noutros passos, esconde também aqui apropriação ou dependência alheia, haveria que encontrar uma base de contestação para afirmação tão peremptória de Martorell11. Este texto de Alcobaça, se não resolve a questão, não deixa de ser mais um dado a ter em conta. Até porque a legenda de Guido de Warwick, na versão do Alcobacense, apresenta variantes relativamente ao Guillem de Varoic de Martorell e não há que supor que a dependência se cria com ele. O afastamento está no próprio nome da personagem12.

Aires A. NASCIMENTO.
Universidade de Lisboa.





 
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